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Livro – Maurício Soares Leite. Transformação e persistência: antropologia da alimentação e nutrição em uma sociedade indígena amazônica (FIOCRUZ – 2007)

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LEITE, MS. Transformação e persistência: antropologia da alimentação e nutrição em uma sociedade indígena amazônica [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007. 239 p. ISBN 978-85-7541-137-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de

Transformação e persistência: antropologia da alimentação e

nutrição em uma sociedade indígena amazônica

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Transformação e Persistência:

antropologia da alimentação e nutrição

em uma sociedade indígena amazônica

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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente

Paulo Marchiori Buss

Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação

Maria do Carmo Leal

EDITORA FIOCRUZ Diretora

Maria do Carmo Leal Editor Executivo

João Carlos Canossa Pereira Mendes

Editores Científicos

Nísia Trindade Lima e Ricardo Ventura Santos

Conselho Editorial

Carlos E. A. Coimbra Jr. Gerson Oliveira Penna Gilberto Hochman Lígia Vieira da Silva

Maria Cecília de Souza Minayo Maria Elizabeth Lopes Moreira Pedro Lagerblad de Oliveira Ricardo Lourenço de Oliveira

COLEÇÃO SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS

Editores Responsáveis: Ricardo Ventura Santos Carlos E. A. Coimbra Jr.

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C OLEÇÃO S AÚDE DOS P OVOS I NDÍGENAS

Maurício Soares Leite

Transformação e Persistência:

antropologia da alimentação e nutrição

em uma sociedade indígena amazônica

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Copyright © 2007 do autor

Todos os direitos desta edição reservados à

FUNDAÇÃO OSWALDOCRUZ / EDITORA

ISBN: 978-85-7541-137-7 Capa

Danowski Design Ilustração de capa

Detalhe de trançado em palha dos índios Wari’, Rondônia, Brasil Projeto gráfico e editoração eletrônica

Angélica Mello e Daniel Pose Vazquez Revisão e copidesque

Jorge Moutinho Supervisão editorial

Marcionílio Cavalcanti de Paiva

Catalogação na fonte

Centro de Informação Científica e Tecnológica

Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

2007

EDITORA FIOCRUZ

Av. Brasil, 4036 – 1o andar – sala 112 – Manguinhos

21040-361 – Rio de Janeiro – RJ Tels.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006

http://www.fiocruz.br e-mail: editora@fiocruz.br

L533t Leite, Maurício Soares

Transformação e Persistência: antropologia da alimentação e nutrição em uma sociedade indígena amazônica. / Maurício Soares Leite. – Rio de Janeiro : Editora Fiocruz, 2007.

239 p., il., tab. (Coleção Saúde dos Povos Indígenas)

1.Alimentação. 2.Índios Sul-Americanos. 3.Antropologia Cultural. I.Título. CDD - 20.ed. - 980.41

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Para Adriana, Mariane e Hedy. E para meus pais, Abelardo e Cleia, Wao Ho e Wem Camain.

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Sumário

Prefácio ... 9 Apresentação ... 13 Introdução ... 21 1. Os Wari’ ... 33 2. Subsistência...51

3. Transformação e Persistência: práticas alimentares wari'...77

4. Consumo Alimentar...123

5. Perfil Nutricional...163

Conclusões ... 189

Referências ... 221

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Prefácio

Eis-me aqui, fazendo o prefácio do livro de Maurício Leite. Recebi o convite com alegria e o aceitei de forma mais impulsiva ainda. Entretanto, na hora de escrevê-lo ‘caí na real’, como diriam os mais jovens. Pensei: “Nunca antes fiz um prefácio; como devo proceder para escrever um?”.

Resolvi então escrever sobre aquilo de que mais gostei no trabalho de Maurício, desde a primeira vez que li sua tese de doutorado, produzida entre o grupo indígena Wari’, no estado de Rondônia, que originou o livro que ora prefacio. Escrevo então sobre o afeto, a sensibilidade e outras várias emoções e reflexões que o trabalho nos evoca.

A primeira delas trata da afirmação de um Wari’ sobre Maurício, com a qual o próprio autor abre a apresentação do livro. Dizia o Wari’: “Maurício, você quando chegou aqui era muito burro, mesmo. Você não entendia nada”. A frase me levou a pensar sobre minhas próprias burrices, e as burrices de todos nós ao adentrarmos o mundo indígena. São inevitáveis as gafes, as grosserias involuntárias, as quebras da etiqueta nativa... Enfim, temos sempre uma completa inadequação de comportamento. É notável, nessas circunstâncias, a infinita paciência dos índios com as nossas limitações de conduta, de saberes e de habilidades necessárias à sobrevivência cotidiana. E o mais lamentável é que boa parte de nós sequer percebe a enorme benevolência de que os indígenas lançam mão, para suportar nossa desastrada presença em seu meio. Porém, o problema maior não é entrarmos ‘burros’ numa área indígena, é permanecermos ‘burros’; ou, ainda pior: há os que, convencidos de sua própria sapiência, aferram-se a ela, incapazes de dar pelo menos uma olhadinha no ponto de vista de seus anfitriões.

Não é, absolutamente, o que o leitor encontrará ao longo das páginas deste livro. Uma das características mais notáveis no trabalho desenvolvido pelo autor é sua fina sensibilidade aos valores e necessidades dos Wari’ e sua aguda percepção da rudeza e dos limites da nossa ciência, pouco capaz de apreender, por exemplo, a coerência entre a visão de mundo wari’ e suas práticas sociais, dentre as quais aquelas ligadas à alimentação. Assim sendo, ao longo dos capítulos que se seguem, apreciamos o incessante esforço de Maurício Leite para superar o habitual

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diálogo estabelecido apenas nos termos definidos por nossas formações profissionais e perseguir uma interação produzida segundo os moldes wari’.

Desse modo, o nutricionista se transmuta em antropólogo e parte para a observação participante do cotidiano alimentar do grupo. A experiência aqui relatada nos oferece um vislumbre do grau de dificuldade enfrentado pelo autor, que persegue a superação dos estreitos limites do sanitarismo científico e torna-se um Wari’ honorário. Na sua busca de informações sobre a alimentação, o pesquisador é ‘consangüinizado’ pelos Wari’, que logo lhe providenciam uma família, constituindo-o cconstituindo-omconstituindo-o parente, pconstituindo-or meiconstituindo-o da partilha cconstituindo-otidiana da cconstituindo-omida. Fconstituindo-oi sconstituindo-omente a adconstituindo-oçãconstituindo-o de Maurício pelo grupo que viabilizou o desejado acesso ao consumo rotineiro de alimentos e nos proporcionou uma notável e minuciosa descrição sobre as práticas alimentares do grupo, superando a vacuidade do recordatório alimentar e a dureza dos descontextualizados números obtidos em perfis nutricionais.

Essa é uma interessante viagem que nos leva a uma primeira reflexão sobre a prática antropológica. Quão interessantes e enriquecedores podem ser as etnografias feitas por pesquisadores com formações técnicas especializadas, que se mostrem capazes de superá-las – ainda que sem negá-las – produzindo então uma riqueza etnográfica, que facilmente passaria despercebida ao antropólogo carente de conhecimento técnico específico sobre as nuances da nutrição e da alimentação. Ou seja, estamos tratando aqui dos desafios que se colocam para ‘o que fazer’ da antropologia, num mundo contemporâneo em que a maior parte das culturas indígenas já conta com estudos monográficos, e no qual encontramo-nos mergulhados no escrutínio de dimensões mais específicas dessas culturas, tais como a saúde, a nutrição, os processos de ensino-aprendizado e outros.

Esse não é, porém, o único aspecto instigante do trabalho em pauta. Ao longo dos capítulos, nos quais o autor persegue o entendimento das práticas alimentares wari’, ‘em contexto’, ele nos brinda com uma panorâmica das relações de reciprocidade, da cosmologia, da predação e da comensalidade, da etnomoral wari’ e de suas relações com a natureza e com a economia de mercado. É prazeroso e surpreendente constatarmos quanta coisa se descortina ao longo do fio de Ariadne representado pela temática da alimentação. Igualmente constatamos o quão redutora é a perspectiva biológica que habitualmente rege as ações de segurança alimentar no Sistema Único de Saúde (SUS) e em seu subsistema de saúde indígena. O texto consegue nos deliciar, não apenas pela variedade e complexidade de facetas que envolvem a alimentação entre os Wari’, mas também pelas implicações das informações ali contidas, na organização das práticas sanitárias dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ou de outros serviços de saúde a que os indígenas eventualmente recorram.

Ao apresentar a visão de mundo wari’ como paradigma a configurar as práticas sanitárias, o autor nos mostra quão agressivo pode ser um diagnóstico

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nutricional, quão inadequada pode ser a relação ensino-aprendizado nas práticas educativas em saúde e o quão insidioso e preconceituoso é o nosso senso comum, ao lidar com as formas de ser e de viver indígenas. Sabemos disso em abstrato, mas a pesquisa de Maurício Leite nos coloca diante de uma grande lente de aumento, examinando as minúcias do etnocentrismo contido nas mais bem intencionadas ações de saúde; ela joga luz sobre o grande fosso a ser transposto por todos aqueles que pretendem se aproximar das tão faladas práticas culturalmente sensíveis em saúde.

Outras perguntas inevitavelmente nos assaltam. Quando pensamos nas mudanças das condições de vida dos Wari’, ligadas à sua interação com a economia de mercado, nos obrigamos também a pensar: que implicações sociais, políticas e nutricionais podemos esperar do grande afluxo de comida industrializada na alimentação dos grupos familiares indígenas? É perceptível a inquietação do autor, que a repassa para o leitor, ante um percentual de 65,4% de alimentos industrializados, adquiridos no mercado regional, que surgiu no inquérito alimentar realizado entre os Wari’. O quadro se torna ainda mais sombrio com a informação de que tais alimentos responderam por 50% das calorias consumidas e por meros 24% da ingestão de proteínas. Ou seja, não apenas os Wari’ têm um alto grau de dependência de alimentos que não produzem, mas também estão convidados, assim como todos nós, a ocupar um espaço permanente, ainda que subalterno, na economia globalizada. Podem exercer o direito perverso de ocupar um assento no restaurante popular do mercado mundial de trash-food; de render-se à atração da comida hipercalórica que nos matará cedo demais, embora aparentem fazê-lo de forma lenta.

Como toda boa pesquisa, essas informações nos levam a pensar sobre outras realidades que conhecemos e a nos perguntar como o problema se expressará entre outros grupos indígenas com os quais trabalhamos. E, talvez, em última análise, a nos interrogar sobre nossa própria situação alimentar.

Igualmente perturbadora é a descrição das tensões evidenciadas, no momento atual, entre a partilha obrigatória de favores e alimentos e a recém-iniciada prática de venda de alimentos, que começa a alterar as regras da comensalidade entre os Wari’. Escusado falar sobre o impacto negativo dessas novas formas de convivência sobre o já preocupante perfil nutricional evidenciado pela pesquisa, e sobre o potencial incremento das iniqüidades que rondam os grupos indígenas, particularmente quando comparados com o restante da população brasileira, cujos índices nutricionais, ao contrário do que ocorre entre os indígenas, melhoram a cada geração. A análise dessas mudanças nos é trazida de permeio com os matizes afetivos que envolvem a relação do grupo com o alimento, apreendidos de forma delicada pela pesquisa.

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Outras reflexões mais teóricas também são desencadeadas pela leitura do texto de Maurício Leite. Seja no caso dos Wari’, que abandonam um elemento central de seu sistema alimentar e de organização social, o milho; seja no caso de grupos rio-negrinos, com os quais trabalho, que deixaram de praticar o xamanismo e os ritos de passagem, surge uma pergunta que sempre emerge em nossas insônias: o que acontece numa sociedade quando um elemento central da estrutura social é abandonado pelo grupo? Como se rearranja a ordem social ante essa nova condição? Que contradições se instalam aí? O livro de Maurício Leite não oferece respostas para isso, eu tampouco as tenho. Mas os índios prosseguem vivendo nessas novas condições de vida, então prossigamos também nós, buscando respostas a essas, e a outras, inquietações apresentadas pelo ser indígena e pelo nosso próprio viver. Enquanto isso, deleitemo-nos com a leitura deste belo e instigante trabalho, fruto de uma nova e criativa geração de pesquisadores da saúde indígena.

Luiza Garnelo

Médica-sanitarista e antropóloga, doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professora de saúde coletiva da Universidade Federal do Amazonas e pesquisadora do Centro de Pesquisas Leônidas & Maria Deane, Fiocruz, Amazônia

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Apresentação

Sete meses após minha chegada à aldeia de Santo André, em certa ocasião eu conversava com um dos homens wari’, um agente de saúde. Em dado momento, relembrávamos meus primeiros dias na aldeia. Ele, rindo e em tom absolutamente amistoso, disse-me em bom português: “Maurício, você quando chegou aqui era muito burro, mesmo. Você não entendia nada.” Naturalmente, demos juntos boas risadas por conta da magnitude da minha ignorância, já ‘parcialmente’ minimizada, com relação tanto à língua como aos demais aspectos da vida e do pensamento wari’. Esse desconhecimento, infelizmente, não estava limitado a mim: meus interlocutores tinham muito claro para si o grau de desinformação dos brancos acerca de seu cotidiano e de seu modo de pensar.

No entanto, não foram poucas as vezes em que ouvi explicações dos brancos que trabalhavam com eles sobre os motivos da precária situação nutricional wari’, e que de modo geral os responsabilizavam por suas condições de vida e saúde: ora diziam-me que eles não alimentavam adequadamente suas crianças, ora que só tomavam a iniciativa de levar comida para casa quando já não havia mais o que comer; que não sabiam aproveitar adequadamente os alimentos ou simplesmente não queriam fazer roças. Nesse tipo de discurso, os Wari’ não sabiam como proceder adequadamente ou eram simplesmente indolentes; em ambos os casos, o resultado final era o comprometimento de suas condições de nutrição. Caberia aos brancos, portanto, orientá-los e ensiná-los a proceder corretamente. Como pretendo deixar claro ao longo das análises que se seguem, não posso concordar com esse tipo de visão, em qualquer forma.

Assinalo que contrasto as falas de um wari’ sobre um branco, e a dos brancos em geral sobre os Wari’, para chamar a atenção para um aspecto aparentemente óbvio, ou que ao menos deveria sê-lo, para os profissionais da saúde que atuam nessa e em outras populações indígenas, e que apresenta desdobramentos importantes. Refiro-me à idéia de que as condutas nativas, e aí incluem-se suas

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práticas alimentares, não resultam de mera aleatoriedade, mas seguem princípios e critérios específicos. Critérios lógicos e coerentes com suas visões de mundo.

O reconhecimento da existência desse conjunto de idéias e, mais que isso, o da sua legitimidade constituem pré-requisitos para o seu entendimento; este, por sua vez, é um passo essencial para o diálogo que qualquer tipo de atuação nessas populações inevitavelmente exige. Além disso, a idéia de que a situação nutricional indígena no país pode ser significativamente modificada pela identificação de práticas culturais deletérias do ponto de vista biomédico e, portanto, passíveis de correção com ações educativas corresponde a uma visão no mínimo distorcida das realidades locais, assim como da atuação dos profissionais da saúde nessas populações (Langdon, 2004). Mais que isso, trata-se de um conceito que assume ares etnocêntricos, civilizatórios e mesmo colonialistas, e nessa medida é logicamente inaceitável (Follér, 2004; Leite, 2005). Na vigência de fatores de ordem estrutural amplamente desfavoráveis, como os perfis de morbimortalidade, caracterizados pelo predomínio de doenças infecciosas e parasitárias, condições de saneamento precárias, relações econômicas desiguais e dificuldades com a produção de alimentos e geração de renda, para mencionar os mais evidentes, atribuir a precariedade da situação nutricional indígena a esse tipo de componente constitui uma espécie de ‘miopia’ metodológica, na melhor das hipóteses não-intencional.

A distância entre os discursos wari’ e não-indígena sinaliza ainda para o fato de que os primeiros, de modo geral, têm sido pouco ouvidos pelos serviços de saúde, e nisso incluem-se as questões de ordem alimentar e nutricional.1 Não me refiro a uma ausência absoluta de diálogo, nem afirmo que eles não sejam ouvidos em suas queixas. No entanto, não parece haver espaço institucional para as especificidades culturais; o diálogo existe, mas nos termos da biomedicina. Com exceções individuais, os serviços prestados à população parecem passar ao largo dos esforços de compreensão do pensamento do grupo acerca de questões ligadas à sua saúde (Conklin, 1989, 1994; Novaes, 1996). Não se trata, contudo, de um problema referente às unidades ou equipes que prestam assistência aos Wari’; o problema reflete as limitações inerentes à estrutura dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), que ainda se mostram incapazes de lidar com as singularidades das populações indígenas e de preparar adequadamente os profissionais para o exercício de suas atividades em um contexto de relações interétnicas (Langdon, 2004).

As questões nutricionais e alimentares entre os povos indígenas encontram-se inencontram-seridas no contexto da atenção à saúde dessas populações; desencontram-se modo, a discussão da operacionalização do conceito de ‘atenção diferenciada’ no âmbito alimentar-nutricional remete à assistência à saúde indígena em termos mais amplos. O panorama que se descortina, nesse aspecto, não é exatamente favorável. Fica evidente o contraste entre o tom das políticas estatais de atenção à saúde indígena e as práticas e os discursos locais. As primeiras contemplam, por certo, a especificidade

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e a atenção diferenciada; no entanto, em âmbito local o discurso oficial da singularização não chega a se concretizar. Mesmo nos documentos oficiais, a especificidade cultural acaba sendo de certa forma banalizada, mantida que é em termos amplos e imprecisos. Nos discursos oficiais, além disso, as populações aparecem como vítimas passivas dos processos de mudança, o que não parece corresponder à realidade. As especificidades culturais não apenas afetam a aceitabilidade e o sucesso das intervenções, mas modulam – e nisso as populações têm um papel ativo, e não passivo – os próprios processos de mudanças e suas conseqüências.

A distância entre o discurso oficial e sua operacionalização é também assinalada por Langdon (2004: 43), que afirma: “Em nível nacional (...), a Funasa (Fundação Nacional de Saúde) não tem estimulado os DSEIs a refletir sobre suas práticas clínicas, bem como não está claro se os profissionais têm compromisso de desenvolver atenção diferenciada (...).” Se por um lado a adequação dos serviços de saúde às especificidades locais certamente transcende a sensibilização desses profissionais, a formação de agentes indígenas de saúde e a garantia do acesso aos serviços, dentre outros aspectos (Buchillet, 2004), por outro a sua realização encontra um sério obstáculo já na questão da compreensão das particularidades socioculturais. É notável que, na análise dos planos distritais dos DSEIs, Garnelo, Macedo & Brandão (2003: 49) assinalem que

Dos 17 planos distritais consultados para a elaboração deste documento, ‘nenhum deles’ programava serviços adaptados às singularidades culturais dos grupos indígenas presentes no território distrital, nem promovia a articulação com os sistemas tradicionais de cura e cuidados dos grupos étnicos atendidos ou desenhava estudos antropológicos que viabilizassem o acúmulo de conhecimentos sobre a cultura de sua clientela para subsidiar a gestão distrital.

A dimensão nutricional, nessa trajetória, não é particularmente favorecida. Um contraste semelhante entre os documentos oficiais e as práticas locais pode ser observado. A menção à sociodiversidade, no que diz respeito especificamente à alimentação e à nutrição, é feita em documentos produzidos nas mais diversas instâncias, estando presente no documento final da III Conferência Nacional de Saúde Indígena; na Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena; na Portaria Ministerial n. 2.405, que trata do Programa de Promoção da Alimentação Saudável em Comunidades Indígenas (PPACI); e ainda em documentos produzidos em fóruns de discussão sobre segurança alimentar, como a Carta de Olinda (II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 2004) e a Carta de Sobradinho (Fórum Nacional para Elaboração da Política Nacional de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Sustentável dos Povos Indígenas do Brasil, 2003). Apesar disso, parece ainda distante a concretização de uma atenção diferenciada aos problemas nutricionais entre as sociedades indígenas. Mais próxima parece estar a implantação de rotinas de

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vigilância nutricional em áreas indígenas, exigindo adequações de cunho basicamente logístico para a produção de dados nutricionais entre essas populações. Além do mais, o caráter essencialmente biomédico das propostas de vigilância nutricional indiscutivelmente assemelha-se mais ao modelo de assistência à saúde já desenvolvido pela Funasa que qualquer iniciativa de articulação das práticas biomédicas com os pontos de vista nativos. Não envolvendo a superação de diferenças epistemológicas, sua implantação se mostra menos complexa que a adoção de abordagens culturalmente sensíveis.

A pesquisa que deu origem a este livro partiu de minha insatisfação e inquietude diante das abordagens que hoje prevalecem nas análises da situação alimentar e nutricional das sociedades indígenas, essencialmente centradas nos aspectos biomédicos do tema. A própria atenção dispensada à saúde desses povos segue, como se viu, essa orientação, a despeito das extensas discussões e demandas que apontam em outra direção. Esse tipo de abordagem impõe, a meu ver, sérios limites à compreensão de um problema de natureza reconhecidamente complexa.

O trabalho foi, antes de tudo, uma tentativa de superar essas limitações e de, ao responder a uma inquietude pessoal, contribuir para o conhecimento sobre o tema. Meu objetivo era descrever, da melhor forma possível, as condições de alimentação e nutrição do grupo, o que incluía um esforço direcionado ao entendimento de suas práticas alimentares. Em última instância, ao entendimento do pensamento wari’. É devido a esse último componente, bastante ambicioso para minha formação biomédica, que fiz algumas opções metodológicas que me pareceram fundamentais para o sucesso da pesquisa, como trabalhar sozinho, tentar aprender a língua nativa e, se/e assim que me fosse permitido, partilhar teto, alimentação e a rotina com uma família wari’. Isso, naturalmente, exigiu a realização de um trabalho de campo relativamente longo para os padrões dos estudos sobre nutrição de povos indígenas, mas certamente breve para estudos antropológicos.

Desse modo, trabalhei na aldeia de Santo André, na Terra Indígena Pacaás Novos, que contava na época com trezentos habitantes, de um total de cerca de 2.700 indivíduos Wari’. A pesquisa baseou-se em trabalho de campo, realizado em três viagens de outubro de 2002 a novembro de 2003. A primeira aconteceu entre outubro e dezembro de 2002; a segunda, entre janeiro e junho de 2003; e a última teve lugar em novembro de 2003. No total, foram oito meses de permanência na aldeia de Santo André. Durante os primeiros três meses e meio fiquei hospedado em um alojamento anexo à farmácia da aldeia, onde podia preparar minhas refeições com os gêneros que eu havia levado para a aldeia. Nos meses seguintes, passei a viver com a família de Wao Ho e Wem Camain. De modo a não sobrecarregá-los com meu consumo de alimentos e outros itens, eu entregava à família gêneros como arroz, feijão, açúcar, sal, óleo de cozinha, macarrão, biscoitos, café, leite em pó e algum charque. Levei também sabão, velas, fósforos, munição, anzóis e náilon. Minha

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escolha destes itens baseou-se no que via os Wari’ consumirem em seu cotidiano, e minha única restrição relacionava-se a levar balas (doces) para a aldeia, o que quase invariavelmente faziam todos os não-índios que seguiam para lá e ainda os Wari’ que iam a Guajará-Mirim. Embora de modo geral estranhassem minha recusa em fazê-lo, era tal a freqüência com que eu via crianças e adultos com dores de dente que julguei apropriado evitar essa prática (embora soubesse que a prevalência aparentemente elevada de cárie dental entre os Wari’ não se devesse somente ao hábito esporádico de chupar balas). Não mantive comigo alimentos de qualquer espécie, e sempre partilhava de suas refeições. Assim, comia o mesmo que todos, nos mesmos horários e, à medida que aprendia como fazê-lo adequadamente, da mesma forma. O cardápio resultante não era distinto daquele observável em qualquer domicílio wari’ e mesclava produtos comprados e produzidos em atividades de agricultura, caça e coleta. No entanto, considerando haver alterado, tanto em razão de minha presença como dos itens (alimentares ou não) que havia trazido, a disponibilidade de alimentos nesse domicílio, não o incluí nos inquéritos alimentares. Assinalo ainda que mesmo minhas observações da rotina levavam esse dado em consideração.

Não usei intérpretes durante o trabalho. Embora fossem pouco numerosos os Wari’ fluentes em português, com o tempo fui aprendendo sua língua, e no final do trabalho já não falava português na aldeia. É claro que meu vocabulário era limitado, e por certo eu cometia freqüentes erros gramaticais. De todo modo, expressar-me em sua língua e, mais que isso, esforçar-me para consegui-lo foi fundamental para o meu relacionamento com os Wari’, e imprescindível para minha compreensão de suas idéias e de suas práticas cotidianas.

O livro encontra-se organizado em cinco capítulos, além da introdução e das conclusões. O primeiro apresenta a população de estudo, os Wari’, grupo indígena da Amazônia oriental. Com base em revisões históricas sobre o grupo, sua trajetória é brevemente descrita e contextualizada no processo de ocupação da região por frentes extrativistas e de colonização. São descritos ainda dados ambientais e demográficos, e delineados em termos gerais seus perfis de morbidade e mortalidade. Esse capítulo tem por objetivo contextualizar a situação wari’ em um panorama mais amplo, no qual a dimensão nutricional apresenta-se intimamente associada a uma diversidade de aspectos.

Os capítulos 2, 3, 4 e 5 comportam a descrição e a análise dos dados coletados ao longo do trabalho de campo e constituem conjuntos complementares de dados. Os capítulos 2, 3 e 4 referem-se, de modo geral, aos processos de produção, processamento e consumo de alimentos; o capítulo 5, ao perfil nutricional da população, diagnosticado com base na antropometria. Os capítulos 2, 3 e 4, na verdade, formam uma espécie de ‘bloco’ centrado em uma ampla e, confesso, difícil

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tentativa de descrever e analisar aspectos ecológicos e antropológicos da alimentação wari’, sendo, dessa forma, especialmente complementares entre si.

O capítulo 2 (“Subsistência”) busca fazer uma descrição das práticas econômicas da população, com uma atenção particular às formas de produção e obtenção de alimentos. São discutidos o alcance e as implicações das mudanças observadas na economia wari’ e especialmente a inserção do grupo na economia de mercado. Esse envolvimento é descrito como um processo caracterizado pela mercantilização da produção agrícola e pela ampliação das fronteiras de seu sistema alimentar. Ambos os aspectos indicam a preponderância de seus reflexos negativos e as profundas implicações envolvidas. A situação de desigualdade em que se encontram no âmbito das relações comerciais tem conseqüências importantes no cotidiano wari’ e irá se refletir nos padrões de utilização dos recursos naturais, na produção de outros alimentos, nos perfis de consumo alimentar e nas condições nutricionais da população, o que ficará cada vez mais evidente nos capítulos subseqüentes deste livro.

O capítulo 3 (“Transformação e persistência: práticas alimentares wari’”) refere-se ao modo como os Wari’ preparam, distribuem e consomem seus alimentos, em seu dia-a-dia. Além disso, nele busquei compreender algo acerca dos motivos que norteiam essas práticas – isto é, do pensamento wari’ sobre a alimentação e outras dimensões de suas vidas – e que se refletem em suas relações com a comida. Essa compreensão que, friso, não é total ou acabada, permitiu a identificação de um conjunto extenso de regras e princípios coerentes aos quais os Wari’ submetem suas práticas cotidianas direta ou indiretamente ligadas à alimentação. Mais que isso, sob diversos aspectos essas condutas refletem sua dinâmica social, seus conceitos de fisiologia, suas relações com o meio ambiente e assim por diante. Procuro demonstrar a indissociabilidade do pensamento wari’ no que concerne a aspectos que poderiam ser julgados aparentemente distintos, evidenciando as limitações ainda maiores das análises que comportem apenas os ditos aspectos biológicos da alimentação, segundo o discurso biomédico.

A análise do capítulo, ainda mais quando referida às discussões do capítulo anterior e daquele que se segue, conduz a uma reflexão acerca do alcance das transformações observadas nas práticas alimentares de populações indígenas e do tratamento simplificado que essa questão tem recebido por grande parte dos estudos que se propõem a entendê-la. Contra essa limitação, argumenta-se a necessidade de se tornarem mais complexas as discussões sobre mudanças e práticas alimentares entre povos indígenas, com a aplicação efetiva – e não apenas alegada – de uma perspectiva multidisciplinar.

O capítulo 4 (“Consumo alimentar”) diz respeito aos dados coletados durante a realização de dois inquéritos alimentares de natureza qualiquantitativa. Os inquéritos, feitos em duas épocas do ano, revelam nuances importantes na

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dinâmica de obtenção e consumo de alimentos. Os dados registrados ao longo do trabalho subsidiaram uma discussão do alcance e das implicações das mudanças observadas no sistema alimentar wari’, objeto da atenção desse capítulo, e ainda a descrição das práticas alimentares, sistematizadas no capítulo anterior. A observação dos perfis de consumo possibilitou ainda uma discussão do papel dos processos decisórios em âmbito domiciliar na escolha das estratégias econômicas e, desse modo, na determinação das possíveis repercussões de ordem nutricional. Esses processos aparecem como responsáveis por um notável grau de heterogeneidade entre os perfis de consumo alimentar dos domicílios avaliados, aspecto que difere das descrições correntes para populações indígenas amazônicas. Discute-se a necessidade de se considerar a dimensão sazonal das condições de alimentação e nutrição dessas populações na definição de rotinas de vigilância nutricional, ante as evidências de que processos equivalentes têm lugar em outras populações indígenas do país, e diante ainda de seus possíveis reflexos sobre seus perfis de saúde e nutrição.

O quinto capítulo (“Perfil nutricional”)apresenta e discute os dados de dois inquéritos antropométricos realizados em Santo André, em estações do ano distintas. O capítulo busca traçar o perfil nutricional de toda a população, analisando ainda segmentos populacionais específicos. Identificam-se, desse modo, os grupos mais vulneráveis à ocorrência de problemas nutricionais, e examinam-se os possíveis aspectos biológicos e socioculturais envolvidos na determinação do perfil observado. No debate acerca da interpretação da antropometria entre populações indígenas, o caso wari’ revela um acúmulo de evidências que justificam a interpretação dos dados como indicadores de uma situação nutricional inadequada, em que se destaca a grande magnitude das prevalências de desnutrição infantil. Para além da sua dimensão absoluta, os dados revelam uma grande disparidade entre a situação wari’ e o restante da população brasileira.

Em “Conclusões” são retomadas algumas questões apresentadas ao longo do livro, buscando realizar uma síntese dos principais achados. O perfil nutricional dos Wari’ de Santo André é visto como um indicador bastante sensível de suas condições de vida e revela um quadro amplamente desfavorável, confirmado pelo exame das condições sanitárias e dos perfis de mortalidade e morbidade. A situação wari’ apresenta-se como uma expressão das desigualdades que a separam do restante da população brasileira e reflete as interações entre aspectos ecológicos, sanitários, socioculturais e econômicos, dentre outros. Aqui são mostrados alguns aspectos relevantes para a superação dos problemas observados, em razão das especificidades do caso wari’. Em seu conjunto, os dados indicam que a compreensão dos determinantes da situação nutricional da população, em âmbito individual ou coletivo, não pode prescindir de uma cuidadosa contextualização dos achados no conjunto das práticas nativas e das idéias que as orientam. De outro modo, impõem-se limites

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muito claros não apenas ao entendimento do quadro, mas também às possibilidades de superação das dificuldades hoje enfrentadas pela população.

O trabalho que aqui se concretiza não teria sido possível sem o apoio de diversas instituições e pessoas. Os recursos para a realização da pesquisa de campo foram providos pelo Projeto Multicêntrico em Saúde Indígena Ensp/Fiocruz-Universidade Federal de Rondônia: saúde e demografia em contextos de mudanças sociais, econômicas e culturais na Amazônia Ocidental, financiado pela Fundação Ford. Durante o doutorado, fui bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processo 141242/00-0). O apoio da Fundação Nacional do Índio, em especial da Administração Regional de Guajará-Mirim, e o da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) foram essenciais para a realização do trabalho de campo. Na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), encontrei o apoio institucional e o estímulo necessários ao meu crescimento intelectual.

Tenho, para com as antropólogas Beth Ann Conklin e Aparecida Vilaça, uma enorme dívida, que sinceramente não imagino como possa retribuir. Admiro profundamente a sensibilidade com que escrevem sobre os Wari’. Wari’ pin na Beth.

Aparecida kem. A Ricardo Santos e Carlos Coimbra Jr., meus orientadores, sou sinceramente grato pela amizade, pelo apoio, estímulo e exemplo profissional. Agradeço sobremaneira a Aparecida Vilaça, Luiza Garnelo, Silvia Gugelmin, Roseli Magalhães de Oliveira, Mércio Pereira Gomes e Luciana Cerqueira Castro, que fizeram leituras de versões anteriores do trabalho e permitiram que eu o enriquecesse com base em suas críticas e sugestões. Agradeço também a cuidadosa leitura e as sugestões feitas por dois pareceristas anônimos que avaliaram inicialmente esta obra e contribuíram muito para minhas reflexões.

Tenho, para com os Wari’, uma dívida que persistirá por minha vida. Sinto-me verdadeiramente privilegiado por haver permanecido entre eles e pela compreensão, ainda que limitada, que logrei alcançar de seu universo. Tive, em Wao Ho e Wem Camain, novos pais, e em Raquel, Eliana, Cristiane e Quimoin, novas irmãs. Moacir, meu cunhado, é como um irmão para mim. Jimain Wom, Clemilda, Orowao e Topa’ são verdadeiramente meus irmãos mais novos. Vi Topa’, agora já crescida, dizer suas primeiras palavras em sua língua e reconhecer-me como seu irmão mais velho. Tenho por todos eles um amor infinito, e é com muita alegria que vejo esta família crescer com o nascimento de novas crianças.

Notas

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Introdução

Perspectivas Bioculturais em Alimentação e Nutrição

As foods transforms to nutrients, culture blends into biology. Goodman, Dufour & Pelto (2000)

As relações entre homem e ambiente na Amazônia têm sido descritas em abordagens que incluem modelos ambientais de evolução sociocultural e de comportamento adaptativo (Hames & Vickers, 1983a), que buscam explicar tanto as formas e possibilidades de ocupação humana da região como traços socioculturais das sociedades indígenas amazônicas. Trata-se de uma literatura extensa, que reflete décadas de intensos debates e vem recebendo aportes de diversos campos de conhecimento, como a arqueologia, a etnologia, a ecologia e a biologia. Sem pretender esgotá-la aqui, irei pontuar alguns dos principais argumentos e autores envolvidos nos debates, buscando ilustrar – ainda que de modo breve – a riqueza das discussões.2

Revendo a literatura sobre as relações entre o homem e o ambiente na Amazônia, Morán (1990) as divide em duas correntes. Para uma delas, essas relações seriam explicadas pela história cultural; ela veria no homem a “capacidade infinita (...) em controlar a natureza e até em ignorar as limitações que ela apresenta” (Morán, 1990: 56). Para a outra, a humanidade estaria inevitavelmente sujeita às limitações impostas pelo meio. Morán chama a atenção, nesta última corrente, para a inestimável contribuição de Julian Steward, que viria a influenciar toda uma geração de antropólogos e que permearia a elaboração do próprio Handbook of South American Indians, organizado por Steward (1948). Central às análises do autor era a idéia da ação preponderante de determinantes ambientais sobre a cultura das sociedades nativas.

Nas décadas seguintes, a Amazônia seria vista como um ambiente hostil, habitado por grupos humanos demograficamente reduzidos e esparsos, tidos como

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social e culturalmente pouco complexos. Este seria o “modelo padrão” (Viveiros de Castro, 2002: 321), determinado pela adaptação humana a fatores ambientais limitantes. Embora Steward já reconhecesse algum grau de heterogeneidade ecológica na região, uma vez admitida a preponderância do ambiente, restaria pouco espaço à ação humana, como um diferencial importante na condução do modo de vida das populações amazônicas.

Dentro desse ideário, Fausto (2001) chama a atenção, ainda, para as imagens da floresta amazônica no pensamento ocidental, oscilando entre os pólos da fartura e da escassez. O primeiro remontaria à tradição ibérica da idéia de paraíso terrestre, tendo sido incorporado pelo discurso ambientalista. O segundo estaria associado à dificuldade dos colonizadores em adaptarem-se ao ambiente da floresta, e estaria refletido na antropologia dos últimos cinqüenta anos.

A influência das idéias de Steward e seus seguidores, no entanto, não se limitou à antropologia, em seus diversos ramos, ou à ecologia humana. Neves (1998) assinala que grande parte da arqueologia amazônica é tributária dos conceitos apresentados no Handbook of South American Indians, e que argumentos ecológicos, fossem eles determinísticos, fossem possibilísticos ou causais, ainda constituiriam importantes ferramentas para explicar as dinâmicas socioculturais da Amazônia pré-colonial. A pretensão de explicar a ocupação humana da região acabaria por resultar também em um certo modo de compreender determinados traços socioculturais das sociedades indígenas contemporâneas das chamadas terras baixas sul-americanas. Estas eram descritas como pequenas, simples, isoladas, autônomas e dispersas, contrastando vivamente com as sociedades hierarquizadas e politicamente centralizadas dos Andes centrais. Ao mesmo tempo que a rica particularidade sociológica dos índios sul-americanos era, de certa forma, negligenciada (Overing-Kaplan, 1977), essas diferenças eram equacionadas em termos evolucionistas e explicadas com base em fatores ambientais. Atributos ecológicos atuariam como impeditivos do surgimento de sociedades ‘mais complexas’.

Dentre os fatores considerados significativos para a ocupação humana da região, a alimentação ocupa sem dúvida um lugar-chave (Adams, Murrieta & Sanches, 2005; Murrieta & Dufour, 2004; Murrieta, Dufour & Siqueira, 1999). Assim é que a escassez de solos agricultáveis é inicialmente apresentada como o fator limitante, lugar posteriormente ocupado nos debates pela proteína da dieta, sem que contudo se modificasse a natureza da argumentação. Entre os principais representantes dessas correntes estão, respectivamente, Betty Meggers e Donald Lathrap.

Os solos ácidos e pobres da região seriam incapazes de suportar grandes populações, podendo ser cultivados por poucos anos e exigindo um longo tempo de recuperação. Atualmente, no entanto, é reconhecida a heterogeneidade pedológica amazônica, com o registro de terras ricas e adequadas para a agricultura

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em proporção significativa, embora fragmentadas por toda a região. Morán (1990) indica a existência de milhões de hectares de solos férteis em toda a Amazônia, ainda que dispersos entre solos efetivamente pobres e ácidos. Além disso, a definição do caráter limitante dos solos em termos absolutos desconsideraria o peso da tecnologia disponível em contextos etnográficos distintos (Morán, 1990).

A capacidade de produção de alimentos pela agricultura foi ainda questionada por Carneiro (1983) com base nos dados sobre os Kuikuru, que demonstravam uma elevada produtividade da cultura da mandioca mesmo em solos ácidos. Carneiro (1995) indica ainda o pequeno investimento em trabalho necessário para a produção de excedentes significativos, capazes de assegurar a provisão de alimentos mesmo diante da ocorrência de imprevistos que pudessem comprometer a produção, como o ataque de porcos-do-mato. Mesmo baseada na produção da mandioca, a região do Alto Xingu teria mesmo um passado pré-colombiano de populações extensas e uma organização social complexa (Carneiro, 1995; Heckenberger, 2001, 2005). As evidências etnográficas e arqueológicas da região contrariam a idéia de que somente as várzeas amazônicas, caracterizadas pelos solos férteis, permitiriam o desenvolvimento de sociedades complexas; e de que o cultivo do milho e de outros grãos e a agricultura intensiva seriam elementos fundamentais para a manutenção dessas sociedades (Carneiro, 1995; Roosevelt, 1980).

Ainda na década de 60, a baixa disponibilidade de proteína veio a ser considerada o fator limitante, em lugar dos solos férteis. Em 1975, Gross publicou uma revisão dos dados disponíveis na época sobre a ingesta protéica de diversos grupos e que revelam um consumo modesto, com médias diárias variando entre 15 e 63 g per capita (Gross, 1975). A escassez do nutriente seria responsável por traços culturais como a elevada mobilidade, a manutenção de baixos níveis de crescimento demográfico e a guerra, sem os quais os níveis de consumo do nutriente seriam comprometidos. O trabalho de Gross assume uma importância particular pelo fato de, diferentemente de seus antecessores, basear seus argumentos em dados quantitativos sobre consumo protéico e biomassa (Hames & Vickers, 1983a). Resumidadamente, as discussões que se seguiram argumentaram a favor do papel adaptativo dos tabus alimentares (Ross, 1978), da produtividade da caça e da pesca, do uso de múltiplas ecozonas e da relativa importância da pesca em relação à caça (Beckerman, 1983; Hames & Vickers, 1983b; Hill & Hawkes, 1983; Stocks, 1983; Milton, 1991). As críticas à idéia da limitação protéica incluíam abordagens apoiadas em paradigmas tão distintos como os ecológicos, sociológicos e simbólicos (Senra, 1996). O exame da hipótese resultou na produção de dados fundamentais para a compreensão dos modos de vida amazônicos, embora o diálogo com a etnologia tenha sido mínimo (Viveiros de Castro, 2002; para um exemplo de uma iniciativa bem-sucedida de diálogo, ver Descola, 1994). A distância entre os campos já se manifestara muito antes, ainda na década de 50. Para Viveiros de

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Castro (2002: 322), o estruturalismo de Lévi-Strauss, especialmente a partir dos três volumes iniciais das Mitológicas, desloca “para o interior das cosmologias ameríndias a macro-oposição [sic] conceitual entre natureza e cultura que subjazia às teorias deterministas dos herdeiros de Steward”. Esse distanciamento viria a se reduzir, mais tarde, com os trabalhos de William Balée sobre a etnobotânica Ka’apor e de Philippe Descola sobre a ecologia e a economia Jívaro. Neves (1998: 625) também descreve a “morte lenta e indolor” das teorias limitantes ao desenvolvimento cultural e à ocupação da Amazônia, graças às contribuições da etno-história, da ecologia e, ainda, da ecologia histórica de William Balée.

Em sua análise da etnobotânica dos Ka’apor, Balée propõe uma descrição dos aspectos ecológicos e históricos de suas relações com as plantas que não apenas os circundam, mas que foram em grande medida modificadas por eles (Balée, 1993). O grupo apresenta um sofisticado sistema de manejo florestal, capaz de manter a produtividade da terra, da fauna e da flora nos arredores dos assentamentos Ka’apor, e que aumenta a habitabilidade do ambiente (Balée & Gely, 1989; para outros exemplos de manejo de recursos naturais na Amazônia, ver Posey & Balée, 1989). As florestas amazônicas não seriam, assim, ambientes intocados, mas o resultado de uma longa interação com as sociedades que as ocupam. Em certas condições, a presença humana poderia mesmo aumentar a biodiversidade, em lugar de reduzi-la (Balée, 2006; Hornborg, 2005). A abordagem representa um deslocamento radical das perspectivas anteriores, redimensionando os papéis humano e ambiental e situando-os ainda em uma perspectiva histórica que confere uma nova profundidade temporal às análises das relações entre o homem e a paisagem.

A Amazônia vem sendo, ao mesmo tempo, progressivamente reconhecida em sua diversidade ambiental e pela complexidade das relações entre as sociedades nativas e os ecossistemas que elas ocupam, para além da clássica dicotomia várzea– terra firme (Morán, 1995). Mesmo as vertentes adaptativas propõem a integração de perspectivas históricas às abordagens ecológicas da realidade humana na região (Morán, 1990). E, reconhecida a “complexidade das formas sociais” ameríndias, o panorama dos estudos sobre as sociedades amazônicas parece caminhar em direção a uma aproximação entre as diferentes tradições do campo, em que pese a influência das perspectivas originais (Viveiros de Castro, 2002: 320).

Fica evidente, na literatura sobre as populações indígenas sul-americanas, a importância dos temas associados à alimentação em suas cosmologias e da centralidade de aspectos como a comensalidade nos conceitos nativos de corporalidade e de parentesco (para alguns exemplos, ver Hugh-Jones, 1979; Lévi-Strauss, 1968; Teixeira-Pinto, 1997; van Velthen, 1996; Vilaça, 1992, 1995; Viveiros de Castro, 1987). Diante destes estudos, parece claro o papel exercido pelo pensamento nativo não apenas na orientação de suas práticas alimentares, mas ainda na modulação das mudanças relacionadas a essas condutas.

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Embora a existência de princípios culturalmente específicos a orientar as práticas alimentares seja comum a quaisquer populações humanas, no caso dos povos indígenas a sua compreensão assume uma relevância particular, por diversas razões. Essas populações com freqüência passam, a partir do contato com não-indígenas, por drásticas mudanças em seus modos de vida, o que invariavelmente afeta sua subsistência e suas condições de alimentação e nutrição. Aliada a isso, a articulação com a população não-indígena geralmente acontece em bases amplamente desfavoráveis para as populações nativas, o que se reflete em seus indicadores de saúde e na precariedade das condições ambientais e sanitárias em grande parte das comunidades. Trata-se, assim, de um segmento da população brasileira particularmente sujeito a problemas de ordem nutricional, o que fica aparente nos dados nutricionais disponíveis, ainda que escassos.

Assinalo que não me refiro a princípios que permaneçam a orientar as práticas cotidianas de modo invariável, sem a modulação pelos indivíduos, ou sem que ocorram transformações ao longo do tempo. Ou seja, a princípios fixos e imutáveis, estabelecidos anteriormente à ação, determinando-a e mesmo determinando o pensamento. Trata-se aqui justamente de ver a cultura como dinâmica e heterogênea, e permanentemente negociada (Langdon, 2003). É importante sinalizar que se houve mudanças profundas nos cotidianos dessas sociedades, isto não ‘determina’ inexoravelmente a ocorrência de modificações em resposta aos estímulos exteriores à sociedade.

Por fim, na atual conjuntura há uma movimentação no sentido de superar os problemas nutricionais dessas populações de modo culturalmente sensível e com a participação ativa das comunidades, o que exige abordagens mais sensíveis às especificidades locais (Fórum Nacional para Elaboração da Política Nacional de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Sustentável dos Povos Indígenas do Brasil, 2003). O entendimento das idéias nativas relacionadas à alimentação e, em termos mais amplos, da situação etnográfica em que essas idéias se expressam é, como argumentarei a seguir, fundamental para a compreensão dos perfis nutricionais observados.

Esse argumento, contudo, não é exatamente recente. A partir das primeiras décadas do século XX foi-se consolidando, gradualmente, a convicção de que as raízes dos problemas nutricionais estavam além de sua dimensão biológica, remontando a aspectos sociais, culturais e ambientais, entre outros. Em uma breve revisão das pesquisas que situaram as análises de aspectos alimentares e/ou nutricionais em contextos etnográficos mais amplos, Freedman (1977), embora mencionando estudos realizados ainda em fins do século XIX, assinala como um marco nos estudos antropológicos dos hábitos alimentares o trabalho da antropóloga britânica Audrey Richards na então Rodésia, atual Zimbábue, no início da década de 30. Em 1935 o governo inglês, com o British International African Institute,

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inaugura o que Freedman apresenta como a primeira articulação formal entre especialistas de nutrição e de antropologia, criando o Diet Committee, cujo corpo de pesquisadores atuaria nas colônias da África inglesa.

Na época, mostravam-se apenas temporariamente bem-sucedidas as intervenções feitas em crianças africanas severamente desnutridas. Uma vez reinseridas em suas comunidades, isto é, nos ambientes onde permaneciam inalterados os fatores responsáveis pelo problema, as crianças logo voltavam a apresentar um quadro de desnutrição. Em um momento em que as pesquisas privilegiavam os aspectos fisiológicos e bioquímicos do problema, tais intervenções baseavam-se em um modelo monocausal e viam na suplementação de proteínas a possibilidade de sua superação (Johnston, 1987). É interessante observar que, duas décadas mais tarde, a orientação das investigações e intervenções no continente africano ainda não havia se modificado de todo, o que Robson (1978) atribui em parte ao volume consideravelmente maior de conhecimentos sobre a ciência nutricional do que das ações apropriadas para a prevenção da desnutrição protéico-energética. O autor, mencionando as dificuldades que ele próprio enfrentara na década de 50 na Tanzânia, a serviço do governo britânico, afirma que as intervenções usualmente baseavam-se na compreensão dos determinantes imediatos dos problemas nutricionais. Vale assinalar que ainda hoje, a despeito do acúmulo de conhecimentos sobre o tema e da complexidade das análises, a natureza complexa e multifatorial da desnutrição ainda desafia o sucesso das intervenções em populações humanas.

Nos Estados Unidos é criado, em 1940, o Committee on Food Habits, do National Research Council, com a participação de profissionais das áreas de antropologia, sociologia, economia doméstica, psicologia e saúde pública. Ao longo dos anos seguintes, tiveram lugar diversos inquéritos regionais – contemplando inclusive populações indígenas – sobre práticas alimentares e condições nutricionais, com o objetivo adicional de identificar as possibilidades de intervenção e, ainda, delinear estratégias de pesquisas apropriadas. Um aspecto particularmente significativo na atuação do Committee on Food Habits, no entanto, foi o fato de constituir a primeira iniciativa de intervenção em populações pertencentes a nações desenvolvidas, no que contrastava com as iniciativas do DietCommittee britânico, direcionadas às colônias inglesas na África (Freedman, 1977). Kandel, Jerome e Pelto (1980) destacam a importância do Committee on Food Habits no reconhecimento do papel central de fatores não-nutricionais nas condutas alimentares da população norte-americana com a publicação, em 1945, do Manual for the Study of Food Habits: a report of the Committee on Food Habits, sob a coordenação da antropóloga Margaret Mead.

A despeito do acúmulo de evidências que, desde então, indicam essa direção e do crescente número de investigações que adotam as mais diversas

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perspectivas sobre o tema, o panorama não mudou radicalmente, ou pelo menos não imediatamente. A proposta de contextualização das questões nutricionais em um quadro mais amplo, no qual interagem aspectos que transcendem a esfera estritamente biológica, passou a tomar corpo principalmente a partir da década de 70. Ainda assim, já nos anos 80 Douglas (1982) chamava a atenção para o contraste entre o volume de pesquisas sobre a fisiologia da nutrição e a escassez de análises que discutissem os fatores de ordem social a serem abordados em pesquisas de campo, de modo a subsidiar a implantação de programas de intervenção em sistemas alimentares tradicionais.

Cattle (1977) mostra a articulação entre a antropologia e as ciências nutricionais como uma alternativa à tendência particularizante – no sentido de manter as análises restritas aos pressupostos de disciplinas específicas, como a bioquímica ou a economia – dos estudos em nutrição, em uma crítica que ainda hoje, quase três décadas depois, parece atual. A autora indica justamente a inexistência de uma nítida delimitação das fronteiras de um ‘campo’ da nutrição, ou seja, a sua natureza inerentemente multidisciplinar, como um grande obstáculo à compreensão dos problemas de ordem nutricional. Em sua análise, o fato de as questões nutricionais poderem ser abordadas em perspectivas tão distintas como a econômica, a ambiental e a biológica, dentre outras, se traduziria na dificuldade de produzir abordagens efetivamente multidisciplinares. Desse modo, em meio a disputas por financiamentos e prestígio, uma disciplina invariavelmente prevaleceria sobre as demais, na orientação das pesquisas. O resultado seria a manutenção do caráter particularista dos estudos, e em conseqüência disso contribuições apenas limitadas para o conhecimento científico e para a superação dos problemas observados.

Esse tipo de tensão não estaria, contudo, limitado aos estudos envolvendo questões alimentares e/ou nutricionais. Referindo-se às possibilidades de integração entre a antropologia e a epidemiologia, Castiel (1999) apresenta o mesmo problema, em uma descrição compatível com quaisquer tentativas de estabelecimento de relações interdisciplinares. Isto é: embora haja certa “especificidade metodológica” para cada situação (ou seja, para cada tipo de objeto e contexto de pesquisa haveria métodos e técnicas mais apropriados), e portanto não se justifique a hegemonia de quaisquer métodos ou disciplinas, as discussões sobre o tema com freqüência transcendem a esfera estritamente metodológica, envolvendo “lutas de poder e controle corporativo”(Castiel, 1999: 695).

Nesse contexto, já de início a antropologia teria uma contribuição fundamental a dar, pouco mencionada nas discussões sobre o tema: ela possibilitaria o reconhecimento dos vieses disciplinares, institucionais e culturais que usualmente permeiam as pesquisas, permitindo assim a superação de limitações e obstáculos que de outro modo poderiam comprometê-las seriamente (Harrison & Ritenbaugh,

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1981; Jerome & Pelto, 1981). O aporte antropológico não estaria restrito, portanto, à compreensão dos contextos etnográficos das populações estudadas, mas também à das especificidades culturais dos próprios pesquisadores e de suas propostas de trabalho. Desse modo, estender-se-ia a todas as etapas das pesquisas e/ou programas de intervenção, o que inclui a formulação dos projetos e a análise dos resultados obtidos. Nesse âmbito, a biomedicina e as demais disciplinas devem necessariamente ser vistas como conjuntos de idéias e crenças culturalmente específicos, e não mais legítimos que os nativos (Langdon, 2000, 2003).

No entanto, o papel da antropologia é por vezes explicitamente limitado, na literatura, à mediação entre a população-alvo dos estudos e os proponentes das intervenções. Freedman (1977: 2) afirma:

regardless of circumstance, however, the solution [of the nutritional problem] will almost always require some modification of a cultural habit. The job of the anthropologist in applied nutrition is to view a nutritional problem within its cultural context and, on the basis of analysis of both the problem and the culture, to suggest a plan of action which may be followed in such a manner that, whatever change must be brought about, the least resistance will be generated by the required intervention.

Sua afirmação, ainda que considerando fundamental a participação de antropólogos na abordagem das questões nutricionais – o que já representa uma proposta de ampliação dos horizontes dos estudos –, pode ser vista ainda como um reflexo do mesmo olhar particularista, se não etnocêntrico, que Cattle (1977) ressalta.

O que transparece em seu discurso é a existência de problemas atribuíveis a práticas culturalmente específicas e, do ponto de vista das ciências nutricionais, deletérias – portanto, passíveis de reorientação, isto é, de uma correção direcionada pelos agentes dos programas. Trata-se de uma visão que coloca a biomedicina em uma posição paradigmática, a partir da qual as práticas nativas são avaliadas (Langdon, 2000). O pressuposto de que os agentes das mudanças detêm os conhecimentos e de que a solução dos problemas por eles identificados reside em colocar esses mesmos conhecimentos em prática – ainda que da forma menos traumática possível – é tão-somente coerente em um discurso etnocêntrico e, mais que isso, marcado pela racionalidade dedutiva, baseada no método experimental (Ritenbaugh, 1982). Não teço aqui uma crítica à argumentação de Freedman, nem caberia fazê-lo, quase trinta anos após a publicação de seu artigo. No entanto, faço uso da citação para destacar que, se a distância temporal e a trajetória dos debates observada desde então podem tornar desnecessário ou inapropriado esse contraponto, o discurso do autor parece surpreendentemente atual – não apenas no que se refere à produção acadêmica relativa à temática nutricional, mas

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especificamente às práticas dos profissionais da saúde que atuam junto aos Wari’– para não dizer junto aos povos indígenas do país (Langdon, 2000).

A adoção de uma perspectiva antropológica nos estudos em nutrição e, em termos mais amplos, na abordagem de questões de saúde apresenta um grande potencial para a sua compreensão (Goodman, Dufour & Pelto, 2000). No entanto, as possibilidades que se apresentam podem ser severamente limitadas pela pressuposição de que a cultura possa constituir, em sua especificidade, um obstáculo às ações de saúde, impedindo a livre implantação das mudanças julgadas necessárias pelos representantes da biomedicina. E se esse tipo de pressuposto já foi superado nas discussões acadêmicas (Langdon, 2003), ele ainda se mostra presente na operacionalização, em âmbito local, da atenção à saúde indígena. Nesse contexto, o conhecimento antropológico por vezes parece permanecer assumindo tão-somente a função de mediação, voltado especificamente para a transposição das barreiras que a cultura apresenta. E, ainda, para a identificação de práticas cotidianas prejudiciais à saúde na perspectiva biomédica, no mais das vezes baseadas em crenças tidas por esta última como irracionais.

Por injustificados que sejam esses argumentos, eles não se encontram restritos aos estudos em intervenção realizados nas primeiras décadas do século XX, mas parecem permear, contemporaneamente, a atenção à saúde prestada a essas populações. Mesmo em discussões recentes sobre as condições de nutrição das sociedades indígenas, a abordagem do problema é estritamente biomédica, por vezes estendendo-se a questões de ordem econômica. Não é incomum que as práticas alimentares nativas, particularmente aquelas referentes à alimentação infantil, sejam vistas como problemas a serem superados, e a ‘educação nutricional’, em abordagens que tangenciam a idéia de um ‘processo civilizatório’, seja apresentada como solução para os supostos problemas. DeWalt & Pelto (1977) já chamavam a atenção, há quase trinta anos, para essa tendência nas análises e para a supervalorização de aspectos de importância secundária na determinação da desnutrição, enquanto as causas estruturais do problema eram desconsideradas. Um princípio fundamental na proposta de uma abordagem multidisciplinar nos estudos sobre alimentação e nutrição é o de que as escolhas e práticas alimentares humanas são norteadas pelas interações entre os mais diversos fatores, que não se encontram limitados a aspectos estritamente nutricionais ou, em última instância, biológicos. Além disso, o próprio consumo de alimentos constitui um comportamento tanto biológico como social (Jerome & Pelto, 1981). E o modo como essas dimensões se concretizam e se articulam acaba por se refletir na biologia humana, aconteça isso a curto, médio ou longo prazo (Leite, 2002).

A idéia de que a alimentação humana pode ser vista em perspectivas distintas é comum a diversas áreas do conhecimento científico dedicadas ao estudo das relações entre o homem e seus alimentos, e que vão da bioquímica e da biologia

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celular à filosofia e à história, para mencionar apenas algumas possibilidades. Essa diversidade tem resultado em análises que, centradas em uma base comum, abordam ora questões de caráter estritamente biológico, ora social. Outras disciplinas focam temas situados entre esses extremos, em um campo no qual interagem aspectos pertinentes aos dois pólos. Em comum, além do interesse pelos múltiplos aspectos das relações entre o homem e seus alimentos, teriam um enfoque essencialmente ‘biocultural’, isto é, centrado na interface entre os aspectos biológicos e sociais da alimentação (Pelto, Goodman & Dufour, 2000). Exemplos dessas disciplinas seriam a epidemiologia nutricional e a ‘antropologia nutricional’, dentre outras.

Na verdade, a proposta de integrar aspectos biológicos e sociais nas análises dos perfis de saúde começa a se concretizar pelo menos algumas décadas antes dos trabalhos centrados nos aspectos alimentares e nutricionais. A importância de fatores sociais, políticos e econômicos na determinação dos perfis de saúde foi percebida por um número considerável de estudiosos ao longo do século XIX e talvez expressa de modo mais evidente pelos teóricos da medicina social. A interação entre as perspectivas remontaria pelo menos ao surgimento das disciplinas da antropologia e da epidemiologia (Trostle, 1986a). Em linhas gerais, a trajetória da antropologia nutricional, como um campo de conhecimento híbrido entre as ciências sociais e biológicas, integra um movimento mais amplo de aproximação das ciências sociais com as ciências médicas.

Ao longo do século XX, essa aproximação se concretiza institucionalmente em programas colaborativos reunindo profissionais com formações distintas, como exemplificado com a criação dos já citados comitês norte-americano e britânico, dedicados aos estudos nutricionais; e em iniciativas como as desenvolvidas desde a década de 30 pelo Institute of Family and Community Health, na África do Sul, e desde a década de 50 pelo Departamento de Epidemiologia da University of North Carolina, Chapel Hill, Estados Unidos. O trabalho desenvolvido na África do Sul dizia respeito à assistência à saúde comunitária e ao diagnóstico comunitário, enquanto em Chapel Hill as pesquisas centravam-se nos efeitos sobre a saúde decorrentes das mudanças sociais (Trostle, 1986b).

A análise das interfaces entre as dimensões biológica e social da alimentação, no entanto, apresenta uma característica fundamental da atuação da antropologia juntamente com as ciências médicas, o que também inclui a antropologia nutricional: o caráter aplicado da disciplina, já evidenciado nos primeiros estudos que buscavam essa perspectiva, ainda na década de 30, e intensificado nas últimas décadas. Nesse âmbito, tem-se buscado integrar uma perspectiva antropológica em programas internacionais de saúde coletiva e nutrição (Pelto, Goodman & Dufour, 2000; Scrimshaw, 1989; Scrimshaw & Gleason, 1992).

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Trostle (1986b) chama a atenção para a persistência, na literatura, de discursos abertamente contrários às possibilidades de colaboração e para o fato de que, para cada iniciativa de colaboração bem-sucedida, há várias oportunidades perdidas. Neste último aspecto, o panorama dos estudos sobre alimentação e nutrição não parece diferir significativamente dessa descrição. Não surpreende assim que, a despeito dos progressos feitos no campo da antropologia nutricional, a adoção de perspectivas que contextualizem questões de ordem nutricional em um quadro complexo, em que interagem as dimensões biológica e cultural das relações entre o homem e seus alimentos, venha sendo freqüentemente desconsiderada na implantação de programas de intervenção em populações amazônicas (Murrieta, 1998) – mesmo diante das evidências de que aspectos como a dinâmica dos sistemas tradicionais de produção e distribuição, assim como as representações que a própria população faz de suas atividades econômicas, podem constituir elementos centrais para a compreensão dos determinantes do sucesso ou fracasso dos programas de intervenção. Fica evidente, portanto, a necessidade de se levarem em consideração os sistemas alimentares nativos, em suas diversas dimensões, para o planejamento, a implantação e a avaliação de quaisquer medidas de intervenção ligadas a problemas de ordem nutricional (Hidalgo, 1997; Scrimshaw & Gleason, 1992; van Liere, Brower & Den Hartog, 1996; Wilson, 1994).

Um exemplo claro da integração entre as perspectivas biológica e cultural em estudos sobre alimentação e nutrição pode ser encontrado na proposta de Jerome, Kandel & Pelto (1980). Os autores apresentam, de certo modo sintetizando as análises feitas ao longo da década anterior, o que denominam ‘modeloecológico’ de análise dos sistemas alimentares. De acordo com o modelo, o ‘sistema alimentar’ seria composto por uma gama de fatores ligados à alimentação, cujas inter-relações afetariam o estado nutricional da população. Ele incluiria “a totalidade das atividades, instituições sociais, fluxos de materiais, e crenças relacionadas à produção, distribuição e consumo de alimentos em um grupo social específico” (Pelto, Goodman & Dufour, 2000: 3). No modelo, esses fatores poderiam ser reunidos ou sistematizados em dimensões como os ambientes físico e social, a organização social, a tecnologia e a cultura (ou os ‘sistemas de idéias’, segundo os autores); como eixo central, encontrar-se-ia a dimensão nutricional propriamente dita, constituída pela dieta e pelas necessidades nutricionais.

Os autores assinalam ainda que o princípio que norteia o modelo é sistêmico, na medida em que, diante das estreitas relações entre os mais diversos fatores que o compõem, uma alteração em um de seus componentes invariavelmente resulta em modificações nos demais. Vale dizer que a idéia de sistema alimentar proposta pelos autores não inclui o conceito de auto-regulação ou equilíbrio, nem a definição de limites precisos para as análises ou para o corpo de fatores envolvidos, o que dependerá dos critérios estipulados pelos

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pesquisadores. O essencial é o reconhecimento da existência de uma rede de relações entre os mais distintos aspectos envolvidos e do fato de que, diante de tal complexidade, as análises ‘monocausais’ são comparativamente pouco produtivas. Com base nesses pressupostos, o potencial das análises residiria no exame detalhado das inter-relações identificadas entre os fatores selecionados.

O trabalho insere-se nessa perspectiva, ao considerar que as escolhas alimentares são moduladas por uma ampla gama de fatores, determinando, juntamente com outros processos, as condições de saúde e nutrição das populações humanas. Diante das complexas mudanças que os povos indígenas no Brasil vêm experimentando em suas trajetórias históricas, faz-se necessário um exame mais detalhado desse processo, em uma abordagem que não se limite aos aspectos biológicos da questão nutricional. Assim, as análises que se seguem consideram a existência de diversas dimensões articuladas em torno das práticas alimentares, o que inclui fatores tão distintos como os de ordem estritamente biológica e social, além de suas inter-relações. Nesse âmbito, estão compreendidos aspectos econômicos, ambientais, tecnológicos, sociológicos e simbólicos, para mencionar os mais evidentes. A análise de um sistema assim concebido privilegia, enfim, o exame das interações entre as dimensões biológica e sociocultural.

Mais que isso, trata-se aqui de reconhecer a existência de um sistema de idéias sobre a alimentação – lógico, coerente e legítimo,3 e articulado com as demais dimensões da vida e do pensamento nativos.4 E cuja compreensão é obrigatória, não apenas para o sucesso de programas e intervenções engendrados externamente à comunidade, mas também para a concretização de uma atenção efetivamente diferenciada à saúde e construída em bases dialógicas.

Notas

2 Para uma revisão sobre o tema, remeto o leitor a Hames & Vickers (1983a); para um panorama

dos estudos sobre as sociedades amazônicas, ver Viveiros de Castro (2002).

3 Destaco, no entanto, que a sua legitimidade encontra-se justificada por sua própria singularidade,

e não por sua lógica ou coerência, a serem avaliadas por alguma forma de pensamento ou discurso hegemônico.

4 Nesse sentido, parece-me inadequada a seleção prévia e limitante das ‘áreas’ do pensamento

estritamente necessárias à resolução de problemas de saúde específicos, segundo o conceito de ‘ignorância ótima’ proposto para as metodologias RAP (Rapid Assessment Procedures) (Herman et al., 1992).

Referências

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