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10 Questões Metodológicas acerca da produção de estatísticas sobre a população em situação de rua

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10 Questões Metodológicas acerca da produção de estatísticas sobre a população em situação de rua

Resumo

O objetivo deste texto é discutir questões metodológicas relativas à produção de estatísticas sobre a população em situação de rua (PSR). Nosso ponto de vista, portanto, é o do produtor de estatística. Existem poucas estatísticas no Brasil sobre PSR. O IBGE fez somente um teste piloto no Rio de Janeiro. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) realizou apenas um levantamento nacional. Algumas iniciativas locais, no entanto, notadamente a realizada pelo município de São Paulo, têm alguma continuidade. Mas falta discussão e reflexão sobre o que foi feito, e esta é uma lacuna que pretendemos contribuir para sanar.

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10 Questões Metodológicas acerca da produção de estatísticas sobre a população em situação de rua 1

Paulo Gonzaga Mibielli de Carvalho (IBGE e UNESA)

*

Sonia Maria Moreira Carvalho de Oliveira (IBGE)

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Resumo

O objetivo deste texto é discutir questões metodológicas relativas à produção de estatísticas sobre a população em situação de rua (PSR). Nosso ponto de vista, portanto, é o do produtor de estatística. Existem poucas estatísticas no Brasil sobre PSR. O IBGE fez somente um teste piloto no Rio de Janeiro. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) realizou apenas um levantamento nacional. Algumas iniciativas locais, no entanto, notadamente a realizada pelo município de São Paulo, têm alguma continuidade. Mas falta discussão e reflexão sobre o que foi feito, e esta é uma lacuna que pretendemos contribuir para sanar.

Introdução

O objetivo deste texto é discutir questões metodológicas relativas à produção de estatísticas sobre a população em situação de rua (PSR). Nosso ponto de vista, portanto, é o do produtor de estatística. Existem poucas estatísticas no Brasil sobre PSR. O IBGE fez somente um teste piloto no Rio de Janeiro. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) realizou apenas um levantamento em 71 cidades. Algumas iniciativas locais, no entanto, notadamente a realizada pelo município de São Paulo, têm alguma continuidade. Mas falta

1 Trabalho apresentado no XXI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado no

período de 22 a 28 de setembro de 2018, em Poços de Caldas, Minas Gerais.

Obs.: O IBGE está isento de qualquer responsabilidade pelas opiniões, informações, dados e conceitos emitidos neste artigo, que são de exclusiva responsabilidade dos autores.

Agradecemos as críticas e sugestões de Marcia Quintslr, Gustavo Junger e Paulo Jannuzzi. * Analista do IBGE – Economista, Doutor em Economia.

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discussão e reflexão sobre o que foi feito2, e esta é uma lacuna que pretendemos contribuir para sanar.

Todas as questões apresentadas serão discutidas e, em maior ou menor medida, respondidas. No caso do Brasil vamos nos restringir a duas fontes: a pesquisa piloto do IBGE, pela importância do órgão, e a pesquisa do MDS, por ser a única de abrangência nacional3. Na área internacional nos limitamos, sem pretender esgotá-las, às experiências do Canadá, européia, e da ONU, nos dois últimos casos apenas para discussão conceitual. Acreditamos que nossas escolhas sejam representativas o suficiente para iniciarmos uma discussão, que pretendemos posteriormente aprofundar.

1) O pecado original – Uma definição pouco precisa do que seja população em situação de rua

O que não é bem definido certamente não será bem mensurado. OECD As discussões sobre população em situação de rua (PSR) são norteadas pela definição constante no Decreto nº 7053 de 23/12/2009, que fundamenta a política na área (vide abaixo).

Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (Decreto nº 7053 de 23/12/2009)

A questão é que há vários problemas nesta definição:

2 Uma das poucas iniciativas neste sentido foi o Seminário Internacional de Metodologias para

Pesquisas sobre População em Situação de Rua realizado no IBGE em maio de 2010. Por questões de espaço não se fará aqui um histórico das ações governamentais na área do PSR que levaram ao decreto Nº 7.053 de 23/12/09 que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e desdobramentos posteriores.

3 Era nossa intenção inicial incluir a experiência da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento

Social da Prefeitura do Município de São Paulo, mas avaliamos que não tínhamos material suficiente para tal empreitada.

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1) É necessário estabelecer, e o decreto não o faz, o que se entende por pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados, inexistência de moradia convencional regular, logradouros públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento.

2) O mesmo se aplica à questão temporal - forma temporária ou permanente – bem como estabelecer quais seriam exatamente as “unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

Há ainda uma questão anterior: por que usar o termo “população em situação de rua”? Poucas expressões são tão imprecisas como “em situação”. Além disso, a literatura internacional4 consagrou o termo “homeless” que numa tradução aproximada seria “sem teto” 5. Neste texto, para sermos coerentes com a literatura internacional, e para não sermos prolixos, usaremos muitas vezes o termo “sem teto” (ST) no lugar de “pessoas em situação de rua” (PSR).

Não necessariamente estas definições e respectivas categorias (ex: tipos de unidades de recolhimento considerados), precisariam estar no Decreto, o que seria o recomendável, mas precisariam ter sido acordadas pelos entes envolvidos na Política Nacional para População em Situação de Rua, e, especificamente, pelo Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua. A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e a Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA foram designados pelo Decreto como órgãos de apoio e poderiam ter trabalhado esta questão, detalhando e aprimorando a definição, se este ponto tivesse sido efetivamente pautado6.

Além de imprecisa, a definição adotada pelo Decreto está incorreta, pois não abrange todas as situações, ou seja, não abarca os ST ocultos, aqueles que não estão nem na rua, nem nas unidades de recolhimento. São as pessoas que estão temporariamente pernoitando num domicílio, mas não têm local de residência. São indivíduos que estão pernoitando “por favor” em troca, por exemplo, de amizade,

4 No caso da América Latina, no entanto, é comum se usar o termo PSR.

5 Uma outra tradução possível seria “sem lar”, mas esta é uma expressão pouco usual na língua

portuguesa.

6 As atas do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a

População em Situação de Rua não estão disponíveis no site do comitê, o que compromete o aprofundamento desta discussão. http://www.mdh.gov.br/sobre/participacao-social/CIAMP-Rua/CIAMP-Rua acesso em 15/2/2018.

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drogas ou sexo e que estão constantemente em trânsito entre domicílios, abrigos e rua.

Segundo recomendações da ONU7 por ocasião do Censo Demográfico de 2020 estas pessoas seriam identificáveis, pois no momento do levantamento censitário, se encontrariam em um domicílio, mas declarariam não possuir endereço residencial8. 2) É importante saber quantos são os sem teto?

Esta pergunta pode parecer sem sentido à primeira vista. Mas se o critério for a incidência ou relevância numérica do problema a ser investigado, a resposta poderia ser que não é importante fazer esta investigação. O número dos ST em 2015 seria de 122.890 segundo o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS 2016) e 101.854 segundo Natalino (2016), pesquisador do IPEA. A primeira pergunta que surge ao se ver estes dados é a seguinte: o que significa este número? Ou sendo mais preciso, este montante é alto ou baixo? Para isso precisamos de uma referência e a primeira opção é a população do país. Segundo o IBGE, neste ano a população total do Brasil foi de 204.450.649 habitantes9. Portanto os ST representariam de 0,05% a 0,06% da população brasileira. Curiosamente os dois estudos citados não fazem esta comparação que é a mais imediata.

Uma comparação internacional mostra que este percentual é muito baixo. Os países europeus com menor proporção de ST são Dinamarca e Finlândia com 0,1% da população nesta situação (Busch- Geertsema et ali. 2014), bem acima portanto, da estatística brasileira. Há diferenças metodológicas entre as estimativas brasileiras e européias 10, mas mesmo dando um desconto o contraste é evidente. O que nos leva a duas questões: 1) estaremos medindo corretamente o montante de ST no Brasil? 2) a rede de proteção do Estado de Bem-estar pode estar influenciando o resultado europeu e, portanto, prejudicando a comparação? Ao contrário do que diz o senso comum, as indicações são que maior parte dos ST brasileiros trabalham (vide, por exemplo, MDS 2009), o que poderia não acontecer se tivéssemos uma melhor rede de proteção. Discutiremos estes pontos mais adiante neste artigo.

7 UNECE 2015 tópico 780, página 164.

8 A expressão em inglês é “persons with no place of usual residence”.

9 Vide ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2015/serie_2001_2015_TCU.pdf 10 Como se verá mais adiante, a definição europeia de ST é mais abrangente, portanto tende a

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O percentual, no Brasil, aparentemente é muito baixo11, tanto frente ao total da população quando numa comparação internacional. Mas pode estar aumentando, como é o caso da cidade de São Paulo (Fipe e Prefeitura de SP 2015), o que seria preocupante e só tendo uma série histórica é possível avaliar esta questão. Por outro lado, o percentual pode ser baixo no âmbito nacional, mas ser elevado localmente em uma cidade ou bairro específico e esta informação ser importante para os gestores da área social.

Além disso, o critério quantitativo não pode ser o único a ser levado em consideração. É importante enumerar e estudar os ST principalmente dado à gravidade da situação, em termos das condições de vida deste grupo social e pelas implicações que este problema tem sobre as dimensões sociais e econômicas. São questões relacionadas à questão da pobreza, às condições sanitárias e de saúde – em especial doenças transmissíveis - ao desemprego, à dinâmica urbana, ao turismo dentre outras. E sem dúvida, a pressão sobre o equipamento urbano em geral, tendo em vista a permanência de grupos nos aglomerados urbanos.

3).O MDS fez efetivamente um Censo dos ST? A questão dos conceitos operacionais.

Nas publicações do MDS há certa ambiguidade quanto ao uso dos termos “Censo” e “Pesquisa”. Na nota técnica (MDS 2008) que contêm a metodologia do levantamento, o mesmo é referido apenas como “Pesquisa”. Já na publicação da análise de resultados - (MDS 2009) ambos os termos são usados, pois se trataria do “I Censo e Pesquisa dos Moradores em situação de rua”. Na introdução deste último documento, feita por Quiroga e Rodrigues é dito que: “O Censo envolveu a coleta de informações básicas de todos os respondentes e a realização de uma pesquisa mais aprofundada em uma amostra com cerca de 10% dos entrevistados” (MDS 2009 p. 11).

Entendemos que a proposta foi fazer uma contagem exaustiva (Censo), acompanhada de uma pesquisa amostral mais aprofundada do contingente recenseado (selecionando-se 10% dos entrevistados para compor a amostra). Vale ressaltar que em nenhum momento é explicado como se chegou ao percentual para a seleção da amostra de 10% e como a mesma foi utilizada.

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O MDS 2008 definiu da seguinte forma o público alvo de sua pesquisa.

O público-alvo da pesquisa foi composto por pessoas com 18 anos completos ou mais vivendo em situação de rua. O levantamento abrangeu um conjunto de 71 cidades brasileiras. Desse total, fizeram parte 48 municípios com mais de 300 mil habitantes e 23 capitais, independentemente de seu porte populacional. Entre as capitais brasileiras não foram pesquisadas São Paulo, Belo Horizonte e Recife, que haviam realizado pesquisas semelhantes em anos recentes, além de Porto Alegre que solicitou sua exclusão da amostra por estar conduzindo uma pesquisa de iniciativa municipal simultaneamente ao estudo contratado pelo MDS. O trabalho de campo foi conduzido entre os meses de outubro de 2007 e janeiro de 2008. (MDS 2008 p.2 e 3)

Só por esta afirmação já fica claro que não se trata de Censo, pois:

1) Só investiga pessoas com 18 anos ou mais. Logo exclui os menores de idade – crianças e adolescentes, exceto quando “o adulto entrevistado declarou ser responsável” (Veiga et alli 2009 p. 21).

2) Restringe-se a 71 cidades brasileiras, excluindo algumas das principais capitais.

3) O trabalho de campo foi realizado de outubro de 2007 a janeiro de 2008, portanto não há uma data única de referência, o que é fundamental num Censo.

Novas deficiências ficam evidentes ao serem explicitados os conceitos operacionais,

Por “rua”, entendem-se locais situados:

• sob pontes, marquises e viadutos, à frente de prédios privados e públicos; • em espaços públicos não utilizados à noite, em parques, praças, calçadas, praias;

• em cascos de barcos na areia, embarcações não utilizadas no período noturno, portos, estações de trem, rodoviárias, a margem de rodovias; • em esconderijos abrigados, dentro de construções com áreas internas ocupáveis; galerias subterrâneas, becos, postos de gasolina;

• nas áreas próximas aos depósitos de lixo, à reciclagem de material, ao ferro velho, às feiras e aos pontos comerciais;

• nos depósitos e prédios fora de uso, casas e prédios abandonados e outros locais relativamente protegidos do frio e da exposição à violência. (MDS 2008 p. 3).

Portanto não inclui pessoas que dormem em veículos que não barcos. Não são mencionados os cemitérios, embora estes locais apareçam mais adiante quando se aborda a pergunta filtro.

O detalhamento apresentado, em sequência, no mesmo documento, apresenta problemas.

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• Pessoas em ocupações de prédios abandonados, feitas há muito tempo (mais de cinco anos), por indivíduos ou grupos em situação de rua e mantidas, de forma organizada, por moradores permanentes, apresentando características de razoável estruturação (divisórias de alvenaria, uso de luz elétrica, equipamentos domésticos etc.).

• Pessoas residentes em áreas de favela, exceto as áreas situadas nas cercanias da favela, como, por exemplo, nas partes baixas do chamado “pé do morro” em que a favela é localizada, nas quais as pessoas encontram abrigo em locais caracterizadas por “rua”. (MDS 2008 p. 4).

Não ficam claros os seguintes pontos:

1) No que tange à ocupação de prédios abandonados o período de 5 anos para exclusão da pesquisa parece um tanto arbitrário e carece de uma justificativa. Também não está devidamente caracterizado o que se entende por “ocupações organizadas de prédios ou de terrenos” que também estão excluídos do âmbito da pesquisa.

2) O “pé do morro” carece de uma descrição mais precisa.

É importante ressaltar, no entanto, que a pesquisa faz uma importante inclusão, a de pessoas que moram na rua, por motivos de trabalho, mas têm residência. Infelizmente este ponto, até onde temos conhecimento, não é explorado nas tabulações. Portanto não se sabe quantos moradores de rua têm, na verdade, residência.

Outro problema é o conceito de “albergue”. Estes são divididos em albergues, abrigos e casas de passagem. São pesquisadas também hospitais e clínicas, instituições religiosas e casas de convivência. São excluídos beneficiários dos programas “aluguel social”, “pensão social” e albergues que sejam hotéis de baixo custo12.

Aqui os problemas são os seguintes:

1) Não foram incluídas as acomodações para imigrantes e refugiados – ex: do Haiti e Venezuela. Esta é uma atualização necessária, dada a realidade atual do país.

2) Não é devidamente caracterizado o que se entende por instituição religiosa e casas de convivência.

3) A exclusão de beneficiários dos programas “aluguel social” e “pensão social” não é justificada. Parece aqui haver um viés “moralista”. Estas pessoas

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beneficiadas não deveriam estar em situação de rua, mas podem estar e isto deveria ser investigado até para avaliar a eficácia destes programas.

Fica explícito aqui que a pessoa em situação de rua, ou dorme na rua ou em algum tipo de albergue. Portanto, o ST oculto, que só pode ser identificado por meio de pesquisas domiciliares, é excluído do levantamento e isto precisaria ser explicitado.

Filtros utilizados:

Em termos operacionais a distinção entre pessoas em situação de rua das demais foi feita a partir da questão filtro dos instrumentos utilizados na pesquisa. A questão “1. ONDE COSTUMA DORMIR?” selecionou os componentes da população em situação de rua. Quando a pessoa respondeu que costuma dormir na rua, calçada, viaduto, praça, rodoviária, cemitério, praia, barco ou em outro local que pudesse ser caracterizado como “rua” ou em albergue, abrigo, casa de passagem, ou em outra instituição que acolhe pessoas em situação de rua, a entrevista prosseguiu. Quando a pessoa abordada respondeu que estava circunstancialmente dormindo na rua (porque bebeu muito, brigou com o cônjuge ou com um familiar, perdeu o ônibus para retornar ao interior etc.) ou quando respondeu que estava apenas trabalhando ou passando naquele local e depois voltaria para sua residência, o questionário foi encerrado por não se tratar de pessoa em situação de rua. (MDS 2008 p. 5).

Outro filtro refere-se à idade. A pesquisa não procurava investigar a situação de meninas e meninos de rua. Embora seja um segmento de grande importância, as metodologias e as formas de abordagem recomendadas para o estudo de meninas e meninos de rua são diferentes das aplicadas à população adulta. A opção metodológica deste estudo foi abordar somente o segmento adulto da população em situação de rua. (MDS 2008 p. 5).

Aqui os problemas são os seguintes:

1) “Onde costuma dormir” é uma pergunta muito vaga. Seria mais adequado elaborar uma tipologia que contemplasse os vários tipos de segmentos sociais que utilizam a rua, abrigos etc., como local de pernoite e / ou residência. Voltaremos a esta questão mais adiante.

2) É questionável a exclusão de quem está circunstancialmente dormindo na rua. O informante pode estar sendo impreciso, intencionalmente ou não. Ademais, naquele momento esta pessoa fazia parte da população em situação de rua e deveria ser investigada. Por exemplo, seria importante saber quantas pessoas dormem na rua por perderem o ônibus, portanto, por deficiência do transporte urbano. Além disso, esta população impacta o equipamento urbano – precisa de banheiros, por exemplo.

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3) O questionário não segue, com precisão a definição de população em situação de rua do decreto 7.053 de 23/12/09, pois, segundo o mesmo, o grupo investigado deveria estar em situação de pobreza extrema e com vínculos familiares interrompidos ou fragilizados. Estes dois pontos - pobreza e vínculos familiares - não fazem parte da pergunta filtro, só a questão da moradia. O contingente que estaria fora da extrema pobreza e sem vínculos interrompidos e/ou fragilizados não foram excluídos, nem neste momento, nem na totalização final. Este é um problema em termos da coerência da pesquisa com a Política Nacional para População em Situação de Rua (PNPSR). Seja como for, concordamos com a postura adorada pelo MDS, pois consideramos a definição adotada pelo PNPSR muito questionável, como já mencionado no item anterior.

4) Também não é coerente com a definição do decreto 7.053 a inclusão apenas de adultos. Poderia, por exemplo, ter sido utilizado, para o grupo de crianças e adolescentes, um questionário bem simplificado 13.

5) Não é esclarecido como é feita a pergunta filtro, relativa à idade. Aparentemente é em aberto, não havendo uma pergunta pré-determinada. Este ponto não é trivial. Perguntar “quantos anos você tem?” ou “você tem 18 anos ou mais?” faz diferença em relação à qualidade da resposta. É possível que pessoas entre 18 anos e 22 anos queiram diminuir a idade, para se apresentar como “menor de idade” devido às implicações legais. Nossa recomendação é que a pergunta seja feita nos moldes do Censo Demográfico, ou seja “qual é o mês e ano de seu nascimento?”.

Consideramos que a pergunta-filtro é inadequada na formulação atual. O relevante não é saber quem com frequência dorme na rua/abrigo e sim quem dorme, independentemente da frequência. É relevante saber a frequência, mas isto deve ser investigado depois. Não faz sentido excluir da pesquisa quem eventualmente dorme na rua. Da mesma forma não faz sentido excluir os menores de idade.

4).O MDS fez efetivamente um Censo dos ST? A questão da seleção de locais

13 Em 2010, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) realizou, por meio

da empresa Meta Instituto de Pesquisa de Opinião (META 2011), um levantamento sobre crianças e adolescentes em situação de rua. Como a pesquisa dos ST do MDS é de 2007, as informações não são comparáveis. Além disso, o número de municípios abrangidos é diferente.

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Para a seleção de locais o MDS, em cada cidade, acompanhado de profissionais locais, realizou o “mapeamento das áreas de concentração de pessoas em situação de rua e instituições de acolhimento, pernoite e prestação de serviços para esta população” (MDS 2008 p. 7).

Como não foram mapeadas, e ao que tudo indica, nem investigadas as áreas de baixa concentração de pessoas em situação de rua, não se pode caracterizar o levantamento feito como sendo censitário. Vale assinalar que Veiga et ali 2009 não usam o termo “áreas de concentração” e sim “pontos de pernoite” e não fica claro se todos os pontos de pernoite foram efetivamente visitados. Mesmo se tivessem sido, eles representariam apenas os pontos de pernoite conhecidos e das áreas de concentração. Um Censo teria de fazer uma varredura de todos os locais (“pente fino”) para captar aqueles que não são pontos de pernoite conhecidos, incluindo abrigos/albergues não conhecidos14. Para obter melhor cobertura seria importante visitar locais que prestam serviços ao ST – ex: os que oferecem comida – e não só os locais de pernoite.

Também não foi explicitado em MDS 2008, se foram adotados procedimentos para garantir que nesse universo mais restrito – áreas de maior concentração e/ou pontos de pernoite- todas as pessoas que passaram pela pergunta filtro foram efetivamente contadas, e se 10% dos entrevistados, os que foram selecionados para constar da amostra, responderam o questionário completo.

Outro ponto que mereceria esclarecimento é o tratamento da recusa, que pode ter sido explícita ou não – no caso do entrevistado não ter condições de se comunicar com o entrevistador. Neste caso houve imputação ou o informante foi incluído, mas sem informação? Uma questão relacionada a esta é a situação do questionário preenchido de forma incompleta – o que ocorre com certa frequência quando a entrevista é longa. Qual foi o tratamento neste caso?

5) Quais são os problemas na análise de resultados do levantamento do MDS? No capítulo de análise de resultados do MDS 2009, verificam-se os seguintes problemas / deficiências / observações:

14 Poderia ter sido feito uma busca prévia por abrigos/albergues no cadastro do IBGE e/ou do

Ministério do Trabalho (Rais-Caged), mas aparentemente isto não foi pensado. Deveriam também ter sido investigados os cadastros das prefeituras.

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a) A população de menos de 18 anos não é totalmente incluída, só sendo contabilizada quando estava com o responsável.

b) Investigou-se a população até os 55 anos. Portanto, não se sabe quantos idosos estariam incluídos na população em situação de rua, pois pelo Estatuto do Idoso adota-se o corte de idade aos 60 anos.

c) Como é assinalado em MDS 2009, o rompimento de vínculos familiares é fator explicativo para ida à rua de apenas 27,1%. Os dados, portanto, “sugerem a necessidade de reexaminar a conhecida tese de que as pessoas em situação de rua perderam vínculos familiares ou têm vínculos frágeis” (p. 94). Seria o caso, então, de se rever a definição “população em situação de rua” constante do decreto 7.053.

d) Não são apresentados dados sobre rendimento, o que seria importante para se verificar se esta população efetivamente vive em pobreza extrema, conforme definido pelo decreto 7.05315.

e) Há informações locais muito estranhas (outliers) que mereciam uma explicação (ou retificação), como o caso de São José dos Campos onde 0,27% da população é ST, dado muito acima da média das cidades pesquisadas (0,06%).

6) Quais são os problemas metodológicos do teste piloto do IBGE?

Em 2013, o IBGE realizou um teste piloto chamado “Pesquisa sobre População em Situação de Rua”, cujo relatório resumo foi divulgado apenas em 2017 (IBGE 2017)16. O levantamento do IBGE tem a seu favor o fato de ter sido um teste piloto, portanto erros e problemas, por definição, são compreensíveis e tolerados. Os principais problemas detectados, alguns já presentes na pesquisa do MDS e outros destacados no próprio relatório17, foram:

1) Pergunta filtro inadequada –“onde você dorme a maior parte da semana” – pois exclui os sem teto eventuais18, que é a pessoa que temporariamente pode “ter um teto” mas que não tem domicílio fixo (voltaremos a este ponto

15 Seria importante utilizar, por exemplo, o índice de pobreza das Nações Unidas na classificação

desta população.

16 IBGE (2017) anexo à dissertação de mestrado de Monique Figueira.

17 No relatório do IBGE, na sua parte final (considerações finais) consta um balanço crítico da

experiência que é muito útil. Faz falta algo similar no relatório do MDS.

18 O montante dos ST oculto não deve ser desprezível. No Canadá, por exemplo, estima-se que, em

2014 8% da população de 15 anos ou mais foi um ST oculto em algum momento da sua vida (Rodrigue 2016).

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mais adiante). O mais grave, no entanto, é a indefinição do que significa “a maior parte da semana”, ou seja, seria “pelo menos quatro dias”?

2) Exclui população de menos de 18 anos.

3) Não foi realizada numa única noite. Num teste, como o que foi feito pelo IBGE, não chega a ser especialmente grave. Mas, em uma pesquisa este procedimento corre o risco de obter uma dupla contagem, devido ao possível deslocamento da população. Não foi explicitado nenhum procedimento para minimizar este problema

4) Questionário longo – 7 páginas – com perguntas sensíveis / “constrangedoras” - ex: higiene pessoal, violência sexual – é um estímulo à desistência.

7) A experiência internacional – temos muito a aprender?

A própria ONU reconhece (UNECE 2015) que a população em situação de rua é de difícil mensuração e o problema começa pela definição, que é estabelecida culturalmente.

There are some persons who do not usually live in either private or institutional households. These are often referred to as the ‘homeless’. However, ‘homelessness’ is essentially a cultural definition based on concepts such as ‘adequate housing’, ‘minimum community housing standard’ or ‘security of tenure’, which can be implemented in different ways by different communities. For certain policy purposes, some persons living in institutions may be considered as ‘homeless’ persons, as can people who frequently stay temporarily with different households, without secure access to any one. As such, ‘homelessness’ is not a clearly defined characteristic for the purposes of international comparisons. Rather, distinct categories that or more precisely defined should be used; (UNECE 2015 p. 164) (grifo nosso)

Portanto, de acordo com esta definição, dependendo de como fosse classificado “habitação adequada”, um morador de uma favela/comunidade poderia ser considerado “sem teto” (homeless), uma vez que seu domicílio nem sempre seria entendido como “adequado”.

As recomendações da ONU subdividem os “sem teto” em duas categorias: Primary homeless (or roofless): This category includes persons living in the streets without a shelter that would fall within the scope of living quarters (see paragraph 872).

Secondary homeless (or houseless): This category includes persons with no place of usual residence who make use of various types of accommodations (including dwellings, shelters, institutions for the homeless or other living quarters) and have a roof over their heads at the census reference time. This category includes persons living in conventional dwellings but who

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report having no usual address on their census form. Such people are to be regarded as usually resident at the address at which they are enumerated (see paragraph 401(a)) and as part of the household at that address. (UNECE 2015 p. 164) (grifo nosso)

Note-se que no Brasil a distinção é entre estar na rua versus estar em abrigo, mas o que a ONU recomenda é distinguir entre estar na rua versus não ter local certo de residência, que é uma categoria mais ampla e inclui domicílios particulares e, portanto, os “sem teto ocultos”.

No caso dos países europeus a principal referência (Smith 2015) é a definição / tipologia denominada ETHOS – European Typology of Homelessness and Housing Exclusion – desenvolvida pela FEANTSA – European Federation of Organizations Working with the People Who are Homeless (ETHOS sd).

The ETHOS typology begins with the conceptual understanding that there are three domains which constitute a “home”, the absence of which can be taken to delineate homelessness. Having a home can be understood as: having an adequate dwelling (or space) over which a person and his/her family can exercise exclusive possession (physical domain); being able to maintain privacy and enjoy relations (social domain) and having a legal title to occupation (legal domain). This leads to the 4 main concepts of Rootlessness, Houselessness, Insecure Housing and Inadequate Housing all of which can be taken to indicate the absence of a home. ETHOS therefore classifies people who are homeless according to their living or “home” situation. (ETHUS sd) (grifo nosso)

Como assinala Smith 2015, esta definição enfatiza as condições de habitação, embora a expressão habitação (housing) não seja utilizada e sim “lar” (home) que é mais subjetiva. Como assinalado anteriormente, um morador de favela/comunidade seria considerado um ST, pois, comumente, não tem uma moradia adequada em termos físicos, sociais e legais de acordo com as convenções/definições internacionais. Esta definição, portanto, é pouco adequada à cultura (realidade) brasileira.

A definição adotada no Canadá (Canadian Observatory on Homelessness 2012) enfatiza o tipo de habitação, se existe, e caso não exista, se é de emergência (abrigos ou albergues), provisória (abarcando várias situações) ou com risco de despejo.

Homelessness describes the situation of an individual, family or community without stable, permanent, appropriate housing, or the immediate prospect, means and ability of acquiring it. It is the result of systemic or societal barriers, a lack of affordable and appropriate housing, the individual/household’s financial, mental, cognitive, behavioral or physical challenges, and/or racism and discrimination. Most people do not choose to be homeless, and the experience is generally negative, unpleasant, unhealthy, unsafe, stressful and distressing.

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Homelessness describes a range of housing and shelter circumstances, with people being without any shelter at one end, and being insecurely housed at the other. That is, homelessness encompasses a range of physical living situations, organized here in a typology that includes 1) Unsheltered, or absolutely homeless and living on the streets or in places not intended for human habitation; 2) Emergency Sheltered, including those staying in overnight shelters for people who are homeless, as well as shelters for those impacted by family violence; 3) Provisionally Accommodated, referring to those whose accommodation is temporary or lacks security of tenure, and finally, 4) At Risk of Homelessness, referring to people who are not homeless, but whose current economic and/ or housing situation is precarious or does not meet public health and safety standards. It should be noted that for many people homelessness is not a static state but rather a fluid experience, where one’s shelter circumstances and options may shift and change quite dramatically and with frequency. (Canadian Observatory on Homelessness 2012 A) (grifo nosso)

A abrangência desta definição reflete a cultura e o grau de desenvolvimento do Canadá. No caso de um país em desenvolvimento, não faria sentido a categoria “em risco de despejo”, não porque esta situação não exista, e sim porque o foco tem que ser estreito, restringindo-se às situações mais graves, onde não há acomodação19. Pelo mesmo raciocínio algumas situações incluídas na categoria “acomodação provisória” também fariam pouco sentido para nós – ex: acomodação temporária em motéis20; e/ou presidiários a serem libertados sem garantia de alojamento.

Quanto à forma de coletar as informações seriam basicamente três, segundo a UNECE.

The EU Regulation allows Member States to base population and housing statistics on different data collection methods. Three broad approaches can be identified which include countries using traditional enumeration survey methods of data collection, countries using register-based methods of data collation and countries using a combination of approaches (UNECE 2009) (grifo nosso).

Na Europa é comum um ST constar dos registros administrativos governamentais, por receber algum tipo de auxílio do governo. O endereço de correspondência pode ser, por exemplo, uma caixa postal. Também são utilizados os registros das entidades que prestam serviços aos ST. Segundo UNECE 2009, no Censo 2011 os ST foram contabilizados apenas por meio de registros administrativos na Bélgica, Estônia, Letônia, Espanha, Eslovênia e Alemanha.

19 O que seria considerado “absolute homelessness” segundo o Canadian Observatory of

Homelessness (2012 B). Neste documento a definição de ST dos EUA é criticada por ser muito estreita, pois foca no absolute homelessness.

20 Tema abordado no filme O Projeto Flórida, dirigido por Sean Baker, que concorreu no Oscar de

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No caso do Brasil, chama atenção o pouco uso de registros administrativos para enumerar e estudar ST. Nossa (pequena) experiência é basicamente de pesquisas e “censos”. O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único), o Censo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e as informações municipais sobre uso de albergues e abrigos para ST foram pouco utilizadas até agora. Também deveria ser acompanhado o montante da população que nos Censos Demográficos declara estar, no momento da contagem, morando em abrigos e albergues para ST.

8) Fazemos a pergunta filtro correta21? Alguns exemplos de pergunta filtro: MDS (2007)

1) Onde costuma dormir (ponto de pernoite)?

a. Rua (calçada, viaduto, praça, rodoviária, cemitério, barcos, praias, etc.).

b. Albergue (pernoite gratuito, abrigo, casa de passagem, asilo, etc). Há quanto tempo dorme somente em albergue?

c. Ambos

d. Nenhuma das respostas anteriores – Encerre a entrevista 2) Idade declarada (se menor de 18 anos, encerre a entrevista) IBGE (2017)

Onde você dorme a maior parte da semana? a- Na rua

b- Em abrigos ou albergues

c- Dorme somente em abrigos e albergues d- Em algum domicílio - Encere a entrevista e- Não sabe/não lembra - Encere a entrevista f- Não respondeu - Encerre a entrevista Canadá (2017)

Have you answered this survey with a person with this [identification e.g., button]? ○ Yes ○ No

Are you willing to participate in the survey? ○ Yes ○ No

Where are you staying tonight? a. Decline to answer b. Own apartment/house c. Someone else’s place d. Motel/hotel

e. Hospital, jail, prison, remand center

f. Emergency Shelter, domestic violence shelter

21. Nos referimos aqui, à pergunta filtro que determina se o respondente faz parte de nosso público

alvo, ou seja, se é ou não um ST e, portanto, se a entrevista deve prosseguir ou não. Além disso, a pergunta filtro pode também determinar, com base em algum critério, se o informante irá responder ou não determinada parte de um questionário

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g. Transitional housing

h. Public place (e. g. sidewalks, squares, parks, forests, bus shelter) i. Vehicle (car, van, RV, Truck)

j. Makeshift Shelter, tent or shack. k. Abandoned/vacant building

l. Other unsheltered location (specify)___________ m. Respondent doesn’t know (likely homeless)

As perguntas-filtro do IBGE e MDS têm mais pontos em comum entre si do que ambas com a do Canadá. Mas há diferenças entre elas. O IBGE não tem filtro por idade, e o MDS sim. O MDS pergunta “Onde costuma dormir (ponto de pernoite)?”. E o IBGE “Onde você dorme a maior parte da semana?”. A formulação é parecida, mas a do IBGE é mais adequada – maior parte e não costuma, apesar de ambas serem um tanto vagas. O IBGE oferece mais opções e, portanto, a resposta é mais precisa. Chama atenção o fato do questionário do MDS não oferecer as alternativas “não sabe/não lembra” e “não respondeu”. Portanto “obriga” o entrevistado a responder mesmo que não saiba a resposta ou não queira responder à pesquisa. Este procedimento também dificulta a contabilização da não resposta. O complemento à segunda alternativa do quesito filtro do questionário do MDS “Há quanto tempo dorme somente em albergue?” nos parece deslocada no questionário.

O questionário do Canadá se inicia com duas questões muito importantes: 1) controle da dupla contagem – um problema sempre presente neste tipo de pesquisa onde a identificação do entrevistado pode ser difícil de ser realizada, 2) “autorização” do usuário para a realização da entrevista.

Na pesquisa do Canadá a ordenação dos quesitos da terceira pergunta-filtro é quase o inverso das pesquisas brasileiras e do que seria intuitivo. A primeira opção à pergunta “onde vai dormir hoje à noite” é “prefiro não responder”, a segunda é “apartamento/casa própria”. Nos parece que o objetivo, além de investigar o ST oculto (que dorme na casa de conhecidos/amigos), é deixar explícito o respeito à privacidade do respondente e o respeito ao mesmo, pois as primeiras opções não são “constrangedoras” - apartamento/casa própria; na casa de alguém, em hotel/motel. O número de opções é grande, havendo ainda, por último, a opção “não sei”. A pergunta “onde vai dormir hoje à noite” diferentemente de “onde costuma dormir” (MDS) e “onde dorme a maior parte da semana” (IBGE), é direta, não deixa margem a dúvidas e capta os ST eventuais.

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Em qualquer entrevista há sempre alguma invasão de privacidade, mas este assunto é especialmente delicado no caso dos ST. As entrevistas, via de regra, são à noite o que pode perturbar o sono ou o descanso do entrevistado. Ele pode estar sob efeito de drogas ou álcool (ou em crise de abstinência) e, por conta disso, pode considerar uma entrevista algo inadequado no momento. O mesmo pode ocorrer se sofrer problemas psicológicos, estiver com fome etc. Todas estas situações são mais frequentes neste tipo de público.

Como enfrentar esta questão e ser respeitoso com o entrevistado? De duas formas: 1) com um questionário objetivo, como o do Canadá, e 2) com pessoal especializado e devidamente treinado para realizar as entrevistas num ambiente o mais confortável possível para os entrevistados. Isso implica em definir regras de abordagem como, por exemplo, para dar conta de questões do tipo: se o ST estiver dormindo, deve ser acordado? Para acompanhar este processo é fundamental contabilizar e analisar as recusas e as não respostas a quesitos do questionário e, em especial, o que possa ser considerado “delicado” para os informantes.

10) Estamos perguntando demais ou de menos?

Esta questão envolve uma avaliação quantitativa e qualitativa do conteúdo dos questionários. No caso do levantamento do IBGE, que tem 145 perguntas, não há dúvida que se está perguntando demais, em especial se levarmos em conta a hora do dia (noite, muitas vezes) em que a abordagem foi feita, e a característica do informante, que pode estar sob efeito de drogas ou bebidas, pode ter problemas mentais etc. Há 18 perguntas sobre saúde, 19 sobre trabalho. Muitas perguntas poderiam ser facilmente condensadas, como, por exemplo, as 20 do bloco perfil/vínculos, que poderiam ser reduzidas a 5 perguntas com respostas múltiplas, como a investigação do Canadá22, sem perda do conteúdo.

O questionário do MDS (amostra) tem 61 perguntas, a do Canadá 16 perguntas. É natural que num país desenvolvido, com uma rede de proteção social significativa, como no caso do Canadá, o questionário seja sucinto. No caso do Canadá a ênfase é em levantar a intensidade da condição de ST – ex: Há quanto tempo é ST? Quantas vezes passou por esta situação? - e se o informante é de

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algum grupo vulnerável/minoria – ex: migrante, imigrante, ex-militar, homossexual23. Não há perguntas, por exemplo, sobre condições de saúde, e/ou escolaridade. No caso do MDS, o levantamento é sucinto quanto à escolaridade e há ênfase na caracterização do ST e seus vínculos familiares.

Mas o que seria efetivamente o mais importante perguntar? Qual seria um tamanho de questionário razoável, em termos de não pesar para o informante e ser útil para a política pública? Preferimos deixar esta questão parcialmente em aberto, pois sua resposta integral foge ao escopo deste artigo. Sobre o que pesquisar, avaliamos que o básico seria caracterizar a situação de ST (rua ou albergue ou outra), e suas causas; e inclusive, possivelmente, estabelecendo uma tipologia deste segmento social, uma vez que, como ressalta a UNECE 2015, esta é uma definição cultural, portanto circunscrita a cada país ou sociedade; e, no nosso caso, minimamente levantar a situação do entrevistado quanto à ocupação, escolaridade e saúde.

Considerações finais

É importante saber quantos são os ST e as características deste grupo social. Para isso precisamos de pesquisas regulares no nível nacional ou pelo menos nas grandes cidades – o que não existe, fora algumas poucas exceções. Estas pesquisas precisam definir claramente o que seja o ST em termos operacionais e neste aspecto, dentre outros, a experiência internacional é muito útil. Sem isso, a pergunta-filtro, que é chave para a pesquisa, fica prejudicada. Ressalte-se, ademais, que para a pesquisa ser abrangente é necessário combinar levantamento exaustivo em algumas áreas e pesquisa amostral em outras, sem a pretensão de se fazer um Censo, pelo menos num primeiro momento. A privacidade e respeito ao informante precisa ser garantido e por isso o questionário, mesmo que seja para uma amostra do universo, não pode ser extenso.

Poucos sabem, mas se formos aplicar os conceitos internacionais aos questionários do IBGE, parte da população ST vem sendo levantada em Censos Demográficos no Brasil. No Censo 2010, por exemplo, consta dos questionários (Básico e Amostra) no quesito “espécies de domicílios ocupados”, a opção “domicílio particular improvisado ocupado”. Conforme especificado no próprio questionário,

23 No questionário há uma pergunta sobre o gênero do entrevistado e outra sobre sua orientação

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nesta opção estariam domicílios do tipo: “tenda ou barraca”, “dentro do estabelecimento” e “outro (vagão, trailer, gruta, etc.)”, o que incluiu, portanto, dentre seus moradores, alguns que podem ser considerados ST. É importante ressaltar, no entanto, que estes dados nunca foram trabalhados de forma sistemática e/ou adequada24. Note-se que as recomendações mais recentes da ONU para o Censo Demográfico (UN 2017) incluem pesquisar ST25.

Resta uma última questão: o que foi feito pelo IBGE e pelo MDS foi útil? A resposta é: muito pouco. O IBGE ficou no teste piloto e a pesquisa do MDS não foi repetida e não se sabe o quanto da pesquisa foi utilizado para a política pública26. Ganhou-se experiência sem dúvida, mas esta precisa ser discutida e avaliada e o presente texto pretende contribuir para isso.

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24 Em 2010, 282.692 pessoas eram residentes em domicílios particulares improvisados.

25 Estão incluídos na categoria “informal housing units”. Uma novidade é que agora, segundo as

recomendações, um domicílio para ser pesquisado, não precisa necessariamente ter um teto.

26 No site do Comitê intersetorial de acompanhamento e monitoramento da política nacional para a

população em situação de rua - http://www.mdh.gov.br/sobre/participacao-social/CIAMP-Rua acesso 8/3/18- não estão disponibilizados informações sobre reuniões e suas respectivas atas, GTs e deliberações, o que sugere que o Comitê esteja inativo.

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