• Nenhum resultado encontrado

DESTOMBAMENTO: UM ESTUDO SOBRE AS (IM)POSSIBILIDADES E FUNDAMENTOS DA AÇÃO ESTATAL

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "DESTOMBAMENTO: UM ESTUDO SOBRE AS (IM)POSSIBILIDADES E FUNDAMENTOS DA AÇÃO ESTATAL"

Copied!
16
0
0

Texto

(1)

DESTOMBAMENTO: UM ESTUDO SOBRE AS (IM)POSSIBILIDADES E FUNDAMENTOS DA AÇÃO ESTATAL

Eduardo Barbosa Fernandes e Jéssica Queiroz Pereira Discentes do curso de Direito da UEMG - Unidade Diamantina. Pesquisadores extensionistas voluntários do Projeto "CIDADE PARA TODOS: preservação e acesso ao patrimônio cultural na perspectiva sustentável para além da estrutura arquitetônica colonial excludente", sob orientação do Professor Me. Cristiano Tolentino Pires. E-mail: eduardobf1998@gmail.com e jessicaqueirozpereira@gmail.com

I – INTRODUÇÃO

O Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, é o diploma legal que prevê as regras básicas aplicáveis ao instituto do tombamento. Considerando os seus fundamentos, é necessário a reflexão sobre as suas vantagens para a sociedade e os motivos que levam à sua manutenção. Deve-se, ainda, ponderar se este ato simbólico não interfere na vida prática da população e em até que ponto manter esta identidade é essencial.

Embora não haja, de forma explícita, um rol taxativo ou exemplificativo de hipóteses de destombamento, o Decreto-Lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941, admitiu o cancelamento do tombamento de um bem, se dessa forma atender a motivos de interesse público, podendo ser interposto recurso por qualquer legítimo interessado para que seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, aos Estados, aos Municípios ou às pessoas naturais ou jurídicas de direito privado.

A partir deste decreto, a pesquisa discutirá quais as possibilidades e fundamentos para se requerer o destombamento de um bem, especialmente a ausência do interesse público na manutenção do tombamento, que embora inicialmente tenha existido, se perdeu com o passar do tempo ou ainda as hipóteses de ausência de manutenção e preservação do bem por parte do Estado, ou fomento para tanto dado ao particular.

Utilizando-se do método dialético, mediante o levantamento de dados e a pesquisa exploratória, objetiva-se analisar, por meio de vertente jurídico-dogmática, as

(2)

possibilidades de destombamento dos bens em situações específicas, visto que as hipóteses de cancelamento do tombamento, também chamado pela doutrina de destombamento, não estão claramente explícitas no ordenamento brasileiro.

II – DIREITO DE PROPRIEDADE FRENTE ÀS RESTRIÇÕES LEGAIS

A propriedade é uma garantia prevista na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXII, e é, atualmente, considerada um instituto de caráter político, ou seja, a ordem jurídica pode reconhecer ou não, as características que dão forma ao instituto. Além disso, o conteúdo do direito de propriedade sofre inúmeras limitações no direito privado, tudo para permitir que o interesse privado não se sobreponha aos interesses da coletividade.

Esse interesse coletivo é resguardado pela intervenção do Estado na propriedade privada, que se constitui em atividades amparadas por lei com fim de ajustar as propriedades aos fatores exigidos para o cumprimento da função social a que está condicionada. E neste caso, o Estado cria imposições que de alguma forma restringem o uso da propriedade pelo seu dominus.

Por serem diversas as justificativas para o Poder Público assegurar a harmonia social e a ordem jurídica, variadas também serão as formas de intervenção estatal. Para não fugirmos do direcionamento deste estudo, veremos a modalidade de intervenção na propriedade por meio do tombamento, sendo esta uma intervenção restritiva. Ou seja, o Estado impõe restrições e condicionamentos ao uso da propriedade, sem, no entanto, retirá-la de seu dono, que não poderá utilizá-la a seu critério, ficando subordinado às imposições emanadas pelo Poder Público.

III – O INSTITUTO DO TOMBAMENTO

O tombamento é uma forma de intervenção estatal na propriedade, na qual o poder público tem por finalidade a proteção e preservação dos bens de valor cultural, histórico, arqueológico, artístico, turístico ou paisagístico brasileiros, sendo o objeto do tombamento o mais amplo possível, podendo incidir sobre bens móveis ou imóveis, públicos ou privados.

(3)

Essa forma de proteção dos bens de interesse cultural e histórico tem respaldo por meio da Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 216, §1º, ao dispor que o “Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” (BRASIL, 1998). Ademais, a tutela estatal ao direito em tela estende-se por meio do Decreto-Lei nº 25 de 1937, que é o ordenamento regulador do tombamento, estruturado em regras básicas e gerais do instituto, bem como o registro dos bens tombados.

Criado durante o contexto autoritário do Estado Novo (1937-1945), cujo chefe de Estado era Getúlio Vargas, e por meio de um Decreto Lei, cuja característica é a promulgação em caráter de urgência, ou seja, sem um processo de criação ordinário, que geralmente se consiste em tramitações no âmbito do Poder Legislativo, o tombamento foi concebido a partir da ideia de estabelecer, entre outras metas de caráter nacionalista, “a construção de uma tradição político-cultural nacional, que se expressa a necessidade de criação de novas instituições e práticas políticas estatais para o estabelecimento de uma nova modernidade.” (SOARES, 2021, p. 04).

Em termos atuais, adaptado à programática constitucional vigente, o tombamento é elucidado na necessidade de adequação da propriedade ao devido cumprimento de sua função social, compreendida como a necessidade de proteção ao patrimônio cultural, histórico e artístico brasileiro.

Aqui limitamo-nos a não discorrer mais sobre aspectos doutrinários, já que no momento não nos interessa muito, restando-nos apenas analisar os procedimentos aplicáveis ao tombamento (e posteriormente o destombamento).

Sendo assim, no que diz respeito ao procedimento para implementação do referido instituto, sabe-se, preliminarmente, que ele deve ocorrer após regular processo administrativo, respeitando os princípios da ampla defesa e do contraditório, para enfim ser instituído com a inscrição do bem no Livro do Tombo.

(4)

O rito processual altera-se de acordo com a natureza (público ou privado) do bem almejado, bem como o tipo de tombamento, ou seja, pode ser de ofício, voluntário ou compulsório. De ofício se dá aos bens públicos, instrumentalizado pelo ente federado, já o voluntário é realizado mediante consentimento, seja expresso ou implícito do proprietário, e, por fim, o compulsório é efetivado contra a vontade do proprietário. Vejamos melhor a seguir.

IV – O PROCESSO DE TOMBAMENTO

O tombamento de um bem somente se efetua com um ato final, qual seja a inscrição do bem no Livro do Tombo. Desse modo, somente considera-se devidamente tombado o bem que é inscrito em tal livro. No entanto, antes de se concretizar o tombamento por meio da inscrição, faz-se necessário uma sucessão de atos preparatórios.

Essa sucessão de atos trata-se do procedimento do tombamento, que existe com a finalidade de regular o processo administrativo com o devido respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório e que apenas deve ter início com o fito de preservar determinado bem, sob o fundamento do interesse público, desde que contenha relevância cultural, histórica e artístico nacional.

O procedimento alterna-se de acordo com a modalidade do tombamento, ou seja, não existe um procedimento padronizado. Entretanto, em todo e qualquer caso é imprescindível a manifestação de órgão técnico, que se fará de ofício por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (art. 5º, DL 25/37), no intuito de apresentar requerimento fundamentado e que motive o tombamento do bem.

A manifestação é de suma importância a fim de apurar o valor do referido patrimônio. Na esfera federal, é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o responsável por apresentar tal parecer, sendo que nas esferas estadual e municipal também existem órgãos com essa competência. No Estado de Minas Gerais, por exemplo, cita-se o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA-MG).

(5)

Ainda sobre o procedimento adequado para cada modalidade de tombamento, sabe-se que esse meio de intervenção estatal na propriedade pode ser efetuado tanto em bens de natureza pública, quanto de natureza privada. Daí surge a primeira distinção para se identificar o procedimento correto a ser aplicado.

Em se tratando do primeiro caso, nas palavras de DI PIETRO, “no caso de bem público, após a manifestação do órgão técnico, a autoridade administrativa determina a inscrição do bem no Livro do Tombo, notificando a pessoa jurídica de direito público titular do bem ou que o tenha sob sua guarda.” (2020, p. 368).

De antemão, pode-se afirmar que, em comparação ao tombamento de um bem particular, quando o bem alvo é público, há maior celeridade no procedimento. Isso se deve ao fato de não haver um interesse particular na coisa, ou seja, não há nenhum proprietário que tenha legitimidade para se opor ao tombamento, a não ser o próprio ente público que, como se sabe, faz parte da federação e defende os interesses desta.

Lado outro, no que tange o tombamento de um bem privado, acrescenta-se um importantíssimo fator: o direito de impugnação ao tombamento de sua propriedade, em observância ao princípio do contraditório. Porém, isso não se aplica nos casos de tombamento voluntário, que ocorre a requerimento do próprio detentor do bem. Nesse caso, que muito se assemelha ao procedimento do tombo de bem público, “será também ouvido o órgão técnico e, em caso de preencher os requisitos, será determinada a sua inscrição no Livro do Tombo.” (DI PIETRO, 2020, p. 368).

Ainda se tratando de um patrimônio privado, tem-se o tombamento compulsório, que em oposição ao tombamento voluntário, por si só apresenta procedimento denso, revestido de controvérsia em relação ao seu aceite. Afinal, o proprietário, a princípio, não deseja que seu bem passe pelo crivo da intervenção estatal. Ademais, no que diz respeito ao procedimento do tombamento de um bem privado em que seu proprietário não concorde com o parecer do órgão técnico, pode-se resumir tal procedimento da seguinte maneira, ainda nas palavras de DI PIETRO (2020, p. 369):

(6)

O procedimento do tombamento compulsório compreende os seguintes atos: manifestação do órgão técnico, notificação ao proprietário, impugnação, manifestação do órgão que tomou a iniciativa do tombamento, decisão pelo órgão técnico, homologação pelo Ministro da Cultura, inscrição no Livro do Tombo.

Enfim, pode-se concluir que o processo de tombamento se alterna a depender da natureza do bem. Portanto, deve-se observar, a fim de se compreender e aplicar o procedimento a ser adotado, se o bem é de natureza pública ou privada. Em se tratando de bem de natureza pública, após manifestação do órgão técnico requerendo o tombamento do bem, não se requer nenhum outro procedimento antes da inscrição do bem no Livro do Tombo. Já no caso de bem privado, em havendo anuência do proprietário, também não restará mais delongas até a inscrição do bem. Será apenas no caso de tombamento compulsório que o procedimento se valerá de ampla discussão, podendo o Poder Judiciário ser invocado no caso de inconformismo do proprietário.

Outrossim, conforme já elencado, o tombamento apenas se torna perfeito sob o requisito de inscrição do bem no Livro do Tombo. Na verdade, não obstante encontra-se na doutrina a expressão no singular, fato é que existem, pelo menos na esfera federal, diferentes Livros do Tombo, nos termos do artigo 4º do Decreto-lei nº 25, sendo eles o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o Livro do Tombo das Belas Artes, o Livro do Tombo das Artes Aplicadas e o Livro do Tombo Histórico.

Por fim, resta observar o ensinamento de DI PIETRO (2002, p. 369), no sentido de que

Embora o procedimento se encerre com inscrição no Livro do Tombo, a lei exige ainda que, em se tratando de imóveis, se faça a transcrição no Registro de Imóveis, averbando-se o tombamento ao lado da transcrição do domínio (art. 13 do Decreto-lei nº 25). Em se tratando de bens móveis, embora a lei federal não contenha norma semelhante, deduz-se do §2º do mesmo dispositivo que a transcrição deve ser feita em registro público, no caso o Registro de Títulos e Documentos.

O que se extrai é que além do ato definitivo de que consiste na inscrição do bem no livro do tombo, se faz necessário a transcrição no Registro de Imóveis do bem tombado se se

(7)

tratar de imóvel ou, se for móvel, transcrição em registro público. Em outras palavras, apesar da inscrição no referido livro ser considerado o ato que efetua essa modalidade de intervenção estatal, é a transcrição que conclui todo o processo ora descrito.

V – O PROCESSO INVERSO: DESTOMBAMENTO

Da mesma maneira que existe uma lei que instituiu o tombamento, criada durante o governo do ex-presidente Getúlio Vargas, o próprio cuidou-se de promulgar o Decreto Lei nº 3.866/1941 que ainda se encontra em vigor e compõe-se de um único artigo, cujo conteúdo versa o seguinte (BRASIL, 1941):

Artigo único. O Presidente da República, atendendo a motivos de interesse público, poderá determinar, de ofício ou em grau de recurso, interposto por qualquer legítimo interessado, seja cancelado o tombamento de bens pertencentes à União, aos Estados, aos municípios ou a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, feito no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de acordo com o decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.

É utilizado o termo “cancelamento do tombo”, contudo, a doutrina e demais fontes normativas também se referem a este instituto como “destombamento” ou “impugnação ao tombamento”, dentre outros.

A princípio, extrai-se da inteligência do artigo único do DL 3.866/41 que para se requerer o cancelamento, o fundamento deve atender a um interesse público relevante o suficiente para se sobrepor ao interesse arguido em sede de implementação do tombamento e a função social inicialmente atribuída a proteção do bem. Em se tratando do preenchimento desses requisitos, poderá qualquer legítimo interessado requerer o destombamento.

Uma vez requerido, de ofício ou mediante recurso, cabe ao Presidente da República proceder com o deferimento ou indeferimento, em decisão que deverá ser tomada mediante um processo de ponderação, onde sua justificativa deverá prevalecer sobre a proteção do patrimônio cultural, em caso de concessão do destombamento.

(8)

Existem críticas a este poder discricionário conferido ao chefe civil, uma vez que, de acordo com o DL 3.866/41, é de sua exclusiva competência determinar o cancelamento do tombamento de um bem. Porém, doutrinadores como Rafael Carvalho Rezende Oliveira e Maria Sylvia Zanella de Pietro não procedem com tais argumentos, ao passo que “o dispositivo só autoriza o cancelamento ‘por motivos de interesse público’, o que exige motivação, contrastável perante o Judiciário.” (DI PIETRO, 2020, p. 371).

A despeito de não ser esse o foco da presente pesquisa, discorda-se aqui da discricionariedade atribuída ao Presidente da República, pelo fato de ser a sua figura a única a poder “se valer da definição de quais interesses públicos deveriam prevalecer” (SOARES, 2021, pág. 18). Entendemos que seria mais adequado haver um novo parecer técnico dos órgãos competentes, após análise dos motivos alegados, que motivaria a impugnação do tombamento, para então, posteriormente, haver deferimento ou não do chefe do Executivo.

Enfim, demonstrado o legítimo cabimento da inversão do tombamento de um bem, pode-se perceber, via outra, pode-ser o cancelamento de um tombamento uma possibilidade demasiadamente ausente de suporte jurídico e normativo em âmbito nacional, sendo incompreensível as suas hipóteses no ordenamento brasileiro. A propósito, a ausência de uma legislação que regule o processo de cancelamento do tombamento é uma grande problemática.

Nesse sentido, é bem verdade que a CRFB/88 conferiu competência aos entes federativos para legislar sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24, inciso VII), sobretudo sobre assuntos de interesse local (art. 30, inciso I). Previsão esta que concede a municípios e Estados legitimidade para estabelecer regras acerca da proteção do patrimônio. Por outro lado, devido à ausência de um processo específico de destombamento, aliado a prerrogativa de cada ente legislar sobre as hipóteses de cancelar o tombamento de um bem, existe uma grande insegurança jurídica que pode mitigar a tutela ao patrimônio cultural e histórico.

(9)

Nossas alegações podem ser melhor compreendidas a partir da análise do julgamento da apelação cível do TJSP de nº 0044985-81.2011.8.26.0224, em que atuou o relator Danilo Panizza, perante a 1ª Câmara de Direito Público, na data de 26/11/2020.

Trata-se de caso onde operou-se irregular processo de destombamento da casa “art noveau” pertencente à Olivetti do Brasil, conhecida como “Casa Saraceni”, localizada em Guarulhos/SP. Em sua íntegra, percebe-se que o processo de destombamento foi movido pelo município a fim de beneficiar as demais rés, quais sejam duas pessoas jurídicas, que, após a homologação do ato contrário ao tombamento, demonstraram interesse na ampliação do estacionamento do Shopping Internacional de Guarulhos. A partir da homologação e do interesse em questão, foi expedido alvará de demolição e cumprido.

Diante disso, o MP Estadual, ao apresentar vários aspectos que comprometem a conduta de destombamento em questão, requereu a ilegalidade de todo o processo, dentre outros pedidos.

Por sua vez, o julgador acatou os pedidos do parquet, demonstrando que a fundamentação defendida pelo município, e pelos órgãos que se manifestaram favoravelmente ao destombamento, estão eivados de vícios e de total descaso para com a proteção do patrimônio histórico e cultural, conforme se verifica da tese defendida pelo eminente desembargador (SÃO PAULO, 2020):

O procedimento formal deixou marcantes indícios de direcionamento contrário à técnica e de total desconsideração à história e à finalidade, permitindo ressalvar a colocação da Procuradoria da Justiça, de que “em nenhum momento as autoridades públicas preocupam-se em dar uma satisfação para os interessados, em nenhum momento se preocupam em explicitar as razões pelas quais autorizaram a realização de obra que destrói patrimônio tombado de inegável interesse público por seu caráter histórico, ambiental, urbanístico, arquitetônico e cultural.

Portanto, diante do caso narrado, constata-se que a prerrogativa conferida ao município, no que tange a legislar e decidir sobre a impugnação do tombamento de bens, causou

(10)

prejuízo imensurável ao patrimônio histórico e cultural, apesar da condenação indenizatória conferida pelo julgador. Defendemos, assim, que a ausência de legislação nacional que preveja as hipóteses legais de constituição do destombamento, bem como a inexistência de um procedimento padronizado, causa prejuízos à intenção primordial do instituto, qual seja a preservação do patrimônio.

Enfim, diante de todo o exposto, ou seja, uma vez constatado a indeterminação a respeito dos fundamentos e previsões que envolvem as (im)possibilidades do destombamento, a presente pesquisa se propõe a discutir cada uma delas.

VI – (IM)POSSIBILIDADES DO DESTOMBAMENTO

Conforme mencionado alhures, não há no ordenamento pátrio, de forma explícita, um rol taxativo ou exemplificativo de hipóteses que justifiquem a aplicação do destombamento. Diante disso, a presente pesquisa se propõe a mencionar e explicar, a partir de consultas ao inteiro teor de decisões atuais proferidas em segundo grau de jurisdição, em quais eventualidades o Poder Judiciário admite o cancelamento da proteção do bem por via do tombamento.

Tendo como base hipóteses narradas pela doutrina e por hipóteses em que o destombamento é conferido pelo Poder Judiciário, defendemos que os fundamentos para a concretização do destombamento de um bem podem ser: a) o nascimento de outro interesse público que se sobrepõe ao interesse inicialmente constituidor do tombamento do bem; b) a perda do interesse público e da identidade social para manutenção do tombamento do bem; c) o insuficiente ou inexistente auxílio ao proprietário, por parte do Estado, para manutenção do bem tombado. A seguir, cada um dos levantamentos.

a) o nascimento de outro interesse público que se sobrepõe ao interesse inicialmente constituidor do tombamento do bem: Após o tombamento de um bem, visando, como já se sabe, a sua preservação histórica e cultural, pode ocorrer uma situação inusitada: a proteção conferida ao patrimônio pode guerrear perante a um outro interesse público relevante, pois ao tempo da decisão de tombar um patrimônio há um interesse único da

(11)

sociedade, mas, em seguida, isso pode chocar-se com outro interesse que, porventura, possa ser mais relevante socialmente.

Haverá, em tais situações, um embate de interesses que deverá ser analisado, pelo menos sob nosso entendimento, pelos órgãos técnicos. Todavia, de acordo com a legislação, caberá ao chefe do Executivo tomar a devida decisão. Ele, em sede de cognição e ponderação, decidirá qual interesse deverá prevalecer.

De acordo com DI PIETRO (2020, p. 371):

Se é verdade que a proteção do patrimônio cultural é dever do Estado precisamente pelo seu interesse público, não é menos verdade que esse interesse pode, em determinado momento, conflitar com outros, também relevantes e merecedores de proteção; um deles terá que ser sacrificado, a critério da autoridade a quem a lei conferiu o poder de decisão.

No mesmo sentido, utiliza-se OLIVEIRA (2020, p. 903) do seguinte exemplo, em que “o Presidente poderia cancelar o tombamento (...) quando o bem estivesse localizado em área que seria inundada para instalação de usina hidrelétrica.”. É aproximadamente nessas circunstâncias que o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais julgou os Embargos de Declaração nº 1.0439.13.014724-2/005, de relatoria da desembargadora Hilda Teixeira da Costa, pela 2ª Câmara Cível, em 07/08/2018.

No caso em comento, o MP Estadual opôs Embargos de Declaração contra acórdão que seguiu o entendimento da sentença de primeiro grau, no sentido de conceder permissão ao destombamento de um bem, levando em consideração o interesse da coletividade.

A intenção para a desconstituição do tombamento visava a construção de uma barragem, que, conforme se extrai do julgamento em questão, solucionaria as enchentes que assolam o Município de Muriaé e região desde o ano de 1925, causando destruição e sofrimento aos cidadãos. Destarte, a existência do bem tombado (a área de uma fazenda) era o único motivo que impediria a construção da aludida barragem.

(12)

Em suas razões, a julgadora sustenta, ao mesmo tempo em que demonstra ser uma hipótese de deferimento de destombamento a intenção de se alcançar outro interesse público, que (MINAS GERAIS, 2018):

A manutenção do tombamento da sede da Fazenda Boa Vista implica em inviabilidade técnica da obra da barragem e, neste caso, não se desconhece o valor histórico e cultural do imóvel em questão, todavia, o pedido de nulidade de destombamento resulta em manter os problemas causados pelas enchentes provocadas pelas cheias dos rios Muriaé e Preto na região, que assolam há anos a população, destruindo casas, disseminando doenças e causando prejuízos ao erário público e à economia local.

b) a perda do interesse público e da identidade social para manutenção do tombamento do bem: A proteção de um patrimônio apenas fará sentido se este representar fielmente a história, o interesse público e aquilo que caracteriza a sociedade. Há a possibilidade de um patrimônio histórico não mais representar os ideais que representava à época do tombamento, ou seja, é um bem que faz parte da história, mas a preservação deste não faz mais sentido, pois não existe mais compatibilidade com o social e por muitas vezes com os direitos humanos.

Tendo isso em vista, defendemos a possibilidade de destombamento de um patrimônio histórico que, com o passar do tempo e da evolução dos ideais da sociedade, não mais coaduna com os ideais que vigoram na atualidade.

Dessa forma, um patrimônio preservado em função de uma cultura excludente deve ter a possibilidade de ser desfeita. Exemplo prático da falta de pertinência de bem tombado é a estátua do escravagista Edward Colston em Bristol, na Inglaterra (JORNAL G1, 2020):

Colston fez fortuna no final do século 17, estima-se que ele tenha transportado 84 mil homens, mulheres e crianças negociados como escravos na África ocidental – 19 mil morreram na jornada para o Caribe e para as Américas. A estátua em tributo ao traficante de escravos havia sido erguida em 1895 e sofria críticas fazia muito tempo, tendo sido alvo de diversas petições, a última com mais de 10 mil assinaturas. No entanto, no dia 7 de junho de 2020, manifestantes antirracistas a derrubaram e a jogaram em um rio, durante um

(13)

protesto após a morte de George Floyd, cidadão negro, sufocado até a morte por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, no dia 25 de maio.

Pode-se perceber, desse modo, a importância da manutenção dos bens tombados conjuntamente com os ideais que representam a sociedade, além de coerência, como no caso acima, com os próprios direitos humanos.

c) o insuficiente ou inexistente auxílio ao proprietário do bem, por parte do Estado, para manutenção do bem tombado: Após a intervenção do Estado no patrimônio particular, a fim de promover sua proteção histórica e cultural, fica a cargo do proprietário do bem preservá-lo. Esta preservação demanda custos que não devem ser arcados apenas pelos particulares que utilizam diretamente esse bem, visto que a sua preservação encontra respaldo no interesse coletivo e é o Estado quem representa a coletividade. Portanto, a contribuição para a preservação e manutenção do patrimônio também é de responsabilidade deste, não podendo o proprietário suportar, de modo integral, o ônus da preservação.

Em se tratando de casos de latente desrespeito a esse preceito, o judiciário brasileiro também possui o condão de julgar de modo favorável os pedidos de cancelamento do tombamento de bens que se encontram abandonados pelo proprietário e pelo aparato estatal. Foi com base nessa premissa que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em Apelação/Remessa Necessária de nº 0147928-69.2008.8.19.0001, julgou favoravelmente o pedido de destombamento em 12/11/2019, pela 9ª Câmara Cível. O desembargador relator Adolpho Andrade Mello apontou que a (RIO DE JANEIRO, 2020):

Prova pericial indicativa de que o imóvel permaneceu em bom estado de conservação até 1999, porém, já no início do ano 2000 não apresentava as suas características históricas e em 2003 já se encontrava com as benfeitorias praticamente desmontadas, havendo, desde então, portanto, pela presença de um dos pré-requisitos para o destombamento, qual seja, o perecimento da coisa tombada.

(14)

O imóvel objeto da lide acima se trata de um prédio denominado “Oficinas do Trajano”, localizado no bairro do Engenho de Dentro, na capital Rio de Janeiro, tombado por decreto municipal em novembro de 1996. Foi interposto ação civil pública pelo MP Estadual em face do município e outras pessoas jurídicas responsáveis pela conservação do prédio. Alegou-se irregular destombamento e demolição do imóvel sem qualquer critério técnico ou legal e sem a necessária oitiva prévia do órgão competente.

No entanto, não obteve razão o parquet, pois, conforme se viu, concluiu o julgador,por meio de prova pericial, que, devido ao perecimento da coisa tombada, o ato de destombamento restou-se motivado.

Apesar de entendermos ser mais adequado promover a manutenção do patrimônio, por meio dessa decisão observa-se mais uma hipótese em que se constitui um fundamento para requerer o cancelamento do tombamento de um bem, qual seja a ausência ou insuficiente manutenção por parte do proprietário e, em especial, do Poder Público.

VII – CONCLUSÕES

O artigo apresentado buscou problematizar os motivos pelos quais se mantêm um bem sob a proteção estatal, bem como a motivação para o eventual afastamento desta proteção. Ao fim desta pesquisa, conclui-se a importância e urgência de uma legislação nacional que abarque os pontos que aqui foram trabalhados, no que tange a previsão das (im)possibilidades do destombamento e a regulamentação pormenorizada dos procedimentos de tombamento e destombamento.

Embora haja, desde 1941, a possibilidade de reverter o tombamento de bens, constata-se certa prejudicialidade decorrente da ausência de hipóteses legais, ao mínimo exemplificativas, para o fim de requerer o destombamento. A motivação para normatizar tais hipóteses se dá para que não fique a cargo do Poder Judiciário definir as controvérsias dos casos de destombamento a partir de apenas outras fontes do direito, como a analogia e os costumes.

(15)

Outrossim, depreende-se que a inexistência de um procedimento padronizado coopera para com a mitigação da tutela aos patrimônios culturais e históricos brasileiros, somada à necessidade de uma revisão e manutenção dos bens já tombados no país, com o propósito de examinar e arrazoar esses bens e a conformidade com a propositura quando se deu o tombamento.

VIII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 04 jun. 2021.

BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm. Acesso em: 04 jun. 2021. BRASIL. Decreto-lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941. Dispõe sobre o tombamento de bens no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del3866.htm. Acesso em: 04 jun. 2021.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

G1. Manifestantes derrubam estátua do traficante de escravos Edward Colston em

Bristol, na Inglaterra. G1, 2020. Disponível em:

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/07/manifestantes-derrubam-estatua-do-traficante-de-escravos-edward-colston-em-bristol-na-inglaterra.ghtml. Acesso em: 06 jun. 2021.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Embargos de Declaração-Cv nº

1.0439.13.014724-2/005. Relatora: Desa. Hilda Teixeira da Costa. Belo Horizonte, 07

ago. 2018. Disponível em:

https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do?nume roRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0439.13.014724-2%2F005&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar. Acesso em: 07 jun. 2021.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. Rio de Janeiro: Método, 2020.

(16)

RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação/Remessa Necessária nº

0147928-69.2008.8.19.0001. Relator: Des. Adolpho Correa de Andrade Mello Junior. Rio de

Janeiro, 12 nov. 2019. Disponível em: http://www4.tjrj.jus.br/EJURIS/temp/cac7d90b-5780-40a0-bb56-c6cdfebf9aed.html. Acesso em: 05 jun. 2021.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 0044985-81.2011.8.26.0224. Relator: Des. Danilo Panizza. São Paulo, 26 nov. 2020. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=14183109&cdForo=0. Acesso em: 05 jun. 2021.

SOARES, Carolina Pedro. A constituição do destombamento: entre as disputas das redes nacionais e locais na preservação do patrimônio cultural no governo de Getúlio Vargas.

Referências

Documentos relacionados

determinou, nomeadamente: “III - Salvo prova em contrário, de ocorrência de circunstâncias excecionais, o acordo no qual o sócio e gerente de uma sociedade garante

◦ Os filtros FIR implementados através de estruturas não recursivas têm menor propagação de erros. ◦ Ruído de quantificação inerente a

Os candidatos reclassificados deverão cumprir os mesmos procedimentos estabelecidos nos subitens 5.1.1, 5.1.1.1, e 5.1.2 deste Edital, no período de 15 e 16 de junho de 2021,

[r]

escola particular.. Ainda segundo os dados 7 fornecidos pela escola pública relativos à regulamentação das atividades dos docentes participantes das entrevistas, suas atribuições

xii) número de alunos matriculados classificados de acordo com a renda per capita familiar. b) encaminhem à Setec/MEC, até o dia 31 de janeiro de cada exercício, para a alimentação de

Ao redor de uma fogueira especialmente preparada para isso, os anciãos se reuniram aos guerreiros para ouvir a história de Tupac, que não os poupou de nenhum detalhe.. Com

Qual o passo a passo do serviço? Que equipamentos são necessários? Que insumos? Que materiais? Que software? Podem ser construídos checklists do serviço, isto é, ações que