Adjetivos comparativos e seus tipos lógicos
Marcos Lopes
Departamento de Lingüística – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo (USP)
Cx. Postal 26097 – CEP 01060-970 – São Paulo, SP
marclops@club-internet.fr
Abstract. This paper discusses the conceptual division of positive and negative adjectives as it is commonly employed by several well-known authors such as E. Klein, M. Bierwisch and C. Kennedy. The heuristic thresholds of this division are also exposed as they have been brought up by the authors. A description of comparative adjectives based on B. Russell’s Doctrine of Types is presented in order to raise and, hopefully, overcome some of the difficulties related to the traditional point of view.
Keywords. Comparative adjectives; positive and negative adjectives; logical types.
Resumo. Este texto discute a divisão dos adjetivos comparativos em positivos e negativos amplamente utilizada por diversos autores, como E. Klein, M. Bierwisch e C. Kennedy. Os limites heurísticos dessa divisão são também discutidos, tal como reconhecidos pelos próprios autores. A seguir, é apresentada uma tentativa de descrição do problema baseada na Teoria dos Tipos de B. Russell.
Palavras-chave. Adjetivos comparativos; adjetivos positivos e negativos; tipos lógicos.
1. Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir alguns aspectos da caracterização dos adjetivos comparativos tomando por referência, principalmente, alguns dos trabalhos de Christopher Kennedy. O texto percorre, primeiro, algumas das principais idéias do autor acerca do assunto e expõe, a seguir, uma tentativa de descrição dos adjetivos comparativos baseada na Teoria dos Tipos de Bertrand Russell (que também será apresentada em suas linhas gerais).
A tese central a ser sustentada aqui é que a Teoria dos Tipos pode abrir, ao lado da divisão tradicional dos adjetivos em “positivos” e “negativos”, diversas outras possibilidades de interpretação dos comparativos; além disso, parece haver certa homologia entre os tipos lógicos e a distinção lingüística de termos marcados e não-marcados, que já foi aplicada por John Lyons na interpretação dos adjetivos.
Muito embora as teses desses autores tenham sido elaboradas tendo como a língua inglesa por objeto, a maioria delas é aplicável ao português do Brasil e,
analogamente, ao conjunto das línguas latinas. Nos casos em que houver diferenças importantes devidas a particularidades desta ou daquela língua, elas estarão assinaladas.
2. Adjetivos positivos e negativos
Como indica Kennedy (s/d : 5 e segs.), a maioria dos adjetivos graduais (AGs) apresenta pares com um termo “positivo” e outro “negativo”:
Alto / baixo; rápido / lento; comprido / estreito; velho / jovem Inteligente / estúpido; bom / mau; fácil / difícil
Interessante / desinteressante; semelhante / dessemelhante
Alguns fundamentos empíricos sustentam tal distinção entre adjetivos positivos e negativos (cf. Bierwisch 1989). Dentre esses fundamentos, os que merecem maior destaque são os seguintes1 :
I) Sentenças mensuradoras só são aceitáveis mediante o uso de AGs positivos: 1. Julian is two feet tall.
2. * Julian is two feet short. 3. How long is this ruler? 4. * How short is this ruler?
No português brasileiro não se encontra esse uso dos adjetivos nas frases mensuradoras. Ao invés disso temos substantivos que são, também, ligados aos AGs positivos, o que confirmaria a distinção positivo / negativo tal como apresentada aqui, desta vez no interior de outra classe gramatical.
5. Jorge tem dois metros de altura. Ou, ainda:
6. Era um prédio com dez metros de alto.2
Entretanto, Kennedy chama a atenção para o fato de que nem todos os AGs positivos são aplicáveis às sentenças mensuradoras, mesmo quando o padrão de medida está bem claro:
7. * Hillary was driving 160 mph fast.
Uma sentença equivalente com adjetivo negativo não seria melhor: 8. * Hillary was driving 20 mph slow.
Ainda assim, a “positividade” do adjetivo fast não deve ser posta em questão. É o que se vê nas sentenças abaixo, análogas ao par 3 e 4:
9. How fast is this car? 10. * How slow is this car?
II) Em inglês, sentenças comparativas envolvendo um fator de proporção3 só podem ser
consideradas gramaticais quando construídas com adjetivos dimensionais positivos: 11. Julian will soon be twice as tall as me.
III) Adjetivos positivos com marcação (escalar) de grau não pressupõem formas sem a marcação:
13. O prédio é alto de dez metros
⇏
O prédio é alto14. João é tão alto quanto Pedro
⇏
João é alto15. João é mais alto que Pedro
⇏
João é alto16. João é o mais alto de todos na sua classe
⇏
João é alto 17. João é alto demais para passar por aquela porta⇏
João é alto Por outro lado, uma sentença com um adjetivo negativo acompanhado por uma marcação (escalar) de grau em geral pressupõe a mesma sentença sem a marcação escalar:18. João é tão baixo quanto Pedro
⇒
João é baixo19. João é mais baixo do que Pedro
⇒
João é baixo20. João é o mais baixo de todos na sua classe
⇒
João é baixo 21. João é baixo o bastante para passar por aquela porta⇒
João é baixo Por fim, os AGs negativos de avaliação pressupõem sempre a forma não-marcada:22. João é ainda mais feio do que Pedro
⇒
João é feio 23. João é o sujeito mais feio de sua classe⇒
João é feio IV) Gostaria de acrescentar uma breve observação a esse inventário de critérios distintivos. Em geral, os adjetivos e advérbios aqui considerados negativos não aceitam uma orientação qualquer numa sentença comparativa. Parece haver uma tendência a associá-los ao advérbio mais, e não menos.24. Entre em forma mais depressa com a dieta do Dr. Atkins. 25. ? Entre em forma menos devagar com a dieta do Dr. Atkins.
Se tal tendência se confirmasse, as comparações assim estabelecidas seriam intensificadoras, e nunca atenuadoras. Vejamos ainda um outro caso:
26. As Ferraris são mais / menos velozes do que os Fuscas. 27. As Ferraris são mais lentas do que os Fuscas.
28. ? As Ferraris são menos lentas do que os Fuscas.
A sentença 28, diferentemente das demais, parece focalizar não a velocidade das Ferraris, mas a lerdeza dos Fuscas. É muito improvável que fosse utilizada num contexto em que se quisesse ressaltar a velocidade das Ferraris.
3. Tipos lógicos dos adjetivos
É tentador, para começar, traçar um paralelo entre os adjetivos graduais positivos e os termos marcados (derivados da concepção de Nicolay Trubetskoy para o campo fonológico, que logo foi estendida a outras disciplinas lingüísticas), e entre os AGs negativos e os termos não-marcados. Essas observações encontram paralelos em John Lyons quando este indica que, em inglês, apenas um entre dois termos antônimos é usado em contextos não-marcados: big, high, wide, good, tall, etc. (como em “How big is his house?”, mas não: “* How small is his house?”) (Lyons 1968 : 496).
A tese que, finalmente, venho apresentar é a seguinte: parece-me provável que os termos marcados e não-marcados refiram-se, no campo semântico, a classes de tipos lógicos distintos, cuja conceituação pode ser buscada na Doutrina dos Tipos de Bertrand Russell (exposta, inicialmente, no apêndice a Russell 1901-2; ver também Russell 1940). Para a aplicação da teoria russelliana às categorias gramaticais, deve-se, primeiro, classificá-las segundo seu tipo lógico (1 para classes simples e 2 para classes de classes4) e, em seguida, compará-las no interior de seu nível de classificação. Assim,
retomando o exemplo de Kennedy, “long” em inglês recobre a um só tempo dois tipos lógicos, a depender de sua utilização: 1) uma classe de objetos (aqueles que são “longos”, por oposição aos “curtos”), e nesse caso marcaríamos “long1”, ou 2) uma
classe de classes, como em “How long is this ruler?”, em que se refere não aos “objetos longos”, mas a todos os objetos que têm comprimento. Nesse segundo caso marcamos “long2”. Os “objetos longos1” e os “objetos curtos1” seriam então realizações específicas
da classe de nível 2, ou, se se preferir assim, diferentes regiões na escala do comprimento2. De acordo com a hipótese apresentada, somente a categoria mais geral –
a classe de classes, de tipo – é usada nos contextos não-contrastivos. São as classes de nível 2 que nomeiam as escalas: “temperatura”, “altura”, “velocidade” etc. Por isso, a sentença “* This ruler is two meters short” é anômala, pois não existiria o termo “short2”. Por outro lado, nos contextos contrastivos – também chamados “diferenciais”
(como em “Esta régua é mais curta1 do que aquela”), só os adjetivos de tipo 1 poderiam
ser empregados.
Uma tal descrição, que ainda precisa ser mais amplamente experimentada, não contraria os fundamentos expostos acerca dos AGs positivos e negativos, e soma a esses fundamentos certas possibilidades de solução de problemas com que já nos deparamos. Retomemos, por exemplo, a sentença:
7. * Hillary was driving 160 mph fast.
Como se vê, mesmo com o uso do AG positivo, a sentença é agramatical. À luz da Teoria dos Tipos tal como aplicada aqui, tanto fast como slow devem ser considerados adjetivos de tipo 1 (escreveríamos: “* Hillary was driving 160 mph fast1”)
e, portanto, não poderiam ser usados em contextos não-contrastivos. Por outro lado, sabe-se que a classe que subsume slow e fast seria lexicalmente representada por
velocity. A sentença ficaria então:
29. The velocity2 of Hillary’s car was about 160 mph.
É muito interessante notar que, enquanto em inglês existe freqüentemente essa dupla acepção de um adjetivo (isto é, dois tipos lógicos sob a mesma forma lexical, como em long1 e long2), em português a classe de maior nível, representada por um substantivo (“comprimento”, por exemplo), é derivada, assim como no caso do inglês, da forma positiva do AG. Não se encontram classes de nível 2 derivadas de adjetivos negativos:
30. A velocidade do ciclista varia em função de sua determinação nos treinamentos.
31. * A vagareza do ciclista varia em função de sua determinação nos treinamentos.
33. * Uma caixa de fósforos mede três centímetros de estreiteza.
Um argumento que poderia testemunhar em favor da afirmação feita acima de que são as classes de nível 2 que nomeiam as escalas está no fato de que, quando a escala em questão é explicitamente anunciada, a classe em questão não precisa sê-lo, em português. A sentença:
34. João tem dois metros de altura2.
veicula a mesma informação de: 35. João tem dois metros. Outros exemplos:
36. Adalberto está com cento e vinte quilos de peso2.
37. Adalberto está com cento e vinte quilos.
38. Em 1940, João Cabral de Melo Neto tinha vinte anos de idade2.
39. Em 1940, João Cabral de Melo Neto tinha vinte anos.
Já em inglês, a classe de classes (também um adjetivo, no caso) tem de ser explicitada:
40. John is two feet tall2.
41. * John is two feet.
Ao passo que, nos contextos contrastivos, ela pode ser elidida (assim como em português):
42. John is tall1. (contraste pressuposto com o “conjunto dos homens”)
Kennedy afirma, por outro lado, que são os AGs positivos que nomeiam as escalas. Isso se aplica, sem dúvida, a todos os casos em que um AG de nível 1 coincidir lexicalmente com um AG de nível 2 – casos como tall, old, high e muitos outros – mas, como ressalta o autor, nem sempre é assim:
São particularmente interessantes os pares [de adjetivos] como “quente/frio” e “rápido/lento”, que podem participar de frases de medida em comparativos diferenciais, mas não nas formas positivas (nem negativas) não-comparativas. [Exemplos:] “Hoje está dez graus mais [itálicos meus) quente do que ontem”, mas não: “* Hoje está dez graus quente” (Kennedy 2000 : 29, nota).
Vemos que, apesar de quente ser um AG positivo, ele não pode nomear a escala. Kennedy mostra, com razão, que esse adjetivo pode ser usado nos contextos contrastivos, como em “Hoje está mais quente1 do que ontem”, o que é, aliás, o
comportamento esperado das classes de nível 1. Mas, seguindo a proposta apresentada aqui, a fim de nomear a escala, uma classe de nível 2 teria de ser usada:
43. A temperatura2 de hoje é de dez graus.
4. Para concluir
A proposta de divisão dos AGs em positivos ou negativos vem sendo largamente utilizada em estudos recentes. Apesar de produtiva, ela enfrenta alguns problemas, que foram discutidos aqui. Este texto procurou apresentar uma outra via de formalização dos AGs que guardasse os benefícios da proposta tradicional e contornasse seus problemas. A descrição baseada na teoria dos tipos de Russell parece, num primeiro momento, dar
conta dos dados apresentados pelos autores aqui citados. Será preciso, contudo, testá-la ainda sob outras condições.
5. Notas
1 Com exceção das passagens associadas ao português, o que se segue até o item
III desta seção é baseado em Kennedy s/d. Os exemplos são do autor. As sentenças que foram mantidas em inglês visam preservar certas especificidades associadas a essa língua, que são discutidas ao longo do texto.
2 O exemplo é do dicionário Houaiss, que afirma, inclusive, ser corrente um tal
uso desse substantivo no século XIII. Note-se que essas mesmas formas são usadas contemporaneamente em outras línguas próximas, como o francês (“Le bâtiment avait dix mètres d’hauteur” / “C’était un bâtiment haut de dix mètres”).
3 “Factor phrases”, na denominação de Kennedy (s/d : 5).
4 Como ilustração das potencialidades descritivas de cada um desses tipos, com o
tipo 0 pode-se indicar um indivíduo específico – o gato Félix, por exemplo; com o tipo 1, indica-se a classe à qual Félix pertence (a classe dos gatos, digamos) e, com o tipo 2, uma classe que inclua a classe dos gatos, como a dos mamíferos. Naturalmente, outras classes, mais gerais que a dos mamíferos, poderiam ser convocadas: vertebrados, animais, seres vivos, etc., que seriam indicadas com tipos lógicos superiores (3, 4, 5...).
6. Referências bibliográficas
BIERWISCH, M. (1989) “The semantics of gradation” in: Bierwisch, M. & Lang, E. (eds.). Dimensional adjectives. Berlin: Springer-Verlag, 1989.
HOUAISS, A (dir.) (2001). Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Editora Objetiva, 2001.
KENNEDY, C. (1999) “Polar opposition and the ontology of ‘degrees’”. Linguistics &
Philosophy Inédito, baixado do site do autor: http://www.ling.nwu.edu/~kennedy/prose.html. Último acesso em 30/04/2004.
KENNEDY, C. (s/d) The semantics of degree: Capturing gradability. Disponível em:
http://ocw.mit.edu/OcwWeb/Linguistics-and-Philosophy/24-979Topics-in-SemanticsFall2002/CourseHome/index.htm. Último acesso em 30/04/2004.
KLEIN, E. (1980). “A semantics for positive and comparative adjectives”. Linguistics
and Philosophy. Vol. 4, pp. 1–45.
LYONS, J. (1968) Introdução à lingüística teórica. São Paulo: Nacional / EDUSP, 1979.
RUSSELL, B. (1900-1902) The Principles of mathematics. 2nd edition. New York: W. W. Norton & Company, 1996.