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PRESSUPOSTOS DA EUGENIA E SEUS IMPACTOS NA CONCEPÇÃO DE DEFICIÊNCIA

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PRESSUPOSTOS DA EUGENIA E SEUS IMPACTOS

NA CONCEPÇÃO DE DEFICIÊNCIA

The eugenics’ assumptions and their impacts

on the conception of disability

S

imone

m

oreirade

m

oura

Universidade Estadual de Londrina

simonemoura@uel.br

morena doloreS Patriotada Silva

Pedagoga

morenadolores81@gmail.com

Resumo O presente estudo agrega-se às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudos e

Pesquisas em Educação, Deficiências e Tecnologias (GEPEDTEC) da Universidade

Esta-dual de Londrina. Neste artigo apresentamos uma discussão acerca da eugenia, seus pres-supostos e influências nas concepções do homem e da educação do início do século XX. Consideramos necessária a realização desta retomada de conceitos, na medida em que o discurso eugênico tem ganhado espaço e novos contornos na atualidade. Chamado de eu-genia liberal, este discurso apresenta tanto proposições de melhor qualidade de vida para as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência quanto projeções que sinalizam o desaparecimento de disfunções com o desenvolvimento das biotecnologias, mais especifi-camente a engenharia genética, com a possível busca por um humano ideal.

Palavras-chave educação, deficiência, eugenia.

AbstRAct This article was based on researches developed by the Group of Studies and

Research on Education, Disabilities, and Technology (GEPEDTEC) of State University of Londrina. It discusses some aspects of the concept of eugenics, its assumptions and the influences on the conception about man and education in the early twentieth century. This analysis is necessary because the eugenic discourse is gaining ground and new contours. Called liberal eugenics, this discourse presents both the propositions of a better quality of life for people with disabilities, and projections that point to the disappearance of dysfunc-tions with the development of biotechnologies, more specifically genetic engineering and the possible search for an ideal human being.

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I

ntRodução

A eugenia nasceu com a pretensão de ser uma ciência que permitiria promover o me-lhoramento da raça humana em nome do desenvolvimento e busca por uma sociedade de

homens ideais.

Em nome do “progresso”, a política eugênica propunha a regeneração da raça, pau-tando-se na tese da inferioridade racial, no fim da miscigenação e na não reprodução dos indivíduos considerados geneticamente inferiores, sendo incluídos nesta classificação os deficientes (cf. STANCIK, 2006).

A eugenia1 advém do darwinismo social de Galton, que acreditava que, pela seleção

natural e sobrevivência dos mais adaptados, ocorreria o fortalecimento de uma “raça su-perior”, solucionando, assim, gradativamente, os problemas sociais (cf. DIWAN, 2007).

Assim como a sociedade, com o passar do tempo, foi-se modificando, também a eu-genia foi acompanhando tais mudanças, apoiando as novas tecnologias e abraçando-as para colocar em prática seus objetivos. Na contemporaneidade, podemos observar o desenvol-vimento da engenharia genética e a utilização, inclusive, de seres humanos como instru-mentos para o alcance do progresso em busca de um homem perfeito, que possa ser curado, consertado, manipulado geneticamente.

Com esta visão, a presente investigação justifica-se pela necessidade de se fazer uma retrospectiva acerca dos pressupostos da eugenia como ferramenta ideológica, na medida em que, na atualidade, tal discurso vem ganhando novos contornos. Importa a este estudo pontuar tanto as proposições de melhor qualidade de vida para as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência quanto as projeções que sinalizam o desaparecimento de disfun-ções com o desenvolvimento das biotecnologias, mais especificamente, com a engenharia genética, na busca por um humano ideal.

d

esenvolvImento

O período entre os séculos XVI e XVII é considerado uma época de transição, caracteri-zada pela indefinição epistemológica (em relação à concepção de ciência a se seguir), na qual se tornou mais visível a crise da ciência escolástica. Esta indefinição propiciou o surgimento de muitas alternativas de ciências para substituí-la. Dentre elas, destacou-se uma concepção de ciência mecanicista e racionalista com o objetivo de alcançar os conhecimentos da natu-reza buscando o melhor método, de forma a contrapor-se à visão mística/ocultista medieval, com uma nova linha de pensamento intimamente marcada pelas concepções humanistas, re-fletida nas atitudes e entendimentos dos “cientistas pioneiros” (cf. SOARES, 2001).

Este novo pensamento proporcionou diversos avanços no desenvolvimento científico, entretanto, concomitantemente a ele, surgiram também algumas contradições que, segundo Garrafa (2003), precisam ser refletidas. Neste sentido, ele afirma que:

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Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos cam-pos da biologia, da saúde e da vida, de um modo geral, principalmente nos úl-timos trinta anos, têm colocado a humanidade diante de situações até há pouco tempo inimagináveis. […] Se, por um lado, todas essas conquistas trazem na sua esteira renovadas esperanças de melhoria da qualidade de vida para as sociedades humanas, por outro, criam uma série de contradições que necessitam ser anali-sadas responsavelmente, visando não só ao equilíbrio e ao bem-estar futuro da espécie como à própria sobrevivência do planeta. (GARRAFA, 2003, p. 213).

Nesta direção, inferimos que as descobertas da modernidade levaram a uma mudança de concepção da visão de mundo e natureza, tendo em vista a adesão de uma visão utilita-rista, a partir da qual se via o mundo como uma máquina que deveria servir aos homens. De acordo com Santos,

o determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de com-preender o real do que pela capacidade de o dominar e transformar. (2005, p. 6).

Capra (1982) reconhece que a ciência teve um papel imprescindível para a consoli-dação das mudanças de concepção ocorridas na idade da revolução científica (séc. XVI--XVII), alterando, assim, os objetivos da ciência, que anteriormente visavam à harmonia com a natureza.

As diversas concepções de mundo existentes na Idade Média não causaram efeitos mais devastadores à natureza por conceberem o homem como parte inerente dela (cf. SO-ARES, 2001). Mas isso mudou com o surgimento desta nova concepção de homem, re-sultando em uma busca constante de compreendê-la, dominá-la e controlá-la com atitudes “antiecológicas”, como classifica Capra (1982).

Segundo Santos (2005), as concepções dos estudiosos da época foram de grande in-fluência para os cientistas posteriores, que se utilizaram dos pressupostos da ciência como base para suas pesquisas e justificativas para seus métodos, muitas vezes cruéis e destruti-vos. Após essa grande euforia, causada pelas mudanças de concepções supracitadas, a ciên-cia passou a ser extremamente valorizada. É interessante observar uma situação vivenciên-ciada por Rousseau, na qual lhe são feitas algumas perguntas, dando destaque à sua resposta:

O progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou corromper nossos costumes? Trata-se de uma pergunta elementar, ao mesmo tempo pro-funda e fácil de entender. Para lhe dar resposta – do modo eloqüente que lhe mereceu o primeiro prêmio e algumas inimizades – Rousseau fez as seguintes perguntas não menos elementares: há alguma relação entre a ciência e a virtu-de? Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessí-veis à maioria? Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa

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sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática? Perguntas simples a que Rousseau responde de modo simples, com um redondo não (SANTOS, 2005, p. 1-2).

Nossa sociedade é fruto dessas concepções que surgiram na Idade Moderna, concep-ções que por vezes nos são intrínsecas, de forma que o mundo e nós somos o resultado dessas novas visões chamadas por alguns de progresso. Será que realmente podemos consi-derar positivas as mudanças ocorridas, principalmente agora que suas consequências para o mundo estão mais visíveis? Elas foram importantes, mas também trouxeram, muitas vezes, retrocessos e destruição.

Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para nossa felicidade. (SANTOS, 2008, p. 2).

I

Segundo os eugenistas, a solução para os problemas sociais era eliminar todos os que afastavam a sociedade do seu ideal de homem, seja por degeneração física ou moral. Para tanto, impedia-os de procriar e desaconselhava o auxílio assistencial do governo a eles. Medições de crânios e corpos, testes de quociente de inteligência (QI) e esterilizações obrigatórias em vários países, como Estados Unidos e Suécia, foram algumas das consequ-ências visíveis da prática eugenista, com auge no genocídio de Hitler na Segunda Guerra Mundial (cf. DIWAN, 2007).É importante, atentar para o fato de que:

os milhões de mortos pelos regimes totalitários do século XX eram vistos como indignos à luz das doutrinas racistas ou revolucionárias de seus algozes para suspeitar que exista algum tipo de incompatibilidade entre dignidade humana e manipulação genética, quer autoritária, quer liberal. (HECK, 2006, p. 44).

No início do século XX, a América Latina era marcada pelo discurso de defesa da igual-dade e cidadania, abolição da escravatura, rápido crescimento urbano, agravamento da misé-ria e intolerância em relação às diferenças étnicas. Cresceu a preocupação com o futuro das nações e o apoio à tese de inferioridade racial que condenava a miscigenação, justificando a situação latino-americana da época e defendendo a eugenia para alcançar o progresso (cf. STANCIK, 2006). Contudo, a América Latina não aderiu à eugenia como “consumidora de ideias importadas”, adequando-a à sua realidade e anseios, não tendo sido tão radical quanto as demais regiões: ao invés de utilizar esterilizações compulsórias, incentivou o controle

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ma-trimonial, “restringindo ‘uniões inadequadas’ como entre indivíduos portadores de doenças consideradas hereditárias e ‘vícios sociais’” (STEPAN, 2007 p. 517).

Renato Kehl, um dos maiores representantes do movimento eugênico brasileiro, afir-mava que, para salvar o País, seria necessário adotar alguns procedimentos tais como: esterilização compulsória e permanente, controle de casamentos e educação eugênica. Inte-ligência, vocação, talentos e demais características são hereditários (cf. BOARINI, 2003). “O ensino, a educação e a instrução higiênica somente teriam pleno êxito se dirigidos a indivíduos superiores em termos eugênicos” (VILHENA apud STANCIK, 2006, p. 28).

Logo, a educação não teria a capacidade de superar uma genética considerada fraca. Esta de nada adiantaria para corpos biologicamente inferiores, cabendo ao Estado zelar pelos mais aptos e não desperdiçar seu tempo com os demais (cf. STANCIK, 2006), pois a educação e as influências do meio não seriam suficientes para superar a genética. A influên-cia da educação e do meio serve tão somente para despertar características genéticas exis-tentes, “não fazem o milagre de criar ‘bons caracteres’, apenas revelam ‘bons caracteres’, quando estes existem” (KEHL apud STANCIK, 2006, p. 27).

Pessoas que não se enquadravam no padrão de aprendizagem seriam descartadas, a diversidade humana seria ignorada e desrespeitada e os problemas de aprendizagem seriam resumidos à incompetência. “Kehl parece reduzir toda a diversidade humana aos fatores biológico-evolutivos, principalmente aqueles que se referem diretamente à hereditarieda-de” (BOARINI, 2003, p. 171). Para tanto, pretendia combater a miscigenação e a imigra-ção, pois inviabilizavam a proposta de política de purificação racial.

A eugenia científica foi desacreditada por conta das grandes atrocidades nazistas, de maneira que tal termo foi tirado de circulação, mas continuou presente com outros nomes e com caráter liberal (cf. GUERRA, 2006).

Há tempo a biologia não mais é considerada uma ciência do destino, quer dizer, não se entende mais como caudatária da natureza, à revelia do conhecimento e de suas virtualidades tecnológicas. Nossa constituição genética começa a ficar ao alcance da mão. As fatalidades oriundas de tempos imemoriais dão lugar a opções; essas não mais necessitam de aceitação, mas exigem que sejam pon-deradas. Aquilo que há pouco tempo crescia sem nossa ajuda pode agora ser feito por nós e assume as configurações que lhe concedermos, o que pode dar, erroneamente, a impressão de que os humanos terão em breve um genótipo ri-gorosamente determinado pelos pais, mantido inalterável vida afora, ininfluen-ciável a qualquer ambiente e resistente a toda forma de interação com o meio. (HECK, 2006, p. 43).

A ciência tem sido utilizada como base para seleção artificial, que busca fortalecer a seleção natural. Esta seleção, enquanto se restringe ao reino vegetal, não tem causado po-lêmicas, mas quando chega ao animal, em especial no humano, a situação muda, o impacto passa a ser grande diante da recombinação gênica de DNA humano. Surgem, então, ques-tões éticas e morais que vão contra tais pesquisas e atitudes, destacando a possibilidade de que tais ações tornem-se práticas eugênicas.

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II

É possível afirmar que o homem sempre praticou o melhoramento genético de espé-cies, seja na seleção das melhores sementes, no intuito de melhorar o nível de produção de determinada planta, ou na escolha de cruzamento entre os melhores animais, para formar descendentes mais desenvolvidos. Entretanto, o grande susto se dá em relação ao DNA recombinante humano.

É compatível com a dignidade humana ser gerado mediante ressalva e, somente após um exame genético, ser considerado digno de uma existência e de um desenvolvimento? Podemos dispor livremente da natureza humana para fins de seleção? (HABERMAS, 2004, p. 29).

A natureza humana seria um “bem disponível” (cf. FEIO, 2010)? Habermas manifes-tou “oposição à clonagem humana, à eugenia liberal, à pesquisa com células embrionárias meramente especulativas, e ao diagnóstico genético de pré-implantação (DGPI)2 […] tanto

a técnica genética quanto a escravidão, são incompatíveis com os direitos humanos e com a dignidade humana” (FELDHAUS, 2007, p. 94-95). Neste sentido, Habermas concentra sua crítica na instrumentalização e redução da vida humana à qualidade de objeto manipulável (cf. SALVETTI, 2008, p. 86).

Habermas defende que se deve preservar o direito do ser humano, do indivíduo, de de-cidir a respeito de seu próprio corpo e o direito de “poder-ser-si-mesmo”, devendo ser este um direito inalienável. Logo, “não podemos supor o que seria mais ou menos ‘vantajoso’ para as gerações futuras […], não é possível obter-se um consenso presumido para operar no corpo de outrem em objeto de uma intervenção anterior ao nascimento” (PONTIN, 2007, p. 54).

Podemos pensar na suposição de que um dos embriões analisados em um DGPI seja percebido com uma determinada deficiência. O que será feito com ele? Implantado ou eliminado? E os exames que detectam a síndrome de Down no ventre, por exemplo; o que será feito com esse feto se possuir a síndrome? Conservado ou eliminado?

Enquanto com os métodos usuais de inseminação só é possível torcer para que as condições saudáveis e os traços tidos como vantajosos do esperma do doador escolhido sejam transmitidos ao embrião, o diagnóstico genético pré-implan-tacional [DGPI] oferece a possibilidade de avaliar distintos cromossomos com vistas a anomalias, como a trissomia que leva à síndrome de Down e a hemofilia na determinação do sexo, e permite registrar, com um crescente grau de segu-rança, a presença de alelos gênicos relacionados à atrofia espinhal progressiva, às distrofias musculares e à fibrose cística. Embora as intervenções de cará-ter eugênico negativo, cará-terapêutico, clínico ou curativo, subseqüentes ao diag-nóstico genético pré-implantação, alterem a presumida ordem preestabelecida 2 “O chamado DGPI (diagnóstico genético de pré-implantação) é uma técnica capaz de fornecer informações

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do patrimônio genético natural do feto, há um consenso generalizado de que estão a limine justificadas pelo assentimento posterior da prole, uma vez que é sensato admitir que seres humanos desejam não ter disposições patológicas monogenéticas. Em relação à eugenia negativa não há, assim, controvérsias

maiores quanto ao uso das técnicas disponíveis que impedem o nascimento de seres humanos onerados com deficiências graves, ou seja, aqui como alhures não há muita celeuma quando se trata de evitar o pior, o defeituoso, o que causa sofrimento e/ou traz infelicidade. (HECK, 2007, p. 47-48; grifo meu).

Essa invenção e disseminação dos novos testes visa reconhecer que a síndrome de Down, deficiências físicas e intelectuais no feto ou no embrião em situação de pré-implan-tação, mesmo que neguem tal assertiva, foram criados no intuito de calcular os riscos de existência da deficiência e evitar a gestação destes, utilizando-se do argumento de defesa de direitos individuais, corroborando as ideias dos eugenistas liberais de ter tais informações para poder posteriormente decidir sobre que atitude tomar.

Ainda a respeito do DGPI de embriões, surge a questão da pré-seleção das caracte-rísticas do indivíduo a ser formado (cf. PONTIN, 2007). Surge, então, a questão sobre os critérios para esta seleção, de maneira a buscar que a criança esteja dentro dos ideais de homem tidos pela sociedade atual (escolhendo, assim, características como pele, cabelo, cor de olhos etc.) e consequente eliminação dos embriões ou fetos que não correspondam a tais expectativas.

a clonagem e o Diagnóstico de Pré-Implementação de embriões são oferecidos como forma de viabilizar a construção de uma civilização sem doenças, ou livre, pelo menos, de certos males. (PONTIN, 2007, p. 90).

Estes procedimentos acabam por trazer, como consequência, a eliminação dos embri-ões ou fetos que não correspondam a tais expectativas, pois se almeja um ideal de homem, e o distanciamento possível deste ideal causaria uma diferença significativa que deveria ser evitada. A respeito destas diferenças Amaral afirma que:

a diferença significativa, o desvio, a anomalia, a anormalidade, e, em conse-qüência, o ser/estar diferente ou desviante, ou anômalo, ou anormal, pressu-põem a eleição de critérios, sejam eles estatísticos (moda e média), de caráter estrutural/funcional (integridade de forma/funcionamento), ou de cunho psicos-social, como do “tipo ideal”. (1998, p. 13).

O caráter estatístico divide-se em dois tipos: a “média” e a “moda”. A média consis-te no quocienconsis-te da divisão da soma pelo número das parcelas. A altura média dos homens, por exemplo, consiste na soma das alturas dividida pelo número de pessoas; as pessoas que se afastarem (para mais ou para menos) dessa média são consideradas diferentes. A “moda” refere-se à frequência de determinadas características. O exemplo dado por Amaral (1998) é a grande frequência de mulheres lecionando no ensino fundamental, em detrimento do número de homens.

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O segundo caráter, o estrutural/funcional, diz respeito ao que Amaral define como “[…] integridade da forma quanto à competência da funcionalidade” (AMARAL, 1998, p. 13), ou seja, a presença ou ausência de características no indivíduo que causem um não funciona-mento, ou mau funcionafunciona-mento, de determinadas atribuições do organismo (“deficiências”).

O último, e não menos importante, é o psicossocial que, na maioria das vezes, abarca os dois primeiros e consiste na construção social de um padrão, um ideal de homem. O exemplo destacado por Amaral é um ser “jovem, do gênero masculino, branco, cristão, heterossexual, física e mentalmente perfeito, belo e produtivo” (1998, p. 14).

Segundo o pensamento da Escola de Frankfurt, a sociedade busca uma homogeneiza-ção. Neste sentido,

quando Adorno e Horkheimer afirmam que a civilização atual a tudo confere um ar de dessemelhança, eles definem o traço característico da indústria cul-tural: a padronização. Produto do Iluminismo, a indústria cultural elimina as diferenças, uniformizando a vida segundo os padrões da racionalidade técnica. (ORTIZ, p. 14, s/d).

III

Nos escritos de Habermas encontramos a preocupação com os investimentos em pes-quisas para tecnologia, visando utilizá-la como um instrumento, “ou seja, de uma técnica que se coloca não como meio para o avanço, mas como fim” (PONTIN, 2007, p. 43). Ele nos lança uma reflexão: “até onde a tecnologia não está causando uma mudança de pers-pectiva na forma de vida do ser humano, de forma que a própria concepção de liberdade, ou de ação política, é colocada em jogo por uma espécie de razão instrumental?” (PONTIN, 2007, p. 43). A utilização do embrião para qualquer fim que não seja a reprodução (sua instrumentalização) deve ser terminantemente proibida. Por esse motivo, defende a neces-sidade de uma legislação que oriente os limites para essa manipulação genética.

O recurso à chamada ética material implica, segundo W. Kersting, que seja de-cretado “um direito ao crescimento natural, à inviolabilidade das características naturais, à identidade não-planejada, à imperfeição”. As conseqüências de um recuo àquilo que é indisponível por natureza faz com que “[o] direito humano transforme-se novamente em direito natural; e ações da medicina reprodutiva e da tecnologia genética adquirem a qualidade de peccata contra naturam”.3 (HECK, 2006, p. 44-45).

Outra situação a se destacar é em relação ao conceito de “responsabilidade”, tratado por Hans Jonas, que questiona a respeito das consequências e problemas de implicação geracional que a intervenção genética pode causar, podendo ser visíveis apenas nas próximas gerações. 3 (Jürgen Habermas über die Vergangenheit des Nationalstaates und die Zukunft der Natur, p. 87. Ibidem.

“Das Menschenrecht wird wieder zum Naturrecht; und reproduktionsmedizinische und gentechnische Hand-lungen gewinnen die Qualität von peccata contra naturam”).

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Um atleta poderia argumentar que um dos competidores de uma determinada modalidade esportiva teve seu genoma alterado e, por isso, está em franca van-tagem. Um filho poderia culpar os pais por não terem alterado o seu genoma de forma que ele pudesse aprender matemática com mais facilidade. Uma con-quista pessoal já não seria tão “pessoal” assim, seria uma concon-quista da pessoa e de seu “programador”. A pessoa geneticamente modificada poderá sofrer com a consciência de ter de partilhar com outrem a autoria do destino de sua própria vida. (FEIO, 2010, p. 762).

Muitas outras questões podem surgir em relação a essas modificações genéticas. Su-pondo que uma mulher seja mãe de aluguel de seu neto, a criança é filha de quem? Da por-tadora dos genes que ela recebeu, ou da avó que a carregou no ventre? Ou ainda, digamos que um casal realize uma fertilização in vitro e congele os embriões não utilizados (óvulos fecundados, ou seja, já possuem seu próprio DNA e estão vivos), e depois decida não mais ter filhos: o que será feito desses seres em formação? Serão descartados? São questões éti-cas que circulam nas discussões acerca da engenharia genética.

O racismo, que aparece enquanto dispositivo desta tecnologia de poder, tem seu aspecto ampliado na forma de uma eugenia, de uma intervenção direta no material genético que dá forma ao humano. A assunção desta idéia de um fortalecimento biológico, seja no evitar o surgimento do indesejável ou na re-produção do desejado, atinge, no estágio atual, com a clonagem e o diagnós-tico de pré-implementação, um ápice. Não é preciso sequer correr o risco que surja alguém com uma condição indesejável, podemos escolher características determinadas para indivíduos futuros, de acordo com critérios científicos – a utilização estratégica do biológico, assim, fica clara, já que a seleção do sexo pode ser determinada, bem como as doenças mentais podem ser evitadas na constituição biológica, na seleção de um embrião que tem mais potencial para uma vida mais adequada em sociedade. O quadro de uma constituição de uma pureza de raça, portanto, permanece bastante presente no discurso que pretende a objetividade dos critérios que validam a utilização dos diagnósticos de pré--implementação, ou mesmo da clonagem reprodutiva […] Aquilo que não se encaixa para a vida em sociedade, ou em uma homogenia de uma população, pode ser facilmente descartado, pois não encontra a proteção de um determina-do conceito de vida – que é reguladetermina-do normativamente. (PONTIN, 2007, p. 70).

O medo que temos daquele que nos é diferente, ou desconhecido, leva-nos a concei-tuá-lo como inferior, excluindo-o, considerando-o indigno de viver em sociedade, pois esse não se encaixa na padronização almejada. Esse fato reflete os tipos de indivíduos que a sociedade deseja, pois a estrutura social requisita pessoas fortes, saudáveis e eficientes para o mercado de trabalho. A ausência destas características causaria redução da produção, logo, a pessoa com deficiência poderia passar a ser considerada um obstáculo ao desenvol-vimento da sociedade.

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O corpo fora de ordem, a sensibilidade dos fracos, é um obstáculo para a produ-ção. Os considerados fortes sentem-se ameaçados pela lembrança da fragilida-de, factível, conquanto se é humano. As pessoas com deficiência causam estra-nheza num primeiro contato, que pode manter-se ao longo do tempo a depender do tipo de interação e dos componentes dessa relação. (SILVA, 2006, p. 426).

Isso é preconceito e

o preconceituoso afasta esse “outro”, porque ele põe em perigo sua estabi-lidade psíquica. Assim, o preconceito cumpre também uma função social: construir o diferente como culpado pelos males e inseguranças daqueles que são iguais. (Ibid.).

Diante desta situação, presente em nossa sociedade, surge o questionamento a respeito das implicações que essas novas possibilidades genéticas trariam para a posição social dos deficientes e a possível estigmatização e isolamento dos indivíduos deficientes como uma das consequências da aplicação em massa de seleção genética. Fica o medo do retorno do

horror visto na eugenia estadunidense e, em especial, na nazista (cf. NUSSBAUM, 2004).

É possível diferenciar a antiga eugenia do melhoramento genético, uma vez que na antiga eugenia a liberdade reprodutiva não era respeitada; ao mesmo tempo, na época ainda não havia como intervir na genética humana a não ser pela restrição de casamentos. Já o movimento moderno é marcado pelo melhoramento genético e baseia-se na liberdade de escolha individual.

Inevitavelmente, discussões sobre a escolha dos pais em relação a filhos ge-neticamente deficientes são muito ameaçadoras às pessoas com deficiências. Mesmo que elas não envolvam o aborto de crianças deficientes já existentes – e, como no cenário principal desses autores, sejam consertadas basicamente as deficiências no útero ou após o nascimento –, há ainda algo alarmante na idéia de que a síndrome de Down, a surdez e a cegueira deixem gradualmente de existir. Pessoas nessas condições não temem apenas a estigmatização cres-cente e a falta de apoio social. Também sustentam vigorosamente (sobretudo os surdos) possuir uma cultura valiosa, que será obliterada se uma única norma de capacidades humanas básicas for aplicada completamente. (NUSSBAUM, 2004, p. 32).

Nesta direção, Nussbaum afirma que alguns intelectuais defendem que não existe motivo para permitir a continuidade das deficiências, na medida em que as tecnologias poderiam superá-las. Nesta perspectiva, a autora questiona:

Certamente não ambiciono um mundo em que pais consertem seus filhos para que ninguém se sinta deslocado, ainda que todos saibamos que as vidas dos des-locados não são fáceis […] “Eles desejam que eu nunca tivesse nascido”, disse minha filha, ao ouvir que autores […] eram a favor de tratamentos genéticos de

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defeitos que se desviam do funcionamento humano normal. Sim, realmente eles o desejam. Mas quem, dada a opção de poder poupar o sofrimento de um filho, poderia seguramente discordar deles? É que só o fato de ter tal escolha já parece ameaçador e, de algum modo, trágico. (NUSSBAUM, 2004, p. 33).

O ideal de um corpo perfeito, físico e intelectualmente, assentado na ideia e busca por uma homogeneização dos indivíduos, a partir da determinação de parâmetros de normali-dade, sempre existiu ao longo da história, embora com adaptações à época e à sociedade.

Nesta perspectiva, este estudo possibilita afirmar que o homem sempre praticou a seleção genética, seja escolhendo os melhores animais para procriar, ou as sementes dos frutos mais bonitos. Entretanto, ao dispor da seleção de seres humanos, muitas dúvidas e questões éticas surgem.

Será então o homem, como questiona Feio (2010), um bem disponível? Ou ainda, como nos coloca Habermas (2004), teria o homem o direito de escolher quais indivídu-os deveriam viver reduzindo-indivídu-os à condição de um objeto manipulável? Parece-nindivídu-os, como aponta Moura (2007, p. 47) a respeito dos diversos sentidos construídos sobre a deficiência, que as produções na área das biotecnologias, mais especificamente a engenharia genéti-ca, apresentam um modelo assistencial e médico, pautado por um discurso que aponta as manipulações genéticas como melhora de vida para os indivíduos, estando aí inseridas as pessoas que apresentam algum tipo de deficiência. Portanto, Moura alerta para:

a tarefa urgente que se apresenta, pois ao contrário do que muitos pensam sobre os acontecimentos e avanços tecnológicos como algo que se está acontecendo, acontece fora de nossos quintais, deveríamos ao menos repensar se não estarí-amos nós significando “isto” e “eles” como prenúncio de uma nova forma de barbárie: a indiferença. (2007, p. 55).

Tal reflexão nos inquieta, pois estamos vivendo em uma sociedade marcadamente tecnológica, que invade não apenas as instâncias públicas, mas, sobretudo, as privadas, inscrevendo-se no corpo e nas concepções que há muito buscam a ideia do homem ideal.

R

efeRêncIAs

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