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Imagens e Imaginário no Cinema Brasileiro: o que vemos, como nos vemos, como somos vistos

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Academic year: 2021

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Imagens e Imaginário no Cinema Brasileiro:

o que vemos, como nos vemos, como somos vistos”

Este ensaio pretende investigar as tendências da cinematografia nacional contemporânea, em termos de temas e estéticas, e a possibilidade de uma mudança de atitude e imaginário depois da retomada do cinema brasileiro. Minha hipótese é de que os espectadores brasileiros estão começando a valorizar o cinema nacional pelo êxito do mesmo no exterior, e que os temas estão em sua maioria dentro da área de estudos culturais, realizados com processos de hibridação, constituindo o que denomino de “estética da hipervenção”. Mais especificamente, meu intuito é questionar que tipo de imagens estamos vendo, a que imaginário pertencem, e como nos vemos e somos vistos nas imagens que produzimos. Baudrillard, Deleuze, Canclini, Barbero e Appadurai fazem parte do referencial teórico para esse estudo, que é um recorte da pesquisa que estou desenvolvendo no momento.

A trajetória do cinema brasileiro foi sempre irregular, com períodos mais férteis e intervalos temporários, com ciclos e impulsos, podendo ser classificada de “rizomática” (Deleuze-Guattari), com pontos de fuga e platôs. Portanto a “retomada” aqui mencionada deve ser entendida como o período de 1994 até o momento atual, o que vale dizer a última década. Em termos de temática, o que temos agora não é uma nova era, mas uma ênfase maior em temas já antes abordados, talvez não com a mesma intensidade e freqüência. Este ensaio pretende mapear brevemente as tendências do cinema contemporâneo, enfatizando que tipo de imagens estamos produzindo e vendo, e a que tipo de imaginário as mesmas aludem.

Se considerarmos que não há diretrizes nem tendências fixas ou normas a serem seguidas, chegaremos à conclusão de que os realizadores estão totalmente livres para produzirem seus filmes. Como coloquei em estudo anterior, a filmografia nacional, ao contrário da época do Cinema Novo, do Dogma 95 ou do cinema iraniano, é rizomática tanto em temas quanto em estéticas. Há os filmes de temas mais “civilizados”, como “Tônica Dominante”, de Lina Chamie, os da barbárie, como “Latitude Zero”, de Toni Venturi, os de confronto civilização-barbárie como “Amélia”, de Ana Carolina, os filmes mais existencialistas, como “O Estorvo”, de Ruy Guerra, e os com sensibilidade mais apurada, como “Janela da Alma”, de Walter Carvalho e João Jardim.

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Contudo, parece que o tema da violência tende a ser um dos mais recorrentes. Desde “Cronicamente Inviável”, de Sérgio Bianchi, até “Estação Carandiru”, de Hector Babenco, o cinema nacional tem mostrado a violência através de estéticas as mais diversas, como em “Cidade de Deus”, “ Yndio do Brasil”, “Como nascem os anjos”, “Corisco e Dadá”, “Os Matadores”, “Quem matou Pixote”, “Central do Brasil” e “Abril despedaçado”.

Neste ensaio, minha preocupação fundamental é questionar que tipo de imagens estamos produzindo e que tipo de imagens estamos vendo. Nos filmes citados acima (e existem muitos outros), já podemos visualizar os tipos de violência envolvendo as etnias formadoras da raça brasileira, envolvendo as classes sociais de nossa sociedade e envolvendo as diversas regiões do país, do litoral ao interior, de norte a sul. E como é mostrada essa violência? Valêncio Xavier, escritor paranaense, comentou há alguns anos que, quando os críticos de cinema não sabiam o que dizer sobre um filme, diziam que a fotografia era linda. Atualmente, a fotografia é realmente um dos aspectos mais polêmicos, e a imagem que nos é mostrada faz com que haja uma grande diversidade de enfoques e de comentários sobre o que tem sido feito fotograficamente. Como cita Alexandre Werneck, repórter do JB: “A beleza da fotografia no cinema nacional divide profissionais entre os que aplaudem e os que a consideram pastiche da publicidade e dos clipes” (“Estética Polêmica”, p. 1). Esse ensaio pretende conciliar “os integrados e os apocalípticos”, tentando um equilíbrio e evitando radicalismos.

Ivana Bentes define o que considera a mudança de “estética da fome” para “cosmética da fome”, em sua análise da trajetória do Cinema Novo ao atual, análise que gerou muita controvérsia. Minha proposta é a “estética da hipervenção”, considerando por “ hipervenção” a combinação do hiper-realismo fotográfico, oriundo das assim chamadas novas tecnologias, ou ainda melhor, da tecnologia digital, com a intervenção e hibridação de elementos, sejam estes da publicidade, dos clips, ou do jornalismo documental. Essa nova estética tenta seduzir o espectador e mostra em primeiro lugar o produto em sua embalagem de presente (daí a pertinência da “cosmética”, ou do hiper-real) para, em seguida, depois de conquistar a atenção do espectador brasileiro (aquele condicionado ao produto hollywoodiano), expor sua estória, sua crítica ou seu questionamento. Apesar das críticas intensas e justificadas da maioria dos críticos e pesquisadores do cinema brasileiro, deve-se levar em consideração que a cinematografia nacional está reconquistando seu

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público, o que pode, no futuro, ser um diferencial na luta contra a hegemonia de Hollywood e na construção de um novo imaginário.

Atualmente há nomes de destaque na fotografia do cinema, como o de Marcelo Durst (“O Estorvo”), o de Breno Silveira (“Eu Tu Eles”), e o de Walter Carvalho (“Central do Brasil” e “Lavoura Arcaica”), com propostas diferenciadas. Mas a convergência na escolha da estética da fotografia na maioria dos filmes nacionais contemporâneos talvez tenha por base o que Jair Ferreira dos Santos diz: “Uma reportagem a cores sobre os retirantes do Nordeste deve primeiro nos seduzir e fascinar para depois nos indignar. Caso contrário, mudamos de canal. Não reagimos fora do espetáculo” (p. 13). Assim como a imagem do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi maquiada (terno Armani, cabelo e barba aparados), para uma melhor performance visual, a fotografia dos filmes tem o poder de impressionar o espectador.

Se fizermos uma análise um pouco mais profunda, talvez o que Baudrillard nos diz deva ser levado em consideração:

O milagre da fotografia, dessa imagem supostamente “objetiva”, é que, através dela, o mundo se revela radicalmente não objetivo. É a objetiva fotográfica que, paradoxalmente, revela a inobjetividade do mundo – esse algo que não será resolvido nem pela análise, nem pela semelhança. É a técnica que nos leva para além da semelhança, ao cerne do trompe-l’oeil da realidade.... É preciso que a imagem nos toque por ela mesma, que ela nos imponha sua ilusão específica, sua língua original, para que algum conteúdo nos afete. Para que haja transferência afetiva sobre o real, é preciso haver contratransferência da imagem.... É só libertando a imagem do real que lhe conferimos a sua potência. (p. 143, 148)

Como o “real” não é único, mas muitos, tão numerosos quanto os espectadores, o que vemos é um pouco do que queremos ver, um pouco do que o realizador nos quer mostrar e um pouco do que os elementos técnicos nos permitem ver. Essa combinação de possibilidades de “ver” tem o duplo poder de seduzir e de irritar pela sedução. Em outras palavras, se a fotografia é maquiada demais, vai gerar críticas. Se é maquiada de menos, vai conquistar só os iniciados. O equilíbrio da direção de fotografia de arte é o que faz a diferença entre os diversos tipos de sucesso, seja entre os críticos, seja só de público e bilheteria, ou seja o sucesso internacional.

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Mas o processo não é tão simples assim. Para um país como o Brasil, acostumado com o paradigma hollywoodiano, o reconhecimento vem mais de fora para dentro que de dentro para o exterior, ou melhor, há sempre uma esperança que o produto nacional conquiste o Oscar, que tenha sucesso no exterior. Talvez seja este o panorama que esteja mudando, especialmente nos cinco últimos anos. Depois do sucesso de “Central do Brasil” no exterior, o público tem se voltado mais à cinematografia nacional. Com a quantidade crescente de filmes, o interesse também aumentou. No desenrolar desse processo, há aspectos negativos e positivos. Sem dúvida, não há como negar o mérito de documentários como “O Rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas”, “Edifício Master”, “Nós que aqui estamos por vós esperamos” e “Janela da Alma”, entre outros. Enquanto algumas ficções continuam com a história estereotipada, narrativa linear, com romantizações e estetizações, e com pseudo-esperanças ou final feliz, parece que a linguagem dos documentários está enriquecida pelos processos de hibridação que já tiveram início quando da ruptura do conceito de registro “real” para dar lugar ao documentário ficcional. Por outro lado, os filmes que têm maior sucesso de bilheteria (o que nem sempre é sinônimo de qualidade) são os que seguem a fórmula hollywoodiana: imagens atraentes, efeitos sedutores e ritmo constante. Em “Cidade de Deus”, por exemplo, os três elementos estão presentes, e o reconhecimento nacional foi seguido pelo internacional e, depois deste, redobrado, isto é, o filme foi um recorde nacional de bilheteria, foi aplaudido no exterior (sendo o 3o. recorde na Inglaterra, só precedido de “O Tigre e o Dragão” e “ Amélie”) e agora continua em cartaz, depois de muitos meses de exibição, o que é um marco para um filme nacional.

Com base no sucesso desse filme, que é um candidato ao Oscar, tenciono agora fazer alguns questionamentos sobre a razão da possibilidade de sucesso na conquista do Oscar e a questão da identidade nacional. O que o Oscar premia? O que queremos que seja premiado em nossa cinematografia? Estamos mudando de imaginário? Como nos vemos em nossa produção?

Com algumas exceções, e sem levar em consideração a interferência política no processo, o Oscar para filmes estrangeiros premia as produções condizentes com o status quo da Academia, ou seja, filmes que se estruturem e se moldem nos paradigmas estabelecidos (narrativa tradicional e efeitos especiais). Não é recente, no Brasil, o desejo

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de satisfazer os requisitos para conseguir o que, para alguns cineastas, seria a glória máxima: trazer a estatueta do Oscar. O desejo não é só de realizadores e produtores. Grande parte do público que aplaude filmes nacionais com sucesso de bilheteria está aplaudindo não necessariamente um produto de qualidade, mas nossa capacidade de entrar na competição internacional. Nosso imaginário já está tão condicionado (deformado, talvez) que aplaudimos a capacidade de mímese, não de inovação.

Com isto não quero dizer que não devemos fazer filmes comerciais, que não devemos ganhar o Oscar, e que devemos ter um único padrão estético. Pelo contrário, sendo um país tão diversificado, as platéias exigem produtos também diversificados. O problema está no desequilíbrio. Como citam os pesquisadores Fernão Ramos, João Lanari, Maria Dora Mourão e Mauro Baptista: “A grande maioria do Cinema Brasileiro contemporâneo tem seguido o modelo do cinema convencional de Hollywood e passou ao largo de propostas contemporâneas bem mais apropriadas para um cinema nacional, como o cinema inglês, o cinema iraniano, o cinema independente americano, e, mais recentemente, o Dogma 95” (“Por um”, p. 2).

Por outro lado, apesar da porcentagem de filmes comerciais ser muito alta, contribuindo para uma desvalorização do produto inovador, que transgride, que faz pensar, que exige pesquisa e produz reflexão, o Brasil já tem curta e longa-metragistas preocupados com a inovação da linguagem do cinema. Portanto, longe de apoiar a exclusão, sou pela inclusão, longe do regionalismo redutor, sou pelo transnacional, pela poética, pela linguagem que transforma. Independente da planilha de custos, do sucesso de bilheteria, dos temas ou das estéticas, cinema é inovação, deve gerar questionamento formal ou temático.

Se por um lado a cinematografia nacional está atualizada em termos tecnológicos, está se destacando no exterior e recuperando seu público, por outro lado parte dela corre o perigo de banalizar seu próprio fazer, de se afastar do pensamento crítico, de exigir pouco de seu potencial. Será que o que queremos que seja visto no exterior é nossa capacidade de copiarmos Hollywood, é a admissão passiva de nossas falhas, é o endosso dos estereótipos exóticos pelos quais somos sempre identificados? Graeme Turner, em seu livro “Cinema como prática social”, questiona: “Quando os filmes agem como representantes e também representações da nação no exterior, tornam-se sujeitos a um regime diferente de inspeção.

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São avaliados, por exemplo, por sua adequação como propagandas turísticas ou por sua “tipicidade” como imagens da vida nacional” (p. 135). O fato de “O Estorvo”, em Cannes, ser considerado não-representante do Brasil pelo seu existencialismo, pela sua falta de referências objetivas ao cenário brasileiro, é relevante para exemplificar o que de nós é esperado. Corremos o risco de exportar as imagens exóticas que nos identificam no exterior, ou imagens turísticas como algumas em “Bossa Nova”, por exemplo. Onde nos vemos neste processo, na favela, no sertão, no Rio Maravilha?

Paulo Halm, em seu artigo “Civilização x Barbárie”, entre muitos pontos, discorre sobre a vergonha de ser brasileiro e de se “ver” na tela, e a vontade de copiar os grandes mestres europeus e americanos:

É essa vergonha de ser brasileiro que nos impele a fazer um cinema que, se é brasileiro pela carência de recursos, pela indigência industrial, pela ainda presente limitação técnica/tecnológica – o que nos inferioriza diante do produto estrangeiro que tanto invejamos--, não consegue, entretanto, ser brasileiro enquanto retrato da nossa realidade, da nossa essência, da nossa cultura. (p. 102)

O artigo de Halm é de 1993. O que mudou desde então, depois da decantada retomada? A carência de recursos continua a mesma, mas os realizadores já descobriram que é possível fazer bons filmes com baixos orçamentos (“O Invasor” é um bom exemplo). Quanto à tecnologia, essa sim está bem mais aperfeiçoada a ponto de criar um esteticismo até exacerbado. Já não há mais lugar para deficiências técnicas e nem concessões para um cinema de terceiro mundo. Quanto ao tão falado “cinema enquanto retrato da nossa realidade”, talvez os temas queiram realmente retratar e procurar entender essa realidade, mas é simplista pensar que o Brasil tem uma só realidade, seja esta a realidade de “Cidade de Deus” ou de “Tônica Dominante” ou de “Estorvo”, de “Bossa Nova”, ou ainda de “Janela da Alma”. É também reducionista pensar que um cineasta deva sempre retratar sua cultura. Certas vezes, temas transcendentes tratam da alma e da condição humana em geral, como é o caso de “O Estorvo”, que poderia ter sido filmado em qualquer país para representar o ser humano em crise. “Janela da Alma” é outro exemplo. Como entrevista cineastas e fotógrafos em outros países, inclusive em outros idiomas, o filme não representa necessariamente o Brasil, e nem deveria. “Nós que aqui estamos por vós esperamos”

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também não seria identificável como brasileiro, visto que trata da história da humanidade. Sendo assim, a busca da identidade cultural não se justifica como critério de qualidade. A mudança depois da retomada não é dessa ordem.

Talvez o que mudou é essa nova conjuntura de estética hiper-real com temas de problemática social. Se no Cinema Novo os temas sugeriam denúncia social e pediam estéticas mais primitivas, hoje os mesmos temas passam por um processo de depuração. Em alguns filmes, é mais uma pseudo-nacionalidade, se considerarmos que talvez a tendência de fazer filmes com temas de violência e pobreza de maneira “ clean” e “politicamente correta” seja uma forma de agradar as platéias americanas e européias, que sempre esperam do Brasil os produtos exóticos que, por um lado, endossem e comprovem a idéia já difundida e aceita de nosso país como de país em desenvolvimento, consciente de suas deficiências, e, por outro, embrulhem toda essa pobreza e violência em papel de presente com laços e rendas, sempre culpando o próprio país pelas suas falhas e nunca insinuando que políticas externas possam ter alguma influência.

Nossos temas podem ser mais nossos, mas nosso imaginário/repertório é ainda colonizado, seja pelo imperialismo cultural da cinematografia comercial norte-americana, seja pelo cinema europeu. Glauber Rocha dizia: “Não há vantagem alguma em fazer filmes de conteúdo revolucionário se, na forma, você imita a Nouvelle Vague francesa, o expressionismo alemão ou o comercialismo norte-americano” (Moraes Neto, p. 3). Mas o cinema de Glauber, apesar da imensa contribuição, jamais igualada, foi um cinema de regras, de ditadura, quase que de camisa de força. Um cinema forte e inovador, mas de estética unificadora. É difícil e quase impossível exigir que um país como o Brasil, nos dias de hoje, com um processo de globalização e hibridação intensos, volte a viver o Cinema Novo. O Dogma de hoje tem muito a ver com o Cinema Novo, assim como o cinema vietnamita, especialmente o de Trinh Minh-Ha, um cinema de “ incomplitude”, expondo a fragmentação do país. Mas mesmo “Dançando no Escuro”, um filme da estética do Dogma, não é fiel aos 10 mandamentos. E devemos levar em consideração que estéticas arbóreas não são duradouras, e sim cíclicas. Quando Oswald de Andrade explicou a cultura brasileira com seu manifesto antropofágico, com certeza estava procurando entender nosso ecletismo, nossa hibridação. Assim, é compreensível que os filmes contemporâneos mais apreciados por grandes platéias são os que misturam a linguagem televisiva, a dos clips, a

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da publicidade. Os mais herméticos, mais ousados em narrativa, com articulações verbais-não verbais verbais-não redundantes atraem uma platéia reduzida.

Se considerarmos o que Denilson Lopes sugere: “o imaginário se traduz num conjunto de imagens articuladas, com recorrência temporal e trânsito transcultural atravessadas por sensibilidades igualmente sócio-históricas, não enquanto um depósito de referências, um arquivo a ser vasculhado, mas numa dinâmica interativa entre os tempos históricos” (p. 128), conclui-se que a metamorfose “cosmética” (Ivana Bentes) se justifica, após a obsessão pela pós-produção, pela preocupação formal intensa. O processo da hibridação não se dá exclusivamente no campo da temática, mas também no campo do imaginário. Somos uma cultura híbrida. Nosso imaginário é constantemente remoldado pelas tendências contemporâneas que antropofagicamente absorvemos.

Canclini traça um perfil da América Latina como a “pátria do pastiche e da bricolagem, onde se encontram todas as épocas e todas as estéticas... somos sociedades formadas em histórias híbridas, nas quais necessitamos entender como se constituíram as diferenças sociais” (p. 44).

Mas, afinal, o que vemos? Apesar do sucesso recente da cinematografia nacional, até maio de 2001 o quadro era desolador. Em pesquisa sobre a hegemonia do cinema de Hollywood feita pelo “ Cahiers du Cinema”, os números indicam que, mesmo na França, 63,2% dos filmes são de Hollywood, 27% são franceses, 7,6% europeus e 1,6% do resto do mundo (p. 47). Carlos Diegues declarou que, no Brasil, no ano de 2000, os filmes de Hollywood chegaram a 90,5%, ficando 1,5% ao cinema europeu e asiático e 8% ao cinema nacional. O cineasta acrescentou que, antes de 1994, a parte do cinema nacional era inferior a 1% (p. 51). Com exceção da Índia, onde o cinema nacional representa 90% e o americano só 10%, são raros os países onde as cinematografias nacionais ultrapassam 30%. O ranking brasileiro de 2002 divulgou que, para um total de 90.865.988 espectadores, só 7.299.790 pertenceram ao cinema nacional, ou seja, nem 10% (Pesquisa LaboCine, SDRJ). Diante desse quadro, é fácil explicar porque ainda aplaudimos o cinema que, mesmo sendo nacional, nos remete a um imaginário hollywoodiano já tão arraigado que desconsidera outras possibilidades. Filmes com linguagem inovadora, como “ Crede-mi”, de Bia Lessa, são de difícil assimilação. Na lista dos 10 filmes mais vistos em 2002, a

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única exceção é “Janela da Alma”, que desenvolve uma proposta inovadora de documentário híbrido.

Os dados da pesquisa do “ Cahiers du Cinema” comprovam o domínio hollywoodiano não só no Brasil, mas no cenário mundial. Appadurai explica a homogeneização globalizante através de seus “panoramas”: etnopanoramas, midiapanoramas, tecnopanoramas, finançopanoramas e ideopanoramas, que designam os fluxos da cultura global. No caso do cinema brasileiro, os que mais interessam são os tecnopanoramas, que indicam a rápida disseminação das tecnologias, e os midiapanoramas, que se referem à disseminação de informações, através de jornais, revistas, estúdios e internet, e especialmente das imagens do mundo produzidas por essas mídias. A interação dos tecnopanoramas com os midiapanoramas fornece um referencial capaz de explicar o complexo processo da disjunção e diferença na economia cultural global. Appadurai esclarece que

O que é mais importante em relação a esses midiapanoramas é que eles proporcionam (especialmente sob as formas de televisão, de filmes e de cassetes) vastos e complexos repertórios de imagens, de narrativas e de etnopanoramas para os espectadores do mundo inteiro, nos quais o mundo de commodities, das “notícias” e da política estão profundamente misturados. O que isto representa é que muitas platéias do mundo inteiro conhecem a própria mídia como um repertório complexo e entrelaçado de impressos, de celulóides, de telas eletrônicas e de quadros para cartazes e anúncios.... Os midiapanoramas, sejam eles produzidos por grupos privados ou por interesses do estado, tendem a ser relatados em fitas da realidade, centralizados nas imagens e baseados em narrativas, e os que os mesmos oferecem aos que os conhecem e os transformam é uma série de elementos (tais como personagens, enredos e formas textuais), dos quais podem ser formados scripts de vidas imaginárias baseadas no próprio ambiente dos espectadores ou de espectadores que vivem em outros ambientes. (p. 315-316)

Esses midiapanoramas são de extrema importância, se considerarmos que o cinema hollywoodiano também sofre as mesmas influências, transformando-se num aglutinador de tendências, não podendo mais ser o único culpado pela imposição de um imaginário coletivo que, se analisado sob o enfoque de Appadurai, é disseminado pelo mundo, reunindo tendências das mais diversas.

Outro elemento de mudança ainda não assimilado é a percepção do tempo, as experiências da simultaneidade, do instantâneo e do fluxo, o “culto ao presente”, como

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(cinema à maneira de Hollywood, televisão e boa parte do vídeo) constituem “o discurso que melhor expressa a compressão do presente, a transformação do tempo extensivo do instantâneo... uma tarefa-chave, hoje, da mídia é fabricar presente... um presente autista que crê poder bastar-se a si mesmo (p. 35). Como se todas estas mudanças não bastassem, Deleuze cita Bergson: “nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichês”(31). Deleuze continua:

Por uma lado a imagem está sempre caindo na condição de clichê: porque se insere em encadeamentos sensório-motores, porque ela própria organiza ou induz seus encadeamentos, porque nunca percebemos tudo o que há na imagem, porque ela é feita para isto (para que não percebamos tudo, para que o clichê nos encubra a imagem...). Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê.... Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torna-la “interessante”. Mas às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios, e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro. (32)

Em “Janela da Alma”, Wim Wenders fala sobre os buracos, os vazios deixados para o espectador, o tempo para digestão e inclusão, para que o imaginário do espectador preencha as lacunas. O paradigma hollywoodiano, entretanto, raramente permite esse tempo. Tudo tem que ser dito, a decodificação é completa, não há espaço para ambigüidades, para releituras. Nas imagens, há redundância de códigos verbais e visuais. Mas também nesse ponto devemos analisar as imagens produzidas tanto no cinema mais comercial quanto no mais reflexivo. Não acredito que a fotografia de arte do cinema brasileiro seja a responsável pela falta de propostas mais atraentes. Seria muito simplista dizer que foi a fotografia do Cinema Novo que o promoveu, como seria irrelevante dizer que o Cinema Brasileiro Contemporâneo deveria voltar a fazer o que Glauber fazia. O contexto é totalmente outro, os avanços tecnológicos oferecem cada vez mais opções, e seria impensável exigirmos que o audiovisual brasileiro não se atualizasse. A estética da hipervenção é justamente o hiper-real, que Baudrillard explica como “o real expurgado do

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anti-real” (p. 18), e o processo de invenção/intervenção/hibridação, ou seja, a interação inovadora das linguagens (publicidade, clips, documentário, TV). Esta nova estética não determina a qualidade dos filmes. Nem todos os filmes da estética da fome eram de alta qualidade, como nem todos os contemporâneos são irrelevantes.

O problema que vejo é mais complexo, é a falta de pesquisa, de análise e de crítica em todas as fases do projeto, ou seja, do roteiro à pós-produção. Porém mesmo se alguns realizadores e produtores não estão em sintonia com as cinematografias mais inovadoras e não tem crítica suficiente para desenvolver um sistema melhor, mesmo se as leis de incentivo não tem parâmetros de qualidade na seleção, e se a platéia brasileira continua condicionada ao produto hollywoodiano, ainda assim temos filmes de qualidade. Talvez a retomada do público deva ser considerada como a grande vitória do cinema contemporâneo. No futuro, com o público a favor, as chances de uma diversificação são maiores, e as possibilidades de desenvolvermos diversas propostas estéticas pode ser algo positivo, que incentive interações e que encoraje um descondicionamento de hábitos culturais tradicionais em favor de um questionamento mais efetivo.

Para concluir, escolho, como o fez Deleuze, o pensamento de Nietzsche, “nunca é no início que alguma coisa nova, uma arte nova, pode revelar sua essência, mas, o que era desde o início, ela só pode revelá-lo num desvio de sua evolução” (Deleuze, p. 57). Com o amadurecimento das propostas (talvez apoiadas nos cursos de cinema), com uma maior conscientização do público (pela continuidade dos projetos de formação de platéia crítica), e com leis de incentivo a filmes mais reflexivos, talvez o desequilíbrio do presente seja desviado, num futuro próximo, para um cinema brasileiro diversificado e de qualidade, que possa fortalecer sua personalidade eclética e híbrida, e possa unir o prazer da reflexão interna ao reconhecimento externo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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