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É hoje, sobretudo por via de autores como Giorgio Agamben, que o pensamento de Benjamin se vai tornando cada vez mais vivo.

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Academic year: 2021

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Título Sobre Maria João Cantinho O Anjo Melancólico, Angelus Novus, Coimbra, 2002.

Autor Rui Magalhães Keywords Walter Benjamin

Origem Publicado originalmente em Ciberkisok Referência http://sweet.ua.pt~f660\docs\MJC_Anjo.pdf

Rui Magalhães – Uso livre, indicando a fonte

O pensamento de Benjamin que, numa certa fase, foi visto como uma espécie de derivação heterodoxa da Escola de Frankfurt e, por consequência, do marxismo, foi, progressivamente, adquirindo a sua individualidade na literatura crítica, sendo certo que, ainda hoje, permanece numa espécie de limbo, onde, se a bibliografia vai aumentando, continua a faltar a reavaliação do seu contributo fora da escolástica marxista ou judaica, ainda que esta última se apresente, às vezes, como uma não escolástica, como uma visão que parece capaz de contribuir para a renovação do pensamento filosófico, sem que se veja, no entanto, com suficiente clareza, como isso pode ocorrer.

É hoje, sobretudo por via de autores como Giorgio Agamben, que o pensamento de Benjamin se vai tornando cada vez mais vivo.

Ora bem: quem já fez a experiência de ler o textos fundamentais de Benjamin, verificou, por certo, a sua extrema dificuldade. Essa dificuldade advém, antes de tudo, de uma estranha e peculiaríssima relação entre o sistemático e o fragmentário, talvez uma das mais persistentes e fascinantes características desse homem não menos fascinante que foi Walter Benjamin.

Esta dificuldade resulta, por outro lado, das relações profundamente equívocas que Benjamin manteve quer com o judaísmo, quer com o marxismo. O judaísmo de Benjamin foi muitas vezes discutido, sobretudo a partir do momento em que Benjamin se aproxima

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reconhecido (pense-se nas permanentes dúvidas de Adorno) e, em muitos casos, temos a sensação de que existe em Benjamin uma espécie de desejo de ser marxista ou de se apresentar como tal; claro que poder-se-ia imaginar que isso resulta de uma necessidade prática de ser aceite nos círculos neo-marxistas, da qual dependia, em boa medida, a sua própria sobrevivência. De qualquer modo, tudo leva a crer que se trata de mais do que um mero imperativo prático; talvez seja ao seu próprio judaísmo que devemos apelar para tentar compreender o seu marxismo.

Tudo isto contribui para uma extrema dificuldade de compreensão daquilo que Benjamin quer dizer, muitas vezes através de uma expressão razoavelmente sibilina ainda que profundamente rigorosa. Ora, esse trabalho de clarificação que, sublinhe-se, não pode nunca ser um mero trabalho interpretativo, mas eminentemente teórico, não se encontra ainda suficientemente realizado.

E é, exactamente aí, no ponto em que a interpretação se funde inteiramente com o propriamente teórico, que se inscreve o presente livro de Maria João Cantinho. Por isso, diga-se desde já, que se estamos perante um trabalho de análise do pensamento de Benjamin, estamos, simultaneamente, perante um texto eminentemente teórico que coloca, extensamente, as principais questões de que vive o pensamento de Walter Benjamin e, creio, boa parte das questões da própria autora. Por isso, ainda que sob a forma da análise, este livro é um diálogo de pensamentos.

O objecto específico do presente livro é a questão da alegoria. Por certo uma das questões centrais do pensamento de Benjamin, aquela que, de alguma maneira, articula todos (ou quase todos) os seus temas e aquela que permite aceder aos seus alicerces mais essenciais.

A questão da alegoria pode parecer um problema menor, ligado apenas à hermenêutica e à teoria literária. A distinção entre alegoria e símbolo parece poder caracterizar-se pelas mesmas limitações. Na realidade, esta visão resulta de uma concepção extremamente limitada quer da alegoria, quer da hermenêutica e da teoria literária.

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Provavelmente, uma das maiores virtudes do livro de Maria João Cantinho reside, precisamente, em não partilhar destas convicções.

O livro de Maria João Cantinho faz desfilar perante nós os grandes temas do pensamento de Benjamin, tornando-nos mais claro esse “projecto peculiar” que move Benjamin entre o marxismo e a teologia. É nesse contexto que Maria João Cantinho sublinha o modo como progresso e catástrofe, longe de serem mutuamente excluíveis, constituem os elementos essenciais para a desconstrução de uma falsa historicidade (cf. p. 39).

Ou seja: trata-se, afinal, da grande questão implicada pelo pensamento de Benjamin: a da relação entre a morte e a redenção. Pela alegoria, vence-se o modo da expiação e abre-se a possibilidade da redenção. Como escreve a autora: “O que interessa a Benjamin é que o tempo possa constituir-se na sua vertente messiânica, como tempo cheio, opondo-se ao tempo físico, irreversível” (p. 42).

Isto torna-se particularmente importante na medida em que nos alerta para os perigos de uma interpretação demasiado apressada do messianismo benjaminiano. Na realidade, e por via da categoria de “rememoração”, passado e futuro perdem a sua aparência de opostos para se encontrarem no ponto exacto onde catástrofe e redenção, igualmente, coincidem.

E é isso que nos permite regressar à alegoria e ao seu privilégio em relação ao símbolo. A alegoria constitui um princípio de fractura em relação ao símbolo que se rege por um princípio de unidade. Se no símbolo se mostra a unidade, na alegoria mostram-se as ruínas da História, num movimento de reenvio constante no qual é preciso reconhecer uma dimensão de imperceptibilidade ou de não acabamento, o que implica uma ideia de movimento, de reenvio que não sabemos, a priori, onde termina. É isto que, no fundo, distingue a alegoria barroca da alegoria medieval de que Benjamin se demarca.

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É, exactamente, neste ponto que se coloca a grande questão interpretativa de Benjamin: o do verdadeiro sentido dos objectos quando, por exemplo, ele propõe “arrancar as coisas às suas correlações habituais” (cit. p. 82 de Zentralpark). O problema é o que está para lá dessas correlações habituais que podemos entender, seguindo Benjamin, como relações mercantis. Ora, para lá dessas relações habituais, ergue-se a verdadeira essência dos objectos e das palavras, digamos, palavras e objectos “originais”.

O pensamento de Benjamin (ou o que assim viria a poder ser chamado) nasce de um conjunto disperso de elementos, de uma constelação (para usar um termo benjaminianao). Eis porque a passagem se torna um problema que ele procura resolver pelo recurso à alegoria.

Como as Passagens (de Paris), as passagens de um local para outro em Benjamin, são uma espécie de micro-mundos, ainda que, diferentemente das de Paris, se caracterizem mais pela sua imperceptibilidade do que pela sua visibilidade.

Mas nada nos impede de pensar numa semelhança não sensível, tal como Benjamin fala da semelhança, por exemplo, em “Teoria das Semelhanças” ou Rolf Tiedemann, na “Introduction” a Paris, Capitale du XIXe Siècle, p.16. Fenómenos diferentes, talvez mesmo opostos, há, todavia, entre eles, uma sintonia de forma que pode ser explorada. Creio que é nestas passagens imperceptíveis — imperceptíveis muitas vezes para o próprio autor – que podemos tocar o – essencial do seu percurso. É nelas que se concentra, se condensa e cristaliza o essencial do seu pensamento, o que realiza o seu “sistema”.

Se o paradigma estético desempenha, segundo Mosés referido por Maria João Cantinho, o papel de mediação entre o teológico e o político (cf. p. 39), isso será porque, precisamente, o estético é o reino da dualidade perceptibilidade-imperceptibilidade, ou da imperceptibilidade no seio da maior perceptibilidade. O estético é o que mais perfeitamente presentifica o empírico que Benjamin sempre procurou apreender. O

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estético emerge sempre no pequeno acontecimento que reflecte o todo histórico, apesar de, na sua base, parecer não existir qualquer relação entre um e outro.

Pelas passagens passa-se, mas a passagem não é um lugar de articulação. Isso significa que vale por si, que rejeita ou ignora os pontos que liga e que, assim, só secundariamente são significantes. Este é o autêntico processo do pensamento. Uma passagem não é uma espécie de ponte, embora constitua um centro para chegar ao qual temos de vir de algum lado e para sair do qual temos de ir para algum lado.

O sistema de Benjamin é, pois, simultaneamente centrado e acentrado e é essa dualidade que o torna tão complexo e fascinante.

O método é (sensivelmente) o mesmo; mas o método não identifica, não unifica os objectos. É isso que Maria João Cantinho sublinha nas passagens dedicadas ao flaneur: “para o flaneur (...) a rua aparece-lhe, não na sua exterioridade pura, não como paisagem descarnada e real, e que é o mesmo que dizer no seu aspecto impenetrável e incognoscível, mas como uma zona interior, familiar, animada, ou melhor, como

passagem, como umbral, espaço que é simultaneamente onírico e real, espaço por

excelência, de iniciação, a um tempo, limite e abertura, do qual foi aniquilada a sua exterioridade (...)” (O Anjo Melancólico, p. 114).

Ou, citando Benjamin (referindo-se a Baudelaire): “O soneto ‘A une passante’ apresenta a multidão, não como o asilo do criminoso, mas o lugar onde encontra refúgio o amor do poeta. Pode-se dizer que este soneto trata da função da multidão, não na existência do burguês, mas na do poeta erótico” (cit. in O Anjo Melancólico, p. 116).

O que mais importa salientar neste livro de Maria João Cantinho é o modo exemplar como a análise é desenvolvida, a atenção às nuances de um pensamento todo feito delas e a apresentação do pensamento do autor a partir de uma perspectiva que possibilita a localização eficiente dos seus diferentes topoi. De resto, Maria João Cantinho nunca analisa “temas” de uma obra ou de um pensamento; pelo contrário, vê os diversos

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motivos como lugares de um pensamento que, desenvolvendo-se, ele mesmo, alegoricamente, se constrói como um sistema de passagens.

Trata-se, pois, de um trabalho fascinante em que se sente a presença constante da alma de Benjamin, sem que isso signifique, nunca, uma subserviência à enunciação benjaminiana.

Referências

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