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XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA

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Academic year: 2021

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Rugendas e Debret em molduras de álbuns pitorescos

Eneida Maria Mercadante Sela*

Resumo: este trabalho analisa as relações entre algumas imagens dos livros de viagem de Rugendas e Debret e a tradição dos álbuns pitorescos no Brasil durante a primeira metade do século XIX.

Palavras-chave: Johann Moritz Rugendas – Jean-Baptiste Debret – álbuns pitorescos.

Abstract: this work examines the relationships between some pictures of Rugenda’s and Debret’s Voyages Pittoresques and the picturesque albums tradition in Brazil, during the first half of the19th century.

O sentido literal e mais restrito de “pitoresco”, aquele figura até hoje nos dicionários como sua primeira acepção, foi dado pelos italianos no século XVII, ou seja, “aquilo que é próprio da pintura ou dos pintores, o que se presta à representação pictórica” (LIMA, 2003: 212). Mas a palavra ganharia, com o passar das décadas, outra carga conceitual: o termo passou a compreender essencialmente um conjunto de atitudes relacionadas à paisagem, tanto real como representada, que floresceu a partir da segunda metade do século XVIII. Faziam parte da estética pitoresca a imperfeição e a irregularidade. Assim, as cenas pitorescas não eram serenas (como os padrões do “belo”) nem inspiravam reverência (como ditavam as representações do “sublime”), mas sim repletas de variedades e detalhes curiosos, singulares. Esta estética manifestou-se primeira e mais significativamente na Inglaterra, sistematizada pelas reflexões teóricas do reverendo Edmund Burke, bem como de William Gilpin e Josuah Reynolds.1 Mas a dilatação dos sentidos do pitoresco (da

representação de paisagens naturais para universos sociais) está mesmo relacionada à prática das viagens e seus registros, entre fins do século XVIII e início do XIX. A partir de então, várias publicações de viagem, mesmo aquelas que eram resultados de tours somente por um ou vários países da Europa, incorporaram o adjetivo em seus títulos.

* Doutora em História Social (IFCH-UNICAMP).

1 Para uma discussão sobre estes sentidos do pitoresco, ver, entre outros: NOVAK (1980), BERMINGHAM

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Para Ana Belluzzo, o “pitoresco” casou-se com a postura dos viajantes oitocentistas, que passaram a se posicionar como interessados observadores de realidades estranhas, promovendo “o surgimento de uma poética condizente com os pontos de vista” deles:

Esse mundo externo ao viajante europeu, insuspeitado, foi o convite à aventura desconhecida e à surpresa da viagem. O gosto pelo estranho, pelo inusitado e pelo diverso é inseparável da prática do viajante (...).

Os artistas-viajantes do século XIX comportam-se como analistas meticulosos, observadores de particularidades do mundo. Descrevem as partes de um todo que podem pressupor mas jamais conhecer, ocupando-se do que é imediatamente inteligível. São artistas-documentadores, que elaboram cena a cena. Têm a atenção voltada para o presente, para o existente.(BELLUZZO, 1994:11, vol.3).

Estes modos de “olhar” e “registrar” podem ser encontrados nas várias searas do heterogêneo conjunto da literatura de viagem oitocentista, dialogando também com as tradições de relato científico influenciadas pelas novidades dos métodos da história natural configuradas a partir da segunda metade do século XVIII. Assim, gradativamente, o pitoresco foi assumindo no início do século XIX vários sentidos: abarcava desde a representação de paisagens a elementos humanos, enfim, qualquer objeto digno de nota por sua particularidade, estranheza ou beleza.

A partir de fins da década de 1830, estas concepções encontram-se bastante evidentes em alguns dos chamados álbuns pitorescos, publicados na Europa e no Rio de Janeiro. Deste gênero, o primeiro que se pode mencionar é o do suíço Johann Jacob Steinmann, que veio para o Brasil em 1824, ligado à Academia Militar, contratado como litógrafo oficial do Imperador D. Pedro I. Por isso, ele é tido como introdutor da litografia nos estabelecimentos oficiais do Rio de Janeiro, trazendo para a Corte as máquinas e materiais necessários para montar uma oficina que funcionou na rua da Ajuda, onde ensinava o ofício a aprendizes destacados pelo Arquivo Militar.

Em 1833, Steinmann retornou à França e dois anos depois lançou Souvenirs de

Rio de Janeiro, um conjunto de treze vistas da cidade. O que mais nos interessa, entretanto, é

a moldura com a qual ornamentou cada uma das gravuras, exemplificada na figura 1 (a mesma moldura é repetida em todas pranchas). Não se trata de um procedimento meramente decorativo, mas que embute o intento de sintetizar elementos naturais e humanos mais pitorescos do país de onde voltou. Entre as vinhetas da moldura, podemos identificar algumas figuras copiadas dos modelos de Johann Moritz Rugendas que, anos antes de ter lançado seu

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livro de viagem, publicou em fascículos suas litografias referentes ao Brasil, a partir de 1827.2

Steinmann junta, numa mesma borda da moldura (ver fig. 1 detalhe a), personagens extraídos de três litografias de Rugendas. Assim, percebemos que o homem pendurado num tronco alto e fino foi copiado, em sentido inverso, da composição “Ponte de cipó” (ver fig. 2 e fig. 2 detalhe a), na qual o pintor bávaro representa um grupo de índios exercendo várias atividades. Já a vinheta do negro em pé, apoiado numa espécie de foice ou enxada, foi seguramente inspirada no modelo masculino de uma das gravuras de costume mais célebres de Rugendas (fig. 3). Logo abaixo desta vinheta encontra-se mais uma, também reproduzida em sentido inverso, do detalhe de outra gravura sobre índios, “Caça ao tigre” (fig. 5. Muito provavelmente, trata-se do tigre vermelho, ou leão americano). Outra imagem construída a partir da mesma linguagem da figura 3, “Negras do Rio de Janeiro” (fig. 4) foi transposta como vinheta em outra borda da moldura (fig. 1 detalhe b), na qual há reproduzido também, abaixo, o motivo principal da gravura “Ponte de cipó”: um indígena carregando uma criança e atravessando uma ponte de cipó (fig. 2 detalhe b).

O procedimento ornamental de Steinmann pode ter sido lisonjeiro para Rugendas, ao menos do ponto de vista ideológico. Herdeiro da tradição romântica alemã, o viajante expressou em sua obra sobre o Brasil uma natureza que funcionaria como cenário para as novas civilizações das Américas. Rugendas foi claramente influenciado por Alexander von Humboldt em seus objetivos ao representar a paisagem natural e os homens e animais lá integrados. Neste contexto, verifica-se uma re-significação do pitoresco em direção ao que seria o “lugar” do homem na natureza.

Em 1826, após regressar do Brasil, Rugendas conheceu Humboldt em Paris e este lhe incentivou o projeto editorial da viagem, acreditando que o jovem pintor pudesse exercitar uma renovação na pintura de paisagens aliando a criação artística ao conhecimento científico. As enormes contribuições do naturalista alemão para os novos parâmetros de observação e registro de paisagens desconhecidas, no início do século XIX, foram sintetizadas por Mary Pratt sob o epíteto de “estilo estético-científico” A viagem humboldtiana uniu os dois pólos que se configuraram ao longo do século XVIII: a missão científica, representada pelos relatos de cunho enciclopedistas, e a chamada “viagem sentimental” (PRATT, 1991: 151-163). Ainda segundo Karen Lisboa:

2 Para informações detalhadas sobre o ambicioso e atravancado projeto editorial da obra de viagem de Rugendas,

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Além de sinalizar as veredas da produção científica, Humboldt obviamente também contribuiu para o processo de criação de imagens sobre o Novo Mundo. Permeada pelo gosto romântico que se espalha no início do século XIX, sua obra apresenta algumas particularidades: as descrições estético-científicas da natureza tropical e o entusiasmo que o viajante revela ter sentido quando chega ao Caribe – região que tinha fama de ser insalubre – exerceram impacto nas vertentes do pensamento europeu que defendiam a inferioridade natural do continente americano.

A relevância de Humboldt na produção científica naturalista da primeira metade do século XIX somente foi superada por Charles Darwin. Até aquele momento, o barão prussiano era considerado uma estrela-guia dos projetos de missões destinadas à América. Tanto seu método de pesquisa e objetivos científicos como o estilo de sua narrativa tiveram seguidores, sobretudo entre os naturalistas que visitaram os

trópicos (LISBOA, 1997: 43).3

Humboldt era discípulo confesso do naturalista e antropólogo Georg Forster (1754-1794) que, com seu pai Johann Reinhold, participou da segunda viagem de Cook quando tinha apenas 17 anos de idade. Antes de vir para a América, Humboldt excursionou pela Europa com seu mestre, que direcionou sua forma de observar o mundo em aspectos filosóficos e políticos. Considerado por muitos o fundador da antropologia comparada, Forster advogava que os homens e seus costumes deveriam ser o alvo principal do viajante filosófico, por meio de uma observação empírica que se iniciaria num nível particular, nas diferenças determinadas por condições materiais exteriores, para então atingir o geral, o comum a todos os povos e culturas. Nota-se aqui uma consonância com o historicismo de Herder, que pregava uma investigação dos universos humanos baseada na valorização do singular, das peculiaridades de cada grupo para além de conceitos generalizantes (CASSIRER, 1994: 309).

Quanto à ciência natural, Humboldt também bebeu das concepções holísticas de Forster sobre o funcionamento da natureza, cuja unidade seria determinada por diferenças em constantes mecanismos antagônicos. Assim, em seu primeiro ensaio sobre a viagem de cinco anos pela América, Humboldt anunciou uma “maneira estética de tratar temas de história natural” para iluminar as revelações sobre as “forças ocultas” que regem a natureza. Os trópicos, aqui, são considerados um lugar privilegiado para a “antiga comunhão da natureza com a vida espiritual do homem”. Caberia às descrições de viagem reproduzir para o leitor “o prazer que a mente sensível recebe da contemplação imediata da natureza”, além de expor um “panorama da natureza em larga escala” e uma “prova da ação conjunta das forças. Para tanto, o estilo da escrita “tende a uma prosa poética”, movendo o “sentimento e a fantasia” (LISBOA,1997:40).

3 Para uma análise da influência de Humboldt sobre várias vertentes de representação das paisagens dos trópicos ainda na segunda metade do século XIX, ver STEPAN (2001, 31-56).

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Humboldt e Georg Forster dialogavam com uma filosofia da natureza pertencente à tradição romântica germânica, com a qual Herder contribuiu consideravelmente ao inaugurar uma concepção organicista do mundo natural de viés fortemente teocêntrico.4 Todas

essas intersecções epistemológicas ecoaram em Rugendas ao construir suas imagens do Brasil e seus povos. E Steinmann, ao transformar algumas imagens do pintor bávaro em molduras para seu álbum pitoresco, pode ter – deliberadamente ou não – reforçado esta visão da paisagem natural como berço de uma nascente civilização nos trópicos.

Dez anos após o lançamento de Souvenirs de Rio de Janeiro, era publicado pela casa de Eduardo e Henrique Laemmert o Álbum Pittoresco do Rio de Janeiro. Aqui, a moldura da capa (fig. 6) repete a fórmula de Steinmann. A maioria de suas vinhetas foram desenhadas a partir das litografias contidas nos primeiro e segundo volumes do livro de viagem de Jean-Baptiste Debret, publicados entre 1834 e 1835,5 conforme exemplificam as

figuras 6 (detalhes a, b, c, d, e) até 12. As cópias são, em sua maioria, de temas indígenas do primeiro tomo de Debret e apresentam, no que diz respeito à composição dos elementos de cada vinheta, pouquíssimas diferenças em relação aos modelos originais das gravuras do pintor francês. Nove anos depois do lançamento deste álbum, ainda podemos encontrar uma nota de divulgação no Jornal do Commercio, de 13 de setembro de 1852, que corrobora a afirmação de alguns elementos pitorescos não só da cidade do Rio de Janeiro, mas de todo o Brasil:

Em casa de E. H. Laemmert, rua da Quitanda, n. 77, se acha à venda: ALBUM PITTORESCO DO RIO DE JANEIRO contendo doze lindíssimas vistas brasileiras, a saber: o panorama do Rio de Janeiro em 4 folhas; Nossa Senhora da Glória com a vista da Barra; Nossa Senhora da Conceição; Morro do Castelo com o Largo do Paço e a praça do Mercado; S. Bento; Palacete de S.M.I. em S. Cristóvão, Cemitério Inglês, Praia Vermelha e Pão de Açúcar, Cascata da Tijuca. Com uma elegante capa em que se acham representadas mais 16 vistas pequenas do interior do país, objetos da história natural, fisionomias de indígenas, etc. Preço 10$.

Se Steinmann parece ter rendido um tributo ao ideário sobre a civilização brasileira de Rugendas, esta capa deve ter feito o mesmo com as litografias debretianas. É sintomático observar a predominância de figuras extraídas do primeiro volume do livro, justamente onde o pintor francês introduz o objetivo e a natureza da obra:

Graças ao hábito da observação, natural em um pintor de história, fui levado a apreender espontaneamente traços característicos dos objetos que me envolviam; por isso, meus esboços feitos no Brasil reproduzem, especialmente, as cenas nacionais ou familiares do povo entre o qual passei dezesseis anos. (...).

Todos esses documentos históricos e cosmográficos, consignados em minhas notas 4 Para uma análise dessas relações, ver MITCHELL (1993), principalmente os capítulos III e V.

5 Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d'un artiste français au Brésil depuis 1816 jusqu'en 1831

inclusivement, époques de l'avénement et de l'abdication de S.M.D.Pedro1er, fondateur de l'Empire brésilien. Paris: Firmin Didot Frères, 1834-5, vols 1 e 2.

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e desenhos, já se achavam ordenados no Rio de Janeiro, quando foram vistos por estrangeiros que me visitaram. Suas solicitações me encorajaram a preencher

algumas lacunas, a fim de compor uma verdadeira obra histórica brasileira6, em

que se desenvolvesse, progressivamente, uma civilização que já honra esse povo (DEBRET, 1989:24, vol. 1).

Para efetuar seu trabalho de história, Debret partiu da seguinte estrutura:

Eu me propus a seguir, nesta obra, um plano ditado pela lógica: o de acompanhar a marcha progressiva da civilização no Brasil. Conseguintemente, comecei reproduzindo as tendências instintivas do indígena selvagem e ressaltando todos os seus progressos na imitação da atividade do colono brasileiro, herdeiro ele próprio das tradições de sua mãe-pátria (DEBRET, 1989:13, vol. 2).

Assim, o álbum lançado pelos irmãos Laemmert privilegiou a transposição de figuras de índios que, para Debret, correspondiam ao primeiro estágio da civilização nacional, já parcialmente integrados ao mundo dos brasileiros brancos. Transformadas em vinhetas na capa de uma coleção de “doze lindíssimas vistas brasileiras”, estas litografias do pintor francês ganharam uma carga alegórica que extrapolou seu contexto original, mas que, na verdade, afinava-se com os intuitos do viajante ao produzi-las.

Enfim, a apropriação das imagens de Debret e Rugendas (ambos, aliás, autores de obras contendo a expressão “viagem pitoresca” em seus títulos) como molduras para estes álbuns, entre as décadas de 1830 e 1840, corresponde certamente a um dos primeiros movimentos responsáveis pela longa trajetória de usos e citações as mais variadas e deslocadas, que tornou os conjuntos iconográficos dos dois pintores os mais conhecidos entre aqueles produzidos pelos viajantes estrangeiros no século XIX.

Referências bibliográficas:

BERMINGHAM, Ann. Landscape and ideology: the English rustic tradition. 1740-1860. Londres: Thames & Hudson Ltd., 1987.

CASSIRER, Ernest. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Edunicamp, 1994.

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Edusp, 1989, 3 vols.

DIENER, Pablo. Rugendas e o Brasil. São Paulo: Capivara, 2002.

LIMA, Valéria Alves Esteves. A Viagem Pitoresca e Histórica de Debret: por uma nova leitura. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 2003.

6 Este intento do viajante é estudado na tese de LIMA (2003), mormente no capítulo “A construção de uma obra histórica” (pp.227-84).

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LISBOA, Karen Macknow. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na

Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec, 1997.

MITCHELL, Timothy. Art and science in German landscape painting. 1770-1840. Oxford: Clarendon Press, 1993.

NOVAK, Barbara. Nature and Culture. American landscape and painting. 1825-1875. Nova York: Oxford University Press, 1980.

PRATT, Mary Louise. Humboldt e a Reinvenção da América. In: Estudos Históricos, vol.4, no. 8. Rio de Janeiro: APDOC, 1991. Pp. 151-163.

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