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A educação sob a perspectiva política de Hannah Arendt

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ConTexTura, Belo Horizonte, no 9, abr. 2017, p. 5-17. artigo recebido em 09/09/2016 e aprovado em 20/03/2017.

INTRODUÇÃO

a natalidade é um dos pontos centrais do pensamento político de Hannah arendt. Me-diante essa assertiva, torna-se relevante anali-sarmos a perspectiva da pensadora em relação à educação, uma vez que se trata de uma área caracterizada por se erigir posteriormente ao nascimento, já que é destinada aos recém--chegados por nascimento no mundo humano.

a educação é uma das atividades fundamentais da sociedade humana e esse tema encontra-se presente na maioria dos debates contemporâ-neos. no pensamento arendtiano, é conferido destaque à tópica da educação a partir da cons-tatação da filósofa de que na modernidade em curso a américa foi acometida por uma crise neste âmbito.

sob A perspectivA políticA de

HannaH arendt

AnA LuciA FelIcIaNO

José Luiz de OlIveIRa

reSUMO: A tópica da educação perpassa a realidade das instituições humanas, vindo a ser

considerada, na sociedade contemporânea, uma das questões de maior destaque. sob a perspectiva arendtiana, a educação adquire um caráter que nos leva a discutir acerca dos espaços públicos e privados, tendo em vista a análise que Hannah Arendt faz do tema. A pensadora salienta a sua relevância em detrimento da instituição que a caracteriza, ou seja, a escola, constituindo-se um âmbito pré-político, tal como a vida privada. A filósofa alemã ressalta a relevância de tratar a educação a partir da constatação de que desde a modernidade a sociedade vem sendo acometida por uma crise nessa área. constatamos, como agravante para a crise educacional, a perda de distinção entre o que pertence propriamente ao domínio público e ao privado. Nesse sentido, o papel direcionado à educação parece paradoxal ao ideal de política pretendido por Arendt. Assim, o presente artigo tem como principal objetivo analisar a perspectiva arendtiana em relação à tópica da educação. trata-se de analisar as considerações acerca do tema feitas pela pensadora sobre o processo de desencontro de finalidades. Nossa tarefa consiste em explicitar que o sistema educacional moderno adquiriu fins que confrontam a verdadeira função que deveria ser desempenhada pela educação, o que gera profundas modificações nas esferas pública e privada.

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a filósofa alemã, ao discorrer sobre a tópica da educação, depara-se naturalmente com a questão da natalidade, tendo em vista que a educação só é possível porque há um ser em processo de desenvolvimento e formação que dela necessita. associada à natalidade, arendt destaca que comumente é constituída nos in-divíduos a esperança em algo novo, tendo em vista a concepção de que as crianças são agen-tes transformadores. no entanto, a pensadora enfatiza que “preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar o desejo de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo” (arenDT, 2014, p. 226). ao invés de moldar as crianças para os desejados fins, nossa filósofa pondera que a atitude mais adequada é a de conservar nas crianças a novidade que elas trazem consigo, a fim de que no futuro venham a ser agentes inovadores no mundo comum.

a partir do momento em que a educação passou a ser concebida como uma atividade que visa o novo, houve uma mudança de perspectiva na sociedade. Tal fato implicou “uma atenção maior e em maior importância dadas aos recém--chegados por nascimento, isto é, as crianças” (arenDT, 2014, p. 224). De modo que, por meio da educação a pretensão, segundo salienta arendt, era a de dar início a um novo tempo, especificamente a um novo mundo que decor-reria do nascimento, ou seja, das crianças que são por natureza seres novos. Logo, conjugada à esperança na natalidade, a pensadora ressalta que surgiu a expectativa em um mundo novo e nesse sentido, “arendt nos alerta que precisamos tomar cuidado de não impor às crianças aquilo que nós, a geração mais velha, pensamos ser um futuro ‘promissor’” (aLMeIDa, 2008, p. 478).

em contrapartidas às ponderações feitas sobre a tópica da educação, arendt (2014, p. 160) salienta que “no âmbito político tratamos unicamente com adultos que ultrapassam a idade da educação propriamente dita, e a política, ou o

direito de participar da condução dos negócios públicos, começa onde precisamente termina a educação”. Tal afirmação parte do pressuposto de que a educação, segundo a concepção arendtiana, está situada na esfera pré-política juntamente a vida privada. na esfera privada, o homem encontra-se preocupado com as necessidades do próprio corpo. Desse modo, ambos os âmbitos são distintos da esfera política, mas são impres-cindíveis para o bom funcionamento desta.

neste artigo, abordaremos, no primeiro item, a crise que se deu na educação americana durante a modernidade, sendo considerada por arendt, em detrimento de suas características, um problema de caráter político. na sequên-cia, no segundo item, analisaremos a tópica da educação a partir da distinção arendtiana entre as esferas pública e privada. enfim, no terceiro item, faremos uma análise da crise da autoridade sob a perspectiva arendtiana, que a classifica como um problema educacional e político.

a cRISe Na eDUcaÇÃO aMeRIcaNa:

UM PROBleMa POlÍTIcO

a tópica da educação é objeto de atenção da instituição estado, além de encontrar-se inse-rida nos diálogos do próprio homem, de modo que a constatação de que havia uma crise geral que estava acometendo o mundo moderno é fundamental para entendermos as realidades social e humana. a referida crise se manifestou de diversas formas em vários países, merecendo destaque a crise1 pela qual a américa passou

em relação à educação, vindo a se tornar um problema de caráter político. em detrimento de acontecimentos como a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, diante da existência de cam-pos de concentração, ocasionando consequen-temente o extermínio em massa e o holocausto, a crise na educação é considerada por muitos um problema irrelevante, não sendo necessário discuti-lo, pois é tido como um fenômeno local,

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que não tem conexão nenhuma com os países fora da américa.

Silva (2012, p. 398), em consonância com arendt, afirma que “a impressão que vigora é que sempre há problemas e crises mais rele-vantes e urgentes em outras áreas”. Mas vale salientar que, se a crise na educação fosse real-mente um problema irrelevante, ela não teria se arrastado durante anos, vindo a fazer parte também da contemporaneidade. Segundo a filósofa alemã, se a crise que se instalou na edu-cação fosse apenas um problema americano, ela poderia ter sido resolvida pelas autoridades e não viria a se tornar um problema político, que pode vir a acontecer em qualquer outro país. a esse respeito, arendt (2014, p. 222) ressalta que “pode-se admitir como uma regra geral neste sé-culo que qualquer coisa que seja possível em um país pode, em futuro previsível, ser igualmente possível em praticamente qualquer outro país”.

em território americano, a crise na educação adquiriu caráter político, pois o papel por ela desempenhado foi diverso do que normalmente possui nas demais nações. na américa, devido ao fato de os estados unidos ser um país que recebe muitos imigrantes, a educação objetiva instruir e educar os filhos dos imigrantes de forma a lhes americanizar; ou seja, tornar esses indivíduos em processo de formação partícipes dos costumes e da cultura dessa nação. em relação aos filhos dos imigrantes, a educação americana cumpre um papel que em parte é voltado para a vida privada, porque o estado desempenha funções destinadas à família, a exemplo o ensino da língua oficial do país; no caso, o inglês. Sem ter que demonstrar fluência nesse idioma, grande parte das crianças vai para a escola, tendo como objetivo também se fami-liarizar com a nova língua, já que em casa os pais não possuem instrução para lhes ensinar. Dessa forma, a escola teve que “assumir funções que, em uma nação-estado, seriam desempenhadas normalmente no lar” (arenDT, 2014, p. 223).

um sistema de ensino, que tem entre suas prioridades minimizar os limites impostos pela vida privada, entra em contradição com uma perspectiva de formação voltada para a cidada-nia. a escola tinha optado por ensinar às novas gerações ofícios que objetivavam a técnica, e não a formação do indivíduo para a vida em socie-dade, no âmbito público da denominada polis. analisa arendt (2014, p. 232) que “a intenção consciente não era a de ensinar conhecimentos, mas sim de inculcar uma habilidade, e o resul-tado foi uma espécie de transformação de ins-tituições de ensino em insins-tituições vocacionais”. em consonância com a pensadora, nascimento e nunes (2010, p. 122) salientam que “as pro-postas pedagógicas que incluem o brincar como substituição do aprender pelo fazer acabam por produzir efeitos nocivos ao desenvolvimento da criança”. Dessa maneira, depreendemos que um processo educacional, voltado para a preparação da criança para o mundo adulto, como ser que irá agir na polis, é substituído por uma educação funcionalista que visa à técnica.

na américa, a imigração e também o nascimento representam a oportunidade de constituir um novo mundo2. É mediante o

processo educativo que se dá este pathos do novo. o povo americano tem esperança de que esse novo mundo que há de vir é mais perfectível, e por isso é dada uma atenção maior à educação das crianças, visto que é com elas que irá se dar a produção de um mundo novo. Considerando a educação um aspecto demasiado relevante para a vida humana, e, por conseguinte, de total relevância para a sociedade, arendt (2014, p. 235) destaca que “a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser em formação”.

Segundo arendt (2014, p. 223), “a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”. essa assertiva evidencia

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o fato de que, conforme o pensamento arendtia-no a educação é voltada exclusivamente para as crianças, ou seja, para os recém-chegados por nascimento no mundo humano. nossa filósofa restringe a educação às crianças e a esfera pré--política, visto que, considera que ela “não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão edu-cados” (arenDT, 2014, p. 225). Portanto, em relação aos adultos não pode haver a tentativa de educar, tendo em vista que arendt concebe isso como um tipo de coerção realizada sem o uso da força. Desse modo, os adultos em processo de educação estão, consequentemente, sendo impedidos de qualquer participação na esfera pública; ou seja, na política e no mundo comum próprio da polis.

Francisco (2012, p. 391) elucida, com base em arendt, que “a tarefa da educação é a de justamente apresentar o mundo às gerações do presente, tentando fazê-las conscientes de que comparecem a um mundo que é comum, o lar de múltiplas gerações”. Tendo surgido em res-posta às exigências de uma sociedade de massas, o papel que a educação representa no território americano tem como pretensão americanizar os filhos dos imigrantes, além de objetivar inserir os imigrantes em um novo mundo, retirando-os do mundo velho a que eles pertenciam. ambas as características do sistema educacional americano são apresentadas por arendt como possíveis problemas que acarretaram a crise na educação na américa. Todavia, ao apresentar os fatores que teriam levado a uma crise na educação ame-ricana, a pensadora conclui que esses fatores não justificam e nem explicam o início dela.

ainda no que diz respeito à crise na educação americana, nossa filósofa expõe que o conceito de igualdade segundo os americanos, ou seja, a crença de uma igualdade de oportunidades, é outro fator que, apesar de não ter causado a crise, a agravou. nas suas “reflexões sobre Little

Rock” (2004), arendt enfatiza que a igualdade é

um princípio da esfera pública e por ser um di-reito político deve ser amparada pela legislação. em suas ponderações, a filósofa alemã ressalta que nos âmbitos pré-políticos a existência da desigualdade e da discriminação não oferecem periculosidade, visto que estão confinadas ao âmbito da exclusividade e singularidade. “a igualdade não só tem a sua origem no corpo político; a sua validade é claramente restrita à es-fera política. apenas nesse âmbito somos todos iguais” (arenDT, 2004, p. 272). não obstante, no caso da educação e da escola3, a pensadora

salienta que não pode haver igualdade entre adultos e crianças, pois os recém-chegados estão sob a tutela dos adultos, responsáveis pelo seu desenvolvimento e formação.

após termos apontado conforme arendt, as principais características da educação, re-tomamos a temática em questão e elucidamos a crise na educação que se deu no território americano. Logo, torna-se imprescindível analisar a tópica da educação a partir das con-tribuições arendtianas e refletir sobre a mesma considerando as três dimensões da existência humana: o privado, o social e o público. nossa investigação é orientada sobretudo pela ênfase de arendt (2014, p. 238) no fato de a escola ser “a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição da família para o mundo”. Porém, de antemão advertimos que o intuito é ater a abordagem às esferas pública e privada e, portanto discorreremos brevemente sobre concepção arendtiana do social.

a eDUcaÇÃO MeDIaNTe SeU

vÍNcUlO cOM aS eSFeRaS

PÚBlIca e PRIvaDa

a distinção entre as esferas pública e privada precedem as reflexões políticas de Hannah arendt (2013, p. 33). nessa perspectiva, nossa filósofa elucida que, desde a origem da antiga

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cidade-estado, “a distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas”. ao fazer referência à forma de organização política do período arcaico, a pensadora ressalta que a esfera pública própria do mundo comum e concernente à

polis foi demasiado exaltada nessa época. no

entanto, além das esferas acima supracitadas, arendt apresenta também a existência de um âmbito híbrido entre as fronteiras do privado e do político, isto é, a sociedade. Destarte, de acordo com a pensadora, o domínio social é aquele no qual adentramos “cada vez que abandonamos as quatro paredes protetoras de nosso lar e cruzamos o limiar do mundo público” (arenDT, 2004, p. 273).

a rejeição da sociedade moderna à distin-ção entre as esferas pública e privada acarretou consequências principalmente às crianças. esses seres humanos em processo de formação são intimamente afetados pela indistinção entre o que é propriamente público e o que é propria-mente privado. não havendo discernimento entre aquilo que deve ser mantido no espaço do lar e da vida privada e o que deve ser com-partilhado na esfera pública, o desenvolvimento biológico e a formação do indivíduo tornam-se problemas de caráter público. Tais problemas passam a não ser somente administrados pelos pais, mas também por todos aqueles que se encontram inseridos no mundo público, que é comum a todos. arendt (2014, p. 237) pondera que “é uma peculiaridade de nossa sociedade, de modo algum uma coisa necessária, considerar a vida, isto é, a vida terrena dos indivíduos e da família, como o bem supremo”.

no intuito de evidenciar as peculiaridades da era Moderna, arendt analisa esse período em contraposição ao que foi vivenciado pelos gregos na antiguidade clássica. Diferentemente do mundo antigo e da ênfase na esfera pública,

nossa filósofa salienta que a modernidade é marcada pela proeminência da privatividade, âmbito que “abrigava e protegia o processo biológico e vital da família” (arenDT, 2013, p. 78). Conforme elucida arendt, a inversão das prioridades do homem moderno se deu, dentre outros aspectos, em decorrência do processo de alienação4. nesse sentido, considerando as

épocas precedentes a pensadora alega que “o que distingue a era moderna é a alienação em relação ao mundo” (arenDT, 2013, p. 316). Sob essa perspectiva, arendt assinala a atenção exacerbada dada pelo homem moderno aos interesses e anseios da esfera privada, o que se contrapõe às preocupações dos homens do período arcaico. Segundo almeida (2008, p. 470), isto significa que na modernidade “as preocupações do trabalho e, sobretudo, do labor, ligado à produção e ao consumo cada vez mais exacerbados, tomam conta do espaço da ação e da política, que deixa de cuidar do mundo para satisfazer necessidades”.

a partir das ponderações arendtianas con-sensual à tradição política, compreendemos que o homem ambivalente possui uma vida com duas dimensões: a vida privada, constituída pela família e pelo ambiente do lar, e uma segunda vida, de caráter público. arendt remontando à antiguidade clássica localiza a esfera privada no âmbito pré-político, ao passo que a esfera pública é considerada o espaço da liberdade e da política. Por conseguinte, convém ressaltar “o fato de que a liberdade de agir equivalente a estabelecer um início e começar alguma coisa é ilustrado da melhor maneira dentro do âmbito político grego” (arenDT, 1998, p. 57). refle-tindo sobre esses aspectos na modernidade, a pensadora alude ao fato de que ao priorizar a esfera privada, quando não leva os interesses da família para o mundo comum, o homem moderno tem uma atitude de desleixo para com a vida pública e a política. Francisco (2012, p. 384) observa, assim como Hannah arendt,

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que em contrapartida à sociedade moderna, na sociedade grega do período clássico, “nem a vida doméstica na família, na administração dos assuntos privados, econômicos, nem a vida de prazer, nem a vida dedicada ao acúmulo de riquezas poderia ser tão elevada e completa como a política”.

arendt (2014, p. 238) salienta, com relação à sociedade moderna, “que quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento”. Desse modo, segundo a filósofa alemã, por demandar cuidados e proteção, a criança deve ser situada primeiramente na família, ou seja, na esfera privada, na qual seus membros procuram proteção contra o mundo e a vida pública. o ambiente do lar propicia a segurança necessária para que a criança cresça e venha a ter uma boa vida na polis e “na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele” (arenDT, 2014, p. 239). Porém, arendt destaca que o âmbito da vida privada não é necessário apenas ao homem em seu estado infantil, sendo o lar um ambiente relevante para o homem em qualquer idade, independente de seu estado de maturação.

em termos arendtianos, os pais “assumem na educação a responsabilidade5, ao mesmo tempo,

pela vida e pelo desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo” (arenDT, 2014, p. 235), visto que, ao nascerem, as crianças são introduzidas em um mundo que, assim como elas, precisa de proteção e cuidados. Se ocorrer o contrário, isto é, se os adultos não assumirem a responsabilidade em relação aos recém-chegados e ao mundo comum, esse poderá ser destruído pela expectativa em um novo mundo e o des-compromisso com a sua conservação. Conforme as considerações arendtianas, a escola consiste em uma instituição que normalmente introduz

a criança no mundo, sendo por meio dela que a criança se transpõe do âmbito da vida privada (o lar) para o mundo comum passível de mudanças; ou seja, a esfera pública. nas palavras de arendt (2004, p. 280), “para a própria criança, a escola é o primeiro lugar fora de casa em que ela estabelece contato com o mundo público que a rodeia e à sua família”, todavia, nossa filósofa salienta que esse mundo não é o político, mas o social.

De acordo com arendt (2014, p. 235), “se a criança não fosse um recém-chegado neste mundo humano, porém simplesmente uma criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma função da vida”. Corroborando com essa afirmação, a filósofa alemã expõe sua concepção de que, ao se considerar a criança como um ser em desenvolvimento e formação, a educação consiste em um processo concomi-tante com o da família, tendo também como pretensão suprimir as necessidades da vida biológica. nesse sentido, almeida (2008, p. 470) em consonância com arendt, enfatiza que “as crianças, que ainda não assumem responsabili-dade pelo mundo, precisam se familiarizar com ele e apropriar- se de seus saberes e de suas prá-ticas para que futuramente possam cuidar dele”. na sociedade grega, havia a crença de que a esfera privada é aquela em que se escondem as necessidades da existência, de modo que, “os ho-mens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e carências” (arenDT, 2013, p. 36). os gregos concebiam o espaço privado como um domínio necessário, vindo arendt a enfatizar que é no domínio privado que a humanidade organiza-se para atender às exigências biológicas da vida. a pensadora destaca a importância da esfera privada, expondo que toda vez que a vida humana “é permanente-mente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança, sua qualidade vital é destruída” (arenDT, 2014, p. 236).

a esfera privada é responsável por suprir as carências do próprio corpo. Isto é, ela é

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caracte-rizada pela preocupação com a manutenção da vida. arendt enfatiza, então, que a esfera privada se distingue da esfera pública, pois, no primeiro âmbito, os homens vivem juntos, formando a denominada família, por serem forçados a se guiarem pelas necessidades biológicas que lhes são inerentes. outro fator que implica a distinção entre o público e o privado é a liberdade, porque “dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais” (arenDT, 2013, p. 39). Diferentemente da vida privada, a esfera pública é um espaço destinado à igual-dade. Consequentemente, no mundo público, onde os homens são considerados todos iguais, não há preocupação com a vida privada, que é estabelecida dentro do lar (oikia), não existindo interesse com a vida qua vida. Desse modo, o âmbito da vida privada deve ser oculto do mundo comum, pois é o koinon (aquilo que é comum a todos) que realmente importa na configuração da esfera pública.

refletindo sobre a relação entre a educação e as esferas pública e privada, arendt chama a atenção, para o fato de que o âmbito da priva-tividade é demasiado relevante para os recém--chegados. Visto que, é nele que serão ofertadas a estes indivíduos, as condições necessárias para que eles possam se desenvolver biologicamente, bem como, formar-se como pessoas humanas. Portanto, compete “à educação a delicada tarefa de empreender a adequada inclusão dos recém--chegados num mundo que lhes antecede, que lhes é estranho e que, ademais, deve perdurar após a sua morte” (CÉSar e DuarTe, 2010, p. 825). nesse sentido, nossa filósofa traz à tona a relevância da educação para a esfera pú-blica, em consonância com aristóteles, arendt concebe que o processo educacional deve estar comprometido ”com os princípios que regem o âmbito público da existência humana”

(CarVaLHo, 2010, p. 849). Destarte, feitas as devidas ponderações, a filósofa alemã orienta seu pensamento para aquilo que se constituiu como um problema na modernidade, isto é, a crise da autoridade que perpassou os âmbitos políticos e pré-políticos.

a cRISe Da aUTORIDaDe:

UM PROBleMa eDUcacIONal

QUe aBRaNGe a eSFeRa POlÍTIca

ao enaltecer a relevância da natalidade6,

nas entrelinhas de seu pensamento arendt de-monstra que é por meio do nascimento que será possível superar as peculiaridades da era Mo-derna, assinalada, dentre outras coisas, pelo to-talitarismo7, a alienação humana e a glorificação

do trabalho. Como forma de superação, arendt apresenta a natalidade como “uma aposta es-perançosa na capacidade humana de agir e de falar, de romper qualquer tentativa de opressão, manipulação e controle” (aGuIar, 2008, p. 37). Cabe salientar que, caracterizada pela ruptura com o passado e a tradição8, a modernidade

se distingue de outros períodos da história da humanidade. “não é segredo para ninguém o fato de [a] tradição ter-se esgarçado cada vez mais à medida que a época moderna progrediu” (arenDT, 2014, p. 40). o que conforme elucida arendt, é evidenciado quando consideramos as novas formas de agir e pensar do homem em ascensão durante a modernidade.

Tomando como referencial o conceito arendtiano de natalidade, depreendemos que “o homem não é apenas imitação e repetição, mas capacidade de, no interior da condição humana, começar algo e, dessa forma, inserir-se no mundo humano” (aGuIar, 2008, p. 39). nesse sentido, arendt expõe que a natalidade é importante também no que diz respeito à condição humana9, visto que seu “sentido reside

na passagem do homem como membro da espécie e, enquanto tal, mudo e determinado,

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para um ser que rompe o seu círculo funcional e manifesta-se espontaneamente como um ser singular na linguagem e na ação” (aGuIar, 2008, p. 38).

nas suas “reflexões sobre Little Rock”, arendt (2004, p. 279) ressalta que “as crianças são, em primeiro lugar, parte da família e do lar, e isso significa que são ou deveriam ser criadas na-quela atmosfera de exclusividade idiossincrática que transforma uma casa num lar”. Mediante tal afirmação, podemos constatar a importân-cia dada por pela filósofa à esfera privada: um espaço indispensável para o desenvolvimento e a formação das crianças. ao ressaltar a relevân-cia do âmbito do lar, a pensadora também faz observações a respeito do adulto, que, inserido na família com o papel de pai e/ou mãe, assume automaticamente a responsabilidade pela vida e pelo desenvolvimento da criança, além também de tornar-se responsável por introduzi-la no mundo. Todavia, César e Duarte (2010, p. 829) observam que a “responsabilidade pelo mundo torna-se problemática na ausência de relações de autoridade, como acontece atualmente, de modo que ninguém mais parece apto a assumir respon-sabilidade pelo mundo diante das crianças”.

Conforme afirma Francisco (2012, p. 390), “para a autora, a educação e o educador apre-sentarão aos recém-chegados o mundo e que mundo é esse a que vieram”. Dessa maneira, por também fazer parte do mundo adulto, o educa-dor assume necessariamente as mesmas respon-sabilidades daqueles que se encontram nesse estado de maturação. a figura do educador mostra-se relevante no pensamento arendtiano acerca da educação, pois ele adquire o caráter de representante do homem adulto. ou seja, o educador é um homem singular que, designan-do o papel de adulto, tem o dever de informar para a criança como é o mundo no qual ela será inserida. ainda sobre a educação, Silva (2012, p. 401) em consonância com arendt, afirma que a educação “acolhe os novos, os

recém--chegados”, sendo passível de ser ressaltada a im-portância do educador, também em detrimento da sua função, que consiste na preservação da capacidade de iniciar algo novo que está inse-rido em cada criança.

Para arendt (2014, p. 239), a responsabilidade pelo mundo comum “não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança”. a filósofa alemã salienta que a responsabilidade pelo mundo deve ser coletiva, não sendo desígnio de um indivíduo em sua singularidade, mas da espécie humana em geral, à qual pertencem o homem adulto e também o educador. nessa perspectiva, a pensadora destaca que “qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação” (arenDT, 2014, p. 239).

além da crise na educação, arendt ressalta outra particularidade da era Moderna destacando a crise da autoridade. associada à ruptura com a tradição política, nossa filósofa expõe que no mundo moderno a crise da autoridade manifesta-se tanto na esfera pública quanto na privada. Fato demonstrado ao refletirmos sobre o desprestígio da autoridade governamental, também como da que se apresenta no contexto pré-político, expressa na relação entre adultos e crianças, professores e estudantes. nesse sentido, arendt (2014, p. 128) observa que a crise da autoridade se espalhou

em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessi-dades naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a continuidade de uma civili-zação estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo preestabelecido no qual nasceram como estrangeiros.

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De acordo com a pensadora, no âmbito da educação, a responsabilidade pelo mundo assume a forma de autoridade. nascimento e nunes (2010, p. 124) enfatizam que “a autori-dade legítima como elemento central na relação professor e aluno está ligada à responsabilidade pelo curso das coisas no mundo”. Tendo em vista que autoridade e qualificação não designam a mesma coisa, arendt expõe a qualificação admi-tindo o fato de o professor conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros sobre ele. Desse modo, um professor qualificado orienta cada nova geração para sua entrada em um mundo que, em relação a ela mesma, já é velho. não obs-tante, cabe aos adultos o encargo de “proteger o novo contra o velho, porque a singularidade é muito frágil em relação ao peso do mundo” (aLMeIDa, 2008, p. 471).

a autoridade exprime-se por meio da responsabilidade que o professor assume em relação ao mundo, tendo como função a preser-vação do potencial inovador de cada criança, que, uma vez introduzida em um mundo velho, acar-retará efetivamente transformações. Francisco (2012, p. 391), a partir da análise do pensamento arendtiano acerca da educação, afirma que “o mundo somente pode sobreviver se vierem a ele novas gerações [...]. a geração do presente deve, então, ser ensinada pelo educador a trazer para o mundo a sua novidade”. Como bem sabemos, em arendt a novidade adquire significado tanto privado quando público. no caso do sentido privado, a novidade está entrelaçada à educação, isto é, ao processo por meio do qual serão ofe-recidos aos recém-chegados condições para que eles venham a habitar o mundo comum, “um espaço construído pelo trabalho e constituído pela ação” (aLMeIDa, 2008, p. 468).

em sua acepção política, a natalidade está re-lacionada a ação, isso porque, “por constituírem um initium, por serem recém-chegados e ini-ciadores em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, são impelidos

a agir” (arenDT, 2013, p. 221). Sob esse as-pecto, compreendemos a necessidade tanto da natalidade quanto da ação para existência da atividade política na polis. em detrimento do fato de a natalidade ser pressuposto necessário para a educação, César e Duarte (2010, p. 826) em consonância com arendt, alegam que “sem ser intrinsecamente política, a educação possui um papel político fundamental: trata-se aí da formação para o cultivo e o cuidado futuro para com o mundo comum”. Cabe salientar que somente por meio da ação o homem é livre, pois segundo os gregos, a liberdade se encontra no agir e, por conseguinte, só é passível de ser vivenciada nas esferas pública e política.

nas ponderações arendtianas, o agir10 é

exposto como algo significativo para a política, isso porque a ação conjunta na polis implica a execução e a possibilidade de conclusão daquilo que foi discutido entre os homens livres. não obstante, considerando o pensamento aren-dtiano, almeida (2008, p. 467) adverte que “a educação [...] deve assumir a responsabilidade de preparar os novos para a ação livre”. Tendo em mente a relevância da ação, arendt (2013, p. 223) ressalta que “como início, [ela] corres-ponde ao fato do nascimento, [...] é a efetivação da condição humana da natalidade”. nesse sentido, a pensadora destaca no que concerne à atividade política11, que ela se torna

impossí-vel onde há restrição da liberdade e repressão da espontaneidade humana, visto que, mesmo consistindo em algo de caráter pré-político, é a liberdade da espontaneidade que confere à liberdade política seu mais profundo sentido.

no tocante à educação, percebemos ainda que, em termos arendtianos, o conservado-rismo é necessário na atividade educacional, efetivando-se por meio de uma atitude de preservação do novo que se encontra em cada criança; ou seja, de uma atitude conservadora. Portanto, “exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a

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educação precisa ser conservadora” (arenDT, 2014, p. 243). a pensadora ressalta que a educa-ção é possível somente por meio dessa postura do educador, tendo em vista a ordenação do mundo12, a fim de que ele não seja mortal como

seus habitantes, que não podem “ultrapassar as condições sob as quais a vida foi lhe dada na Terra, o nascimento e a morte” (aGuIar et al., 2012, p. 387). arendt vê na novidade im-pregnada em cada criança um benefício para a preservação e continuidade do mundo comum e indo ao encontro da concepção arendtiana, César e Duarte (2010, p. 828) recomendam que

em nome da preservação da possibilidade de que os homens possam trazer a novidade ao mundo, é preciso que a educação não pretenda formar e produzir tal novidade, ou seja, é preciso que ela não se transforme em instrumento autoritário de antecipação e controle de toda renovação possível do mundo.

ainda sobre a autoridade, mediante a exis-tência de países que vivem sob regimes totalitá-rios, arendt (2014, p. 240) alega que “a violência e o terror exercidos pelos países totalitários nada têm a ver com autoridade”. nossa filósofa salienta que é um erro identificar o totalitarismo como um governo autoritário, pois ao contrá-rio da primeira forma de governo, a segunda é limitada por leis. Pode, segundo a pensadora, ser verificado que na sociedade moderna a autoridade aparenta não representar nada e, ainda que seja encontrada, na maioria das vezes, exerce um papel que é repudiado pela maior parte dos homens. o que fica evidente a partir da constatação de arendt (2014, p. 128), de que “uma crise constante da autoridade, sempre crescente e cada vez mais profunda, acompa-nhou o desenvolvimento do mundo moderno em nosso século”. refletindo sobre a autoridade, nossa filósofa salienta que na modernidade ela perdeu significado, isso, tendo em vista o fato de que, a forma de autoridade que regia o mundo

ocidental até este período perdeu o sentido no cenário político moderno.

“Visto que a autoridade sempre exige a obediência, ela é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência” (arenDT, 2014, p. 129). Porém, arendt alega que ela não se confunde com ambas, uma vez que apesar de de-mandar obediência não o faz por meio do uso da força. Paradoxal à violência, a pensadora ressalta que a autoridade se expressa numa relação hie-rárquica em que é necessário o reconhecimento da legitimidade, o que corrobora para a própria submissão do indivíduo. nesse sentido, arendt (2014, p. 129) ressalva que “a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; [e] onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou”.

em relação à violência, retomando a con-cepção dos gregos arcaicos, arendt salienta que uso dessa não era permitido dentro da polis, pois neste espaço as relações humanas se davam por meio da persuasão. Diferentemente dos povos bárbaros, nossa filósofa enfatiza que “os gregos, convivendo em uma polis, conduziam seus negócios por intermédio do discurso, através da persuasão (peíthein), e não por meio da vio-lência e através da coerção” (arenDT, 2014, p. 49). não podendo estar nas esferas pública e política, uma vez que na polis os indivíduos não podem ser coagidos por meio da violência, arendt (2013, p. 31) destaca que no mundo an-tigo, “forçar pessoas mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas”. Logo, somente âmbito familiar o uso da violência era lícito, tendo em vista que o chefe da família podia agir de forma despótica na privatividade do seu lar. Conforme elucida a pensadora, “a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade”, não obstante, a violência era compreendida pelos gregos como “o ato pré-político de liberar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade no mundo” (arenDT, 2013, p. 37).

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retomando a questão da autoridade, arendt salienta que a perda dessa no âmbito da política, ou seja, da esfera pública na qual a ação é dada pelos adultos e entre iguais, consequentemente implicará uma crise da autoridade nos âmbitos pré-políticos. Isso porque conforme destaca arendt (2004, p. 281), “toda criança procura instintivamente as autoridades para guiá-la nesse mundo em que ela é ainda uma estranha, em que não pode se orientar pelo próprio jul-gamento”. Dessa maneira, a perda moderna da autoridade ocasiona consequências para o âmbito da educação e principalmente para as crianças que ficam à mercê de pais, adultos e educadores, que se recusam a assumir a res-ponsabilidade pelo mundo. De acordo com a filósofa alemã, a existência de desconfiança na autoridade presente na esfera pública au-tomaticamente desestabilizará a vida privada humana. Portanto, a família não permanecerá intacta à crise que se dá na polis, e os indivíduos em formação que se encontram em estado de heteronomia e dependência vão ter a educação comprometida.

cONSIDeRaÇÕeS FINaIS

ao discorrer sobre a crise que se deu na américa, no âmbito da educação, arendt res-salta que, apesar de ser um problema que pode vir a acontecer em qualquer parte, é necessário salientar a crise americana da educação. nesse território, tal acontecimento apresentou caráter político, porque, na américa, em detrimento da existência de imigrantes, a educação tornou-se uma forma de suprir determinadas carências da vida privada.

a ausência de distinção entre o que pertence propriamente à vida privada e o que pertence propriamente à esfera pública, que é comum na sociedade desde a modernidade, afetou a américa principalmente no que diz respeito à educação. as consequências puderam ser

per-cebidas na educação a partir do momento em que seu objetivo passou a ser o de desnatura-lizar os diversos imigrantes, a fim de torná-los partícipes dos costumes locais, além também de amenizar as diferenças entre as várias etnias por meio da americanização.

Podemos notar, ainda, que, em suas consi-derações sobre a tópica da educação, Hannah arendt enfatiza a importância das crianças. a autora classifica as crianças como seres que se encontram no período da infância e que ne-cessitam primordialmente de um lar e de uma família. esse lar, concebido como vida privada, pode ser, então, compreendido, segundo o pen-samento arendtiano, como um âmbito impres-cindível para o homem, pois ele proporciona condições para a supressão de suas necessidades biológicas e vitais.

arendt (2014, p. 247) destaca que “a educa-ção é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a respon-sabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens”. Mediante a análise do pensamento arendtiano acerca da educação, podemos concluir que essa ativida-de humana elementar ativida-desempenha um papel extremamente relevante para a sociedade, pois, segundo salienta a pensadora, são os educadores que devem prezar pela preservação do potencial inovador de cada criança, a fim de que haja a continuidade do mundo comum no qual o ho-mem encontra-se inserido e que, mesmo após a sua morte, continuará a existir.

ainda sobre a educação, arendt expõe o desaparecimento da autoridade, problema ad-vindo juntamente com o processo de desenvol-vimento do mundo moderno. na perspectiva da pensadora, a crise da autoridade ganhou uma dimensão ainda maior ao ser constatado que, além de ser presente no âmbito político e social, ela também se faz presente na vida privada e na educação, ambas as áreas consideradas por

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arendt como pré-políticas, nas quais a existên-cia da autoridade é extremamente relevante.

Depreendemos, pois que há uma necessida-de natural necessida-de que haja autoridanecessida-de nos âmbitos pré-políticos, pois é por meio dela que o adulto ampara a criança, que é um ser em processo de desenvolvimento e formação, e que necessita de alguém que zele por ele. Devido também à sua importância política, percebemos que a autoridade se faz necessária, uma vez que é

por meio dela que a criança é introduzida no mundo. a ausência de autoridade exprime au-tomaticamente o desinteresse dos adultos pelo mundo comum. Tal desinteresse significa que a esfera pública e política deixou de ser o foco da existência humana. Dessa maneira, prevalece a vitória dos interesses privados e da individua-lidade na sociedade contemporânea.

ConTextura

NOTaS

1. a crise que acometeu a educação, acarretando um clima de instabilidade, além de profundas trans-formações, é apresentada por arendt como resultado da rejeição à distinção entre as esferas pública e privada. essa rejeição, tendo início na sociedade moderna, propaga-se até os dias atuais, afetando a realidade humana.

2. em suas considerações arendt (2013, p. 64) explicita a distinção entre Terra e mundo. De acordo com a pensadora, a Terra é condição para a vida orgânica, enquanto que o mundo “tem a ver com o artefato humano, com o que é fabricado pelas mãos humanas, assim como com os negócios realizados entre os que habitam o mundo feito pelo homem”.

3. Segundo arendt, é uma instituição interposta entre a esfera privada (constituída pela família e o lar) e a esfera pública (destinada às questões comuns e ao exercício da atividade política).

4. no pensamento político de arendt, uma das conotações dadas a este adjetivo faz referência a um indivíduo que se desligou dos problemas referentes à vida pública. Logo, a alienação à que a filósofa alemã se refere concerne à vida política e ao mundo comum próprio da polis.

5. Conforme elucida arendt, a responsabilidade está vinculada ao compromisso humano com a manu-tenção do mundo comum e da atividade política. ambas se exprimem no fato de que ao tomar parte na educação das crianças os adultos em geral devem comprometer-se a inserir os recém-chegados no mundo, também como oferecer condições para que esse seja renovado e não pereça assim como seus habitantes.

6. no pensamento arendtiano é salientado o fato de que a natalidade e a capacidade de iniciar algo novo estão vinculadas, o que pode ser comprovado por meio da afirmação da filósofa de que “os homens, embora tenham de morrer, não nascem para morrer, mas para começar” (arenDT, 2013, p. 307). 7. nas palavras de aguiar (p. 29), essa forma de governo “pelo fato de rejeitar a política, se diferenciou

de todas as outras, inclusive do despotismo e da tirania. Sua novidade radical residiu na tentativa de fabricar um tipo exclusivo de homem e, assim, na rejeição da condição humana da pluralidade”. 8. Tendo em vista as considerações arendtianas, Duarte (2000, p. 126) afirma que “a tradição implica a

‘transmissibilidade’ de certos conteúdos assim como um vínculo especial com o passado”.

9. Quando fazemos referência a essa terminologia, cara a filosofia arendtiana, aludimos aos elementos que se constituem como condições para a vida humana, a exemplo a Terra, o mundo e a pluralidade.

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10. a liberdade de agir na concepção arendtiana remonta ao conceito kantiano de espontaneidade. De acordo com Kant, a espontaneidade designa o fato de cada indivíduo ser capaz de iniciar algo novo. a espontaneidade que concerne ao que o homem pode fazer por si mesmo é pressuposto para a liberdade de agir na polis.

11. no prefácio da obra o que é política? (1998, p. 8, grifos do autor), Kurt Sontheimer afirma que “arendt acentua que a política surge não no homem, mas sim entre os homens, que a liberdade e a espontaneidade dos diferentes homens são pressupostos necessários para o surgimento de um espaço entre homens, onde só então se torna possível a política, a verdadeira política”.

12. arendt ressalta que o mundo comum, que também pode ser denominado mundo público, está em constante mutação, necessitando do novo, que é presente nas crianças, para que venha a ser possível a sua reordenação por cada nova geração.

ReFeRÊNcIaS

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Referências

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