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A Solidao dos Moribundos - Nobert Elias.pdf

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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Norbert Elias

A Solidão dos Moribundos seguido de Envelhecer e Morrer

Tradução: Plínio Dentzien

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Sum ário

A solidão dos m oribundos Envelhecer e m orrer: alguns problem as sociológicos Índice rem issivo

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O texto principal deste livro foi publicado pela prim eira vez em alem ão em 1982. “Envelhecer e m orrer” é um a versão revista de um a conferência apresentada em um congresso m édico em Bad Salzufen em outubro de 1983.

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Há várias m aneiras de lidar com o fato de que todas as vidas, incluídas as das pessoas que am am os, têm um fim . O fim da vida hum ana, que cham am os de m orte, pode ser m itologizado pela ideia de um a outra vida no Hades ou no Valhalla, no Inferno ou no Paraíso. Essa é a form a m ais antiga e com um de os hum anos enfrentarem a finitude da vida. Podem os tentar evitar a ideia da m orte afastando-a de nós tanto quanto possível — encobrindo e reprim indo a ideia indesej ada — ou assum indo um a crença inabalável em nossa própria im ortalidade — “os outros m orrem , eu não”. Há um a forte tendência nesse sentido nas sociedades avançadas de nossos dias. Finalm ente, podem os encarar a m orte com o um fato de nossa existência; podem os aj ustar nossas vidas, e particularm ente nosso com portam ento em relação às outras pessoas, à duração lim itada de cada vida. Podem os considerar parte de nossa tarefa fazer com que o fim , a despedida dos seres hum anos, quando chegar, sej a tão fácil e agradável quanto possível para os outros e para nós m esm os; e podem os nos colocar o problem a de com o realizar essa tarefa. Atualm ente, essa é um a pergunta que só é feita de m aneira clara por alguns m édicos — no debate m ais am plo da sociedade, a questão raram ente se coloca.

E isso não é só um a questão do fim efetivo da vida, do atestado de óbito e do caixão. Muitas pessoas m orrem gradualm ente; adoecem , envelhecem . As últim as horas são im portantes, é claro. Mas m uitas vezes a partida com eça m uito antes. A fragilidade dessas pessoas é m uitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vivos. Sua decadência as isola. Podem tornar-se m enos sociáveis e seus sentim entos m enos calorosos, sem que se extinga sua necessidade dos outros. Isso é o m ais difícil — o isolam ento tácito dos velhos e dos m oribundos da com unidade dos vivos, o gradual esfriam ento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres hum anos em geral, tudo que lhes dava sentido e segurança. Os anos de decadência são penosos não só para os que sofrem , m as tam bém para os que são deixados sós. O fato de que, sem que haj a especial intenção, o isolam ento precoce dos m oribundos ocorra com m ais frequência nas sociedades m ais avançadas é um a das fraquezas dessas sociedades. É um testem unho das dificuldades que m uitas pessoas têm em identificar-se com os velhos e m oribundos.

Sem dúvida, o espaço de identificação é m ais am plo que em outras épocas. Não m ais consideram os um entretenim ento de dom ingo assistir a enforcam entos, esquartej am entos e suplícios na roda. Assistim os ao futebol, e não aos gladiadores na arena. Se com parados aos da Antiguidade, nossa identificação com outras pessoas e nosso com partilham ento de seus sofrim entos e m orte aum entaram . Assistir a tigres e leões fam intos devorando pessoas vivas pedaço a pedaço, ou a gladiadores, por astúcia e engano, m utuam ente se ferindo e

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m atando, dificilm ente constituiria um a diversão para a qual nos prepararíam os com o m esm o prazer que os senadores ou o povo rom ano. Tudo indica que nenhum sentim ento de identidade unia esses espectadores e aqueles que, na arena, lutavam por suas vidas. Com o sabem os, os gladiadores saudavam o im perador ao entrar com as palavras “Morituri te salutant” (Os que vão m orrer te saúdam ). Alguns dos im peradores sem dúvida se acreditavam im ortais. De todo m odo, teria sido m ais apropriado se os gladiadores dissessem “Morituri moriturum salutant” (Os que vão m orrer saúdam aquele que vai m orrer). Porém , num a sociedade em que tivesse sido possível dizer isso, provavelm ente não haveria gladiadores ou im peradores. A possibilidade de se dizer isso aos dom inadores — alguns dos quais m esm o hoj e têm poder de vida e m orte sobre um sem -núm ero de seus sem elhantes — requer um a desm itologização da m orte m ais am pla do que a que tem os hoj e, e um a consciência m uito m ais clara de que a espécie hum ana é um a com unidade de m ortais e de que as pessoas necessitadas só podem esperar aj uda de outras pessoas. O problem a social da m orte é especialm ente difícil de resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os m oribundos.

A m orte é um problem a dos vivos. Os m ortos não têm problem as. Entre as m uitas criaturas que m orrem na Terra, a m orte constitui um problem a só para os seres hum anos. Em bora com partilhem o nascim ento, a doença, a j uventude, a m aturidade, a velhice e a m orte com os anim ais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que m orrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim , estando cientes de que pode ocorrer a qualquer m om ento e tom ando precauções especiais — com o indivíduos e com o grupos — para proteger-se contra a am eaça da aniquilação.

Durante m ilênios essa foi um a função central de grupos hum anos com o tribos e Estados, perm anecendo um a função im portante até nossos dias. No entanto, entre as m aiores am eaças aos hum anos figuram os próprios hum anos. Em nom e do obj etivo de se proteger da destruição, grupos de pessoas am eaçam outros grupos de destruição. Desde os prim eiros dias, sociedades form adas por seres hum anos exibem as duas faces de Janus: pacificação para dentro, am eaça para fora. Tam bém em outras espécies a im portância da sobrevivência das sociedades encontrou expressão na form ação de grupos e na adaptação dos indivíduos à vida com um com o um a característica de sua existência. Mas, nesse caso, a adaptação à vida do grupo se baseia em form as geneticam ente predeterm inadas de conduta ou, na m elhor das hipóteses, lim ita-se a pequenas variações aprendidas que alteram o com portam ento inato. No caso dos seres hum anos, o equilíbrio entre a adaptação aprendida e a não aprendida à vida em grupo foi revertido. Disposições inatas a um a vida com os outros requerem sua ativação pelo aprendizado — a disposição de falar, por exem plo, pelo aprendizado de um a língua. Os seres hum anos não só podem , com o devem aprender a regular sua

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conduta uns em relação aos outros em term os de lim itações ou regras específicas à com unidade. Sem aprendizado, não são capazes de funcionar com o indivíduos e m em bros do grupo. Em nenhum a outra espécie essa sintonia com a vida coletiva teve tão profunda influência sobre a form a e desenvolvim ento do indivíduo com o na espécie hum ana. Não só m eios de com unicação ou padrões de coerção podem diferir de sociedade para sociedade, m as tam bém a experiência da m orte. Ela é variável e específica segundo os grupos; não im porta quão natural e im utável possa parecer aos m em bros de cada sociedade particular: foi aprendida.

Na verdade não é a m orte, m as o conhecim ento da m orte que cria problem as para os seres hum anos. Não devem os nos enganar: a m osca presa entre os dedos de um a pessoa luta tão convulsivam ente quanto um ser hum ano entre as garras de um assassino, com o se soubesse do perigo que corre. Mas os m ovim entos defensivos da m osca quando em perigo m ortal são um dom não aprendido de sua espécie. Um a m ãe m acaca pode carregar sua cria m orta durante certo tem po antes de largá-la em algum lugar e perdê-la. Nada sabe da m orte, da de sua cria ou de sua própria. Os seres hum anos sabem , e assim a m orte se torna um problem a para eles.

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A resposta à pergunta sobre a natureza da m orte m uda no curso do desenvolvim ento social, correspondendo a estágios. Em cada estágio, tam bém é específica segundo os grupos. Ideias da m orte e os rituais correspondentes tornam -se um aspecto da socialização. Ideias e ritos com uns unem pessoas; no caso de serem divergentes, separam grupos. Seria interessante fazer um levantam ento de todas as crenças que as pessoas m antiveram ao longo dos séculos para habituar-se ao problem a da m orte e sua am eaça incessante a suas vidas; e ao m esm o tem po m ostrar tudo o que fizeram um as às outras em nom e de um a crença que prom etia que a m orte não era um fim e que os rituais adequados poderiam assegurar-lhes a vida eterna. Claram ente não há um a noção, por m ais bizarra que sej a, na qual as pessoas não estej am preparadas para acreditar com devoção profunda, desde que lhes dê um alívio da consciência de que um dia não existirão m ais, desde que lhes dê esperança num a form a de vida eterna.

Sem dúvida, nas sociedades avançadas os grupos não insistem m ais tão apaixonadam ente em que apenas sua crença sobrenatural e seus rituais podem garantir a seus m em bros um a vida eterna depois da vida terrena. Na Idade Média, os indivíduos com crenças m inoritárias eram m uitas vezes perseguidos a ferro e fogo. Num a cruzada contra os albigenses no sul da França no século XIII,

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um a com unidade m ais forte de crentes destruiu outra m ais fraca. Os m em bros desta foram estigm atizados, expulsos de seus lares e queim ados às centenas. “Com alegria em nossos corações presenciam os sua m orte no fogo”, disse um dos vencedores. Nenhum sentim ento de identidade entre hum anos e hum anos; crença e ritual os separavam . Com expulsão, prisão, tortura e fogueira, a Inquisição reforçava a cam panha dos cruzados contra povos de crenças diferentes. As guerras religiosas do início da era m oderna são bem conhecidas. Suas consequências são sentidas ainda hoj e, por exem plo na Irlanda. A recente luta entre sacerdotes e governantes seculares no Irã tam bém nos lem bra a apaixonada ferocidade do sentim ento com unitário e a inim izade que sistem as de crenças sobrenaturais foram capazes de desencadear em sociedades m edievais, porque propunham a redenção da m orte e a vida eterna.

Nas sociedades m ais desenvolvidas, com o disse, a busca de aj uda em sistem as de crenças sobrenaturais contra o perigo e a m orte se tornou m enos apaixonada; em certa m edida, transferiu sua base para sistem as seculares de crenças. A necessidade de garantias contra nossa própria transitoriedade dim inuiu perceptivelm ente em séculos recentes, por contraste com a Idade Média, refletindo um estágio diferente da civilização. Nos Estados-nação m ais desenvolvidos, a segurança das pessoas, sua proteção contra os golpes m ais brutais do destino com o a doença ou a m orte repentina, é m uito m aior que anteriorm ente, e talvez m aior que em qualquer outro estágio do desenvolvim ento da hum anidade. Com parada com estágios anteriores, a vida nessas sociedades se tornou m ais previsível, ainda que exigindo de cada indivíduo um grau m ais elevado de antecipação e controle das paixões. A expectativa de vida relativam ente alta dos indivíduos nessas sociedades é um reflexo do aum ento da segurança. Entre os cavaleiros do século XIII, um hom em de quarenta anos era visto quase com o um velho; nas sociedades industriais do século XX, ele é considerado quase j ovem — com diferenças específicas de classe. A prevenção e o tratam ento de doenças hoj e estão m ais bem -organizados que nunca, por m ais inadequados que ainda sej am . A pacificação interna da sociedade, a proteção do indivíduo contra a violência não sancionada pelo Estado, com o contra a fom e, atingiu um nível inim aginável pelos povos de outros tem pos.

É claro que, vista m ais de perto, a situação revela quão tênue ainda é a segurança do indivíduo neste m undo. E a tendência à guerra traz um a am eaça constante às vidas dos indivíduos. Só a partir de um a perspectiva de longa duração, pela com paração com épocas passadas, percebem os quanto aum entou nossa segurança contra os perigos físicos im previsíveis e as am eaças im ponderáveis à nossa existência. Parece que a adesão a crenças no outro m undo que prom etem proteção m etafísica contra os golpes do destino, e acim a de tudo contra a transitoriedade pessoal, é m ais apaixonada naquelas classes e grupos cuj as vidas são m ais incertas e m enos controláveis. Mas, em term os

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gerais, nas sociedades desenvolvidas os perigos que am eaçam as pessoas, particularm ente o da m orte, são m ais previsíveis, ao m esm o tem po em que dim inui a necessidade de poderes protetores supra-hum anos. Não há dúvida de que, com o aum ento da incerteza social e com a dim inuição da capacidade de as pessoas anteciparem e — até certo ponto — controlarem seus próprios destinos por longos períodos, essas necessidades se tornariam outra vez m ais fortes.

A atitude em relação à m orte e a im agem da m orte em nossas sociedades não podem ser com pletam ente entendidas sem referência a essa segurança relativa e à previsibilidade da vida individual — e à expectativa de vida correspondentem ente m aior. A vida é m ais longa, a m orte é adiada. O espetáculo da m orte não é m ais corriqueiro. Ficou m ais fácil esquecer a m orte no curso norm al da vida. Diz-se às vezes que a m orte é “recalcada”. Um fabricante de caixões norte-am ericano observou recentem ente: “A atitude atual em relação à m orte deixa o planej am ento do funeral, se tanto, para m uito tarde na vida.”1

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Se hoj e se diz que a m orte é “recalcada”, parece-m e que o term o é utilizado num duplo sentido. Pode tratar-se de um “recalcam ento” tanto no plano individual com o no social. No prim eiro caso, o term o é utilizado no m esm o sentido de Freud. Refere-se a todo um grupo de m ecanism os psicológicos de defesa socialm ente instilados pelos quais experiências de infância excessivam ente dolorosas, sobretudo conflitos na prim eira infância e a culpa e a angústia a eles associadas, bloqueiam o acesso à m em ória. De m aneiras indiretas e disfarçadas, influenciam os sentim entos e o com portam ento da pessoa; m as desapareceram da m em ória.

Experiências e fantasias da prim eira infância tam bém desem penham papel considerável na m aneira com o as pessoas enfrentam o conhecim ento de sua m orte próxim a. Algum as podem olhar para sua m orte com serenidade, outras com um m edo intenso e constante, m uitas vezes sem expressá-lo e até m esm o sem capacidade de expressá-lo. Talvez estej am conscientes dele apenas com o do m edo de voar ou de espaços abertos. Um a m aneira fam iliar de tornar suportáveis as angústias infantis sem ter que enfrentá-las é im aginar-se im ortal. Isso assum e m uitas form as. Conheço pessoas que não são capazes de envolver-se com m oribundos porque suas fantasias com pensatórias de im ortalidade, que m antêm sob controle seus terríveis m edos infantis, seriam perigosam ente abaladas pela proxim idade deles. Esse abalo poderia perm itir que seu grande m edo da m orte — da punição — penetrasse sua consciência, o que seria insuportável.

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nossa época — nossa incapacidade de dar aos m oribundos a aj uda e afeição de que m ais que nunca precisam quando se despedem dos outros hom ens, exatam ente porque a m orte do outro é um a lem brança de nossa própria m orte. A visão de um a pessoa m oribunda abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem com o um a m uralha contra a ideia de sua própria m orte. O am or de si sussurra que elas são im ortais: o contato m uito próxim o com m oribundos am eaça o sonho acalentado. Por trás da necessidade opressiva de acreditar em nossa própria im ortalidade, negando assim o conhecim ento prévio de nossa própria m orte, estão fortes sentim entos de culpa recalcados, talvez ligados a desej os de m orte em relação ao pai, à m ãe e aos irm ãos, com o tem or de desej os análogos da parte deles. Nesse caso, a única fuga possível da culpa angústia em torno do desej o de m orte (especialm ente quando dirigido a m em bros da fam ília) e da ideia da vingança deles (o m edo da punição por nossa culpa) é um a crença particularm ente forte em nossa própria im ortalidade, ainda que possam os estar parcialm ente cientes da fragilidade dessa crença.

A associação do m edo da m orte a sentim entos de culpa pode ser encontrada em m itos antigos. No paraíso, Adão e Eva eram im ortais. Deus os condenou a m orrer porque Adão, o hom em , violou o m andam ento do pai divino. O sentim ento de que a m orte é um a punição im posta a m ulheres e hom ens pela figura do pai ou da m ãe, ou de que depois da m orte serão punidos pelo grande pai por seus pecados, tam bém desem penhou papel considerável no m edo hum ano da m orte por um longo tem po. Seria certam ente possível tornar a m orte m ais fácil para algum as pessoas se fantasias de culpa desse tipo pudessem ser atenuadas ou suprim idas.

Esses problem as individuais do recalcam ento da ideia da m orte andam de m ãos dadas com problem as sociais específicos. Nesse plano, o conceito de recalcam ento tem um sentido diferente. No entanto, a peculiaridade do com portam ento em relação à m orte que prevalece hoj e na sociedade só é percebida se com parada à de épocas anteriores ou de outras sociedades. Só então se poderá situar a m udança de com portam ento em um quadro teórico m ais am plo, tornando-a assim acessível à explicação. Form ulando a questão diretam ente, a m udança de com portam ento social referida ao falarm os do “recalcam ento” da m orte nesse sentido é um aspecto do im pulso civilizador m ais am plo que exam inei com m ais detalhes em outro lugar.2 Em seu curso, todos os aspectos elem entares e anim ais da vida hum ana, que quase sem exceção significam perigo para a vida com unitária e para o próprio indivíduo, são regulados de m aneira m ais equilibrada, m ais inescapável e m ais diferenciada que antes pelas regras sociais e tam bém pela consciência. De acordo com as novas relações de poder, associam -se a sentim entos de vergonha, repugnância ou em baraço e, em certos casos, especialm ente durante o grande im pulso europeu de civilização, são banidos para os bastidores ou pelo m enos rem ovidos da vida

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social pública. A m udança de longa duração no com portam ento das pessoas em relação aos m oribundos segue a m esm a direção. A m orte é um dos grandes perigos biossociais na vida hum ana. Com o outros aspectos anim ais, a m orte, tanto com o processo quanto com o im agem m nem ônica, é em purrada m ais e m ais para os bastidores da vida social durante o im pulso civilizador. Para os próprios m oribundos, isso significa que eles tam bém são em purrados para os bastidores, são isolados.

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Philippe Ariès, em seu instigante e bem -docum entado História da morte no Ocidente, tentou apresentar a seus leitores um retrato vívido das m udanças no com portam ento e atitudes dos povos ocidentais diante da m orte. Mas Ariès entende a história puram ente com o descrição. Acum ula im agens e m ais im agens e assim , em am plas pinceladas, m ostra a m udança total. Isso é bom e estim ulante, m as não explica nada. A seleção de fatos de Ariès se baseia num a opinião preconcebida. Ele tenta transm itir sua suposição de que antigam ente as pessoas m orriam serenas e calm as. É só no presente, postula, que as coisas são diferentes. Num espírito rom ântico, Ariès olha com desconfiança para o presente inglório em nom e de um passado m elhor. Em bora seu livro sej a rico em evidências históricas, sua seleção e interpretação dessas evidências deve ser exam inada com m uito cuidado. É difícil concordar com ele quando apresenta os Romans de la Table Ronde, a conduta de Isolda e do Arcebispo Turpin, com o evidência da calm a com que os povos m edievais esperavam pela m orte. Ele não diz que esses épicos m edievais eram idealizações da vida cortesã, im agens seletivas que m uitas vezes lançam m ais luz no que o poeta e seu público j ulgavam que deveria ser do que no que realm ente era. O m esm o se aplica a outras fontes literárias utilizadas por Ariès. Sua conclusão é característica e m ostra sua parcialidade:

Assim [isto é, calm am ente] m orreram as pessoas durante séculos ou m ilênios … Essa atitude antiga, para a qual a m orte era ao m esm o tem po fam iliar, próxim a e am enizada, indiferente, contrasta com a nossa, em que a m orte provoca tal m edo que não m ais tem os coragem de cham á-la por seu nom e. É por isso que cham o essa m orte fam iliar de morte domesticada. Não quero dizer que tenha sido selvagem anteriormente…. Quero dizer, ao contrário, que se tornou selvagem hoje.3

Se com parada à vida nos Estados-nação altam ente industrializados, a vida nos Estados feudais m edievais era — e é, onde tais Estados ainda existem no presente — apaixonada, violenta e, portanto, incerta, breve e selvagem . Morrer pode

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significar torm ento e dor. Antigam ente as pessoas tinham m enos possibilidades de aliviar o torm ento. Nem m esm o hoj e a arte da m edicina avançou o suficiente para assegurar a todos um a m orte sem dor. Mas avançou o suficiente para perm itir um fim m ais pacífico para m uitas pessoas que outrora teriam m orrido em terrível agonia.

O certo é que a m orte era tem a m ais aberto e frequente nas conversas na Idade Média do que hoj e. A literatura popular dá testem unho disso. Mortos, ou a Morte em pessoa, aparecem em m uitos poem as. Em um deles, três vivos passam por um túm ulo aberto e os m ortos lhes dizem : “O que vocês são, nós fom os. O que som os, vocês serão.” Em outro, a Vida e a Morte discutem . A Vida se queixa de que a Morte está m altratando seus filhos; a Morte ostenta seu sucesso. Em com paração com o presente, a m orte naquela época era, para j ovens e velhos, m enos oculta, m ais presente, m ais fam iliar. Isso não quer dizer que fosse m ais pacífica. Além disso, o nível social do m edo da m orte não foi constante nos m uitos séculos da Idade Média, tendo se intensificado notavelm ente durante o século XIV. As cidades cresceram . A peste se tornou m ais renitente e varria a Europa em grandes ondas. As pessoas tem iam a m orte ao seu redor. Pregadores e frades m endicantes reforçavam tal m edo. Em quadros e escritos surgiu o m otivo das danças da m orte, as danças m acabras. Morte pacífica no passado? Que perspectiva histórica m ais unilateral! Seria interessante com parar o nível social do m edo em nossos dias, no contexto da poluição am biental e das arm as atôm icas, com o de estágios anteriores da civilização, em que havia m enor pacificação interna e m enor controle de epidem ias e outras doenças.

O que às vezes reconfortava os m oribundos no passado era a presença de outras pessoas. Mas isso dependia das atitudes. Disseram -nos4 que Thom as More, chanceler de Henrique VIII, abraçou seu pai m oribundo no leito de m orte e o beij ou nos lábios — um pai que ele reverenciou e respeitou por toda a vida. Havia casos, no entanto, em que os herdeiros em volta do leito de m orte zom bavam e escarneciam do velho m oribundo. Tudo dependia das pessoas. Considerada um estágio de desenvolvim ento social, a Idade Média foi um período excessivam ente instável. A violência era com um ; o conflito, apaixonado; a guerra, m uitas vezes a regra; e a paz, exceção. Epidem ias varriam as terras da Eurásia, m ilhares m orriam atorm entados e abandonados sem aj uda ou conforto. Más colheitas frequentem ente faziam escassear o pão para os pobres. Multidões de m endigos e aleij ados eram um a característica norm al da paisagem m edieval. As pessoas eram capazes tanto de grande gentileza quanto de crueldade bárbara, j úbilo pelo torm ento dos outros e total indiferença em relação a seus sofrim entos. Os contrastes eram m ais m arcados que os de hoj e — entre a satisfação desenfreada dos apetites e a auto-hum ilhação, o ascetism o e a penitência tam bém desenfreados sob o peso de um sentido aterrorizante do pecado, e tam bém entre o fausto dos senhores e a m iséria dos pobres. O m edo da punição

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depois da m orte e a angústia em relação à salvação da alm a se apossavam igualm ente de ricos e de pobres, sem aviso prévio. Com o garantia, os príncipes sustentavam igrej as e m osteiros; os pobres rezavam e se arrependiam .

Tanto quanto posso ver, Ariès diz pouco sobre o m edo do inferno espalhado pela Igrej a. Mas há quadros m edievais que m ostram o que, de acordo com as ideias da época, esperava pelas pessoas depois da m orte. Um exem plo ainda pode ser encontrado num cem itério fam oso do final da Idade Média, em Pisa. Um a figura retrata vividam ente os terrores que aguardavam as pessoas depois da m orte. Mostra os anj os conduzindo as alm as salvas para a vida sem fim no paraíso, e os horríveis dem ônios que atorm entam os condenados ao inferno. Com tais im agens aterrorizantes diante dos olhos, um a m orte pacífica não pode ter sido fácil.

Em resum o, a vida na sociedade m edieval era m ais curta; os perigos, m enos controláveis; a m orte, m uitas vezes m ais dolorosa; o sentido da culpa e o m edo da punição depois da m orte, a doutrina oficial. Porém , em todos os casos, a participação dos outros na m orte de um indivíduo era m uito m ais com um . Hoj e sabem os com o aliviar as dores da m orte em alguns casos; angústias de culpa são m ais plenam ente recalcadas e talvez dom inadas. Grupos religiosos são m enos capazes de assegurar sua dom inação pelo m edo do inferno. Mas o envolvim ento dos outros na m orte de um indivíduo dim inuiu. Com o em relação a outros aspectos do processo civilizador, não é fácil equilibrar custos e benefícios. Mas o quadro preto e branco pintado com o sentim ento do “bom passado, m au presente” não serve a qualquer propósito. A questão principal é com o e por que era assim , e por que se tornou diferente. Um a vez certos das respostas a essas perguntas, estarem os em condições de form ar um j uízo de valor.

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No curso de um processo civilizador, m udam os problem as enfrentados pelas pessoas. Mas não m udam de um a m aneira desestruturada, caótica. Exam inando de perto, detectam os um a ordem específica m esm o na sucessão de problem as sociais hum anos que acom panham o processo. Esses problem as tam bém têm form as que são específicas de seu estágio particular.

Assim , por exem plo, as pessoas se tornaram conscientes das doenças causadas por vírus com o um problem a independente apenas depois de terem obtido sucesso na explicação e, até certa m edida, no controle das grandes infecções por bactérias. O ganho não foi em vão, pois representou progresso, m as não foi absoluto, pois não encerrou a luta contra os agentes patogênicos. O m esm o vale para o aum ento da população. O progresso na luta contra a doença, particularm ente o controle das grandes epidem ias, é parcialm ente responsável

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por esse processo cego, não planej ado e perigoso. Que pensaríam os de alguém que, diante do perigo da explosão dem ográfica, ansiasse por um retorno ao “bom passado” com suas restrições m althusianas ao aum ento da população — peste, guerra, abstinência, fom e e m orte precoce?

No curso do nítido surto civilizador que teve início há quatrocentos ou quinhentos anos, as atitudes das pessoas em relação à m orte e a própria m aneira de m orrer sofreram m udanças, j unto com m uitas outras coisas. Os contornos e a direção dessa m udança são claros. Podem ser dem onstrados por uns poucos exem plos, m esm o num contexto em que não é possível fazer j ustiça à com plexa estrutura dessa m udança.

Em épocas m ais antigas, m orrer era um a questão m uito m ais pública do que hoj e. E não poderia ser diferente. Prim eiro porque era m uito m enos com um que as pessoas estivessem sozinhas. Freiras e m onges podem ter estado sós em suas celas, m as as pessoas com uns viviam constantem ente j untas. As m oradias deixavam pouca escolha. Nascim ento e m orte — com o outros aspectos anim ais da vida hum ana — eram eventos m ais públicos, e portanto m ais sociáveis, que hoj e; eram m enos privatizados. Nada é m ais característico da atitude atual em relação à m orte que a relutância dos adultos diante da fam iliarização das crianças com os fatos da m orte. Isso é particularm ente digno de nota com o sintom a de seu recalcam ento nos planos individual e social. Um a vaga sensação de que as crianças podem ser prej udicadas leva a se ocultar delas os sim ples fatos da vida que terão que vir a conhecer e com preender. Mas o perigo para as crianças não está em que saibam da finitude de cada vida hum ana, inclusive a de seu pai, de sua m ãe e de sua própria; de qualquer m aneira as fantasias infantis giram em torno desse problem a, e o m edo e a angústia que o cercam são m uitas vezes reforçados pelo poder intenso de sua im aginação. A consciência de que norm alm ente terão um a longa vida pela frente pode ser, em contraste com suas perturbadoras fantasias, realm ente benéfica. A dificuldade está em com o se fala às crianças sobre a m orte, e não no que lhes é dito. Os adultos que evitam falar a seus filhos sobre a m orte sentem , talvez não sem razão, que podem transm itir a eles suas próprias angústias. Sei de casos em que um dos pais m orreu num acidente de autom óvel. As reações dos filhos dependem da idade e da estrutura da personalidade, m as o efeito profundam ente traum ático que tal experiência pode ter neles m e faz acreditar que seria salutar para as crianças que tivessem fam iliaridade com o sim ples fato da m orte, a finitude de suas próprias vidas e a de todos os dem ais. Sem dúvida, a aversão dos adultos de hoj e a transm itir às crianças os fatos biológicos da m orte é um a peculiaridade do padrão dom inante da civilização nesse estágio. Antigam ente, as crianças tam bém estavam presentes quando as pessoas m orriam . Onde quase tudo acontece diante dos olhos dos outros, a m orte tam bém tem lugar diante das crianças.

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Nos estágios anteriores de desenvolvim ento social, as pessoas eram m enos cerceadas na esfera da vida social, inclusive na fala, pensam ento e escrita. A censura pessoal, e a dos com panheiros, assum ia form a diferente. Um poem a de período relativam ente tardio — século XVII — pode aj udar a ilustrar a diferença. É do poeta silésio Christian Hofm ann von Hofm annswaldau e leva o título de “Transitoriedade da beleza”.

Por fim a m orte pálida com sua m ão gelada Com o tem po acariciará teus seios; O belo coral de teus lábios em palidecerá A neve de teus m ornos om bros será fria areia O doce piscar de teus olhos / o vigor de tua m ão Por quem caem / cedo desaparecerão Teu cabelo / que agora tem o tom do ouro Os anos farão cair, um a com um m adeixa Teu bem -form ado pé / a graça de teus m ovim entos Serão em parte pó / em parte nada e vazio. Então ninguém m ais cultuará teu esplendor agora divino Isso e m ais que isso por fim terá passado

Só teu coração todo o tem po durará Porque de diam ante o fez a Natureza.

Leitores de nossos dias podem achar a m etáfora da m orte pálida acariciando os seios da bem -am ada com sua m ão fria um tanto grosseira, talvez de m au gosto. Podem , ao contrário, ver no poem a um a profunda preocupação com o problem a da m orte. Mas talvez só possam os nos ocupar desse poem a em virtude de um singular surto de inform alização, que com eçou depois de 1918, foi fortem ente revertido em 1933 e ganhou im pulso novam ente de 1945 em diante. Com o m uitos poem as barrocos, ofende grande núm ero de tabus vitorianos e guilherm inos. Referir-se com tal detalhe, com tão pouco rom antism o e m esm o num tom um tanto j ocoso à m orte da am ada pode, até m esm o hoj e, quando prevalece um certo relaxam ento dos tabus vitorianos, parecer incom um . Até que atentem os para as m udanças civilizatórias que encontram expressão no presente, e, portanto, na estrutura de nossa própria personalidade, ficarem os no escuro enquanto intérpretes, enquanto historiadores herm enêuticos do passado. Interpretações arbitrárias serão a norm a e conclusões erradas, a regra. O fato de que gerações anteriores falassem m ais abertam ente da m orte, da sepultura e dos verm es será tom ado com o indicação de seu interesse m órbido pela m orte; suas

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francas referências às relações físicas entre hom ens e m ulheres, com o signos de lascívia ou frouxidão m oral. Só quando form os capazes de m aior distanciam ento de nós m esm os, de nosso estágio de civilização, e nos tornarm os conscientes do caráter específico de nosso próprio lim iar de vergonha e repugnância, poderem os fazer j ustiça às ações e obras de pessoas em outros estágios.

Um poem a com o esse provavelm ente aflorou de m aneira m uito m ais direta do intercurso social de hom ens e m ulheres do que os poem as m ais privados e individualizados de nossa época. Nele, seriedade e graça se com binam de um m odo sem paralelos hoj e. Talvez fosse um poem a escrito para um a ocasião particular; pode ter se difundido nos círculos de Hofm annswaldau e causado m uito divertim ento a seus am igos de am bos os sexos. Falta aqui o tom solene ou sentim ental m ais tarde m uitas vezes associado à lem brança da m orte e da sepultura. Que tal advertência sej a com binada com um a brincadeira m ostra a diferença de atitude de m aneira especialm ente clara. As pessoas no círculo do poeta devem ter se divertido com um a brincadeira que facilm ente escapa a um leitor m oderno. Hofm annswaldau diz à sua relutante am ada que sua beleza desaparecerá na sepultura, seus lábios de coral, seus om bros de neve, seus olhos insinuantes, todo seu corpo decairá — exceto seu coração: ele é duro com o diam ante, pois ela não dá ouvidos a seus apelos. No registro dos sentim entos contem porâneos dificilm ente encontrarem os qualquer coisa que corresponda a essa m istura de funéreo e irreverente, essa descrição detalhada da decom posição hum ana com o m anobra de sedução.

Podem os talvez tom ar o poem a com o invenção individual do escritor. Do ponto de vista da história da literatura, poderia facilm ente ser assim interpretado. Mas, no contexto, com o evidência da atitude em relação à m orte existente num estágio diferente de civilização, o poem a ganha significação precisam ente pelo fato de que seu tem a é tudo m enos um a invenção individual. É um tem a com um da poesia barroca europeia no sentido m ais am plo, que nos diz algum a coisa sobre o m odo dos j ogos do am or nas sociedades patrícias e cortesãs do século XVII.

Nessas sociedades, havia num erosos poem as sobre o m esm o tem a. Apenas o tratam ento poético era individual e variável. O m ais belo e fam oso poem a sobre ele é “To his Coy Mistress” [“À sua am ada recatada”], de Marvell. Contém a m esm a brusca lem brança do que aguarda o belo corpo na sepultura, advertindo a m ulher de coração duro a não fazê-lo esperar tanto. Esse poem a tam bém foi desprezado durante séculos. Hoj e, alguns de seus versos são citações de antologias:

A sepultura é um bom lugar privado, Mas nela, creio, ninguém é am ado.

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Variações sobre o m esm o tem a são encontradas em Ronsard, Opitz e outros poetas da época. Representam um lim iar diferente do nosso de vergonha e em baraço e, portanto, um a estrutura diferente de personalidade, que é social e não individual. Referências à m orte, à sepultura e a todos os detalhes do que acontece aos seres hum anos nessa situação não eram suj eitas a um a censura social estrita. A visão de corpos hum anos em decom posição era lugar-com um . Todos, inclusive as crianças, sabiam com o eram esses corpos; e, porque todos sabiam , podiam falar disso com relativa liberdade, na sociedade e na poesia.

Hoj e as coisas são diferentes. Nunca antes na história da hum anidade foram os m oribundos afastados de m aneira tão asséptica para os bastidores da vida social; nunca antes os cadáveres hum anos foram enviados de m aneira tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de m orte à sepultura.

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Intim am ente ligado em nossos dias, à m aior exclusão possível da m orte e dos m oribundos da vida social, e à ocultação dos m oribundos dos outros, particularm ente das crianças, há um desconforto peculiar sentido pelos vivos na presença dos m oribundos. Muitas vezes não sabem o que dizer. A gam a de palavras disponíveis para uso nessas ocasiões é relativam ente exígua. O em baraço bloqueia as palavras. Para os m oribundos essa pode ser um a experiência am arga. Ainda vivos, j á haviam sido abandonados. Mas m esm o aqui o problem a que a proxim idade da m orte e a m orte colocam para os que ficam não existe isoladam ente. A reticência e a falta de espontaneidade na expressão de sentim entos de sim patia nas situações críticas de outras pessoas não se lim itam à presença de alguém que está m orrendo ou de luto. Em nosso estágio de civilização m anifesta-se em m uitas ocasiões que dem andam a expressão de forte participação em ocional sem perda do autocontrole. Algo sem elhante ocorre em situações de am or e de ternura.

Em todos esses casos é especialm ente a geração m ais j ovem que, m ais que em séculos anteriores, fica entregue a seus próprios recursos, a sua própria capacidade de invenção individual, na procura das palavras certas para seus sentim entos. A convenção social fornece às pessoas um as poucas expressões estereotipadas ou form as padronizadas de com portam ento que podem tornar m ais fácil enfrentar as dem andas em ocionais de tal situação. Frases convencionais e rituais ainda estão em uso, porém m ais pessoas do que antigam ente se sentem constrangidas em usá-las, porque parecem superficiais e gastas. As fórm ulas rituais da velha sociedade, que tornavam m ais fácil enfrentar situações críticas com o essa, soam caducas e pouco sinceras para m uitos j ovens; novos rituais que reflitam o padrão corrente dos sentim entos e com portam entos,

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que poderiam tornar a tarefa m ais fácil, ainda não existem .

Seria falso sugerir que os problem as específicos do estágio da civilização na relação dos saudáveis com os m oribundos, dos vivos com os m ortos, são um dado isolado. O que surge aqui é um problem a parcial, um aspecto de um problem a geral da civilização em seu estágio presente.

Nesse caso, tam bém , a peculiaridade da situação presente pode ser m elhor delineada por referência a um exem plo do m esm o problem a no passado. No final de outubro de 1758, a m argravina de Bay reuth, irm ã do rei Frederico II da Prússia, estava à m orte. O rei não pôde viaj ar para vê-la, m as m andou às pressas seu próprio m édico Cothenius, caso ainda pudesse aj udá-la. Mandou tam bém poem as e a seguinte carta, datada de 20 de outubro:

Ternam ente am ada Irm ã,

Recebe com carinho os versos que te m ando. Estou tão cheio de ti, teu risco e m inha gratidão, que tua im agem constantem ente governa m inh’alm a e todos os m eus pensam entos, acordado ou sonhando, escrevendo prosa ou poesia. Que o Céu atenda os votos por tua recuperação que diariam ente lhe dirij o! Cothenius está a cam inho; venerá-lo-ei se puder preservar a pessoa que é em todo o m undo a m ais próxim a de m eu coração, que estim o e honro e por quem continuo, até o m om ento de devolver m eu corpo aos elem entos, m ais ternam ente am ada irm ã, teu leal e devotado irm ão e am igo,

Frederico O rei não escreveu essa carta em francês, m as em alem ão, o que raram ente fazia. Podem os im aginar que a carta serviu de consolo à m oribunda e facilitou sua partida do m undo dos vivos — se ainda foi capaz de lê-la.

A língua alem ã não é particularm ente rica em expressões nuançadas para ligações não sexuais entre pessoas — não sexuais, qualquer que sej a sua origem . Faltam palavras correspondentes à “afeição” e “afeiçoado”. Zuneigung e zugetan, que sugerem a ideia de “inclinação”, não carregam a sim patia com edida do nosso term o, e são pouco usadas. A “m ais ternam ente am ada irm ã” de Frederico é, sem dúvida, expressão exata de seus sentim entos. Seria usada hoj e? Sua ligação com sua irm ã era provavelm ente o m ais forte laço que o prendia a qualquer m ulher ou pessoa em sua vida. Podem os supor que o sentim ento verbalizado em sua carta é sincero. A afeição entre irm ão e irm ã era recíproca. Ele claram ente com preendia que um a afirm ação de sua grande afeição levaria conforto à m oribunda. Mas a expressão desses sentim entos fica m ais fácil para ele por sua confiança im plícita em certas convenções linguísticas de sua sociedade, que conduzem sua pena. O leitor m oderno, com ouvido afinado para detectar os clichês do passado, pode perceber “tua im agem ” que

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“constantem ente governa m inh’alm a” com o convencional e “o Céu atenda os votos” com o teatralm ente barroco, particularm ente na boca de um m onarca que não era fam oso pela piedade. De fato, Frederico utiliza term os convencionais para exprim ir seus sentim entos. Mas é capaz de usá-los de tal m aneira que sua sinceridade é visível, e podem os supor que a irm ã percebeu essa sinceridade. A estrutura das com unicações era tal que aqueles a quem eram endereçadas podiam distinguir entre usos sinceros e insinceros de expressões corteses, ao passo que nossos ouvidos não podem m ais distinguir essas nuances de civilidade.

Isso ilum ina os contrastes com a situação presente. O breve surto de inform alização5 ainda em progresso nos torna especialm ente desconfiados em relação aos rituais convencionais e às frases “floreadas” de gerações passadas. Muitas fórm ulas socialm ente prescritas trazem em torno de si a aura de antigos sistem as de dom inação; não podem m ais ser usadas m ecanicam ente com o o om mani padme nos círculos de oração dos m onges budistas. Mas ao m esm o tem po a m udança que acom panha o estágio presente da civilização produz em m uitas pessoas um a indisposição e m uitas vezes um a incapacidade de exprim ir em oções fortes, tanto na vida pública com o na vida privada. Elas só podem ser ventiladas, assim parece, em conflitos políticos e sociais. No século XVII, os hom ens podiam chorar em público; isso tornou-se hoj e difícil e pouco frequente. Só as m ulheres ainda são capazes, socialm ente livres para fazê-lo — por quanto tem po ainda?

Na presença de pessoas que estão para m orrer — e dos que as pranteiam — vem os, portanto, com particular clareza um dilem a característico do presente estágio do processo civilizador. Um a m udança em direção à inform alidade fez com que um a série de padrões tradicionais de com portam ento nas grandes situações de crise da vida hum ana, incluindo o uso de frases rituais, se tornasse suspeita e em baraçosa para m uitas pessoas. A tarefa de encontrar a palavra e o gesto certos, portanto, sobra para o indivíduo. A preocupação de evitar rituais e frases socialm ente prescritos aum enta as dem andas sobre a capacidade de invenção e expressão individual. Essa tarefa, porém , está m uitas vezes fora do alcance das pessoas no estágio corrente da civilização. A m aneira com o as pessoas vivem em conj unto, que é fundam ental neste estágio, exige e produz um grau relativam ente alto de reserva na expressão de afetos fortes e espontâneos. Muitas vezes, só sob pressão excepcional elas são capazes de superar a barreira que bloqueia as ações resultantes de fortes em oções, e tam bém sua verbalização. Assim , a fala espontânea com os m oribundos, da qual estes têm especial necessidade, torna-se difícil. Apenas as rotinas institucionalizadas dos hospitais dão algum a estruturação social para a situação de m orrer. Essas, no entanto, são em sua m aioria destituídas de sentim entos e acabam contribuindo para o isolam ento dos m oribundos.

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pessoas estão pessoalm ente preocupadas com eles, o que é sem dúvida a função real desses rituais. Fora deles, m orrer é no presente um a situação am orfa, um a área vazia no m apa social. Os rituais seculares foram esvaziados de sentim ento e significado; as form as seculares tradicionais de expressão são pouco convincentes. Os tabus proíbem a excessiva dem onstração de sentim entos fortes, em bora eles possam acontecer. E a tradicional aura de m istério que cerca a m orte, com o que perm anece dos gestos m ágicos — abrir as j anelas, parar os relógios —, torna a m orte m enos tratável com o problem a hum ano e social que as pessoas devem resolver entre si e para si. No presente, aqueles que são próxim os dos m oribundos m uitas vezes não têm capacidade de apoiá-los e confortá-los com a prova de sua afeição e ternura. Acham difícil apertar a m ão de um m oribundo ou acariciá-lo, proporcionar-lhe um a sensação de proteção e pertencim ento, ainda. O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentim entos espontâneos e fortes trava suas línguas e m ãos. E os viventes podem , de m aneira sem iconsciente, sentir que a m orte é contagiosa e am eaçadora; afastam -se involuntariam ente dos m oribundos. Mas, para os íntim os que se vão, um gesto de afeição é talvez a m aior aj uda, ao lado do alívio da dor física, que os que ficam podem proporcionar.

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O afastam ento dos vivos em relação aos m oribundos e o silêncio que gradualm ente os envolve continuam depois que chega o fim . Isso pode ser visto, por exem plo, no tratam ento dos cadáveres e no cuidado com as sepulturas. As duas atividades saíram das m ãos da fam ília, parentes e am igos e passaram para especialistas rem unerados. A m em ória da pessoa m orta pode continuar acesa; os corpos m ortos e as sepulturas perderam significação. A Pietà de Michelangelo, a m ãe em prantos com o corpo de seu filho, continua com preensível com o obra de arte, m as dificilm ente im aginável com o situação real.

Um a brochura publicada por j ardineiros de cem itério m ostra quão distante o cuidado das sepulturas está das fam ílias.6 Naturalm ente, adverte contra concorrentes e rivais que podem reduzir a quantidade de flores adornando as sepulturas. Podem os supor que a agência de m arketing adaptou a brochura tanto quanto possível à m entalidade dos possíveis consum idores. O silêncio sobre a significação das sepulturas com o lugares onde pessoas m ortas estão enterradas é, em função disso, quase total. Com preensivelm ente, referências explícitas a qualquer conexão entre a profissão de j ardineiro de cem itério e o enterro dos cadáveres estão inteiram ente ausentes. Essa ocultação cuidadosa, que reflete a m entalidade dos clientes potenciais, surge de m aneira especialm ente clara se lem brarm os o tom dos poem as do século XVII citados acim a. A franqueza com

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que eles falam do que acontece ao corpo na sepultura oferece claro contraste à supressão higiênica de associações desagradáveis do m aterial im presso e, sem dúvida, da conversação social de nosso tem po. Que Marvell pudesse esperar ganhar os favores da m ulher am ada advertindo-a de que os verm es am eaçariam sua “tão preservada virgindade” e de que sua “singular honra se tornaria pó” na sepultura dá um a indicação do quanto avançou o lim iar de repugnância desde então, no curso de um processo civilizador não planej ado. Lá, m esm o os poetas falam com desem baraço dos verm es da sepultura; aqui, m esm o os j ardineiros do cem itério evitam qualquer coisa que possa lem brar a conexão entre sepultura e m orte. A m era palavra “m orte” é evitada sem pre que possível; aparece só um a vez na brochura — quando são m encionadas as datas com em orativas dos m ortos; e a m á im pressão causada pela palavra é im ediatam ente equilibrada pela m enção aos dias de casam ento — quando tam bém se requerem flores. As perigosas associações de cem itério são neutralizadas apresentando-o sim plesm ente com o um “espaço verde na cidade”:

Os j ardineiros de cem itério alem ães … gostariam de dar ao cem itério m aior relevo na consciência pública com o um a área cultural e tradicional, com o um lugar de recolhim ento e com o parte da área verde urbana. Pois um a consciência pública elevada é a m elhor garantia de que o tradicional retrato do cem itério verde e em flor não será um dia am eaçado por estranhos costum es de enterro, por restrições baseadas em argum entos econôm icos, por desm andos de proj etos descontrolados ou pelo planej am ento tecnocrático dos espaços fundado exclusivam ente na racionalização. Seria proveitoso discutir em detalhe as táticas da luta contra os vários rivais com erciais, m as não aqui. De todo m odo, os clientes potenciais são protegidos, tanto quanto hum anam ente possível, da lem brança da m orte e de tudo relativo a ela. Para a possível clientela, a m orte se tornou de m au gosto. Mas a atitude evasiva e encobridora, por sua vez, tem um efeito algo desagradável.

Seria m uito bom se o lugar de recordação dos m ortos fosse realm ente planej ado com o um parque para os vivos. Essa é a im agem que os j ardineiros do cem itério gostariam de transm itir — “um a ilha silenciosa, verde e em flor em m eio ao ruído frenético da vida cotidiana”. Se fossem realm ente parques para os vivos, onde os adultos pudessem com er seus sanduíches e as crianças, brincar! Talvez isso tenha sido possível outrora, m as é im possível hoj e em função da tendência à solenidade, à ideia de que a graça e o riso são inadequados na vizinhança dos m ortos — sintom as da tentativa sem iconsciente dos vivos de distanciar-se dos m ortos e de em purrar esse aspecto em baraçoso da anim alidade hum ana para tão longe quanto possível atrás das cenas da vida norm al. Crianças que tentem brincar alegrem ente entre os túm ulos serão advertidas pelos

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guardiães da gram a bem -aparada e dos canteiros por sua falta de reverência e respeito aos m ortos. Mas quando as pessoas m orrem , nada sabem da reverência com que são ou não tratadas. E a solenidade com que funerais e túm ulos são cercados, a ideia de que deve haver silêncio em torno deles, de que se deve falar em voz abafada nos cem itérios para evitar perturbar a paz dos m ortos — tudo isso são realm ente form as de distanciar os vivos dos m ortos, m eios de m anter à distância um a sensação de am eaça. São os vivos que exigem reverência pelos m ortos, e têm suas razões. Essas incluem seu m edo da m orte e dos m ortos; m as m uitas vezes tam bém servem com o m eio de aum entar o poder dos vivos.

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Até o m odo com o é utilizada a expressão “os m ortos” é curioso e revelador. Dá a im pressão de que as pessoas m ortas em certo sentido ainda existem não só na m em ória dos vivos, m as independentem ente deles. Os m ortos, porém , não existem . Ou só existem na m em ória dos vivos, presentes e futuros. É especialm ente para as desconhecidas gerações futuras que aqueles que estão agora vivos se voltam com tudo o que é significativo em suas realizações e criações. Mas nem sem pre se dão conta disso. O m edo de m orrer é sem dúvida tam bém um m edo de perda e destruição daquilo que os próprios m oribundos consideram significativo. Mas só o tribunal daqueles que ainda não nasceram pode decidir se o que parece significativo para as gerações anteriores será tam bém significativo, para além de suas vidas, para as outras pessoas. Mesm o as lápides, em sua sim plicidade, dirigem -se a esse tribunal — talvez um passante venha a ler na pedra, j ulgada im perecível, que ali estão enterrados tais pais, tais avós, tais filhos. O que está escrito na pedra é um a m ensagem m uda dos m ortos para quem quer que estej a vivo — um sím bolo de um sentim ento talvez ainda não articulado de que a única m aneira pela qual um a pessoa m orta vive é na m em ória dos vivos. Quando a cadeia da recordação é rom pida, quando a continuidade de um a sociedade particular ou da própria sociedade hum ana term ina, então o sentido de tudo que seu povo fez durante m ilênios e de tudo o que era significativo para ele tam bém se extingue.

Hoj e ainda é um tanto difícil dar um a ideia da dim ensão da dependência das pessoas em relação às outras. Que o sentido de tudo o que um a pessoa faz estej a no que ela significa para os outros, não apenas para os que agora estão vivos, m as tam bém para as gerações futuras, que ela sej a, portanto, dependente da continuidade da sociedade hum ana por gerações, é certam ente um a das m ais fundam entais das m útuas dependências hum anas, daqueles do futuro em relação aos do passado, daqueles do passado em relação aos do futuro. Mas um a com preensão dessa dependência é particularm ente im pedida hoj e pela recusa de

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enfrentar a finitude da vida individual, inclusive a nossa própria, e a dissolução próxim a de nossa própria pessoa, e de incluir esse conhecim ento na m aneira com o vivem os nossa vida — em nosso trabalho, em nosso prazer e, acim a de tudo, em nosso com portam ento em relação aos outros.

Muitas vezes, as pessoas hoj e se veem com o indivíduos isolados, totalm ente independentes dos outros. Perseguir os próprios interesses — vistos isoladam ente — parece então a coisa m ais sensata e gratificante que um a pessoa poderia fazer. Nesse caso, a tarefa m ais im portante da vida parece ser a busca de sentido apenas para si m esm o, independente das outras pessoas. Não é de surpreender que as pessoas que procuram essa espécie de sentido achem absurdas suas vidas. Raram ente, e com dificuldade, as pessoas podem ver a si m esm as, em sua dependência dos outros — um a dependência que pode ser m útua —, com o elos lim itados na cadeia das gerações, com o quem carrega um a tocha num a corrida de revezam ento, e que por fim a passará ao seguinte.

No entanto, o recalcam ento e o encobrim ento da finitude da vida hum ana individual certam ente não é, com o às vezes se diz, um a peculiaridade do século XX. É provavelm ente um a reação tão antiga quanto a consciência dessa finitude, quanto o pressentim ento da própria m orte. No curso da evolução biológica, podem os supor, desenvolveu-se nos seres hum anos um a espécie de entendim ento que lhes perm itiu relacionar o fim que conheciam no caso de outras criaturas — algum as das quais lhes serviam de alim ento — a si m esm os. Graças a um poder de im aginação exclusivo entre as criaturas vivas, vieram gradualm ente a conhecer de antem ão o fim com o conclusão inevitável de toda vida hum ana. Mas j unto com essa previsão do próprio fim provavelm ente ocorreu, desde o início, um a tentativa de suprim ir esse conhecim ento indesej ado e encobri-lo com noções m ais satisfatórias. E aí a singular capacidade hum ana de im aginação veio em sua aj uda. O conhecim ento indesej ado e as fantasias encobridoras são, portanto, provavelm ente fruto do m esm o estágio de evolução. Hoj e, com im enso acúm ulo de experiência, não podem os m ais deixar de perguntar-nos se esses sonhos com placentes não têm , a longo prazo, consequências bem m ais indesej áveis e perigosas para os seres hum anos em sua vida com unal que o conhecim ento bruto e sem retoques.

O encobrim ento e o recalcam ento da m orte, isto é, da finitude irreparável de cada existência hum ana, na consciência hum ana, são m uito antigos. Mas o m odo do encobrim ento m udou de m aneira específica com o correr do tem po. Em períodos anteriores, fantasias coletivas eram o m eio predom inante de lidar com a noção de m orte. Ainda hoj e, é claro, desem penham um im portante papel. O m edo de nossa própria transitoriedade é am enizado com aj uda de um a fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar. Com o a adm inistração dos m edos hum anos é um a das m ais im portantes fontes de poder das pessoas sobre as outras, um a profusão de dom ínios se estabeleceu e continua a se m anter sobre

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essa base. Com a grande escalada da individualização em tem pos recentes, fantasias pessoais e relativam ente privadas de im ortalidade destacam -se m ais frequentem ente da m atriz coletiva e vêm para o prim eiro plano.7

Freud sustentava que a instância psicológica que cham ava de “isso”, a cam ada m ais anim al da psiquê, m ais próxim a do estado natural prim itivo, que tratava quase com o um a pequena pessoa, se acredita im ortal. Mas não penso que possam os aceitar tal afirm ação. No âm bito do isso um a pessoa não tem capacidade de prever e, portanto, não tem nenhum a noção antecipada sobre sua própria m ortalidade. Sem esse conhecim ento, a ideia com pensatória da im ortalidade pessoal não pode ser explicada: não teria função. Freud atribui aos im pulsos do isso, que estão inteiram ente voltados para o aqui e agora, um nível de reflexão que não podem atingir.

Muitas outras fantasias descobertas por Freud se agrupam em torno da im agem da m orte. Já m e referi aos sentim entos de culpa, à noção da m orte com o punição por m ás ações com etidas. É um a questão aberta a aj uda que se pode dar aos m oribundos aliviando angústias profundas referentes a punições por ofensas im aginárias — m uitas vezes infantis. A instituição eclesiástica do perdão e da absolvição m ostra um a com preensão intuitiva da frequência com que angústias de culpa se associam ao processo da m orte, e Freud foi o prim eiro a oferecer um a explicação científica para elas.

Não pode ser m inha tarefa aqui abordar todos os vários m otivos fantasísticos associados à ideia de nossa própria m orte e ao processo de m orrer. Mas não se pode subestim ar o fato de que, tanto no m undo m ágico de fantasias dos povos m ais sim ples, quanto nas correspondentes fantasias individuais de nossos dias, a im agem da m orte está intim am ente ligada à de m atar. Povos m ais sim ples experim entam as m ortes de pessoas socialm ente poderosas, pelo m enos, com o algum a coisa que alguém fez a elas, com o um a espécie de assassinato. Os sentim entos dos sobreviventes estão envolvidos. Não colocam a questão m ais distante da causa im pessoal da m orte. Com o é sem pre o caso quando fortes em oções estão envolvidas, procura-se um culpado. Só quando sabem quem ele é podem esperar vingar-se e descarregar as paixões despertadas pela m orte. Não podem vingar-se de um a causa im pessoal. Im pulsos desse tipo, que em sociedades m ais sim ples guiam diretam ente as ações e pensam entos das pessoas, tam bém desem penham um papel indiscutível no com portam ento dos adultos em sociedades m ais desenvolvidas. Mas nesse caso não têm controle direto sobre o com portam ento. É o caso ainda com as crianças pequenas, m as sua fraqueza física norm alm ente oculta dos adultos a intensidade de seus im pulsos afetivos. Além disso, as crianças pequenas não podem distinguir de m aneira apropriada entre o desej o de agir e o ato realizado, entre a fantasia e a realidade. O surgim ento espontâneo do ódio e dos desej os de m orte têm para eles poder m ágico; o desej o de m atar m ata. As crianças em nossa sociedade às vezes ainda

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são capazes de exprim ir tais desej os abertam ente. “Então colocarem os o papai na lata de lixo”, disse o filhinho de um am igo com evidente prazer, “e fecharem os a tam pa.” Provavelm ente se sentiria culpado se seu pai realm ente tivesse se ido. A filhinha de outro am igo assegurava a todos os que se dispusessem a ouvir que não era culpa dela o fato de sua m ãe estar tão doente e ter que “ser operada”.

Encontram os aqui um com ponente adicional da particular aversão que hoj e m uitas vezes afeta as pessoas na presença de um m oribundo, ou — é preciso acrescentar — da especial atração que m oribundos, sepulturas e cem itérios exercem sobre algum as pessoas. As fantasias destas últim as poderiam ser resum idas aproxim adam ente com as palavras: “Eu não os m atei!” Por outro lado, a proxim idade de m oribundos ou sepulturas às vezes desperta nas pessoas não apenas o m edo da própria m orte, m as desej os de m orte e angústias de culpa suprim idos, resum idos na pergunta “Poderia eu ser culpado de sua m orte? Desej ei eu vê-los m ortos por odiá-los?”.

Mesm o adultos em sociedades industriais m ais desenvolvidas têm níveis m ágicos de experiência que se opõem a explicações im pessoais e obj etivas de doenças e m ortes. A força do choque que a m orte de um dos pais produz nos adultos é um sinal disso. Pode ser parcialm ente conectada à profunda identificação entre filhos e pais, ou entre outras pessoas com laços em ocionais próxim os: isto é, pode ser conectada à experiência de outras pessoas com o parte ou extensão de nós m esm os. O sentim ento de que um com panheiro perdido era “parte de m im ” é encontrado em relações dos tipos m ais diferentes — entre pessoas casadas há m uito tem po, am igos, filhos e filhas. Mas nestes últim os, a m orte de um pai ou de um a m ãe m uitas vezes desperta desej os de m orte enterrados e esquecidos, associados a sentim entos de culpa e, em alguns casos, ao m edo da punição. A aguda intensificação desses sentim entos pode enfraquecer as fantasias com pensatórias de im ortalidade pessoal.

Tais fantasias, com o j á disse, tornaram -se m ais frequentes em conj unção com a individualização m ais acentuada dos tem pos recentes. Entretanto, fantasias coletivas de im ortalidade altam ente institucionalizadas continuam a existir com vigor apenas ligeiram ente m enor em nossas sociedades. Um m anual escolar perfeitam ente sensato descreve o que as pessoas dizem às crianças quando um a pessoa m orre:

“Seu avô está no céu agora” — “Sua m am ãe olha para você lá do céu” — “Sua irm ãzinha agora é um anj o”.8

O exem plo m ostra quão firm em ente arraigada está em nossa sociedade a tendência a ocultar a finitude irrevogável da existência hum ana, especialm ente das crianças, pelo uso de ideias coletivas acalentadoras, e a assegurar o

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encobrim ento por um a rígida censura social estrita.

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Num a área sociobiológica diferente, m as tam bém isolada por um a com plexa estrutura de norm as sociais — a área das relações sexuais —, um a m udança perceptível teve lugar nos últim os anos. Nessa esfera, um bom núm ero de barreiras civilizadoras que eram previam ente consideradas evidentes e indispensáveis foi desm ontado. A aceitação social de com portam entos previam ente sob tabu absoluto se tornou possível. Problem as sexuais podem ser discutidos publicam ente num novo patam ar de franqueza m esm o com crianças. O segredo sobre as práticas sexuais e m uitas proibições em torno delas, que serviam a instituições estatais e clericais com o instrum entos de dom inação, deram lugar, num grau inim aginável na era vitoriana, a m aneiras m ais abertas e pragm áticas de com portam ento e fala. A m aior exposição nessa área levou a novos problem as e a um período de experim entação com novas soluções, tanto na prática social quanto na pesquisa em pírica e teórica. Isso talvez venha a definir com m aior exatidão as funções das regras sociais na esfera sexual — tanto em relação ao desenvolvim ento individual quanto à vida com unitária. Mas j á está claro que um a série inteira de regras sexuais tradicionais, que se form aram durante o avanço não planej ado do processo civilizador, tinha função apenas para a certos grupos hegem ônicos, para relações de poder específicas, com o aquelas entre m onarca e súdito, hom ens e m ulheres ou pais e filhos. Apareceram com o m andam entos m orais eternos enquanto um grupo esteve firm em ente estabelecido com o dom inante, e perderam m uito de sua função e plausibilidade quando surgiu um a distribuição ligeiram ente m enos desigual do poder. Isso tornou possível experim entar outros padrões de com portam ento no cam po sexual, e assim tam bém outros padrões de autocontrole com patíveis com um m odo m ais equilibrado de vida em com um , perm itindo um a relação m enos frustrante entre o controle dos instintos e sua realização.

O relaxam ento dos tabus sexuais j á sem função ficou particularm ente perceptível na educação dos adolescentes e no com portam ento dos adultos em relação a eles. No com eço do século XX, o m uro de silêncio entre adultos e crianças sobre essa questão era quase intransponível. Relações sexuais entre adolescentes, caso descobertas, eram m uitas vezes punidas severam ente. A sexualidade era um a esfera de segredo sobre a qual as crianças podiam falar, no m áxim o, entre si, m as raram ente com os adultos, especialm ente os pais, e de m aneira algum a com os professores. A severidade da com pulsão social à ocultação, a pesada pressão social sobre os im pulsos sexuais de rapazes e m oças solteiros e os riscos sociais aos quais eles e, claro, tam bém os adultos se

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expunham de todos os lados quando deixavam de controlar os im pulsos sexuais com o requeria a estrutura norm ativa deixaram os indivíduos por algum tem po sozinhos com os desej os frequentem ente selvagens e apaixonados de sua idade — o que levou a essa form a de puberdade prolongada assolada perm anentem ente pela crise, que era vista na época com o algo determ inado pela natureza. Hoj e ela aparece cada vez m ais claram ente com o um a form a de puberdade produzida por um código transitório de m oralidade.

Nesse m eio tem po, o segredo que cercava a esfera sexual dim inuiu. Para pais e professores tornou-se possível, em certa m edida dependendo da idade, falar com as crianças sobre problem as sexuais sem quebrar tabus sociais ou ter que enfrentar barreiras de vergonha pessoal e em baraço. Não é m ais preciso proteger as crianças com vagas alusões ou pequenas m entiras quando perguntam de onde vêm os bebês. Em sum a, nessa área de risco da vida social hum ana — a sexualidade — os padrões de controle social, a prática social e a consciência pessoal m udaram consideravelm ente em conj unto durante o século XX. Um a estratégia de encobrim ento e recalcam ento, particularm ente na relação entre grupos de certa posição social e poder e as gerações em ergentes, estratégia que parecia àqueles com prom etidos com ela autoevidente e necessária para a sobrevivência da sociedade hum ana, isto é, com o m oral per se, m ostrou-se na prática um elo funcional dentro de um a sociedade fundada sobre estruturas de poder específicas. Quando essas estruturas foram substituídas por um a distribuição de poder m enos desigual — entre dom inadores e dom inados, entre os sexos e as gerações —, tam bém m udou a estratégia de repressão. A ordem não cedeu ao caos quando o alto patam ar vitoriano de vergonha e em baraço em torno da vida sexual se reduziu, e o segredo form alizado deu lugar a um com portam ento e um discurso m ais abertos.

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Em relação à m orte, a tendência a isolá-la e ocultá-la tornando-a um a área especial dificilm ente terá dim inuído desde o século XIX, tendo possivelm ente aum entado. Talvez só com parando as diferentes zonas de risco biossocial em diferentes estágios de desenvolvim ento social se perceba a desigualdade na ascensão e queda dos tabus, da form alização e inform alização nessas diferentes áreas da vida social, em bora na experiência das pessoas os perigos derivados da m orte e dos instintos possam estar intim am ente ligados. As atitudes defensivas e o em baraço com que, hoj e, as pessoas m uitas vezes reagem a encontros com m oribundos e com a m orte são com paráveis às reações das pessoas a encontros abertos com aspectos da vida sexual na era vitoriana. Em relação à vida sexual, um relaxam ento lim itado, m as perceptível, se instalou; o constrangim ento social

Referências

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