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Escrit(ur)a de si e crítica social: a posição-autor na produção textual de jovens leitores

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Academic year: 2021

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Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, v. 14, n. 28, p. 207-217, set./dez. 2018.

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Escrit(ur)a de si e crítica social: a

posição-autor na produção textual

de jovens leitores

Self-writing and social criticism: authored-position in the textual production of young readers

Escritura de sí y crítica social: la posición-autor en la producción textual de jóvenes lectores

Marluza Terezinha DA ROSA1 Laura David BUCHOLZ2

RESUMO: Realizar a leitura de determinado texto não implica somente em decodificar suas palavras ou elementos gráficos, consiste em interpretá-lo de acordo com suas condições de produção e circulação, com as vivências e a cultura do leitor, dentre outros fatores. Por esse motivo, sabe-se que todo texto oferece não uma única interpretação, mas uma multiplicidade de sentidos possíveis. Desse modo, a partir de uma atividade de (re)leitura e (re)escrita de tirinhas feita por estudantes de uma escola pública, foi analisado o modo como se constrói tanto uma posição-autor, quanto um olhar crítico nos textos produzidos. Com base nos estudos de Derrida (2005) e Coracini (2005, 2010), a análise do corpus registrado permite afirmar que os jovens leitores se colocaram como autores e utilizaram o espaço das tirinhas e charges tanto para críticas sociais quanto para a escrita de si. Isso faz com que a leitura crítica seja levada em consideração, já que se consolida como uma prática que vai além dos textos cotidianos, permitindo perceber os processos de constituição do sujeito e de identidades, bem como a (res)significação de representações que, hoje, são naturalizadas.

PALAVRAS-CHAVE: (Re)leitura. (Re)escrita. Leitura crítica. Texto verboimagético.

ABSTRACT: Reading a particular text does not only mean decoding its words or graphic elements, it consists of

interpreting it according to its production and circulation's conditions, with the reader's experiences and culture, among other factors. For this reason, it is known that every text offers not only a single interpretation, but a multiplicity of possible meanings. Therefore, from a comic strip's re-reading and re-writing made by students of a public school, it was analyzed not only the authored-position but also the critical view they put into the texts. Based on Derrida (2005) and Coracini’s (2005, 2010) studies, the corpus analysis registered allows to affirm that the young readers have put themselves as authors and used the comic strip's space as much for social criticism as for putting themselves into the writing. This means that the critical reading is taken into regard, since it is consolidated as a practice that goes beyond the everyday texts, allowing to perceive the subject's and identities' constitution's processes as well as the representations' (re) signification that are, today, naturalized.

KEYWORDS: (Re)reading. (Re)writing. Critical reading. Syncretic text.

1 Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/Campus Frederico Westphalen. Docente do Departamento de

Ciências da Comunicação. Frederico Westphalen – RS – Brasil. CEP: 98400-000. E-mail: marluza.rosa@gmail.com

2 Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/Campus Frederico Westphalen. Graduanda do Curso de

Jornalismo da UFSM/Campus Frederico Westphalen. Frederico Westphalen – RS – Brasil. CEP: 98400-000. E-mail: laura.bucholz98@gmail.com

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RESUMEN: Realizar la lectura de determinado texto no implica sólo en decodificar sus palabras o elementos

gráficos, consiste en interpretarlo de acuerdo con sus condiciones de producción y circulación, con las vivencias y la cultura del lector, entre otros factores. Por eso, se sabe que todo texto ofrece no una sola interpretación, sino una multiplicidad de sentidos posibles. De este modo, a partir de una actividad de (re)lectura y (re)escritura de tiritas hecha por estudiantes de una escuela pública, se analizó el modo como se construye tanto una posición autor, como una mirada crítica en los textos producidos. Con base en los estudios de Derrida (2005) y Coracini (2005, 2010), el análisis del corpus registrado permite afirmar que los jóvenes lectores se colocaron como autores y utilizaron el espacio de las tiritas y caricaturas tanto para críticas sociales como para la escritura de sí . Esto hace que la lectura crítica sea tenida en cuenta, ya que se consolida como una práctica que va más allá de los textos cotidianos, permitiendo percibir los procesos de constitución del sujeto y de identidades, así como la (res)significación de representaciones que, hoy, se naturalizan.

PALABRAS CLAVE: (Re)lectura. (Re)escritura. Lectura crítica. Texto verboimagético.

Introdução

Este estudo advém de resultados obtidos pelo projeto de extensão Compreender os

letramentos locais para (in)formar novos leitores3, que tem trabalhado com alunos do Ensino Médio de uma escola pública do Rio Grande do Sul. Por meio de um Clube de Leitura, as ações realizadas objetivam incentivar a prática da leitura junto aos participantes, partindo da abordagem de textos com os quais o público-alvo tem mais familiaridade. Para a discussão apresentada neste estudo, será considerada uma das atividades propostas pelo projeto, a qual consistiu na (re)leitura e na (re)escrita de tirinhas e charges. Foi analisado o desenvolvimento da autoria pelos alunos, observando traços subjetivos no texto escrito, além do posicionamento crítico tomado. Esse trabalho possibilitou que os participantes se colocassem como autores e utilizassem o espaço da atividade para críticas que sugerem uma inscrição de si e no cenário social.

Para a elaboração desta pesquisa, partimos do pressuposto de que ler é mais do que decodificar textos escritos, pois se caracteriza como um ato de intepretação. Ao ler um texto, o leitor mobiliza suas vivências, sua cultura, e produz sentidos a partir das condições em que se insere. Dessa forma, é possível afirmar que não há textos com sentidos fixos. Em cada nova leitura, podem ocorrer deslizes de sentidos, já que a língua não possui transparências que permitiriam dizer o que se quer e ser lido da mesma forma (DA ROSA, 2016). Tendo em vista a situação de elaboração e interpretação da tirinha analisada, pretendeu-se verificar aspectos da escrita que apontam para uma inserção de traços subjetivos no texto produzido, pensando que todo ato de escrita é também um ato de escritura (CORACINI, 2010).

O corpus deste estudo foi obtido através da atividade feita em um dos Clubes de Leitura em que trabalhamos com textos verboimagéticos. No encontro, dividimos a turma em grupos para que realizassem a atividade proposta. Entregamos aos pequenos grupos tirinhas recortadas fora de ordem e sem falas, para que assim os alunos pudessem organizá-las e propor diálogos entre as personagens. Mesmo que a produção não tenha sido livre, pois estava embasada em nossa proposta, foi possível observar a inserção de traços subjetivos no texto, nesse caso, a

3 O projeto de extensão é financiado pelo Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX-UFSM). Esta pesquisa se deu no

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209 tirinha da personagem Mafalda, estruturada por um grupo de cinco participantes. Vale lembrar

que os jovens leitores têm a faixa etária entre 14 e 18 anos.

Como percurso neste artigo, será feito um apanhado teórico sobre as noções de (re)leitura, (re)escrita e escritura. Após, serão apresentados o processo para a obtenção do material analisado e a justificativa pela escolha de textos verboimagéticos. A partir do corpus registrado, finalmente, a análise aponta traços que permitem perceber, no texto produzido por estudantes, além do posicionamento crítico tomado, a função-autor e(m) sua escrit(ur)a.

A (re)leitura e (re)escrita como processos subjetivos

Sabemos que, atualmente, a divulgação de uma ampla gama de informações é feita de forma facilitada, principalmente através da internet e, ainda, que as mídias atuam, paralelamente aos espaços escolares, como produtoras de conhecimento e de subjetividades. Com isso, torna-se importante que torna-se discuta o papel da leitura crítica, tendo em vista o contexto midiático atual, já que esta se consolida como uma prática que vai além da compreensão dos textos cotidianos, permitindo que sejam ressignificadas representações que, muitas vezes, são naturalizadas.

No ambiente escolar, recorrentemente, a leitura é a associada à decodificação de palavras e elementos gráficos. Porém, como já dito na introdução desta pesquisa, a leitura como um ato de interpretação não se resume a recitar em voz alta ou a reproduzir algo que foi escrito. Ver, interpretar e compreender (ou não) uma situação, um texto – seja qual for o gênero ao qual pertença – é ler. Ao se deparar com um texto, o leitor o interpreta baseando-se em seus interesses, em sua cultura, inserido em determinadas condições de produção e circulação, mobilizando leituras anteriores para produzir sentidos. Segundo Vianna, Vaz e Santos (2018, p. 114), “Todo texto é tecido pelo leitor/autor que o vê ou lê onde estiver escrito, impresso, projetado”, viés que pode dialogar com o pensamento de Coracini (2005), quando a autora argumenta que cada leitor acrescenta ao texto os fios de sua leitura, de modo que “ler é, em primeira e última instância, interpretar. Não se trata de perseguir a unidade ilusória do texto, mas de amarrota-lo, recortá-lo, pulverizá-lo, distribuí-lo segundo critérios que escapam ao nosso consciente” (CORACINI, 2005, p. 25).

Nesse sentido, ler é um processo subjetivo, pois a interpretação de cada leitor sobre um mesmo texto pode ser diferente, cada olhar sobre uma narrativa é como um recorte que o próprio leitor faz, mesmo não sendo de forma proposital. Além de fazer um recorte, o leitor também se coloca no texto, conforme as palavras de Vianna, Vaz e Santos (2018, p. 118), “O leitor/ouvinte integra a paisagem (o texto – paisagem textual) com a sua presença, ainda que silenciosamente, e, ao mesmo tempo, mobiliza sua consciência, experiência, estética e moral ao observá-la”. A partir disso, o leitor também é autor, pois traz para o texto lido os fios de outras leituras anteriores (CORACINI, 2010).

Da mesma forma que a leitura é considerada um ato de releitura, a escrita é considerada um ato de reescrita. Ao escrever, não se pode ignorar o fato de que um texto se estrutura devido a outros previamente lidos. Então, muito mais do que grafar símbolos convencionados, a escrita está sempre relacionada a outros textos, que são mobilizados para produzir um novo, aparentemente original. É importante ressaltar que, ao falar de texto, não estamos nos referindo apenas aos escritos, pois também podem ser imagéticos, verboimagéticos, entre outros.

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210 Para melhor compreensão sobre o que é escrita, é importante discutir sobre as suas

finalidades, sendo a memorização uma delas. Não somente em termos psicológicos (anotar para lembrar posteriormente), mas também em termos históricos, pois a história, por exemplo, é memória, já que resulta de um arquivo de textos escritos. De acordo com Derrida (2005), a escrit(ur)a é phármakon, isto é, ao mesmo tempo, remédio e veneno. “Não há remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente benéfico” (DERRIDA, 2005, p. 46). Remédio, porque a escrita seria a cura para a memória. Veneno, pois permite o esquecimento. Pensando mais especificamente na escrit(ur)a, podemos dizer que toda a escrita relaciona-se com outros textos, e, produzir um aparentemente novo, é um processo subjetivo. Escrever, então, é inscrever-se, deixar traços próprios, e ainda, reescrever o que já foi dito. Para Coracini (2010),

escrita significa, ao mesmo tempo, um movimento para fora (ex-scripta) - de si para o outro - e um movimento para dentro (in-scripta) - do outro para si, do outro em si- de modo que a escrita, ou melhor, a escritura, implica na inscrição daquele que (ex)põe suas ideias, seus sentimentos, seus afetos e desafetos, ao mesmo tempo em que o sujeito se vê envolvido (marcado) pelo que escreve (CORACINI, 2010, p. 24). Não há como distanciar a escritura de uma função-autor, pois se trata de um processo de subjetivação, ou seja, um processo de constituição do sujeito. Esse processo se dá de duas formas: pelos modos de objetivação que engendram os sujeitos ou pelas maneiras por meio das quais o indivíduo se constitui como sujeito de sua própria existência (UYENO, 2008, p. 2).

Optar por determinados assuntos e escolher certas palavras, silenciar outros modos de escrever sobre o mesmo tema e, até mesmo, silenciar outros temas, são marcas subjetivas que podem ser percebidas na construção de uma narrativa. Além disso, um texto nunca é totalmente original, o que acontece é a produção de um efeito de sentido, um efeito de originalidade, pois, para ser produzido, um texto precisa uma base vinda de outros textos. Nesse sentido, reflete-se sobre a escrita não como grafismo mas como prática social que, “a partir da repetição e do deslocamento, funciona como um trabalho de (re)significação de dizeres, o que faz com que a autoria possa ser concebida como função-sujeito” (GALLI, 2010, p. 26). Percebe-se, então, que um texto é uma espécie de teia que resulta da leitura de outros. Pode-se pensar, a fim de ilustração, no texto como sendo um tapete construído a partir de vários tecidos recortados e costurados, que, juntos, formam o produto final.

É importante ressaltar que a autoria de um texto não está na pessoa física que o redige, mas no ato de juntar os textos lidos e formar um novo. Por isso, Galli (2010) refere-se à autoria como uma “função-sujeito”, já que a noção de autor não remete a um indivíduo, e sim, a uma função (função-autor). Segundo Coracini (2010, p. 29), “o autor é aquele que organiza o já-dito, inevitavelmente modificado, produzindo a ilusão de originalidade.” Sendo uma função no texto, ela se constrói ao mesmo tempo em que o texto se constrói, não há como separar o autor do texto e pensá-lo como um indivíduo.

Ainda de acordo com Coracini (2010), toda escrita é um gesto de escritura, ou seja, de inscrição do autor em seu texto. Sabe-se que esse conceito é raramente abordado no ensino escolar, pois os alunos são induzidos, através de perguntas sobre interpretação textual, a pensarem no autor como origem do dizer, como sujeito com intenções fixas, que escreve um texto com sentidos fixos. Outro exemplo a ser problematizado seria a distinção ou oposição entre textos objetivos e subjetivos (o primeiro, caracterizado pela descrição literal, sem opiniões e impressões do autor, e o segundo, marcado pela presença de opiniões). Porém, não é levado

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211 em conta nessa oposição, o fato de que, mesmo em um texto escrito de forma a passar um efeito

de objetividade, o processo de construção é subjetivo, trazendo à tona a questão da autoria. Do mesmo modo, as atividades de escrita, muitas vezes isoladas das de leitura, frequentemente priorizam aspectos sintáticos e gramaticais, sem permitir o desenvolvimento da autoria. Nesta análise, foi possível perceber fatores que, na escola, seriam considerados “errados”, pois, normalmente, como produto de atividades de leitura são avaliados conteúdos específicos, tais como a gramática, a resposta esperada a ser encontrada no texto, etc. Contudo, não foi com isso que estávamos preocupados, pois analisamos justamente o desenvolvimento da autoria na produção do texto ou a textualização de si na produção escrita.

Nesta seção, foram apresentados os conceitos de (re)leitura, (re)escrita e escritura, além de uma breve reflexão sobre a função-autor. Entendemos que a leitura é interpretação, tendo como base as condições de produção e circulação do que se lê. Ler é considerado um processo subjetivo, pois faz parte do processo de constituição do sujeito, da identidade, não há como distanciar um leitor de um texto. Dessa forma, ao (re)ler, é criado um novo texto que mantém um elo com o original, por isso a releitura, já que cada interpretação é baseada em vários fatores e processos. Do mesmo modo, escrever também é um ato subjetivo e ocorre a partir da ligação com outros textos anteriores, por isso a reescrita. A escritura, por fim, como afirma Coracini (2010), implica na inscrição daquele que (ex)põe suas ideias, seus sentimentos, seus afetos e desafetos, trata-se de falar de si no texto, mesmo sem perceber. Na seção seguinte, será feita uma breve reflexão sobre o texto que constitui o corpus de análise, os textos verboimagéticos.

Textos verboimagéticos como paisagens

Textos que envolvem escrita e imagem, ou seja, linguagem verbal e não-verbal, podem ser compreendidos, metaforicamente, como paisagem, de acordo com Vianna, Vaz e Santos (2018). Segundos os autores, uma paisagem textual seria o local onde diferentes relevos se encontram: “sozinhos, são apenas planícies, planaltos, depressões; juntos, compõem uma paisagem, estabelecendo relações entre eles”. (VIANNA, VAZ, SANTOS, 2018, p. 116). Essas relações, que também podem ser pensadas como um processo de hibridação apontariam direcionamentos, possibilitariam a compreensão, apesar de sabermos que cada interpretação se dá pela observação/participação do leitor da/na paisagem.

Podemos pensar em um texto verboimagético como sendo uma paisagem textual múltipla: vários elementos que tem os sentidos complementados, como imagens, infográficos, hiperlinks, etc. Cada elemento isolado pode ter um sentido diferente do que quando organizados e lidos em conjunto. Como afirma Pessoa (2011, p. 3), ao discorrer sobre tirinhas e charges, não há como desconsiderar que “o discurso verbal acrescenta informações ao discurso visual e vice-versa, e juntos constroem uma sequência narrativa capaz de prover, ao receptor, subsídios necessários para compreensão da história que se plasma nos quadrinhos”.

Atualmente, nas mídias sociais, textos verboimagéticos circulam com maior abrangência e têm mais adesão do público. Outro fator importante é que o cenário midiático constrói uma paisagem textual múltipla, pela diversidade de conteúdos, e, consequentemente, está atrelado à produção de (novas) formas de subjetividade nesse espaço. Nos encontros promovidos pelo projeto, percebemos que os textos verboimagéticos despertam maior interesse nos adolescentes, já que não são comumente abordados nas práticas escolares,

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212 institucionalizadas. Além disso, muitas vezes, por não serem vistos como textos, acabam tendo

maior adesão daqueles que não têm o hábito de leitura. Então, ao levarmos aos alunos animações, tirinhas, cartuns e charges, o envolvimento foi maior, pois não se deram conta de que estavam praticando uma leitura de forma agradável e sem cobranças.

Em dois encontros do Clube de Leitura, dividimos a turma em grupos e propusemos uma atividade de leitura e escrita envolvendo tirinhas e charges. No primeiro encontro, conceituamos linguagens verbal e não-verbal e, a partir disso, apresentamos aos grupos tirinhas com nove quadrinhos recortadas fora de ordem e sem falas. A atividade consistiu em, nos pequenos grupos, os alunos organizarem a tirinha e darem forma ao texto, incluindo as falas das personagens.

Desse modo, reitera-se que a produção escrita não se deu livremente, mas ligada à proposta que apresentamos. Mesmo sendo orientados, foi possível analisar a inserção de um “eu” externo ao personagem da narrativa.

A função-autor e o processo de constituição de identidades

Como objeto desta análise foi escolhida uma tirinha desenvolvida com base nos quadrinhos4 da personagem Mafalda (Fig. 1). A narrativa foi elaborada em um grupo composto por cinco participantes, porém, estamos tratando enquanto função-autor, e não uma pessoa em particular. A essa posição, neste estudo, nomearemos Ana5.

4 Numerados de um a nove (Q1, Q2...), na horizontal, da direita para a esquerda. 5 Os nomes aqui citados são fictícios.

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Figura 1 – Tirinha produzida pela estudante

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Transcrição6

Q1: “Sempre fui uma garota esperta que pensa sobre tudo, tinha curiosidades.”

Q2: “Um dia me deparei a pensar sobre todas as crises do mundo. Sobre todas as coisas tristes e apavorantes.”

Q3: “Quando resolveu ver televisão percebi que tudo era muito mais apavorante.”

Q4: “Mas então me chamou atenção, os problemas sobre o meio ambiente, toda poluição e desmatação.”

Q5: “Sem querer me choquei com os noticiários, pois tudo que está acontecendo era sobre o lugar onde vivo.” “...”

Q6: sem falas.

Q7: “Minha mãe então resolveu interferir, pois eu era nova e era muita informação para uma cabeça só. [breve espaço] Mafalda sai da frente dessa TV.”

Q8: “Mas eu sabia que precisava saber sobre aquilo.” “Pois era a realidade do mundo onde vivo.”

Q9: “Querendo ou não, mesmo sendo chocante era a realidade. E queria estar ciente disso.”

O primeiro aspecto a se observar é que as falas estão escritas em primeira pessoa. Marcas como “sempre fui uma garota muito esperta” (quadro 1), “eu sabia que precisava saber sobre aquilo” (quadro 8) e “me choquei com os noticiários” (quadro 5) possibilitam notar traços subjetivos na escrita. Se retomarmos, brevemente, as reflexões de Benveniste, percussor dos estudos sobre subjetividade na linguagem, podemos analisar a inserção dos pronomes pessoais no texto como marcas de subjetividade, tendo em vista que “a linguagem propõe formas “vazias” das quais cada locutor em exercício de discurso se apropria (...), definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um parceiro como tu” (BENVENISTE, 1988, p. 289). Porém, pode-se questionar quem realmente é esse “eu”. Podemos afirmar que existem dois, o “eu” personagem (Mafalda) e o “eu” autor (Ana). Uma marca dessa distinção é o trecho “Quando resolveu ver televisão percebi que tudo era muito mais apavorante” (quadro 3). A autora começa a frase com o verbo na terceira pessoa do singular, “resolveu”, e a continua, alterando o verbo seguinte, “percebi”, para a primeira pessoa. Conforme discorre Benveniste (1988), o uso da terceira pessoa caracteriza uma “enunciação não subjetiva”, pois se refere a um objeto [de que(m) se fala] colocado fora da alocução, passando a impressão de impessoalidade. O primeiro verbo (resolveu) sugere uma narração em terceira pessoa, em que o narrador falaria de um “ele”, Mafalda. A narrativa, então, desliza para a primeira pessoa (percebi), equívoco que produz sentidos que apontam para a inscrição.

Outro aspecto analisado é o fato de a autora inserir, marcadamente, que a personagem obteve as informações sobre os problemas do mundo pela televisão, sendo que, no desenho

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215 dado, a personagem ouve um rádio (“Quando resolveu ver televisão” [quadro 3]). Certamente,

vale lembrar que os jovens leitores participantes da atividade têm a faixa etária entre 14 e 18 anos, ou seja, é possível que não tenha havido um reconhecimento do aparelho pela leitura da imagem, mas pelo conhecimento prévio, sendo que a televisão está mais presente em seu dia a dia atualmente. Porém, por outro viés, podemos analisar que a televisão foi escolhida pelo fato de ser um dos maiores meios de circulação de notícias. Outro ponto ainda é o fato de que, nesse momento, o “eu” que fala desse aspecto não é o “eu” personagem, e sim, a imagem de um autor. Ainda cabe indagar o porquê da escolha de serem ouvidas pela autora-personagem informações ruins sobre o mundo em que está inserida. A expressão facial da personagem no desenho é de tristeza, convencionalmente, o que pode ter levado a essa conclusão, somado com o fato de notícias ruins circularem com mais frequência e terem alcance maior nos meios de comunicação.

A elaboração do texto verbal por Ana partiu da visualização do texto não-verbal. Nesse sentido, cabe problematizar os motivos pelos quais Ana “ignorou” o rádio, mas não os traços tristes no rosto da personagem, já que os dois aspectos aparecem recorrentemente durante a tirinha. Sabemos que é comum às pessoas repelir o que é diferente e aderir à aspectos com que se identifiquem. Retomando o conceito de escritura, entendemos que houve certa identificação com os traços recorrentes no rosto da Mafalda, por isso, esse fator não passou despercebido na hora da escrita.

Criticamente, pode-se perceber que a autora dispõe em sua narrativa aspectos que mostram interesse pela realidade em que está inserida, assim como certo espanto com essa realidade, como no trecho “eu era nova e era muita informação para um cabeça só” (quadro 7) e “querendo ou não, mesmo sendo chocante era a realidade. E queria estar ciente disso” (quadro 9). Apesar disso, também vemos outro aspecto. O trecho “minha mãe, então resolveu interferir, pois eu era nova (...)” (quadro 7), seguido da fala da suposta mãe “Mafalda sai da frente dessa TV” (quadro 7), sugere que, se a mãe aconselhasse a filha a não assistir mais à televisão, privando-a do acesso às informações, estaria protegendo-a, evitando preocupações.

Também pode ser analisado o simples fato de Ana ter escolhido dar à personagem aparentemente com mais idade, o papel de mãe. Em nenhum momento foi citado que aquela personagem era a mãe. É possível que tenha sido apenas pela semelhança entre os traços do desenho, mas também, podemos pensar que a autora vê na figura materna um papel autoritário, já que a personagem é repreendida pela mãe em “Mafalda sai da frente dessa TV”. Como a leitura e a escrita se dão sempre e somente em relação a outros textos, há a presença de um interdiscurso com os modos tradicionais de organizações sociais. Vimos, na primeira seção deste artigo, que para a realização da escrita e da leitura são mobilizados fios de textos anteriores, e, nesse trecho, podemos verificar a presença de uma relação com uma ideia convencionada. Culturalmente, a frase de ordem é atribuída à posição social da mãe. Percebe-se, nesse sentido, que a autora recorre ao modo de estruturação da sociedade em que se inscreve para a produção do texto, apresentando-o como um modo de leitura do social.

Para concluir este breve percurso analítico, observa-se o fato de que, em dois quadrinhos (3 e 7), os balões de fala estão saindo do rádio e da boca da “mãe”, respectivamente. Mesmo com esse elemento gráfico mostrando que não era a personagem falando no momento, a autora continua mantendo uma sequência narrativa atrelada ao “eu”. Isso mostra que foi ignorado “quem fala”, revelando mais traços de subjetividade. Esse fator contribui para a construção de uma narrativa com efeito autobiográfico, na medida em que a personagem Mafalda deixa de ser o elemento central da história, passando este a ser a autora-personagem. Dessa forma, podemos

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216 refletir sobre o processo subjetivo que é a escrita, pensando na construção de uma identidade

de um “eu” que (inter)age socialmente e interpreta a realidade em que está inserido. Se retomarmos Benveniste (1998), o “eu” de quem se fala é linguístico, viés que se distancia da perspectiva discursiva aqui abordada, segundo a qual não se trata de um “eu” (pessoa linguística), mas de uma função-autor ou função-sujeito que, de acordo com Galli (2010), funciona como um trabalho de (re)significação de dizeres.

Considerações finais

Com a análise de um texto verbal produzido por adolescentes a partir de um texto não verbal, pode-se concluir e reafirmar que escrever é inscrever-se e, além disso, que todo texto é produzido com base em outras leituras. É importante reiterar que escrever um texto é dá-lo a ler, expô-lo a diversas interpretações, esperadas ou não. É construir uma identidade, explicitar seus devaneios; trata-se da invenção, ficção de si (CORACINI, 2010).

Com este estudo, conseguimos refletir sobre a função-autor, pensando que o autor não é a pessoa física que redige o texto, mas uma posição-sujeito, espaço onde são construídas identidades, subjetividades, através de um processo subjetivo, de constituição de uma textualidade múltipla. A partir da interpretação de um texto verboimagético, percebemos a possibilidade que este apresenta não só de compreensão, mas também de crítica e possível ressignificação da realidade social, além de exposições de si. A proposta do projeto de extensão Compreender os letramentos locais para (in)formar novos leitores (incentivar os jovens estudantes a ler, partindo de práticas cotidianas) contribui, assim, para entender a produção de sentidos por parte dos estudantes e as representações por eles elaboradas, permitindo que o sujeito se inscreva e se identifique nos e com os textos.

REFERÊNCIAS

BENVENISTE, É. Da subjetividade na linguagem. In: BENVENISTE, É. Problemas de

linguística geral I. 2. ed. Tradução de Maria da Glória Novak e Luiza Neri. Campinas: Editora

da Unicamp; Pontes, 1988. p. 284-293. PDF.

CORACINI, M. J. Concepções de leitura na (pós-)modernidade. In: LIMA, Regina C. C. P (org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras, São João da Boa Vista, SP: Unifeob, 2005. p. 15-44.

CORACINI, M. J. Discurso e escrit(ur)a: entre a necessidade e a (im)possibilidade de ensinar.

In: CORACINI, Maria J. Escrit(ur)a de si e alteridade no espaço papel-tela: alfabetização,

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<http://www.scielo.br/pdf/rbla/2015nahead/1984-6398-rbla-20159047.pdf> Acesso em: 15 out. 2018.

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Recebido em 28/10/2018 Aprovado em 11/12/2018 Publicado em 21/12/2018

Referências

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