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DESAMPARO E IRREPRESENTABILIDADE: CONTRIBUIÇÃO DA TÉCNICA PROJETIVA NA PESQUISA SOBRE O TRAUMA PSÍQUICO
Ms. Maria Angélica Pereira do Prado¹, Prof. Dr. Avelino Luiz Rodrigues².
Laboratório Sujeito e Corpo (SUCOR) do Instituto de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP).
mariangelicaprado@gmail.com
RESUMO: O propósito deste estudo é apresentar a relevância da técnica projetiva na avaliação do
impacto psicológico da vivência hospitalar de indivíduos que sofreram complicações pós-operatórias; a pesquisa partiu do pressuposto de que o agravamento do quadro clínico, pela intercorrência, promove repercussões na esfera psíquica destes pacientes. Propôs-se a investigar, baseado em conceitos psicanalíticos, esta situação como desencadeadora do trauma psíquico, na medida em que o indivíduo se vê diante de uma situação imprevisível, que pode lhe causar transbordamento emocional – pelo estado de desamparo, impotência e risco da perda de sua integridade física -, que inibe a elaboração da vivencia, e promove, assim, uma desorganização psíquica. Assim, como instrumento de pesquisa qualitativa, além da entrevista, utilizou-se a forma reduzida do Teste de Apercepção Temática (Aperception Thematic Test) através da seleção de uma série de nove lâminas que possibilitassem um contato dos pesquisados a estímulos e permitissem uma análise mais profunda tanto do universo psíquico como do ambiente que o cerca. Os resultados da aplicação do TAT demonstraram um impacto emocional diante dos estímulos, desorganização emocional e dificuldade para expressar afetos e de representar (processo primário), aspectos que denotam uma vulnerabilidade psíquica e a acentuação dos sentimentos de desamparo, tristeza, angústia, temor da perda do objeto de amor e da morte. Desse modo, os resultados dos protocolos do TAT coincidem com a teoria psicanalítica, e, constatou-se que as complicações pós-operatórias podem levar os indivíduos a desenvolver o trauma psíquico e, consequentemente, efeitos pós-traumáticos.
Palavras-chave: técnica projetiva, psicanálise, trauma psíquico, complicações pós-operatória.
2 Na literatura psicanalítica, preservando as devidas diferenças de linhas de abordagem, a questão da experiência do nascimento e da primeira infância ocupa um papel fundamental quanto à sua importância ao se instaurar a subjetividade, e, esta, afetar o desenvolvimento psicológico do indivíduo. Parte-se, então, do termo hilflosigkeit utilizado por Freud, para uma compreensão maior da vivência traumática e pós-traumática, de modo que o plus, o muito além do esperado, pode remeter o indivíduo, dado a similaridade das duas vivências, aos primeiros momentos de vida: “o estado de impotência do lactante, que se encontra em total dependência de outrem para satisfazer suas necessidades, promove um estado de desamparo, e no adulto se torna o protótipo de uma situação traumática” (Laplanche e Pontalis, 2001, p.112).
Nesse sentido, ao enfrentar uma vivência de desamparo (hilflosigkeit), o indivíduo pode se deparar com o irrepresentável, devido ao encontro com os aspectos mais arcaicos de si mesmo, sendo a condição de desamparo correlativa a inexistência de garantias no diz respeito à linguagem, e o ego fica sob o efeito do aniquilamento (Pereira, 1999).
Assim, o indivíduo é lançado a uma vivência primeva, retornando a um estado narcísico. Como nos coloca Freud (1914) a libido tende a retornar para o próprio corpo quando o indivíduo se encontra atormentado por uma dor orgânica. Logo, o traumatismo pode levá-lo a um lugar de sensações, onde o mundo dos objetos desaparece e tudo é sensação sem objeto, que são revividos como símbolos mnêmicos (Knobloch, 1998). A isto, Ferenczi (1917) considerou como “narcisismo da doença”.
2. SOBRE A TÉCNICA PROJETIVA: UM ENFOQUE PSICANALÍTICO
Através dos estímulos, a utilização da técnica projetiva TAT (Aperception Thematic Test), impõe imagens que podem possibilitar um retorno aos aspectos mais arcaicos do psiquismo e, consequentemente, ao estágio originário desenvolvido por Piera Aulagnier. Neste estágio, que é equivalente ao narcisismo primário da teoria freudiana, o indivíduo está sob o postulado do autoengendramento, tem como afeto a sensação e a figura como representação.
Aulagnier (1979) considera-se que o desenvolvimento psíquico ocorre através da capacidade de metabolização do mundo externo (heterogêneo e não próprio) e transforma-o em algo homogêneo e próprio, instaurando, assim, a subjetividade. Este mecanismo possibilita o indivíduo de sair do estágio originário e evoluir para o estagio primário e, posteriormente, para o estágio secundário. No entanto, para a autora o desenvolvimento de um processo não implica na dissolução
3 do processo anterior, eles ficam convivendo num continuum, e o estágio originário permanece como um fundo representativo, de modo que uma experiência inédita passa por todo o processo representacional, desde o princípio da constituição psíquica.
A representação pictográfica, pertinente a este estágio, em um processo adulto refere-se ao fato da figurabilidade estar associada às memórias mnêmicas, e pode revelar o que o trauma tem de irrepresentável (Botella & Botella, 2003). Deste modo, as lembranças das percepções já experimentadas influem as percepções de estímulos atuais, e o indivíduo estrutura ou interpreta a sua realidade de acordo com suas próprias características (Silva, 2005).
3. METODOLOGIA
Considerou-se, para uma investigação longitudinal – vivencia hospitalar, três e seis meses depois - a importância de um intervalo mínimo de três meses para que se faça a reaplicação do teste projetivo, para uma maior eficácia da sua utilização.
Optou-se pela forma reduzida de aplicação do TAT, proposta por Bellack (1979), por considerar que a aplicação desta série era suficiente para atingir os conteúdos psicológicos do objeto de pesquisa a ser investigado (Werlang, 2000). Fez-se, portanto, uma seleção de nove lâminas que através dos estímulos apresentados possibilitasse a emersão dos conteúdos latentes: lâminas universais (prancha 1, 11, 15, 16 e 19), e para completar a série de nove lâminas optou-se pelas lâminas 8 RH, 3 RH e 12 RM; não se considerando nesta seleção a estrutura segundo Murray de divisão por sexo e idade do testado. Por exemplo, a prancha 3 RH que apesar de fazer parte da série masculina - cujo tema é o desespero, abandono e tristeza – ressalta-se que a mesma pode ser mais produtiva do que sua equivalente feminina (Murray, 2005).
4. RESULTADOS
Nos protocolos do TAT todos os pesquisados apresentaram um impacto emocional diante dos estímulos, com forte presença de exclamações, interjeições e interrogações. Em função do rico material que surgiu nas lâminas fez-se uma categorização dos resultados dos pesquisados nas três etapas. As cinco categorias provém da análise de conteúdo proposta por Murray (2004):
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TEMA ANSIEDADES NECESSIDADES AMBIENTE DEFESAS
Irrepresentabilidade Impotência Autodefender Ameaçador Identificação
Tristeza, depressão, Desamparo Proteção Adverso Identificação Projetiva
Perda do objeto de amor
Temores Apoio Difícil Projeção
Medo, pavor Vazio/solidão Aprovação Desfavorável Negação/recusa
Morte Medo de doença Desempenho Privação Isolamento
Desamparo, abandono
Perda do objeto de amor
Afiliação Exigente Repressão
Vazio Persecutoriedade Compreensão Punitivo Regressão
Agressividade Agressividade Protetor Dissociação
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da aplicação do TAT pode-se constatar que a vivência hospitalar de complicações pós-operatória promove uma desorganização emocional. A utilização da técnica projetiva auxiliou na confirmação do pressuposto da pesquisa de que trauma decorrente do impacto psíquico remete-os a uma vivência própria do processo primário, com dificuldade de expressar afetremete-os e de representar diante dos estímulos. Havendo, por parte deles, poucos recursos emocionais em tal vivência para se distanciar dos estímulos, sendo a identificação, a identificação projetiva e a negação os mecanismos mais utilizados pelos mesmos.
A vulnerabilidade física promoveu uma vulnerabilidade psíquica e os sentimentos de perda, tristeza, angústia e decepção foi uma constante durante a investigação longitudinal. Constatou-se, portanto, uma vivencia de desamparo, impotência e vazio, resultantes das ansiedades referentes a danos físicos, perda do objeto e temor da morte.
Assim, é possível considerar que o desamparo é o entrelaçamento da angústia, proveniente da impotência, onde o risco de perda da integridade física e a iminência de morte pode levar o indivíduo a um desamparo primordial por se ver perdido num “lugar” sem possibilidade de encontrar referências, isto é, sem contornos representacionais que lhe permitam ter um ponto de apoio próprio para emergir desse estado.
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6. REFERÊNCIAS
Aulagnier, P. (1979) A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado. Trad. Maria Clara Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago.
Botella, C e Botella, S. (2003) La figurabilidad psíquica: figuras y paradigma. Buenos Aires: Amorrortu.
Ferenczi, S. (1917) As patoneuroses. In Birman, J. Sàndor Ferenczi, escritos psicanalíticos. Rio de Janeiro: Taurus Editora.
Freud, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Eletrônica das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
Knoblock, F. (1998) O tempo do traumático. São Paulo: EDUC.
Laplanche & Pontalis (2001) Vocabulário da Psicanálise. 4ªed. São Paulo: Martins Fontes.
Murray, H. e et al. (2005) T.A.T.: Teste de Apercepção Temática. Trad. e Adaptação Maria Cecília V. Silva. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Pereira, M.E.C. (1999) Pânico e desamparo. São Paulo: Editora Escuta,. (Biblioteca de psicopatologia fundamental).
Silva, M.C.V.M. (1989) TAT Aplicação e interpretação do Teste de Apercepção Temática. São Paulo: EPU.
Werlang, B. G. (2000) TAT, conforme o modelo de Bellak. In Cunha, J. A. et at. Psicodiagnóstico –V. 5ª. ed. revisada e ampliada. Porto Alegre: Artmed.