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Paul Connerton Como as Sociedades Recordam (1)

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Academic year: 2021

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O PASSADO NO PRESENTE

Cotecção coordenada por José Manuel Sobral

OUTROS TÍTULOS

Carole Fink, Marc Bhch: Uma Vida na História Jack Goody, Cozinha, Culinária e Classes ]ack Goody, Família e Casamento na Europa Robert Rowland, População, Família, Sociedade Augusto Santos Silva, Palavras para Um País

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PAUL CONNERTON

COMO AS SOCIEDADES

RECORDAM

TRADUÇÃO DE MARIA MANUELA ROCHA REVISÃO TÉCNICA DE JOSÉ MANUEL SOBRAL

SEGUNDA EDIÇÃO

CELTA EDITORA OEIRAS / 1999

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X

í

Título original: How Societies Remember © 1989, Cambridge University Press

Paul Connerton

Como as Sociedades Recordam

Primeira edição portuguesa: Abril de 1993 Tiragem: 1000 exemplares

Segunda edição portuguesa: Janeiro de 1999 Tiragem: 1000 exemplares

Tradução de ingês: Maria Manuela Rocha Revisão técnica: José Manuel Sobral Revisão de texto: G. Ayala Monteiro • ISBN: 972-774-020-0

Edição original: ISBN 0-521-27093-6, Cambridge University Press, Cambridge Depósito legal: 129806/98 .

Composição: Celta Editora, em caracteres Palatino, corpo 10 Capa: Mário Vaz / Celta Editora

Fotólitos, impresssão e acabamentos: Tipografia Lousanense, Lda.

Reservados todos os direitos para Portugal, de acordo com a legislação em vigor,

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ÍNDICE Agradecimentos vii Introdução 1 J A memória social 7 l 2 Cerimônias comemorativas 47 3 Práticas corporais 83 v

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AGRADECIMENTOS

Desejo agradecer ao director e ao director-adjunto do Centro de Investigação de Humanidades da Universidade Nacional da Austrália pelo convite de professor visitante e pela disponibilização de condições indispensáveis à realização de parte do trabalho que conduziu a este livro. Devo um agrade-cimento muito especial a Geoffrey Hawthorn, pelo incansável apoio a este 2 projecto desde o seu início, com objectivos bastante diferentes do resultado final, até à sua publicação, e a Russell Keat, com quem discuti os pormenores do trabalho na maioria das fases por que este passou. O livro que agora se publica beneficiou dos comentários críticos que ambos fizeram a uma versão anterior, e também dos de Gregory Blue, Nicholas Boyle, Peter Edwards, Ritchie Robertson e Elisabeth Stopp. Estou profundamente grato a todos eles . por me ajudarem a dizer o que queria com um pouco mais de clareza.

Finalmente, desejo agradecer a Bobbie Coe e a Joyce Leverett, que, com alegria e eficiência, prepararam este manuscrito para publicação.

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INTRODUÇÃO

Pensamos geralmente na memória como uma faculdade individual. Há, todavia, um certo número de pensadores que coincidem em acreditar que existe algo como uma memória colectiva ou social.1 Eu partilho essa

suposi-ção, mas discordo quanto a saber onde é que este fenômeno, a memória »social, se pode mostrar mais crucialmente operativo.

2 Por isso, a questão a que se dedica este livro é a seguinte: como se transmite e conserva a memória dos grupos? O termo grupo é aqui utilizado num sentido generosamente lato e com alguma flexibilidade de significado, de forma a incluir tanto as pequenas sociedades, em que todos se conhecem (tais como as aldeias e os clubes), como as sociedades territorialmente exten-sas, em que a maior parte dos seus membros não se pode conhecer pessoal-mente (tais como os estados-nação e as religiões mundiais).

Os leitores poderiam esperar, com alguma razão, que a questão assim colocada — como é que a memória dos grupos é transmitida e conservada? — pudesse levar à consideração quer da memória social como dimensão do poder político, quer dos elementos inconscientes existentes na memória social, ou de ambas as coisas. Nas páginas seguintes esses temas são ocasio-nalmente referidos, mas evita-se propositadamente a sua abordagem de uma forma explícita e sistemática. A importância do estudo dessas questões,

1 Em especial na obra de Maurice Halbwachs. Ver M. Halbwachs, Les cadres sociaux de Ia

mémoire (Paris, 1925); La mémoire collective (Paris, 1950); La topographie légendaire dcs Evangiles cn Terre Sainte (Paris, 1941); "La mémoire collective chez les musiciens", Rroue Philosophique, 127 (1939), pp. 136-65. Uma série de estudos mais recentes deve ser

mencionada, em relação com isto: E. Shils, Tradition (Londres, 1981); Z. Bauman, Memories

of Class (Londres, 1982); E. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), The Jnvention of Tradition

("Cambridge, 1983); P. Nora, Les lieux de k mémoire {Paris, 1984); R. Boyers, Atroáty and

Amnésia. The Political Novel since 1945 (Oxford, 1985); B. A. Smith, Politics and Rcmembrance

(Prínceton, 1985); P Wright, On Living in an Old Country (Londres, 1985); D. Lowenthal,

The Pasi is a Foreign Country (Cambridge, 1985); F. Haug, Female Sexitalization: A Collective Work of Memory (trad. E. Carter, Londres, 1987).

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o C O M O AS S O C I E D A D E S R E C O R D A M

quanto a mim, diticilmente pode ser posta em causa, porque não há dúvida de que o controlo da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia do poder. De tal modo que o armazenamento permitido pelas actuais tecnologias da informação e, em conseqüência, a organização da memória colectiva através da utilização de máquinas de processamento de dados, por exemplo, não é apenas uma questão técnica, mas antes uma questão que se relaciona directamente com a da legitimação, sendo o controlo e a propriedade da informação um problema político decisivo.2 Mais uma

vez, o facto de já não acreditarmos nos grandes "sujeitos" da história — o proletariado, o partido, o Ocidente — significa não o desaparecimento destas grandes metanarrativas, mas antes a sua duradoura eficácia inconsciente, como formas de pensar e de agir na nossa realidade contemporânea: a sua persistência, por outras palavras, como memórias colectivas inconscientes.3

Se nem a dimensão política da memória, nem a do inconsciente são explicitamente abordadas neste livro, tal não é devido, portanto, a quaisquer dúvidas que o autor alimente quanto à sua importância, mas porque se avança aqui uma proposta diferente, que não é incompatível com a manu-tenção das posições atrás expostas, antes é susceptível de investigação inde-pendente. O objectivo dessa investigação pode, talvez, explicar-se melhor registando, à partida, dois pontos que são considerados axiomáticos. Um diz respeito à memória em geral, o outro à memória social em particular.

\"o que se refere à memória em geral, podemos observar que a nossa experiência do presente depende em grande medida do nosso conhecimento do passado. Entendemos o mundo presente num contexto que se liga causal-mente a acontecimentos e a objectos do passado e que, portanto, toma como referência acontecimentos e objectos que não estamos a viver no presente. E viveremos o nosso presente de forma diferente de acordo com os diferentes passados com que podemos relacioná-lo. Daí a dificuldade de extrair o nosso passado do nosso presente: não só porque os factores presentes tendem a influenciar — alguns diriam mesmo distorcer — as nossas recordações do passado, mas também porque os factores passados tendem a influenciar, ou a distorcer, a nossa vivência do presente. Este processo, deve sublinhar-se, penetra nos mais ínfimos e quotidianos pormenores das nossas vidas. E assim que Proust nos mostra como as recordações que Mareei tinha do rosto de Swann estavam sobrecarregadas de memórias adicionais, pois o Swann que, na juventude de Mareei, se tornara uma figura familiar em todos os 2 L"ma importante correcção do discurso politicamente depurador do pós-industrialismo

pode encontrar-se, por exemplo, nas obras de H. Schiller, Xiass Media and American Empire [Sova Iorque, 1969); The Mind Managers (Boston, 1973); Communkaiion and Cultural D^iinaticn í"\ova Iorque, 1977); Informal icm and the Crisis Economy (Oxford, 1986). Ver

também a obra de A. Mattel art, Multinaiional Corporations and the Centrei ofdilture (trad. M Chanan, Bríghton, 1979).

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I N T R O D U Ç Ã O 3

clubes então na moda, era muito diferente do Swann inventado pela tia-avó de Mareei — e assim ''visto", portanto, por Mareei — quando aparecia, à noite, em Combray. Swann, nessa época tão desejado em qualquer outro lugar, era tratado pela tia-avó de Mareei com a rude simplicidade de uma criança que brinca com uma peça de coleccionador sem maior circunspecção do que se se tratasse de um objecto de pouco valor. Do Swann que construí-ram para si próprios, os familiares de Mareei haviam excluído, na sua ignorância, muitos pormenores da vida que então levava no mundo elegante, pormenores esses que faziam com que outras pessoas, quando o encontra-vam, vissem todos os encantos entesourados no seu rosto. Neste rosto, despojado de todo o fascínio, a família de Mareei implantou um resíduo duradouro construído a partir das horas de convívio e de lazer que haviam passado juntos. O rosto de Swann, "o seu invólucro corporal", fora tão bem preenchido com este resíduo de reminiscência que "o seu Swann especial" se havia tornado, para a família de Mareei, numa "criatura viva e perfeita". Deste modo, mesmo um acto aparentemente tão simples como o que atrás descrevemos — "ver alguém conhecido" — é, em certa medida, e como nos lembra Proust, um processo intelectual, pois guarnecemos o contorno físico . (da pessoa que olhamos com todas as idéias que já formámos a seu respeito

2 e, no retrato global que dela compomos nos nossos espíritos, essas idéias

assumem o lugar mais importante. Por fim, "elas acabam por preencher tão completamente a curva das suas faces, por seguir de forma tão exacta a linha do seu nariz, misturam-se tão harmoniosamente com o som da sua voz, como se esta não fosse mais do que um invólucro transparente, que, cada vez que vemos o rosto ou ouvimos a voz, são essas idéias que nós reconhecemos e ouvimos".4

No que diz respeito, em particular, à memória social, constatamos que as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente. É uma regra implícita pressupor uma memória partilhada entre os participan-tes em qualquer ordem social. Se as memórias que têm do passado da sociedade divergem, os seus membros não podem partilhar experiências ou opiniões. Esse efeito observa-se, talvez de forma mais evidente, quando a comunicação entre gerações é dificultada por diferentes conjuntos de memó-rias. De geração em geração, conjuntos diversos de memórias, freqüentemen-te sob a forma de narrativas de fundo implícitas, opor-se-ão uns aos outros, de tal modo que, embora as diferentes gerações estejam fisicamente presen-tes, umas perante as outras, num determinado cenário, podem permanecer mental e emocionalmente isoladas, como se as memórias de uma geração estivessem, por assim dizer, irremediavelmente encerradas nos cérebros e nos corpos dos indivíduos dessa geração. Proust mostra-nos o

desconcertan-4 M. Proust, Remcmbrnmy o/Tíiings Pnst (trad. C. K. ScottMoncrieíf oT. Kilmnriin, Londres,

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4 C O M O AS S O C I E D A D E S R E C O R D A M

te efeito de alienação, a sensação de choque mental, que resulta da intersecção de memórias incomensuráveis. Mostra-o na experiência de Mareei, quando este regressa à sociedade elegante após uma longa ausência e tenta, através da duquesa de Guermantes, estabelecer conversa com uma jovem americana que ouvira falar muito dele e era considerada uma das mulheres mais elegantes de então, mas cujo nome Mareei desconhecia inteiramente. Con-versar com ela foi agradável, mas tornou-se difícil, para Mareei, pela novi-dade dos nomes da maior parte das pessoas de quem ela falava, embora fossem exactamente aquelas que na altura formavam o núcleo da sociedade elegante. E o contrário era igualmente verdade: a seu pedido Mareei contou muitas historietas do passado, mas muitos dos nomes por ele pronunciados nada significavam para ela, jamais ouvira falar neles. Isto não se devia apenas ao facto de ela ser jovem. Como não estava há muito tempo em França, onde, quando chegara, não conhecia ninguém, só começara a mover-se na socieda-de elegante alguns anos socieda-depois socieda-de Mareei se haver retirado socieda-dela. A conversa era ininteligível porque havia um intervalo de vinte e cinco anos entre a vivência dos dois no mesmo m u n d o social. Por isso, embora no seu discurso normal ela e Mareei utilizassem a mesma linguagem, quando se tratava de nomes — ou seja, quando se tratava de efectuar uma tentativa de permuta de memórias socialmente legitimada — os seus vocabulários

nada tinham em comum.5

Podemos afirmar, deste modo, que as nossas experiências do presente dependem em grande medida do conhecimento que temos do passado e que as nossas imagens desse passado servem normalmente para legitimar a ordem social presente. E, contudo, estas questões, ainda que verdadeiras, são insuficientes quando colocadas desta forma. É que as imagens do passado e o conhecimento dele recolhido são, conforme pretendo demonstrar, transmi-tidos e conservados através de performances (mais ou menos rituais).6

- Procurando demonstrar aquela asserção, começarei por considerar um exemplo paradoxal: o da Revolução Francesa. É um caso paradoxal porque, se há momento em que não se esperaria encontrar a memória social em acção, esse deve ser seguramente o das grandes revoluções. Mas uma coisa que tende a ser esquecida a respeito da Revolução Francesa é que, como todos os começos, envolveu recordação. Outra é o ter envolvido também uma deca-pitação e uma alteração no vestuário usado pelas pessoas. Creio que estes factos estão relacionadas e que aquilo que podemos dizer sobre essa relação é generalizável. Creio, além disso, que a resposta para a questão acima colocada — como é transmitida e conservada a memória dos grupos — exige

5 M. Proust, Remembrance ofThings Past, vol. III, pp. 1007-9.

6 Optou-se pelo uso de "performance", em lugar do vocábulo "desempenho", para não se perder a relação daquele primeiro termo com os de "performativo" e "performatividade", estrangeirismos que não têm equivalente aceitável na língua portuguesa. {N. do E.)

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I N T R O D U Ç Ã O 5

que se reúnam essas duas coisas (recordação e corpos) de uma maneira em que poderíamos não ter pensado antes.

Poderíamos não o ter pensado porque a recordação, ao ser tratada como actividade cultural e não individual, tendeu a ser olhada como a lembrança de uma tradição cultural, e tal tradição, por sua vez, tendeu a ser pensada como algo inscrito. Mais de dois milênios — na realidade, toda a história da actividade hermenêutica explícita — pesam a favor deste pressuposto. E verdade que, há já muito tempo, a unidade da hermanêutica tem sido vista como residindo na unidade dum procedimento que é, em princípio, aplicável a qualquer objecto e a qtialquer prática capaz de transportar sentido. Textos legais e teológicos, obras de arte, actos rituais, expressões corporais — todos eles são objectos passíveis de uma actividade interpretativa. Contudo, em-bora as práticas corporais estejam, em princípio, incluídas como objectos possíveis da investigação hermenêutica, na prática a hermenêutica tomou a inscrição como seu objecto privilegiado. Nasceu a partir dela e, ao longo da sua história, regressou constantemente à relação com a tradição que se focaliza na transmissão do que ficou inscrito nos textos, ou, pelo menos, nos testemunhos documentais que se considera terem um estatuto comparável ao dos textos por serem constituídos à imagem e semelhança de um texto. 2 É contra este contexto antitético que vou procurar explicar como as

práticas de tipo não inscrito são transmitidas na tradição e como tradição. O leitor deve, talvez, ser esclarecido acerca do método de abordagem utilizado para este fim. Aquilo que se segue é exposto menos sob a forma de tratado do que na de uma investigação analítica. O método é cumulativo. Apesar da variedade dos tópicos em discussão, existe entre eles uma relação lógica estreita, que implicou um estreitar progressivo da focalização. Argumentarei que, se a memória social existe, é provável que a encontremos nas cerimônias comemorativas, mas estas provam sê-lo apenas na medida em que são performativas. A performatividade não pode ser pensada sem um conceito de hábito, e este não pode ser pensado sem uma noção de automatismos corporais. Deste modo, procurarei mostrar que existe uma inércia nas estru-turas sociais que não é explicada de forma adequada por qualquer das ortodoxias correntes sobre o que é uma estrutura social.

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Capítulo 1

A MEMÓRIA SOCIAL

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Todos os inícios contêm um elemento de recordação, e isto acontece princi-palmente quando um grupo social faz um esforço concertado para começar . , de um ponto de partida inteiramente novo. Existe algo de completamente 2 arbitrário na própria natureza de qualquer início assim intentado. O início

não tem absolutamente nada a que agarrar-se, é como se saísse do nada. Por um momento, o momento do início, tudo se passa como se os iniciadores tivessem abolido a própria seqüência da temporalidade e houvessem sido expulsos da continuidade da ordem temporal. Na verdade, os protagonistas registam muitas vezes o sentimento que têm deste facto, inaugurando um novo calendário. Mas o que é totalmente novo é inconcebível. Não é só por ser muito difícil começar de um ponto de partida inteiramente novo, por existirem inúmeros hábitos velhos e lealdades que inibem a substituição de um empreendimento antigo e já estabelecido por um novo. Mais importante ainda é o facto de, em todas as formas de conhecimento, fundamentarmos sempre as nossas experiências particulares num contexto anterior para ga-rantirmos que são de todo inteligíveis, e que, antes de qualquer experiência isolada, a nossa mente se encontra já predisposta com uma estrutura de contornos, de formas conhecidas de objectos já experimentados. Compreen-der um objecto ou agir sobre ele é localizá-lo neste sistema de expectativas. O mundo do inteligível, definido em termos de experiência temporal, é um corpo organizado de expectativas baseadas na recordação.

A\O tentar conceber como seria um início histórico, a imaginação mo-derna tem regressado sistematicamente aos acontecimentos da Revolução Francesa. Esta ruptura histórica, mais do que qualquer outra, assumiu para nós o estatuto de mito moderno, apossando-se desse estatuto muito rapida-mente. Toda a reflexão sobre a história, no continente europeu, durante o século XIX, olha para trás, para o momento dessa revolução em que o próprio

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^ C O M O A S S O C I ti U A D li S R E C O R D A M

significado de revolução se transformou — ao seu uso para designar um

movimento circular substituiu-se o da identificação com o advento do novo.1

Aqueles que vieram depois olhavam o presente como um tempo de queda na nostalgia de uma era pós-heróica, ou como um estado de crise permanente — a antecipação, por uns esperada e por outros temida, de uma insurreição recorrente.2 O imaginário revolucionário estendeu-se para além do coração

da Europa. Vivemos o mito da Revolução desde finais do século XIX, muito à semelhança da forma como as primeiras gerações cristãs viveram o mito do fim do mundo. Já em 1798, Kant comentava que um fenômeno desta espécie jamais poderia ser esquecido.

Contudo, este início, que nos proporciona o nosso mito de um início histórico, serve também, e de forma ainda mais completa, para pôr em relevo o momento de recordação que existe em todos os começos aparen-tes. O trabalho de recolecção operava de muitas formas, explícita e impli-citamente, e a níveis muito diferentes de conhecimento. Mas o que

tenciono destacar aqui, para um comentário específico, é o modo como a recordação actuou em duas áreas distintas da actividade social: nas

ceri-mônias comemorativas e nas práticas corporais.

2

0 início que se buscava no julgamento e execução de Luís XVI de França ilustra este processo de uma forma particularmente dramática. Os líderes da Revolução que julgaram Luís enfrentavam um problema que não se colocava apenas a eles. Era um problema com que se defronta qualquer regime — o que foi inaugurado pelos julgamentos de Nuremberga, por exemplo — que procure estabelecer, de forma definitiva, a instauração total e completa de uma nova ordem social. O regicídio de 1793 pode ser visto como exemplo de um fenômeno mais geral: o julgamento por decreto feito por um regime substituto, julgamento esse que é diferente de qualquer outro. Pertence a uma espécie diversa dos que têm lugar sob a autoridade de um regime há muito estabelecido. Não é como aqueles actos de justiça que reforçam um sistema de retribuição aplicando uma vez mais os seus princípios fundamentais, ou modificando os pormenores da sua aplicação. Não é um elo mais numa seqüência de determinações através das quais um regime adquire maior solidez ou avança para a desintegração final. Aqueles que aderem mais

1 Os termos desta transformação são expostos no artigo de R. Koselleck, "Der neuzeitliche Revolutionsbegriff ais geschichtliche Kategorie", Studium Generale, 22 (1969), pp. 825-38. 2 Ver T. Schieder, "Das Problem der Revolution im 19. Jahrhundert", Historische Zeitschrift,

170 (1950), pp. 233-71; G. Steiner, "The Great Ennui", in In Bluebeard's Castle: Some Notes

Towards the Redcfinitkm ofCulture (Londres, 1971), pp. 11-27.

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A. M E M Ó R I A S O C I A L 9

resolutamente aos princípios do novo regime e os que sofreram mais severa-t mente às mãos do velho não desejam apenas a vingança de ofensas particu-lares e uma rectificação de Lniquidades específicas — o que buscam é algo de decisivo, em que a luta persistente entre a nova ordem e a antiga acabou definitivamente, porque a legitimidade dos vencedores ficará validada de uma vez por todas. É necessário erguer-se uma barreira contra a transgressão futura. O presente deve ser separado daquilo que o precedeu por um acto de demarcação inequívoco. O julgamento feito por um regime substituto é semelhante à construção de um muro, indiscutível e permanente, entre os novos começos e a velha tirania. Julgar as práticas do regime anterior é o acto . constitutivo da nova ordem.4

O julgamento e a execução de Luís XVI não foram o assassínio de um governante, mas a revogação de um princípio de governo: o princípio segun-do o qual o poder dinástico era o único sistema político imaginável. Na verdade, anteriormente fora possível enquadrar o regicídio nos parâmetros desse sistema. Durante séculos, os reis haviam sido mortos por candidatos a reis, por assassinos privados a soldo de candidatos a reis, ou, mais raramente, por fanáticos religiosos como os que assassinaram Henrique III e Henrique IV da França. Mas, fosse qual fosse o destino que pudesse atingir os reis como ^ indivíduos, o princípio da sucessão dinástica permanecia intacto. Quer se

devessem a causas naturais, quer fossem o resultado de assassínios, a morte dos reis e a coroação dos seus sucessores eram episódios compreensíveis no

continuum da linhagem. Por que razão o assassínio dos reis deixava a

insti-tuição da realeza intacta? Porque, como Camus afirmou sucintamente, ne-nhum dos assassinos imaginou alguma vez que o trono pudesse ficar vazio.5

Nenhum dos novos governantes, por outras palavras, pensara jamais ser do seu interesse pôr a instituição da monarquia em causa. Uma vez coroados, procuravam preservar para si próprios a autoridade real da pessoa cuja morte haviam instigado. Esta forma de regicídio deixava o sistema dinástico incontestado: os marcos temporais eram ainda as fases da ordem dinástica. A morte de um rei registava uma quebra nesse tempo público: entre um rei e o seguinte o tempo parava. Havia um hiato — um interregno — que as pessoas procuravam fosse o mais breve possível. Quando Luís XVIII de França datou a sua ascensão ao trono a partir da execução do seu predecessor, permanecia fiel a este princípio dinástico. Concebia o regicídio tal como este sempre foi concebível, no contexto da soberania dinástica, um contexto em que os assassínios podiam sempre ajustar-se como episódios na narrativa da continuidade dinástica. Um contexto, na verdade, em que o assassínio não

4 Sobre o julgamento por decreto realizado pelos regimes substitutos, ver O. Kirchhoimer,

Political justice: The lhe of Legal Procedure for Política! Ends (Prínceton, 1961), pp. 304

e seguintes.

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10 C O M ti AS S O C I E D A D E S R E C O R D A M

era tanto uma ameaça ao poder da dinastia, como uma homenagem implícita a este. O assassínio deixava intacto o princípio da soberania dinástica, porque deixava o rei inviolado, enquanto pessoa pública.

Toda a essência do julgamento e da execução de Luís residiu na sua publicidade cerimonial. Foi isso que o matou na sua capacidade pública, ao recusar-lhe o seu estatuto de rei. O princípio dinástico foi destruído não por assassínio, nem por prisão ou desterro, mas sim pela condenação à morte de Luís, como encarnação da realeza, feita de tal maneira que a rejeição pública oficial da instituição da monarquia ficou expressa e testemunhada de forma indubitável.b Os revolucionários precisavam de encontrar um qualquer

pro-cesso ritual através do qual a aura de inviolabilidade que cercava a realeza pudesse ser explicitamente repudiada. Deste modo, aquilo que repudiavam não era só uma instituição,-mas a teologia política que a legitimava.7 Essa

teologia política, a crença de que o rei unia na sua pessoa um corpo natural, como indivíduo, e um corpo representativo, como rei, era expressa muito claramente na cerimônia da coroação. Exprimia-se não só no acto da coroa-ção, mas também na unção realizada por um bispo da Igreja coma frase, de suprema importância, que anunciava que o rei ungido governava "pela graça de Deus", dupla componente que conferia ao ritual da coroação o seu caracter %

quase sacramentai. Durante mil anos os reis da França haviam recebido nas cabeças, no acto da coroação, não só as coroas como o óleo sagrado, à maneira dos sucessores dos apóstolos. Tal acto transformava os inimigos da realeza em pessoas abertamente sacrílegas. Foi este o efeito que o regicídio público de Luís procurou contrariar. Residia aqui o elemento oximorónico deste regicídio: a Luís seria feito um funeral régio para acabar com todos os funerais régios. A cerimônia do seu julgamento e execução destinava-se a exorcizar a memória de uma cerimônia anterior. A cabeça ungida foi decapi-tada e o ritual da coroação cerimonialmente revogado. Não foi só o corpo natural do rei que foi morto, mas também — e sobretudo — o seu corpo político. Neste processo, os actos dos revolucionários apropriaram-se da linguagem do sagrado que, durante tanto tempo, o poder dinástico tinha usurpado como sua. A vítima compreendeu claramente que este era um acontecimento decisivo para a morte da teologia política. Luís XVI, à seme-lhança de Carlos I de Inglaterra, identificou-se explicitamente com o Deus morto ao falar da sua derrota como Paixão.8 Os procedimentos usados no

6 Sobre a distinção entre o significado do assassínio privado.e o da execução pública dos reis, ver M. Walzer, Regiáde and Rroolution (Cambridge, 1974).

7 Sobre a teologia política da realeza, ver, em especial, E. H. Kantorowicz, The Kings Two

Bodies: A Study in Medieval Política} Tfieologx/ (Prínceton, 1957); M. Bloch, The Royal Tonch: Sacred Monarchy and Scrofula in England and Trance (trad. J. E. Anderson, Londres, 1973);

L. Hunt, Politics, Culturc, and Class in the Prench Rcvolution (Berkeley, 1984). Ver também F. Kern, Kingship and Lazv in the Middle Ages (Nova Iorque, 1970); M. Waker, Regiáde and

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A M E M Ó R I A S O C I A L 11

julgamento e execução destruíram cerimonialmente o sentimento de sacrilé-. gio que havia rodeado o assassínio dos reissacrilé-. Um rito revogou o outrosacrilé-.

Um rito que revoga uma instituição só faz sentido se evocar, de forma invertida, os outros ritos que até então a confirmavam. O fim ritual da realeza era um ajuste de contas e uma exposição daquilo que se repudiava. A rejeição do princípio do poder dinástico — neste caso a encenação ritual dessa rejeição — continuava a ser uma exposição e uma evocação do poder dinás-tico agora inútil. Este problema é semelhante ao que se levanta quanto à questão da instituição da propriedade. Algumas pessoas roubam as outras, defraudam-nas, ou apoderam-se da sua produção. Podem adquirir de todas . estas maneiras haveres por meios que não são sancionados pelos princípios de justiça dominantes, no que diz respeito à propriedade. A existência de uma injustiça passada e a memória duradoura dessa injustiça levantam a questão da rectificação das injustiças. Na verdade, se a injustiça passada configurou a estrutura das disposições actuais de uma sociedade quanto à posse da propriedade nas suas várias formas — ou, analogamente, se se considera que a injustiça passada configurava a estrutura das disposições que fundamen-tam a soberania duma sociedade —, coloca-se a questão de se saber o que se deveria fazer, se é que alguma coisa deveria ser feita, para rectificar as 2 injustiças. Que espécie de responsabilidade criminal e que obrigações têm os

autores da injustiça passada para com aqueles cuja posição é pior do que teria sido se a injustiça não tivesse sido perpetrada? Até onde se deve recuar no levantamento da memória da injustiça passada, na limpeza do registo histó-rico das acções ilegítimas? Construir uma barreira entre o novo começo e a velha tirania é recordar a velha tirania.

Os estilos de vestuário característicos do período revolucionário cele-bravam, se não definitivamente um começo, pelo menos uma libertação temporária das práticas da ordem estabelecida, marcaram a tentativa de estabelecer um novo conjunto de práticas corporais típicas. Os participantes na revolução exibiam uma forma de comportamento que não era um seu exclusivo. Esse comportamento encontra-se em todos os carnavais que mar-cam a suspensão da posição hierárquica, dos privilégios, das normas e das proibições.0 Durante o período revolucionário, os estilos de vestuário, em

Paris, passaram por duas fases. Na primeira, que dominou os anos de 1791-94, as roupas transformaram-se em uniformes. A culotte de corte simples e a ausência de adornos simbolizavam o desejo de eliminar barreiras sociais na luta pela igualdade: ao tornarem o corpo neutro, os cidadãos deviam ficar üvres para se relacionar uns com os outros sem a intromissão das diferenças

8 Ver Walzer, Regicitlr mui Rcvolution, p. 1S.

9 Sobre o Carnaval, ver M. Bakhtin, Rtibelmz mui his Worírf (trad. H. Iswolsky, Camhrid^o,

Mass., 1%8), pp- 196-277; e, para uma exploração mais recente dos temas sugeridos por Bakhtin, R Stailybrasse A. White, Hie Politirsmul PacticsofTmiwcwoii (Londres, 1086).

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12 C O M O AS S O C I E D A D E S R E C O R D A M

de condição social. Durante a segunda fase, que dominou os anos do Termi-dor, a partir de 1795, a liberdade no vestir veio a significar livre movimento corporal. As pessoas começaram, então, a vestir-se como que para exibir o corpo uns aos outros, na rua, e para expor os movimentos do corpo. A

merveilleuse, a mulher da moda, usava panos de musselina leve, que

revela-vam generosamente a forma dos seios e não cobriam nem os braços nem as pernas abaixo dos joelhos, enquanto a musselina permitia ver o movimento dos membros quando o corpo mudava de posição. O seu correspondente masculino, o incroycible, usava um fato em forma de cone com a extremidade virada para o chão; calças muito justas encimadas por casacos curtos que

terminavam em colarinhos altos e exagerados, gravatas vistosamente colori-das e cabelo desgrenhado ou cortado rente ao modo dos escravos romanos. Enquanto o estilo da merveilleuse significava uma libertação da moda, o do

incroycible pretendia ser uma paródia ao alfaiate. O incroyable parodiava os

Macaronis, alfaiates da moda na década de 1750, usando lornhões e andando com passos amaneirados. Este foi um momento na história de Paris em que as regras inibitórias estiveram suspensas, em que, tal como em qualquer Carnaval, as pessoas agiam em conformidade com a sua percepção de que a autoridade estabelecida era, na realidade, uma questão de prescrição local.10

Se os revolucionários rejeitavam as práticas de comportamento corpo-ral dominantes sob o Antigo Regime, era porque sabiam que existe um hábito de servidão incorporado no comportamento do grupo servil através dos seus próprios hábitos de comportamento corporal. Era isto que queriam dizer os representantes do Terceiro Estado quando protestaram, em Maio de 1789, primeiro contra o seu humilhante traje oficial e depois, quando isso já fora alterado, contra a própria idéia de um traje que os distinguisse dos repre-sentantes da nobreza. Num panfleto datado de 2 de Maio de 1789, atacaram a convenção que exigia que os deputados usassem trajes diferentes, de acordo com o estado a que pertenciam. Uma tal prática, declararam, perpetuava uma desigualdade inaceitável que destruía a própria essência da Assembléia. O que ela perpetuava era a desigualdade, sob uma forma incorporada. Essa tradição de prática corporal, de acordo com a qual os estratos mais altos da sociedade saíam à rua com trajes requintados que, além de os destacar dos estratos inferiores, lhes permitiam dominar a rua, era ainda reforçada pelas leis sumptuárias que estipulavam, para cada estrato social da hierarquia, um conjunto de trajes adequados e proibiam que alguém usasse o vestuário oficial e publicamente declarado como conveniente para outro estrato social. Os representantes do Terceiro Estado exigiam uma transgressão autorizada, um acto transgressor cujo objectivo não entroncava simplesmente no início premeditado de uma actividade política futura, mas também no exercício de

10 A respeito das modas de vestuário durante a Revolução Francesa, ver Sennett, The Fali of

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imaginação retrospectiva que recordava uma época e uma ordem social em que as saídas à rua eram indicadores precisos da hierarquia social.11 Tem-se

argumentado — Burke é o porta-voz proeminente de um tal ponto de vista e Oakeshott um seu representante recente e exemplar — que a ideologia política "não [deve ser] entendida como um princípio, independentemente premeditado, para a actividade política", mas sim como conhecimento, sob uma forma abstracta e indefinida, "de uma maneira concreta de lidar com as configurações da sociedade"; que as ideologias, tal como são expressas, sob a forma de programas políticos ou dç princípios oficiais, nunca podem ser mais do que compêndios de alguma forma de comportamento concreto e que uma tradição de comportamento consiste inevitavelmente num conhecimen-to detalhado, pois "o que tem de ser aprendido não é uma idéia abstracta, ou um conjunto de competências, nem mesmo um ritual, mas um modo concre-to e coerente de vida em concre-toda a sua complexidade".12 Uma tal compreensão,

diz-se freqüentemente, é apanágio dos verdadeiros conservadores, mas os representantes do Terceiro Estado, ao atribuírem uma tal importância aos pormenores do vestuário quotidiano, mostraram-se tão conscientes como os seus opositores de que o vestuário tinha a função de dizer algo sobre a condição da pessoa que o usava e, o que é igualmente importante, de tornar i essa informação habitual.

Interpretar ou usar roupas é, num aspecto significativo, semelhante a ler ou a compor um texto literário. Ler ou compor um texto literário e um texto pertencente a um gênero particular de literatura não significa abordá-lo sem uma idéia preconcebida. É necessário empregar uma compreensão implícita das operações do discurso literário que nos informa sobre aquilo que devemos procurar, ou como iniciar a composição. Só os detentores da competência literária necessária seriam capazes de dar sentido a um novo encadeamento de frases, ao lê-las como literatura de um determinado gênero. Analogamente, só aqueles que possuíssem a competência social necessária seriam capazes de entender o vestuário do incroyable como uma paródia aos Macaroni. Tal como um grupo interiorizou a gramática da literatura, que lhe permite converter frases lingüísticas em estruturas e significados literários, assim outro interiorizou a gramática do vestuário, que lhe possibilita conver-ter peças de vestuário em estruturas e significados de vestuário. Alguém que não possua tais competências, alguém não familiarizado com as convenções que orientam a leitura das obras de ficção ou a forma de vestir das pessoas, ficaria, por exemplo, assaz perplexo se fosse confrontado com um poema lírico ou com uma pessoa vestida ao estilo de um incroyable. Ao ler literatura, atribui-se um gênero ao objecto em questão, ao interpretar o vestuário procede-se de maneira semelhante. Uma característica literária individual,

11 Ver Sennett, The Fali of Public Man (Cambridge, 1975), pp. 64-72. 12 M. Oakeshott Rationalism in Politic? (Londres, 1962), p. 119.

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14 C O M O A S S O C I E D A D E S R E C O R D A M

ou uma característica de vestuário individual, tem significado porque é apreendida como parte de um conjunto global de significados e, em cada caso, este tipo de conjunto deve constituir uma indicação mais ou menos explícita sobre a espécie de afirmação ou de vestuário que está a ser interpre-tada. A menos que os intérpretes possam conjecturar sobre o tipo de signifi-cado que está perante si, não têm qualquer meio para unificar os seus encontros passageiros com os pormenores. E esta subordinação da experiên-cia particular a um tipo ou gênero não é, pura e simplesmente, um processo de identificar certas características específicas. Envolve também um conjunto de expectativas em virtude das quais se acredita que muitas das característi-cas não examinadas na nova experiência serão idênticaracterísti-cas às que são próprias de experiências anteriores, ou, não sendo idênticas, que serão descritíveis em termos do seu grau de divergência relativamente a esse conjunto de expec-tativas. Esta estrutura de expectativas implícitas é sempre componente de um tipo — um tipo de literatura, ou um tipo de vestuário — porque é em virtude delas que se pode classificar um novo exemplo antes de este ser completamente conhecido.13

Nos dois casos que acabámos de observar — o do julgamento e execu-ção cerimoniais e o das novas práticas de vestuário desenvolvidas — encon-tramos um traço comum — a tentativa de romper definitivamente com uma ordem social mais antiga enfrenta uma espécie de sedimento histórico e ameaça afundar-se nele. Quanto mais absolutas são as aspirações do novo regime, mais imperiosamente este procurará introduzir uma era de esqueci-mento forçado. Dizer que as sociedades são comunidades que se auto-inter-p r e t a m é m o s t r a r a n a t u r e z a desse s e d i m e n t o , mas é i m auto-inter-p o r t a n t e acrescentar-se que entre as mais poderosas destas auto-interpretações estão as imagens que as sociedades criam e preservam de si próprias como sendo continuamente existentes. É que a consciência individual do tempo é, em grande medida, uma percepção da continuidade da sociedade ou, mais exactamente, da imagem dessa continuidade que a sociedade cria. Sugeri, a respeito da Revolução Francesa, que pelo menos uma parte deste sedimento se encontra nos repetidos actos comemorativos e pelo menos parcialmente em práticas corporais culturalmente específicas. Esse sedimento era compos-to, como o mostra a cerimônia do regicídio, por sentimentos para com o rei, ou melhor, para com a sua condição real, que traziam a marca de crenças passadas enraizadas nas religiões e em formas de pensamento antigas que deixaram atrás de si um sentido do inviolado e inviolável. E por isso que a execução pública de Luís foi sentida por todos os seus contemporâneos como

13 Para um debate sobre expectativas e estilos, ver, em especial, E. D. Hirsch, Vaüdity in

Interprctation (New Ha ven, 1967). Pode encontrar-se um tratamento sintético destes temas

em G. Buck, "The Structure of Hermeneutic Experience and the Problem of Tradition",

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um acontecimento tão terrível. Era também composto, como o ilustram as práticas de vestuário do primeiro período revolucionário e do Termidor, pelos preceitos hierárquicos incorporados nas práticas corporais habituais. Foi por isso que os novos modelos da década de 1790 foram sentidos pelos participantes como uma libertação tão inebriante. O regicídio foi uma revo-gação ritual, a licenciosidade do vestuário uma libertação carnavalesca. Em ambos os tipos de acção vemos as pessoas tentarem demarcar as fronteiras de um começo radical e, em nenhum dos casos, esse início, essa nova imagem da continuidade da sociedade, é sequer imaginável sem o seu elemento de recordação —- uma recordação tanto explícita como implícita. A tentativa de estabelecer um ponto de partida toma inexoravelmente como referência um padrão de memórias sociais.

3

É necessário distinguirmos a memória social de uma prática mais específica, a que é preferível chamar actividade de reconstituição histórica. O conhecimento de todas as actividades humanas passadas só é possível através do conheci-mento dos seus vestígios. Sejam os ossos sepultados em fortificações roma-nas, um monte de pedras que é tudo o que resta duma torre normanda, uma palavra numa inscrição grega cuja utilização ou forma revelam um costume, ou ainda uma narrativa escrita pela testemunha de uma cena qualquer, aquilo com que o historiador trabalha são vestígios — isto é, as marcas, perceptíveis pelos sentidos, deixadas por um fenômeno qualquer em si inacessível. O simples facto de se apreenderem tais marcas como vestígios de alguma coisa, como testemunhos, significa que já se ultrapassou o estádio da sua mera descrição. Considerar algo como testemunho é fazer uma afirmação acerca de outra coisa, nomeadamente daquilo que se considera testemunhar.

Tal significa que os historiadores agem dedutivamente, investigam os testemunhos de forma muito semelhante à dos advogados, quando estes contra-interrogam as testemunhas na sala de um tribunal, extraindo do testemunho informação que este não contém explicitamente, ou que contra-diz as próprias afirmações manifestadas. Essas partes do testemunho cons-tituídas por declarações prévias não são privilegiadas em sentido algum. Uma afirmação prévia que reclama ser verdadeira tem, para o historiador, a mesma importância que qualquer outro tipo de testemunho. Os historiadores são capazes de rejeitar algo que lhes é dito explicitamente nos seus testemu-nhos e substituí-lo pela sua própria interpretação dos acontecimentos. E mesmo que aceitem, de facto, aquilo que lhes diz uma afirmação prévia, fazem-no não por essa afirmação existir e se considerar que tem autoridade, mas sim porque é julgada de forma a satisfazer os critérios de verdade

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1 6 C O M O AS S O C I E D A D E S R E C O R D A M 1

histórica do historiador. Longe de confiarem noutras autoridades que não eles próprios, e a cujas afirmações deveriam ajustar o seu pensamento, os i historiadores são a sua própria autoridade. O seu pensamento é autônomo perante o testemunho no sentido em que possuem critérios de referência nos quais assenta a crítica do testemunho.14

A reconstituição histórica não está, pois, dependente da memória social. Mesmo quando não chegou ao historiador qualquer afirmação sobre um acon-tecimento ou um costume, através de uma tradição ininterrupta ou a partir de testemunhas oculares, continua a ser-lhe possível redescobrir aquilo que fora completamente esquecido. Os historiadores podem fazê-lo, em parte, pela análise crítica das afirmações contidas nas suas fontes escritas — entendendo-se por fontes escritas aquelas que contêm declarações que sustentam, ou sugerem, alegados factos respeitantes ao assunto em que o historiador está interessado — e em parte pela utilização daquilo a que se chama fontes não escritas, por ' exemplo, o material arqueológico ligado ao mesmo assunto — designando-se )

estas últimas como fontes não escritas com o fim de se indicar que, dado não serem textos, não contêm declarações já feitas.

Mas a reconstrução histórica continua a ser necessária mesmo quando a memória social preserva o testemunho directo de um acontecimento, pois se um historiador está a trabalhar num problema da história recente e recebe,%

em primeira mão, uma resposta imediata à própria questão que está a colocar aos testemunhos terá, então, necessidade de questionar essa afirmação para que esta possa ser considerada como testemunho. E isto sucede mesmo quando a resposta que o historiador recebe lhe é dada por uma testemunha ocular, ou pelo autor daquilo que está a investigar. Os historiadores não continuam a questionar as declarações dos seus informantes por pensarem que estes os querem enganar, ou foram eles próprios induzidos em erro. Os historiadores continuam a questionar as declarações dos seus informantes porque, se as aceitassem pelo seu valor facial, isso eqüivaleria a prescidirem da sua autonomia como historiadores no exercício da sua profissão. Teriam, então, renunciado à sua independência relativamente à memória social. Uma independência baseada na reivindicação do direito de decidir por si próprios, através dos métodos próprios da sua ciência, quanto à solução correcta dos -problemas que surgem no decurso dessa prática científica.

Apesar desta independência relativamente à memória social, a prática de reconstituição histórica pode receber, de formas importantes, um impulso orientador da memória dos grupos sociais e, por sua vez, dar-lhe um contor-no significativo. Um caso particularmente extremo de uma tal interacção ocorre quando um aparelho de Estado é utilizado, de forma sistemática, para

14 Ver R. Collingwood, The Idea ofHistory (Oxford, 1946), especialmente as pp. 266 e seguin-tes; e J. Goldstein, Historical Knowkdge (Austin, Texas, 1976), especialmente pp. 13-16 e 52-9.

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despojar os cidadãos da sua memória. Todos os totalitarismos agem deste modo. Aescravização mental dos súbditos de um regime totalitário inicia-se quando as suas recordações lhes são retiradas. Quando uma grande potência quer despojar um pequeno país da sua consciência nacional, utiliza o método do esquecimento organizado. Só na história checa este olvido organizado foi instituído por duas vezes, depois de 1618 e posteriormente a 1948. Os escritores contemporâneos são proscritos, os historiadores são demitidos das suas funções e as pessoas, silenciadas e despedidas dos seus empregos, tornam-se invisíveis e são esquecidas. O que horroriza nos regimes totalitá-rios é não só a violação da dignidade humana, mas também o medo de que não fique ninguém que possa, algum dia, testemunhar correctamente sobre o passado. A evocação por Orwell de uma tal forma de governo não é menos perspicaz na sua compreensão deste estado de amnésia colectiva. Contudo, verificou-se mais tarde — na realidade, não no Mil Novecentos e Oitenta e

Quatro — que existiam pessoas que compreenderam que a luta dos cidadãos

contra o poder de Estado é a luta da sua memória contra o esquecimento compulsivo e que fizeram sempre desta luta o seu objectivo não só para se salvarem a si próprias, mas também para sobreviverem como testemunhas para as gerações vindouras, tornando-se incansáveis arquivadores: os nomes de Soljenitzine Wiesel são um exemplo entre muitos outros. Em tais circuns-tâncias, a escrita de histórias da oposição não é a única prática de uma reconstrução histórica documentada, mas, precisamente por o ser deste modo, preserva a memória dos grupos sociais cuja voz teria, de outra maneira, sido silenciada.

A historiografia das Cruzadas é também um testemunho eloqüente quanto ao papel dos escritos históricos na formação da identidade política. Os historiadores medievais muçulmanos não partilhavam com os cristãos europeus medievais o sentimento de estarem a assistir a uma grande luta entre o islão e a cristandade pelo controlo da Terra Santa. Na vasta historio-grafia muçulmana dessa época, as palavras "cruzada" e "cruzados" nunca aparecem. Os historiadores muçulmanos coevos referiam-se aos cruzados chamando-lhes infiéis ou francos e viam os ataques que eles desencadeavam na Síria, no Egípto e na Mesopotâmia, entre os finais do século XI e o termo do século XIII, como sendo, em geral, fundamentalmente semelhantes às anteriores guerras travadas entre o islão e os infiéis: na própria Síria, no século X; no Andaluz, durante a Reconquista cristã; e na Sicília, contra os Normandos. Não é possível encontrar uma história das Cruzadas nos escri-tos históricos muçulmanos dessa época, estes contêm apenas, no máximo, fragmentos daquilo que uma tal história poderia ser incrustados em tratados sobre outros assuntos. A historiografia muçulmana medieval só acidental-mente é uma história das Cruzadas. Porém, depois de 1945 um corpo cres-cente de escritos históricos árabes tomou as Cruzadas como tema, as Cruzadas tornaram-se achialmente uma palavra de código para designar as

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18 C O M O AS S O C I K O A D E S R E C O R D A M

intenções malignas dos poderes ocidentais. Os historiadores muçulmanos passaram a ver um certo paralelismo entre o período dos séculos XII e XIII e os últimos cem anos. Em ambos os casos, o Médio Oriente islâmico foi ' atacado por forças européias que conseguiram impor o seu controlo sobre uma grande parte da região. De um ponto de vista muçulmano, as Cruzadas passaram a ser consideradas como a primeira fase da colonização européia, a prefiguração de um movimento de longa duração que incluiria a expedição de Bonaparte, a conquista britânica do Egipto e o sistema de mandato no Levante. Consideram que esse movimento culminou na fundação do Estado de Israel e, em cada luta seguinte — a Guerra Israelo-Árabe de 1948, a Guerra do Suez, a Guerra dos Seis Dias — o estudo muçulmano das Cruzadas ganhou ímpeto. Os historiadores muçulmanos vêem agora paralelismos entre a ascensão e queda dos principados dos Cruzados e os acontecimentos ' contemporâneos. Os Cruzados, que atravessaram o mar e estabeleceram um

Estado independente na Palestina, tornaram-se proto-sionistas.15 >

Um caso ainda mais paradoxal é o apresentado pela transformação da escrita histórica no século XIX. O paradoxo reside em dois aspectos antitéti-cos, se bem que igualmente essenciais, deste processo, tal como foi interpre-tado por aqueles que nele estiveram envolvidos. Insiste-se, por um lado, no estatuto privilegiado das ciências históricas, que resultaria do isolamento da * prática da compreensão metódica que nas ciências históricas ocorre face aos processos de interpretação que decorrem de forma implícita e generalizada no decurso da vida de todos os dias. Tal conduz ao sentimento de que a prática da pesquisa histórica permite criar uma nova distância relativamente ao passado, libertando as pessoas da tradição — a qual, de outro modo, poderia ter orientado as suas opiniões e o seu comportamento. Uma memória historicamente controlada opõe-se a uma memória tradicional não reflexi-va.16 E, todavia, reconhece-se também que este mesmo projecto é impensável

fora do seu enquadramento no contexto mais vasto de uma luta pela identi-dade política. Faz parte da história do nacionalismo, pois a transformação da escrita da história foi, em grande medida, obra dos grandes eruditos alemães Niebuhr e Savigny, Ranke e Mommsen, Troeltsch e Meinecke, todos eles ultimamente envolvidos na vida da sociedade política a que pertenciam. Aqueles autores rejeitaram qualquer forma de universalismo político e, em particular, os princípios de 1789, que reivindicavam o estabelecimento de regras de vida comunitária e de participação nas actividades do Estado, em 15 Ver F. Gabrieli, "The Arabic Historiography of the Crusades", in B. Lewis e P. M. Holt (orgs.), Historians ofthe Middle East (Londres, 1962), pp. 98-107; B. Lewis, Histoiy:

Remem-bered, Recorded, Invented (Prínceton, 1975); E. Sivan, "Modem Arab Historiography of the

Crusades", Asian and Áfrican Studies, 8 (1972), p p . 102-49.

16 Ver, por exemplo, A. Kohii-Kunz, Eritmerti und Vergessen (Berlim, 1972) e J. Ritter, "Die Aufgabe der Geisteswissenschaften in der modernen Geseílschaft", Schriften der Geseílschaft

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A M F. M O R l A S O C I A L 19

princípio válidas para todos os povos. Afirmavam, em oposição àqueles princípios, a necessidade de tratar a lei não como uma maquinaria social-mente construída, mas como personificação e expressão da continuidade de uma nação. Quer escrevessem sobre a sua própria época, quer sobre culturas distantes, é o comprometimento político destas figuras proemi-nentes da escola histórica que introduz na sua obra o sentimento de que, ao construírem um cânone de pesquisa histórica, participavam simulta-neamente na formação de uma identidade política e davam forma à memória duma cultura particular.17

Nestes casos, a actividade de reconstrução histórica, quer seja siste-maticamente reprimida, quer floresça expansivamente, leva à produção de histórias escritas, formais. Existe, contudo, um fenômeno mais infor-mal processualmente e mais difundido culturalmente do que a actividade de produzir histórias deste tipo. A produção de histórias narrativas, contadas mais ou menos informalmente, revela-se como uma actividade básica para a caracterização das acções humanas, é um traço comum a toda a memória comunal.

Consideremos o exemplo da vida na aldeia. Aquilo que falta num cenário aldeão não é apenas o espaço físico, mas também o espaço de actividade que enfrentamos habitualmente num contexto urbano. Estamos acostumados a mover-nos num meio de estranhos, onde muitas das pessoas que testemunham os actos e as declarações dos outros têm habitualmente pouco ou nenhum conhecimento da sua história, e escassa ou nula experiên-cia de actos e declarações semelhantes no seu passado. É isto que torna difícil ajuizar se se pode acreditar numa dada pessoa e até que ponto o podemos fazer numa dada situação. Se queremos desempenhar um papel credível perante uma audiência de gente relativamente estranha, devemos produzir, ou pelo menos sugerir, uma história de nós próprios: um relato informal que indique algo sobre as nossas origens e que justifique, ou talvez desculpe, a nossa posição e acções presentes relativamente a essa audiência.18 Mas esta

representação do eu na vida quotidiana é desnecessária quando, como acon-tece com a vida numa aldeia, as falhas na memória partilhada são muito menos numerosas e mais pequenas. Em Combray, a aldeia de Proust, uma pessoa cuja história ''não se conhecia de todo" era um ser tão incrível como uma divindade mitológica. Nas várias ocasiões em que uma dessas espanto-sas aparições havia ocorrido na Rua de Saint-Esprit, ou na Praça, ninguém se lembrava de as inquirições exaustivas que se seguiam não terem, alguma vez, conseguido reduzir a fabulosa criatura às proporções duma pessoa a

17 Ver, em especial, F. Meinecke, Histomw: Tfw Riwofa Nav Historiai! Outlook (trad. J. E. Anderson, Londres, 1972) e P. H. Reill, The Gerrnan Enlighhmmont and the Riseof Historie ism (Berkelev, 1975). Ver também I. Berlin, Viço and Herder (Londres, 1976) e P. Rossi "The Ideológica! Valeneies of Twenrieth-Cenrury Historiásm", Hfcton/and Tfuvty, Beiheft 14 (1975).

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quem "na verdade se conhecia", se não pessoalmente pelo menos de um modo abstracto, como sendo aparentada, de forma mais ou menos estreita, ; com alguma família de Combray.19 O Regresso de Martin Guerre mostra essa *

mesma característica de um ângulo oposto. A espantosa aparição do princi- ; pai protagonista, que não pode fazer outra coisa senão fingir pertencer, é a = última anomalia num cenário onde a fraude é rara e jamais praticada em larga escala, porque o espaço entre aquilo que todos sabem sobre uma pessoa e aquilo que desconhecem a seu respeito é demasiado estreito para que o egoísmo e a perfídia possam levar à representação de um papel. O que mantém esse espaço unido é a bisbilhotice. A maior parte daquilo que acontece numa aldeia durante o dia será contado por alguém antes que o dia acabe, sendo esses relatos baseados na observação directa ou em informações em primeira mão. A bisbilhotice aldeã compõe-se destes relatos diários, combinados com as familiaridades mútuas de toda uma vida. Uma aldeia constrói, por este meio informal, uma história comunal contínua de si pró- > pria: uma história em que todos retratam, em que todos são retratados, e na qual o acto de retratar nunca tem fim. Isto deixa pouco ou nenhum espaço para a representação do eu na vida quotidiana, porque em grande medida os indivíduos recordam em comum.20

Mais uma vez, se considerarmos a educação política dos grupos diri-* gentes, não podemos deixar de ficar surpreendidos com a diferença existente entre os seus arquivos políticos e as suas memórias políticas. O grupo dirigente utilizará o conhecimento que tem do passado de uma forma directa e activa.21 O seu comportamento e decisões políticas basear-se-ão numa

investigação do passado, em especial do passado recente, conduzida pela sua polícia, pelos seus departamentos de pesquisa e pelos seus serviços adminis-trativos, e estas investigações serão levadas a cabo com uma eficiência que é v

revelada mais tarde, ocasionalmente, àqueles a quem diziam respeito, quan-do os quan-documentos vêm à luz quan-do dia após uma guerraA uma revolução, ou um

escândalo público. Mas uma das limitações das provas documentais é a de 19 M. Proust, Remembrance ofThings Past (trad. C. K. Scott Moncrieff e T. Kilmartin,

Har-mondsworth, 1981) vol. I, p . 62.

20 Sobre a bisbilhotice na vida da aldeia, ver J. Berger, Pig Earth (Londres, 1979). Deve notar-se, todavia, que vários estudos recentes assumiram como tarefa sua,enquadrar a vida nas aldeias n u m contexto mais vasto e nacional, o "exterior" econômico e político, tendo esta abordagem histórica como resultado passarem as aldeias a ser menos olhadas como entidades estáticas e isoladas. Ver C. Bell e H. Newby, Community Studies: An

Introduction to the Sociology ofthe Local Community (Londres, 1971); J. Boissevain e J. Friedl

(eds.), Beyond Community: Social Process in Europe (Haia, 1975); J. Ennew, The Western Isles

Today (Cambridge, 1980); S. H. Frajiklin, Rural Societies (Londres, 1971); A. Macfarlane,

com S. Harrison e C. Jardine, Reconstructing Historical Communities (Cambridge, 1977), sobre o "mito da comunidade"; R. Schulte, "Village Life in Europe", Comparative Studies

in Society and History, 27 (1985), p p . 195-206.

21 Sobre a manipulação da memória política através do controlo dos registos, ver J. Ches-neaux, Pasts and Futures, ort WJmt is History For? (Londres, 1978).

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A M E M Ó R I A S O C I A L 21

que poucas pessoas se dão ao trabalho de pôr no papel aquilo que consideram óbvio. E, no entanto, muita actividade política terá sido alicerçada "naquilo que é óbvio", tacitamente aceite, o que pode observar-se de forma particu-larmente fácil numa esfera bastante técnica como a da diplomacia ou nos negócios de uma classe governante muito fechada. Neste sentido, e é um sentido importante, os arquivos políticos do grupo dirigente estão longe de esgotar a sua memória política. A distinção torna-se particularmente eviden-te quando os seus líderes necessitam de tomar decisões em crises que não conseguem entender globalmente e em que é impossível prever a conseqüên-cia das suas acções. E então que terão' de recorrer a certas regras e crenças assentes, sendo as suas acções dirigidas por uma narrativa de fundo implícita que consideram óbvia. Deste modo, durante todo o século XVIII os homens de Estado continuaram a acreditar que, acima de todas as coisas, deviam impedir que qualquer outro poder ganhasse alguma vez um ascendente similar ao de Luís XIV, e relembravam a si próprios que não se deveria permitir que algo de semelhante às antigas guerras religiosas voltasse a suceder.22 Durante o século XIX era habitual interpretarem-se todas as

insur-reições violentas como sendo a continuação do movimento iniciado em 1789, de tal forma que as épocas de restauração surgiam como pausas durante as quais a corrente revolucionária se havia tornado subterrânea apenas para irromper de novo à superfície. Na altura de cada insurreição — em 1830 e 1832, em 1848 e 1851, ou em 1871 —, tanto os apoiantes como os opositores da revolução viam os acontecimentos como conseqüências directas de 1789.23

Mais uma vez, se queremos compreender as convicções de 1914, precisamos de avaliar as ligações entre os valores e as crenças inculcadas na escola e os pressupostos em que os políticos se basearam para actuar mais tarde na vida. São as idéias da geração anterior que devemos tomar em consideração para avaliarmos quão literalmente a doutrina da luta pela existência e da sobrevi-vência do mais forte era aceite por muitos líderes europeus em vésperas da Primeira Guerra Mundial.24

Consideremos, por outro lado, o caso das histórias de vida. Afinal a maioria das pessoas não pertence às elites dirigentes, nem vive a história das suas próprias vidas principalmente no contexto de vida dessas mesmas elites. Há algum tempo, uma geração de historiadores, nomeadamente so-cialistas, viram na prática da história oral a possibilidade de salvarem do silêncio a história e a cultura dos grupos subordinados. As histórias orais procuram dar voz àquilo que, de outro modo, permaneceria mudo, ainda que não ficasse sem vestígios através da reconstituição das histórias de vida

22 Ver H. Butterfield, Tlw Discoiüitutities Between tlw Generatians m Histary (Cambridge, \972). 23 Ver T. Schieder, "Das Problem der Revolution im 19. Jahrhundert", Historiscíic Zcitschrift,

170 (1950), pp. 233-71.

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22 C O M O A S S ü C i l i D A U E S R E C O R D A M

individuais. Mas pensar o conceito de história de vida é já abordar a matéria com um quadro mental prévio e, assim, sucede que, por vezes, a linha de inquirição adoptada pelos historiadores orais estorva a concretização dos seus intuitos. Os historiadores orais relatam freqüentemente a ocorrência de um tipo característico de dificuldade no início das suas conversas. O entre-vistado hesita e fica silencioso, protesta que nada há a contar que o entrevis-tador já não saiba. O historiador só irá exacerbar a dificuldade se encorajar o entrevistado a envolver-se numa forma de narrativa cronológica, pois isto introduz no material um tipo de modelo narrativo e, com ele, um padrão de recordação que é estranho a esse material. Ao fazer tal sugestão, o entrevis-tador está a ajustar inconscientemente a história de vida do entrevistado a um modelo preconcebido e alheio, modelo que tem a sua origem na cultura do grupo dirigente — é derivado da prática dos cidadãos mais ou menos famosos escreverem livros de memórias no final da vida. Esses escritores de memórias consideram as suas vidas dignas de serem recordadas porque são, -a seus próprios olhos, pesso-as que tom-ar-am decisões e que exercer-am, ou se presume que tenham exercido, uma influência mais ou menos vasta, e que mudaram, de forma evidente, parte do seu mundo social. A história "pes-soal" do escritor de memórias confronta-se com uma história "objectiva" incorporada nas instituições ou na modificação, transformação, ou m e s m o ' no derrube de instituições: um programa de formação educativa, um modelo de administração civil, um sistema legal, uma organização particular da divisão do trabalho. Foram inseridos na estrutura de instituições dominantes e foram capazes de mudar essa estrutura para os seus próprios fins. É esta capacidade comprovada de fazer uma intervenção pessoal que permite aos escritores de memórias conceberem a sua vida retrospectivamente e, muitas vezes, encará-la prospectivamente como uma seqüência narrativa na qual , conseguem conjugar a sua história de vida individual com o sentido, que possuem, do decurso de uma história objectiva. Mas aquilo que falta nas histórias de vida dos que pertencem aos grupos subordinados são precisa-mente esses termos de referência que consolidam este sentimento de uma trajectória linear e o conduzem a uma forma narrativa seqüencial: acima de tudo, em relação ao passado, a noção de origens legitimadoras e, face ao futuro, o sentido de acumulação em termos de poder, dinheiro ou influência. A história oral dos grupos subordinados irá produzir um outro tipo de história, no qual não só a maioria dos pormenores será diferente, mas em que também a própria construção de formas com sentido obedecerá a um prin-cípio diferenciado. Irão surgir pormenores diferentes, porque estes estão incrustados, por assim dizer, numa espécie também diferente de ambiente narrativo. Para se reconhecer a existência de uma cultura dos grupos subor-dinados é essencial vermos que se trata de uma cultura em que as histórias de vida dos seus membros têm um ritmo diferente, não sendo esse ritmo estabelecido pela intervenção individual no funcionamento dás instituições

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dominantes. Quando os historiadores orais ouvem com atenção aquilo que os seus informantes têm para dizer descobrem uma percepção do tempo que não é linear, mas cíclica. A vida do entrevistado não é um curriculum vitae, mas uma série de ciclos. O ciclo básico é o dia, depois a semana, o mês, a estação, o ano, a geração. O sucesso notável que a obra Working, de Studs Terkei, teve nos Estados Unidos deve-se, sem dúvida, ao facto de fazer justiça a esta forma cíclica alternativa, podendo ser lida simultaneamente como epopéia popular e como pesquisa social. Eis aqui uma forma narrativa diferente, uma estru-turação diferente de memórias socialmente determinadas.25

Mesmo uma questão tão fundamental como a da configuração do século XX dependerá crucialmente do grupo social a que pertencemos. Para muitas pessoas, mas especialmente para os europeus, a narrativa deste século é impensável sem a memória da Grande Guerra. A imagem das trincheiras, desde o Canal à fronteira suíça, está gravada na memória contemporânea. Enquanto na Segunda Guerra Mundial a experiência comum dos soldados era o exílio terrível e prolongado a uma inultrapassável distância de casa, aquilo que torna única a experiência da Grande Guerra, e o que lhe confere uma carga especial de ironia, é a proximidade absurda das trincheiras em relação ao lar. Esta experiência das trincheiras, de que o primeiro dia no Somme é emblemático, permanece como um arquétipo narrativo. Paul Fus-sell evocou vividamente esta cena primordial e sugeriu que é a sua estrutura particular e irônica, a sua dinâmica de esperança cerceada, que a faz assediar a memória.26 Contudo — e este é o facto notável — é possível imaginar-se

que os membros de dois grupos bastante diferentes podem participar em idêntico acontecimento, mesmo tão catastrófico e devorador como uma grande guerra e, ainda assim, serem a tal ponto diferentes entre si que mal se pode considerar que as suas recordações posteriores desse acontecimento, as memórias que transmitem aos filhos, digam respeito ao "mesmo" aconte-cimento. Cario Levi deu uma perspectiva notável deste fenômeno.27 Em 1935,

foi exilado como prisioneiro político para a remota aldeia de Gagliano, no Sul da Itália. No muro da câmara municipal havia uma pedra de mármore onde estavam inscritos os nomes de todos os aldeãos de Gagliano que tinham morrido na Grande Guerra. Eram quase cinqüenta nomes e, directamente ou por laços de parentesco entre primos ou de compadrio, nem uma só família fora poupada. Havia ainda aqueles que regressaram feridos da guerra e os que voltaram sãos e salvos. Como médico, Levi teve ocasião de falar com todos os aldeãos e sentia curiosidade em saber como viam o cataclismo de 1914-18. Contudo, em todas as suas conversas com os camponeses de Gaglia-25 S. Terkei, Wnrkhig: People Talk Ahout ivhaf theif Do ali Dayand Hoxr lhey Feel About xehnl thcu

DÍJ (Londres, 1975).

26 P Fussel, The Great Wnr and Modem Memory (Nova Iorque, 1975).

27 C. Levi, Chmt Stopped at FJmli (trad. F. Frenaye, Londres, 1963), especialmente as pp. 130 e seguintes.

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no, nunca ninguém mencionava a guerra para referir feitos realizados, luga-res vistos ou sofrimentos suportados. Não que esse assunto fosse tabu: quando interrogados sobre ele respondiam não só com brevidade, mas -também com indiferença. Não recordavam a guerra como um acontecimento memorável, nem falavam dos seus mortos. Mas havia uma guerra de que falavam constantemente — era a guerra dos salteadores. O bandoleirismo terminara em 1865, setenta anos atrás, e muito poucos aldeãos eram suficien-temente velhos para se recordarem dela como participantes ou testemunhas oculares. Contudo, toda a gente, tanto os jovens como os velhos, as mulheres como os homens, falavam dela como se tivesse acontecido no dia anterior. As aventuras dos bandoleiros entravam facilmente no seu discurso de todos os dias e eram comemoradas nos nomes de muitos locais no interior e nos arredores da aldeia. As únicas guerras de que os camponeses de Gagliano • falavam com animação e coerência mítica eram as esporádicas explosões de revolta em que os salteadores combatiam contra o exército e o governo do ) Norte. Mas mal tinham consciência dos motivos e interesses em jogo na Primeira Guerra Mundial, a Grande Guerra não fazia parte da sua memória. Podemos dizer assim, de forma mais geral, que todos nos conhecemos uns aos outros pedindo explicações, fazendo relatos, acreditando, ou não, nas histórias sobre os passados e identidades uns dos outros.28 Ao identificar- *

mos e compreendermos com êxito o que outra pessoa está a fazer, enquadramos um acontecimento particular, um episódio, ou comportamento, no contexto de várias histórias narrativas. Identificamos, deste modo, uma determinada acção recordando, pelo menos, dois tipos de contexto para essa acção. Situamos o comportamento dos agentes por referência ao seu lugar nas suas histórias de vida e situamos também esse comportamento pela referência ao seu lugar na história dos contextos sociais a que pertencem. Anarrativa de uma vida faz parte de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada na história dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade.

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Existe uma disparidade chocante entre a omnipresença da memória social na conduta da vida quotidiana e a atenção relativamente limitada, pêlo menos no que diz respeito a um tratamento explícito e sistemático e não a um tratamento implícito e disperso, que tem sido prestada especificamente à memória social na moderna teoria social e cultural.29 Porque será?

28 Para um debate sobre as narrativas incrustadas no discurso quotidiano, ver A. Macintyre,

After Virtue (Londres, 1981), pp. 190-201.

29 Deve fazer-se menção, todavia, a uma série de trabalhos recentes dedicados à questão da memória social: E. Shils, Tradition (Londres, 1981); Z. Bauman, Memories ofClass:

Referências

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