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O bo encantado. Imagens do padre Cícero na literatura de cordel

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(1)

D O S S I

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Ê

o

VERBO

ENCANTADO

IMAGENS

DO

PADRE CíCERO

NA

LITERATURA DE CORDEL

E

m 1923, Pe. Cícero

es-creve uma segunda

versão para seu

testa-mento de 1922, deixando a

melhor fatia da herança para

os salesianos. Nesse

docu-mento, expõe muito mais do que uma simples relação de

bens e herdeiros: constrói

explicações para defender a

honestidade da sua vida de

sacerdote e político.

Pode-se vislumbrar a presença de

um homem preocupado

com a própria imagem, em

face das acusações que sem-pre transitaram nas suas

que-relas com a hierarquia

ecle-siástica e a política dos

co-ronéis. Trata-se de um

do-cumento com explícito

sa-bor de monumento, para

usar a lúcida expressão de Le Goff. Ou seja: um

pro-nunciamento recheado de justificativas para compor

a defesa em possíveis julgamentos da posteridade,

um discurso que pretende atravessar o tempo.

Nesse depoimento, que já alimentou calorosa

po-lêmica, Pe. Cícero tece um expressivo comentário

sobre a seriedade com que abraçou a vida religiosa.

Sempre seguro e com linguagem clara, anuncia:

fedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

" D e v o d e c l a r a r , p o r s e r p a r a m i m u m a g r a n d e

h o n r a e u m d o s m u i t o s e fe i t o s d a G r a ç a D i v i n a

s o b r e m i m , q u e , e m v i r t u d e d e u m v o t o p o r m i m

fe i t o , a o s d o ze a n o s d e i d a d e , p e l a l e i t u r a q u e e u

fi z n a v i d a i m a c u l a d a d e S ã o F r a n c i s c o d e Sales,

c o n s e r v e i a m i n h a v i r g i n d a d e e a m i n h a c a s t i d a

-d e a t é h o j e " .

Ésignificativo notar que, entre as defesas ou

jus-" A s p a l a o r a s e o s s o n s n ã o s ã o a r c o s - í r i s ... ' Q u e e n c a n t a d o r a l o u c u r a é a p a l a u r a : c o m e l a , o h o m e m d a n ç a s o b r e t o d a s a s c o i s a s ."

Friedrich Nietzsche (Apud MENEZES,1992/

93:151)

tificativas, a sexualidade

ocu-pou lugar de destaque.

Indí-cio de uma vida que recusa-va o corpo em nome da

pu-reza espiritual. No discurso e

na prática, o venerado

padri-nho procurava seguir uma

lon-ga e complexa tradição

cristã, que guarda raízes nas

idéias de Platão e no

estoicismo, considerando o

espírito ontologicamente

su-perior à matéria. Nessa

pers-pectiva, o corpo é o espaço

no qual habita o falso, o en-gano, a ilusão. E o espírito é

o lugar da verdade, da

ple-nitude existencial. Por

con-seguinte, o ideal seria a

au-sência da sexualidade .

No catolicismo que invadiu os sertões, a castidade é uma

evidente característica dos santos ou religiosos de

alto valor. Assim, pode-se entender melhor a

preo-cupação do Pe. Cícero em sublinhar a sua vida de

abstinência e isso foi, em certa medida, uma postura

fundante dentro de uma cultura que elegeu grandes

líderes por meio de parâmetros do sagrado (Pe.

Ibiapina, Antônio Conselheiro, Beato Lourenço, Frei

Damião ...). A credibilidade do venerado patriarca foi

alimentada, em grande parte, por sua pública recusa do corpo sexuado.

Contudo, vale ressaltar que o imaginário dos

de-votos não está submisso aos "dados" da historiografia

oficial. Nas narrativas populares, a biografia do Pe.

Cícero configura-se em outra dimensão. Sobre a

negação do corpo e outras questões, afiaram várias

histórias que são necessárias para a criação de um

FRANCISCO RÉGIS lOPES RAMos*

R E S U M O

N o s ve rso s d a "lite ra tu ra d e co rd e l", P e .

C íce ro g a n h a co n sistê n cia ta l co m o d e se ja o im a g in ó rio d o s d e vo to s. N e ssa p e rsp e c-tiva , a s "h istó ria s" d o p o e ta p o p u la r g u a

r-d a m ín tim a re la çã o co m a vo n ta d e d e co n stru ir u m p ro te to r d e im p e re cíve l p o d e r. É p la u síve l in fe rir q u e ta is n a rra tiva s sõ o fo rm a s d e fo rn e ce r se n tid o p a ra o e xiste n -te , a lim e n ta n d o fé e e sp e ra n ça e m fa ce d o

im p o n d e ró ve l d e se n ro la r d o te m p o . P e rce b e -se q u e a cu ltu ra d o s fié is p ro d u z ve rd a d e s q u e , e m ce rta m e d id a , se g u e m o s p rin cíp

i-o s d i-o re la to h a g io g ró fico .

• P ro fe sso r d o D e p o rto m e n to d e H istó ria d o U FC e m e stre e m S o cio lo g ia p e lo U FC .

(2)

grande protetor. Histórias raramente subordinadas

aos parâmetros da documentação oficial (como o

mencionado testamento), ou a interpretações que

nutrem querelas no meio da intelectualidade. Na

chamada "literatura de cordel", nos mitos e nas

narrativas populares, a elaboração da verdade segue outro caminho. A lógica do sagrado fala mais alto e

o imaginário se encarrega de gerar um largo

conjunto de narrativas.

Como mostra o poeta João de Cristo Rei, o Pe. Cícero"

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v e i o h a b i t a r n e s t e m u n d o / c o m a o r d e m

d o E t e r n o / p a r a r e d i m i r

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o s c r i m e s / d e t o d o p o v o m o d e r n o / e d e fe n d e r s e u s d e v o t o s / d o c a s t i g o d o

i n fe r n o " . Com uma missão desse porte, Pe. Cícero

teria um nascimento todo especial:

"Dona J oaquina

e Joaquim Romão Batista são os seus legítimos pais como a história registra mas pela lei da razão segundo o ponto de vista

Agora vamos saber o caso que aconteceu na morada do casal onde o menino nasceu isto a mãe dele dizia a dona Rita Maria

mulher dumparente meu

E quando a Mãe dele teve

o primeiro garotinho

lhe apareceu uma dona

com outro bem bonitinho e quando em seu lar entrou seu filho o depositou junto do outro novinho

Então a dona da casa estava nesta ocasião

de resguardo e no momento

não havia um só cristão que lá em seu ambiente lhe desse o suficiente da sua alimentação

A mulher compadecida cheia de amor e carinho disse pra dona da casa seu lar não está sozinho fique aí que eu vou cuidar tudo que necessitar a senhora e seu filhinho

72 R e visto d e C iê n cia s S o cia is v.2 6 n .l/2 1995

Dizendo assim foi cuidar do que a dona carecia deu alimento a criança ajeitou a moradia do leito o filho tirou e disse a dona Quinor fique em paz, até um dia

Abraçando a criancinha no rosto aplicou um beijo e disse a dona da casa satisfaça meu desejo vá criar seu filho lindo e retirou-se sorrindo com seu olhar benfazejo

E quando o dono da casa viu o que lhe acontecia saiu procurando a dona entre os vizinhos que havia porém na população eu não sei, eu não vi não era o que o povo dizia

Depois do caso sem jeito que para casa voltou chegando abraçou o filho que a mulher lhe deixou botando o nome na lista por Cícero Romão Batista na igreja batizou."

Nesse folheto, intitulado N a s c i m e n t o d o P a d r i

-n h o C í c e r o e a t r o c a m i s t e r i o s a d a s c r i a n ç a s , o

poeta João de Cristo Rei fornece substância para

o poder do Pe. Cícero ao anunciar que sua vida

não recebeu a marca do "pecado original". A

origem do taumaturgo estava no território da

pureza, não foi gerado no relacionamento

homem-mulher. Nessa teofania primordial, a carne

foi completamente excluída. Seguindo a velha

tradição da moral cristã, a legitimidade do Pe.

Cícero, como grande protetor, encontrou suporte

na construção de uma imagem sem indício de

atividade sexual.

Várias são as versões para esse "nascimento

mis-terioso". Contudo, todas reafirmam a divina

ori-gem do Pe. Cícero. Em uma dessas versões, o

anjo depositou uma criança de olhos azuis num

quarto e levou o filho de Joaquim e Vicença

Romana. Na troca das crianças, o ambiente foi

tomado por uma forte luminosidade, a presença

de Deus no mundo dos homens. Às vezes, a

(3)

do Pe. Cícero foi uma consequencia desse

inesperado jato de luz. Conclusão coerente para

uma cultura que costuma relacionar problemas

do corpo com manifestações do além.

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É interessante notar que, na "literatura de

cor-dei", a infância do Pe. Cícero caracteriza-se por

uma marcante singularidade: vivia isolado e com

o rosário agarrado nas mãos. João de Cristo Rei

informa que o pequeno Cícero ..

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n ã o q u e r i a c o m

-p a n h e i r o / n e m g o s t a v a d e b r i n c a r / s u a

p r e o c u p a ç ã o / e r a fa ze r o r a ç ã o / o u v i r m i s s a

e e s t u d a r " . Essa curiosa peculiaridade é

confirmada por José Bernardo da Silva no

folheto On a s c i m e n t o d o P e . C í c e r o n a c i d a d e

d o C r a t o - CE:

"Os meninos lhe chamavam para na rua brincar

e ele então respondia:

Deus não quer, eu não vou lá tenho minha ocupação

vou cuidar em oração que Deus me manda rezar

Os meninos respondiam: Cícero quer ser muito exato não brinca com os meninos nem na rua nem no mato pois reza toda semana se o espírito não me engana Cícero quer ser um beato!

- Vocês me chamam beato eu beato não sou, não mas espero de Deus Eterno e da Virgem da Conceição pelo seu eterno amor fazer de mim um pastor a porta da salvação"

No folheto A v i d a e n o v o s s e r m õ e s d o P a d r e

C í c e r o , a impecável métrica do poeta João

Martins de Athaide também ressaltou a ausência

de uma vida normal na infância daquele que foi

" m a n d a d o a o m u n d o p o r D e u s " e desejava" t e r

a v i d a d e p r i v a ç õ e s " :

"Enquanto ele pequeno se com outro passeiava de missas e confissões era em quem ele falava a doutrina de Jesus, ele sempre argumentava.

Dizia aos outros meninos ninguém deve se entreter com as coisas deste mundo que vão desaparecer agora as coisas de Deus foram, são e hão de ser."

Nas entrelinhas dos versos de Cristo Rei, José

Bernardo e João Martins, pode-se vislumbrar um

substrato comum: a insuperável dicotomia

corpo-alma. Com uma linguagem cheia de arrodeios, os

poetas do povo não descortinam esse pressuposto

vital. O jogo do pudor cristianizado elimina a possi-bilidade de uma linguagem mais clara e direta para

expressar questões ligadas ao uso (e abuso ...) da

carne. Os poetas se servem de expressões suaves

e "inocentes": " c o i s a s d e s t e m u n d o " (Ioão Martins), " n ã o b r i n c a c o m os m e n i n o s " (Iosé Bernardo),

"nem gosta de brincar" (Cristo Rei).

Vale ressaltar: refiro-me ao "uso da carne" não

somente no sentido da sexualidade. Trata-se de uma

perspectiva mais ampla, que leva em conta outras

dimensões da vivência corporal. Nesse sentido, é

curioso notar que a composição imagética do Pe.

Cícero está longe do h o m o l u d e n s .

No citado folheto N a s c i m e n t o d o P a d r i n h o

C í c e r o e a t r o c a m i s t e r i o s a d a s c r i a n ç a s , o poeta

Cristo Rei afirma que " d e s e i s p a r a s e t e a n o s " o futuro Patriarca de Juazeiro sempre passava algum

tempo fora de casa, em lugar ignorado. Ninguém

sabia qual era o objetivo desse misterioso costume. O poema constrói uma certa tensão quando o pai

do pequeno Cícero decide investigar o caso.

Chama a criada e anuncia que " s e u t r a b a l h o é

r e p a r a r / o n d e C í c e r o v a i fi c a r " . Cria-se, então,

uma atmosfera de dúvida. Nas entrelinhas, é

possível intuir o sentido dessa investigação:

cofirmar ou negar se o menino estava exercitando

os naturais dispositivos da sensibilidade corporal,

que possuem (é claro) formas definidas pela

cultura. Nada estranho para uma tessitura social

que coloca na paternidade a inadiável função de

vigiar e punir. No contexto de um cordel que

apresenta a "biografia" de um santo, o desenlace

dessa narrativa assume um sentido mais ou menos previsível:

"No outro dia seguinte a criada hospitaleira

levantou-se ocultamente

sentou-se numa cadeira nisso o menino passou com três imagens e entrou num sítio de bananeira

(4)

A criada atenciosa seguiu atrás reparando e lá num canto sombrio de longe foi avistando ele firme ajoelhado

com seus três santos de lado

constantemente rezando."

A dúvida recebe um destino pleno de coerência

e nos leva, mais uma vez, ao recorrente tema da

dicotomia corpo-alma.

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É visível que o poder do

taumaturgo ganha consistência na medida em que

uma característica fundante do corpo humano (a

sexualidade) toma-se ausente na sua "biografia". Pe.

Cícero, então, é dono de um corpo que não possui

atributos essenciais que definem a corporeidade. Ao

olhar dos fiéis, tal ausência é mais uma prova que

fundamenta a pureza do grande protetor. Seu corpo

seria o abrigo de um espírito enviado por Deus.

o imaginário dos devotos, Pe. Cícero está fora

da cultura que se manifestava no tempo e no

espa-ço de sua existência histórica, de sua missão no

mundo dos mortais. Nesse sentido, a postura

pater-nal enfocada pelo poeta Cristo Rei merece um

co-mentário a mais. Pela idade do pequeno Cícero, a

preocupação do pai refere-se a um velho costume

da vida campestre: o vínculo erótico com o mundo

animal. É uma possibilidade plausível, pois essa é

uma recorrente forma de iniciação sexual do meio

sertanejo, que não se constitui uma exceção entre

várias sociedades agrárias. os parãmetros dessa

cultura, é algo vivenciado na prática, comentado

no espaço da intimidade e condenado na dimensão

do público.

No imaginário dos devotos, as narrativas eliminam

essa e outras "tentações do demônio" para que o

Pe. Cícero tenha a legitimidade de um grande

protetor. Isso é possível porque seu corpo é uma

materialidade que consegue eliminar os desejos da

carne. Há uma certa contradição: de acordo com as

narrativas populares, o "Padrinho" já nasceu puro,

sem desejo ligado aos prazeres mundanos, mas sua

vida é vista como uma penitência, uma difícil luta

contra o pecado. Nessa perspectiva, Cícero nasceu

insensível diante das tentações que levam ao ato

pecaminoso, entretanto lutou, durante toda sua vida,

para não ser influenciado por essas tentações.

Per-cebe-se que ele é definido como um ser imunizado

contra o poder do satanás: isso deveria colocá-lo

numa posição de conforto e segurança. Contudo,

sua vida foi cheia de sofrimento para afastar

qual-quer tipo de pecado. Nos parâmetros dessa cultura

que faz da penitência uma forma de purgação do

espírito, isso fornece um mérito de inestimável

va-74 Revisto de Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

lor. Pe. Cícero já era essencialmente puro e santo

no nascimento, mas sofreu para se purificar e ter

maior legitimidade como direto representante do

poder divino: aforismo que, na percepção do

devo-to, ganha sentido plausível.

De acordo com a mitologia bíblica, é com o

"pe-cado original" que os humanos descobrem a

exis-tência do corpo. Como ressalta Marilena Chaui (1991:

86), essa corporeidade "significa carência

(necessida-de (necessida-de outra coisa para sobreviver), desejo

(necessi-dade de outrem para viver), limite (percepção de

obstáculos) e mortalidade (pois nascer significa que

não se é eterno, é ter começo e fim). O pecado

original é originário porque descobre a essência dos

humanos: somos seres finitos. A finitude é a

que-da". A partir de então, nascem os atributos que

defi-nem o ser humano, separando-o de Deus: finitude,

corporeidade, desejo, carência e, por conseguinte, o

pecado. Em certo sentido, o pecado original, que

separa o criador de sua criatura, é a descoberta da dor.

A descoberta ou a invenção do corpo seria a

fun-dação do sofrimento, a interferência do mal no gozo

dos tempos primordiais. Passando por quase dois

mil anos de história e sobrevivendo a várias

trans-formações sociais e políticas, a Igreja Católica

tam-bém mudou. Contudo conservou esse princípio sobre

o qual todos devem orientar a vida, ou seja, o

afastamento do sexo. Nesse sentido, a tarefa do bom

cristão seria eliminar o feérico e rebelde desejo que

nasce da carne e penetra nos interstícios da alma,

deixando-a em pecaminoso desassossego.

É interessante notar que, no rol das narrativas

populares, a preocupação com essas questões

cor-porais só aparece quando o enfoque é no

nasci-mento ou durante a infância do Pe. Cícero. Poucos

são os comentários sobre a fase de adulto. Entre as

raras "notícias" em torno da juventude, há uma

rá-pida referência que revela, mais uma vez, o

cuida-do com as palavras e os fatos que constroem a

"bi-ografia" de um santo. Trata-se de uma informação

colocada nas últimas estrofes do folheto de Cristo

Rei

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N a s c i m e n t o d e P a d r i n h o C í c e r o e a t r o c a m i s

-t e r i o s a d a s c r i a n ç a s : na hora do banho, o jovem

seminarista" n u n c a s e m o s t r a v a d e s p i d o / oso u t r o s t i r a v a m a r o u p a / e l e fi c a v a v e s t i d o / d e p o i s e n t r e osq u e l h e v i a / t o m a v a b a n h o e s a í a / e n uricafo i p e r c e b i d o " .

O banho vestido é mais um fato que só encontra

fundamento no imaginário dos fiéis. [a verdade,

todos os seminaristas da época banhavam-se de

roupa pregada no corpo. Era uma regra que se

es-tendia para os colégios comandados por padres e

freiras. Aquilo que aparece nos versos como uma

(5)

prâ-tica obrigatória e generalizada. Mas o que importa

para os limites da presente análise não é o

"resga-te" do real, e sim o que é retirado do imaginário

social para a construção de uma realidade mais

for-te e mais consisfor-tenfor-te no sentido religioso. A biogra-fia oficial do Pe. Cícero não seduz, não se origina da

fé nem lhe dá força. A consistência do Pe. Cícero é

uma causa e uma conseqüência do prodigioso

mundo da fé sertaneja (que tem atrás de si longa

história européia e oriental).

lkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A fin a l, " ... u m fo to p o d e n ã o te r a co n te cid o , co n tra ria -m e n te à s a le g a çõ e s d e u m cro n ista . M o s o fo to d e e le te r

p o d id o olírrnó-lo. d e te r p o d id o co n ta r co m o su o a ce ita çã o p e lo p ú b lico co n te m p o rã n e o , é p e lo m e n o s

tã o re ve la d o r q u a n to a sim p le s o co rrê n cia d e u m e ve n to ,

a q u a l, fin a lm e n te , d e ve -se 00 o ca so . A re ce p çã o d o s e n u n cia d o s é m a is re ve la d o ra p o ro o h istó ria d o s id e o lo g ia s d o q u e su a p ro d u çã o ; e q u a n d o u m a u to r

co m e te u m e n g a n o o u m e n te , se u te xto n ã o é m e n o s sig -n ifica tivo d o q u e q u a -n d o d iz o ve rd a d e ; o q u e im p o rta é

q u e o te xto p o sso se r re ce b id o p e lo s co n te m p o rã n e o s,

o u q u e se u p ro d u to r te n h o a cre d ita d o n e le . N e ssa p e rs-p e ctiva , o n o çã o d e "fa lso " é n ã o p e rtin e n te " (T o d o ro v,

1 9 9 1 .5 2 ).

D e p o is d e su o o rd e n a çã o , e m 1 8 7 1 , o s co m e n tá rio s so b re o co rp o d o P e . C íce ro d e sa p a re ce m . É co rre to su p o r q u e o s p o e ta s n ã o e n co n tra ra m d isp o siçã o p a ro fa la r so b re o ó b vio . D e p o is d e u m n a scim e n to se m ca rn e

e u m a in fã n cia se m co rp o , se ria re d u n d a n te , o u a té m e sm o u m a fa lto d e re sp e ito , fica r fa la n d o d o q u e n ã o

e xistia , o u m e lh o r, d o q u e n ã a p o d e rio e xistir. A a u sê n cia o u o co m p le to co n tro le d o se n sib ilid a d e co rp o ra l co n

ti-n u o u o m a rca r p re se n ça n o d e co rre r d o s n a rra tivo s, m o s d e fo rm o re cô n d ito , co m o u m p re ssu p o sto vita l, p o ré m im p lícito .

P e rce b e -se q u e , n o im a g in á rio p o p u la r, P e . C íce ro

g a n h a co n sistê n cia à m e d id o q u e se u co rp o to rn o -se a u se n te . In d ício d o id e o lo g ia cle rica l q u e p e n e tro u n a

a lm a d o s p o p u la çõ e s se rta n e jo s. P o r o u tro la d o , é vá lid o le m b ra r q u e o in te rfe rê n cia d o ca to licism o n a s vá ria s

cu ltu ra s d o T e rra d e S a n to C ru z n ã o fo i sim p le sm e n te u m a im p o siçã o a ce ito d e b ra ço s a b e rto s o u u m a in va sã o

n e g a d o co m la n ce s d e h e ro ísm o . N u m a p e rsp e ctiva m a is co e re n te , é p o ssíve l vislu m b ra r q u e o co m b a te d o s

m issio n á rio s n a s te rra s b ra silia n a s fo i lo n g o e p ro fu n d o , p o ré m n u n ca p ro d u ziu vitó ria d e fin itivo . N o co n ta to

e n tre cu ltu ra s d ife re n te s, ca d a in d ivíd u o se le cio n o , re in

-te rp re ta e re in ve n ta o d ife re n te . D e ssa fo rm o , é im p re s-cin d íve l sa lie n ta r q u e e ssa cu ltu ra d o s "e va n g e liza d o s"

g u a rd a p la n o s d e in su b m issã o a o s p ro g ra m a s o ficia is d o crista n d a d e ca tó lico .

U m e xe m p lo re ssa lta d o p o r C â m a ra C cscu d o : o

re lig io sid a d e d o p o vo n o rd e stin o n ã o d e p o sito g ra n d e co n fia n ça o u va lo r n o ce lib a to cle rica l. "O p e ca d o se xu a l

D e u s d e ixo u n o M u n d o p o rq u e fe z o s m e m b ro s

a p ro p ria d o s p a ro o fe cu n d a çã o . S ó se p e co p o rq u e E le p e rm ite ." (C a scu d o , 1 9 8 5 . 4 3 1 ). P io r é o tra içã o ,

q u e se e n q u a d ra n o â m b ito d o im p e rd o á ve l. "N e n h u m

h o m e m d o P o vo a cre d ito o u co m p re e n d e o ce lib a to cle rica l. (... ) E xig e -se d o p o d re a fid e lid a d e in fa líve l a o s

d e ve re s d o a ssistê n cia cristã ". P o r o u tro la d o , C a scu d o a firm o q u e "ce rta m e n te u m sa ce rd o te d e co stu m e s

a u ste ro s, p u ro , se m o ste n ta çã o e tro m b e ta , é re sp e ita d o

co m a d m ira çã o ." (1 9 8 5 . 4 3 1 ).

E m su m o , é p o ssíve l in fe rir q u e o ca stid a d e é u m

va lo r b á sico q u e , n o e n ta n to , p o d e a ssu m ir p a p e l se cu n d á rio . C a scu d o (1 9 8 5 . 4 3 1 1 le m b ro o co so d e

d o is p o d re s q u e co n q u ista ra m g ra n d e p re stíg io p o p u -la r e m N a ta l. o V ig á rio B a rto lo m e u (1 8 1 3 -7 7 ) e Jo ã o

M a rio (1 8 4 8 -1 9 0 5 1 . O p rim e iro p o ssu ía n u m e ro sa p ro le e o se g u n d o e ra "ca sto co m o u m cn jo ". "A m b o s,

a p ó sto lo s d o C a rid a d e , g e n e ro so s 00 sa crifício p e sso a l, n ã o tin h a m h o rá rio n e m te m ia m in te m p é rie s

n o so co rro a o s n e ce ssita d o s." Q u a n d o ce rta s q u a lid a d e s se m o stra m , o p o vo p o d e d e ixa r d e lo d o o

q u e stã o d a se xu a lid a d e . S in a l d e ce rta in su b m issã o a o s p rin cíp io s d o te o lo g ia o ficia l.

N o co so d o P e . C íce ro , p e rce b e -se , p e lo m e n o s n o p la n o d o se xu a lid a d e , u m a su b o rd in a cã o d o "im a g

i-n á rio p o p u la r" a o s p rin cíp io s d o Ig re la T rid e n tin a .

UM

CALEIDOSCÓPIO

DE MILAGRES

Como criadores e criaturas do imaginário que ca-nonizou o Pe. Cícero, os poetas populares são

jane-las por onde podemos vislumbrar várias histórias

de um mundo encantado, cheio de milagres,

profe-cias e mistérios. Na poética popular, encontramos

as narrativas que os romeiros guardam' no acervo

das informações vitais. Além do misterioso

nasci-mento, acompanhado por uma singular infância,

outros acontecimentos possuem livre trânsito no

imaginário dos fiéis, como os milagres do jovem

Cícero no seu período de seminarista. O caso do

chapéu agarrado na parede e a marca de ferro sem fogo é uma referência quase obrigatória:

"E quando no seminário os seus colegas ocupava os tornos lá da parede na hora que ele chegava que torno nela não via nela o chapéu sacudia e pregado ele ficava(. ..)

Seus colegas foram um dia os seus cavalos ferrar porém ele não querendo seu bichinho maltratar por cima a mão lhe passou e com o dedo aplicou seu ferro sem o queimar."

No folheto

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N a s c i m e n t o d o P e . C í c e r o n a c i d a d e d e C r a t o - C E ,José Bernardo nos conta o milagre do

(6)

padrinho

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" q u a n d o l e v a n t o u u m m o r t o n a s e r r a d e

S ã o P e d r o " .Outro caso de significativa popularidade.

Pelo fato de funcionarem dentro de uma "legislação do merecimento", os milagres do Pe. Cícero ligam-se à

possibilidade do castigo. Percebe-se que a conquista

de uma graça celestial e o recebimento de uma justa

penalidade enquadram-se dentro de uma lógica que

fornece coerência para o mundo e para as (re)ações de um santo. Além do curioso "Exemplo da moça que virou cobra porque falou do Pe. Cícero", existe um impressionante quadro de narrativas que nascem dessa lógica e, ao mesmo tempo, lhe dão força e concretude. No folheto Osm i l a g r e s d e P a d r i n h o C í c e r o ,o poeta João de Cristo Rei nos remete a um caso de significativa

popularidade no imaginário dos romeiros. Trata-se da

história de um rico fazendeiro, " q u e zo m b a v a d e m e u

P a d r i n h o / c o m s e u c o r a ç ã o m a l d o s o " . Em um

período de seca, esse fazendeiro mandou um

"portador" pedir ao Pe. Cícero "um tostão de

chu-va". Cumprindo as ordens, o "portador" levou o

dinheiro para o Pe. Cícero e recebeu " d o i s v i n t é n s

d e t r o c o " ,com a seguinte explicação: " u m t o s t ã o d e

c h u v a é m u i t o / n i n g u é m s u p o r t a a e n c h e n t e / p a r a

e l e s e a r r a n j a r / b a s t a t r ê s v i n t é n s s o m e n t e " . O des-tino do rico "com seu coração maldoso", como mostra

o desenlace da narrativa, foi trágico e justo:

"Nesse mesmo dia a tarde baixou em sua morada uma nuvem muito grande

com relâmpago e trovoada,

soltando raio e corisco

despejando uma chuva da

Então começou do céu

o nevoeiro baixando

a chuva grossa caindo as águas no chão rolando

a cheia cobrindo tudo

os animais se acabando

Ele vendo o tempo ruim

conhecendo que morria

gritou pedindo socorro

os vizinhos que havia e eles vieram todos lhe tirar desta agonia

Tiraram a família dele para fora do destroço

e ele gritando aflito

e nesse triste alvoroço quando saiu já estava

com água pelo pescoço

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7 6 R e visto d e C iê n cia s S o cia is v.2 6 n .1 /2 1 9 9 5

Salvou-se com a família mas o que tinha perdeu planta de cana e mandioca tudo desapareceu

o engenho caiu também

a bicharada morreu."

Sabe-se que, para o católico, há um constante

comércio de dádivas, visível na recorrente prática da

"promessa". O devoto pede, o santo dá e recebe o

previsto pagamento da "promessa". Mas, no caso acima,

o fazendeiro queria, com arrogância e "orgulho",

comprar chuva. Não respeitava o Pe. Cícero e profanou

a sagrada relação de trocas com as forças da

Eternidade. Conseqüência: o milagre veio em forma

de castigo. Além de desenvolver uma estratégia de

convencimento sobre o poder do Pe. Cícero, o poeta

deixa claro que, no mercado das trocas com o além, o

respeito é um elemento de inestimável importância.

Os poetas do povo sabem que a fé no poder do Pe. Cícero não é um fato universal. A fim de criar ou aumentar a crença nos prodígios do sagrado Juazeiro, a "literatura de cordel" não se cansa de lembrar os

perigos da vida sem a proteção do Pe. Cícero. No

final das narrativas que incorporam as profecias

atribuídas ao Patriarca, é freqüente o comentário sobre

o infeliz destino dos desprovidos de fé.

Em geral, segue-se uma escala de merecimento.

Quando o pecado ou o erro não é de grande porte, o castigo é menor, pois o padrinho é máximo guardião da justiça. Seu milagre não é aleatório, aparece dentro de uma irretocável coerência, sempre deixando uma

lição para o bom viver. No poema Osm i l a g r e s d o P e .

C í c e r o ,Expedito Sebastião da Silva nos informa sobre

o caso" d o r o m e i r o q u e v e i o / sóp a r a p r e s e n c i a r / d o P e . C í c e r o u m m i l a g r e / p r a e m s u a t e r r a c o n t a r ' . O

poeta insinua: o motivo que orientou a visita desse

romeiro misturou fé, ares de desconfiança e

curiosi-dade. Houve uma certa falta de respeito, o castigo

não foi de grande peso:

"Quando ele aqui chegou

ficou numa rancharia bem perto da residência que o Pe. Cícero vivia da casa do Santo Padre, um instante não saía.

Ele ali devido a sua

curiosidade ou crença,

com paciência esperava

(7)

Porém aquele romeiro o que quis não conseguiu, pois do Pe. Cícero, um só milagre não assistiu aí ele ao Santo Padre, se dirigindo pediu:

- Você promete entregar-lhe

a espingarda na mão?

- Prometo, disse o romeiro chorando de emoção depois dali retirou-se tristonho fitando o chão."

- Meu Padrinho, há três dias que estou em]uazeiro, pra do senhor assistir um milagre verdadeiro pra contar em minha terra como faz todo romeiro.

Como já foi comentado, existe uma certa

coe-rência na realização dos milagres. O que sofre

merece mais apoio e o descrente recebe justa

pu-nição (ou, como no caso acima, pode ganhar uma forte advertência ...). Mas sempre há uma lição para o bom viver. Os prodígios do Pe. Cícero não

possu-em somente a função de oferecer dádivas ou

pe-nalidades. Sempre carregam um exemplo para

entrar no inventário das orientações vitais.

O Pe. Cícero ouvindo o romeiro assim a falar, pousou nele sério os olhos depois disse a lhe fitar: não sou Deus, meu amiguinho, para milagre operar.

UMA HISTÓRIA SAGRADA

A "biografia popular" do Pe. Cícero, constituída

de elementos do sobrenatural, não termina com a

sua morte em 1934. Essa data apenas marca uma

nova fase na vida do taumaturgo, que,

temporaria-mente, deixa de morar em]uazeiro. Sua nova

resi-dência é no Paraíso Eterno, mas, com certa freqüên-cia, vem cumprir uma missão no mundo dos mortais fazendo milagres ou dando previsões.

Nos limites de uma investigação histórica, é obvio inferir que o Pe. Cícero possui uma historicidade.

Afinal, existe uma cronologia, um encadeamento

dos fatos que constitui sua existência concreta

captável pelos sentidos de qualquer mortal. Nessa

perspectiva, percebe-se um Pe. Cícero histórico,

en-volvido nos intereses de seu tempo, numa ordem

social historicamente constituída.

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Éo Pe. Cícero que

emerge dos documentos oficiais e promove calorosa polêmica no meio da intelectualidade.

Entretanto, nas narrativas populares, existe um

Pe. Cícero que está dentro e além dessa história

factual e profana. Está dentro porque há uma

bio-grafia, a vida de um indivíduo inserido numa certa

ordem cronológica de acontecimentos. Uma

histó-ria que sempre recebe a presença do sagrado, mas

não perde a historicidade, pois há uma vida que,

no final das contas, faz parte do social. Contudo, o

Pe. Cícero está além da história simplesmente

cro-nológica, da tessitura social: é desprovido de

maté-ria, ou melhor, de características fundantes do

cor-po humano, e sua vida faz parte de um temcor-po sem

começo nem fim. Flutua na eternidade. Sua

passa-gem pelo mundo dos pecadores é a manifestação

histórica de um ser eterno, com origem e destino

que se perdem na nebulosidade do infinito.

Por conta disso, os romeiros não costumam falar

em "morte" do Pe. Cícero. Em geral, declaram que, Mas como aquele romeiro

com o Pe. Cícero insistisse, para operar um milagre para que ele assistisse o padre pra ele olhando,

com severidade disse:

- Meu amiguinho, a você

vou um pedido fazer, quero saber se me faz para me satisfazer; o romeiro respondeu: faço com todo prazer.

- Pois bem disse o Pe. Cícero quando em casa chegar, você pegue a espingarda do vizinho e vá levar que você trouxe escondido, sem ele lhe emprestar.

- Pois com aquela espingarda todo dia o seu vizinho sai pela mata caçando pra matar algum bichinho pra comer com a família com seu humilde ranchinho.

(8)

em julho de 1934, o venerado padrinho "se mu-dou". O imaginário popular possui um rico estoque

de casos que mostram a marcante presença do

padrinho depois de 1934, nas mais variadas formas

de fazer curas, dar conselhos ou aplicar um

mereci-do castigo.

Mesmo depois da morte, o Patriarca de ]uazeiro continua vivo. Eis uma mola mestra do grande po-der de um santo protetor. Padre Cícero não morreu. Mudou de endereço, mas não abandonou os afilhados.

Continua sua obra e não esquece de fazer visitas,

sempre mostrando a potência do sagrado.

Para compor a dimensão histórica do Pe. Cícero,

o devoto não nega por completo a versão dos

his-toriadores oficiais. Há uma certa cronologia que

permanece: data e lugar de nascimento ou morte;

os estudos no seminário da Prainha; a volta para

]uazeiro; a guerra de 14 e outros "dados" guardam,

em sentido epidérmico, uma semelhança com o

relato exposto na bibliografia da nossa

fedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

v i s i o

i n t e l e c t u a l i s .Mas o entrelaçamento de significados

assume outras direções, o sagrado penetra no

cor-po das palavras como uma condição fundante do

discurso popular e o imaginário legitima toda sorte

de manifestações do sobrenatural.

No folheto On a s c i m e n t o d o P e . C í c e r o n a c i d a -d e -d e C r a t o - C E eom i l a g r e q u a n d o l e v a n t o u u m

m o r t o n a s e r r a d e S ã oPedro,o poeta] osé Bemardo

informa que o jovem Cícero morava no Crato e

" d e p o i sfoi p a r a o s e m i n á r i o / a p r e n d e r p a r a s e r p a d r e / d e j e s u s C r i s t o u m v i g á r i o " .Logo depois, o

poeta esclarece que o "biografado" pertence a uma

história sagrada, colocando-o no plano da

eternida-de ao eternida-declarar que Cícero" v e i o s a l v a r o p e c a d o r /

D e u sfoi q u e o m a n d o u / fa ze r o q u e é n e c e s s á r i o " .

O tempo cronológico dos homens se confunde com

a intemporalidade de Deus. A existência do

"mor-tal" emerge daquele que, ao mesmo tempo, é o

Alfa e o Ômega: o verbo ser no passado, no presen-te e no futuro.

Dando continuidade à sua narrativa, José Bernardo

afirma que Cícero " c o m 24 a n o s / o e s t u d o

c o m p l e t o u / n a o r d e m s a c e r d o t a l / c o m o p a d r e s e

o r d e n o u " . Nos versos subseqüentes, o poeta

con-tinua com livre trânsito entre o céu e a terra. Nessa

e em outras narrativas populares, é regra lembrar

que o Pe. Cícero está numa história que faz sentido a partir dos planos da divina providência.

As narrativas populares que focalizam a vida do

"Padrinho" seguem certos postulados que orientam

a hagiografia católica. Nessa perspectiva, a

humanidade tem sentido a partir de um plano

divi-no. E, dentro desse plano, Pe. Cícero ocupa um

lugar de inquestionável destaque. O Patriarca emerge

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7 8 R e v is tod e C iê n c ia s S o c ia is v .2 6 n .l/2 1 9 9 5

no espaço e no tempo dos homens (dimensões

orientadas por Deus) com uma missão de

inestimá-vel valor para combater os pecados e aumentar a

fila dos que vão ganhar o Paraíso Celestial. Existe

como um destacado personagem da história

sagra-da, ou melhor, católica.

Conforme Michel de Certeau 0982: 266-7), a

ha-giografia cristã não está limitada à Antiguidade ou à

Idade Média: percorre toda a história do

cristianis-mo. Foi produzida pela Igreja e por "leigos" (às vezes, vistos pela hierarquia eclesiástica como fanáticos que inventam episódios fora dos princípios teológicos ou

da "verdade histórica"). Nesse tipo de narrativa, "a

combinação dos atos, dos lugares e dos temas indica

uma estrutura própria que se refere não

essencialmente 'ãquilo que se passou', como faz a

história, mas 'ãquílo que é exemplar" 0982: 266).

Essa característica básica do relato hagiográfico,

destacada por Certeau, se faz presente nas crenças

que transitam em Juazeiro na medida em que as

narrativas populares sobre o Pe. Cícero sempre

destacam "aquilo que é exemplar". De acordo com

os folhetos citados e o depoimento de romeiros,

há, na vida do "Padrinho", um encadeamento de

fatos que revela uma combinação de virtudes e

milagres, no sentido de construir uma

"exem-plaridade". Sua existência entre os "mortais"

emer-ge com um sentido especial, orientado pela Divina

Providência. Um fluxo de palavras organiza-se para

seguir um modelo hagiográfico.

Analisando a estrutura do discurso hagiográfico,

Certeau constata que sempre existe uma "origem

nobre", manifestação responsável pela definição

dos atributos essenciais da vida de um santo.

"En-quanto a biografia visa colocar uma evolução e,

por-tanto, as diferenças, a hagiografia postula que t u d o

é d a d o n a o r i g e m com uma 'vocação', com uma

'eleição'(. ..)O santo é aquele que não perde nada

do que recebeu" 0982: 273).

A partir dessa análise, nota-se que a imagem do

Pe. Cícero (na religiosidade popular) possui uma

hagiografia e não propriamente uma biografia. A

biografia, conforme Certeau, se faz num processo

evolutivo: o biografado constrói-se sob influência

do viver, em simbiose com suas possíveis

"tendên-cias naturais"; ou até mesmo sob o sentido

deter-minado por Deus. Mas a vida de um santo não se

constrói no convívio com a humanidade. O santo já

é na origem: "tudo é dado na origem". Há um

sentido predeterminado e rígido. O santo já nasce

santo. Pe. Cícero veio ao mundo numa "troca

mis-teriosa" e não foi, portanto, o fruto de uma

conjun-ção carnal: já nasceu puro. De acordo com o citado

(9)

q u e a n a t u r e za / j á t i n h a

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o p r e d e s t i n a d o / e l e a p r e n d i a a d o u t r i n a / a n t e s d e s e r e n s i n a d o ( ...) " .

A hagiografia sobre o Pe. Cícero aqui citada é,

em certa medida, uma forma de construir ordem

para o sentido de tudo o que existe. Trata-se de

um ritual que reafirma valores primordiais de uma

determinada visão de mundo. Para os fiéis que

(reicríam o prodigioso mundo de Juazeiro, cada

milagre ou cada fato ligado ao Pe. Cícero é a ex-pressão de uma especial verdade enraizada em

prin-cípios fundamentais. Afinal, vale salientar que, em

sentido geral, as histórias do povo, ou melhor, os fatos incorporados nas tradições orais possuem, com maior

ou menor intensidade, um caráter de ordenação

ontológica.

As palavras de Mario Vargas Llosa, além de belas, são de grande valor para um melhor entendimento

dessa questão: "como para a sociedade, para o

indi-víduo também [o contar estórias] é uma atividade

primordial, uma necessidade da existência, uma

maneira de suportar a vida. Por que o homem

ne-cessita de contar e contar-se estórias? Talvez

por-que (...) dessa forma luta contra a morte e os

fra-cassos, adquire uma certa ilusão de permanência e

desagravo. É uma maneira de recuperar, dentro de

um sistema que a memória estrutura com a ajuda

da fantasia, esse passado que quando era

experi-ência vivida tinha a aparexperi-ência do caos. O conto, a

ficção, gozam daquilo que a vida vivida - em sua

vertiginosa complexidade e ímprevisíbílidade

-sempre carece: uma ordem, uma coerência, uma

perspectiva, um tempo fechado que permite

de-terminar a hierarquia das coisas e dos fatos, o valor das pessoas, os efeitos e as causas, os vínculos entre as ações. Para conhecer o que somos, como

indiví-duos e como povos, não temos outro recurso que

sair de nós mesmos e, ajudados pela memória e

pela imaginação, projetar-nos nestas 'ficções' que

fazem do que somos algo paradoxalmente igual e

diferente de nós. A ficção é o homem 'completo',

em sua verdade e sua mentira confundidas. (. ..)

Inventar não é, quase sempre, outra coisa que

to-mar-se certa desforra de vida que nos custa a viver,

aperfeiçoando-a, ou envilecendo-a de acordo com

nossos apetites e nossos rancores; é refazer a

ex-periência, retificar a estória real na direção que

nossos desejos frustrados, nossos sonhos

esfarrapa-dos, nossas alegrias ou nossa cólera reclamam" (A

S e n h o r i t a d e T á c n a .Rio de Janeiro, Francisco Alves,

1982. Citado por Rondelli, 1989: 47).

Nas histórias do povo, Pe. Cícero ganha consis-tência tal como deseja o imaginário dos peregrinos.

Constroem histórias que dão forma mais palpável

aos desejos. Refiro-me, sobretudo, aos desejos de

ver, concretamente, o que já existia nos ideais, na

pregação dos missionários que procuravam

evangelizar a Terra de Santa Cruz. A (re)produção

e a circulação de histórias sobre o Pe. Cícero guar-dam íntima relação com a vontade de ter bem pró-ximo um grande protetor. Assim, as narrativas chei-as de milagres do velho padrinho fazem parte desse

desejo, dessa predisposição para, diante de certos

acontecimentos - como a transformação da hóstia

em sangue -, encontrar manifestações do sagrado.

Afinal, o milagre ou a santidade, numa perspectiva

sociológica e não teológica, só existe quando - em

um determinado universo cultural - há um

conjun-to de crenças preparado para construir e legitimar

essa existência.

Vale lembrar: o catolicismo que veio para a Terra

de Santa Cruz carregou um código de regras que

fabrica vários esquemas de apadrinhamento. Além

do compadrio gerado na pia batismal, a religiosida-de do "Velho Mundo" plantou nas novas terras uma

rede de segurança constituída por padrinhos de

fogueira, padrinhos de casamento e a significativa

participação de protetores do além: os santos que

cuidam de partes do corpo (por exemplo: Santa

Luzia para os olhos); o santo da devoção particular; o padroeiro da cidade; o santo para cada profissão; o anjo da guarda ...

O compadrio era um parentesco definido pelo

acordo entre os pais e os futuros padrinhos. A

par-tir de um convite, um casal aceitava a adoção de

um afilhado. Ao ser batizado, o novo membro da

cristandade ganhava um casal de padrinhos, que

deveria dar a necessária proteção para o afilhado.

O padrinho e a madrinha deveriam ajudar e

orien-tar o afilhado, do qual recebiam atenção e

obediên-cia. Os pais e os padrinhos da criança

transforma-vam-se em compadres e comadres. Nascia uma

espécie de irmandade de ajuda mútua baseada em laços de confiança e respeito.

Com o catolicismo que acompanhou os

movimen-tos da colonização, o compadrio penetrou no modo de viver dos primeiros núcleos de população branca. No decorrer do tempo, essa forma de criar sólido

parentesco sob a égide do batismo se incorporou

em várias culturas que se formaram nas terras do

fragmentado Brasil. o sertão, ou na chamada

"região ordeste", o compadrio se transformou em

uma prática de inestimável importância para as

normas de ordenação social.

Em certa medida, o compadrio procura

reprodu-zir nas relações sociais a ordem natural do

univer-so. Em outras palavras, a ligação entre devoto e

protetores do além guarda íntima semelhança com

a relação senhor-camponês, que geralmente se re-

lkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

(10)

aliza com os laços do compadrio. Como ressalta

Duglas Texeira Monteiro, "o agregado escolhe o

fazendeiro como padrinho do filho porque o fazen-deiro é seu patrão. Ao mesmo tempo, é leal a esse

patrão porque ele é seu compadre" (citado por

Oliveira, 1985: 98). O princípio central desse

contrato reside no seguinte aforismo: os fortes po-dem e devem proteger os fracos. E a proteção deve

florescer no céu e na terra: com a misericódia da

corte celestial e a caridade dos potentados.

Nessa perspectiva, o catolicismo que penetrou

nos caminhos da caatinga deixou uma cultura da

proteção por meio da qual a existência de

potenta-dos e despossuípotenta-dos é plenamente justificada: Deus

fez o rico para proteger o pobre. A obediência é,

nesse sentido, o honroso comportamento do

cam-ponês que recebe o abrigo do generoso patrão.

Dessa forma, os laços de lealdade entre o senhor e

aquele que está sob sua proteção apresentam-se

como perfeitamente justos e coerentes, pois a

do-minação senhorial é vista como um bem criado por

Deus. Em certa medida, a desigualdade de

privilé-gios não é claramente percebida.

Os depoimentos de dois camponeses, citados a

seguir, expressam a visão do despossuído dentro

dessa forma de "dominação tradicional" e mostram que, apesar das mudanças, o "imaginário da

prote-ção" ocupa, ainda hoje, lugar de destaque:

fedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

' A p i o r c o i s a q u e t e m é a g e n t e n ã o t e r p a t r ã o ,

p a r e c e j u m e n t o s e m d o n o , a g e n t e n ã o s a b e a q u e m

p r o c u r a r " ( m o r a d o r - p a r c e i r o , s e r t õ e s d o s

I n b a m u n s , C E ) . " E u a c h o m e l h o r s e r m o r a d o r e

d i ze r a s s i m e u t e n h o p a t r ã o , d o q u e v i v e r

i n d e p e n d e n t e s e m p a t r ã o . P r a m i m e u a c h o m e l h o r

p o r q u e e u t ô v e n d o a í c o m o é . O c a b o c l o p o b r e

n u m t e m g a r a n t i a d e n a d a . S e e l e n u m t i v e r u m a

g a r a n t i a p e l o p a t r ã o d e q u e e l etâ v a l e n d o ? C a b o c l o

p o b r e fe i t o j u m e n t o s o l t o n o s t a b u l e i r o s p r a m i m

n ã o d á " ( m o r a d o r - p a r c e i r o , s e r t õ e s d e

Q u i x e r a m o b i m , C E ) .(citado por Barreira, 1992: 23).

É sobre esse território de protetores e protegidos

que floresce um grande padrinho: o santo de

]uazeiro. Nas construções do imaginário, aparece

um protetor que já existia nos ideais. A partir de

certos indícios, como o "milagre da Beata" e a

pró-pria' vida de caridade e oração do Pe. Cícero, o

imaginário da proteção inventou - por

instrumen-tos que, em certa medida, fogem da racionalidade

formal - um ser de eterna potência. Lembrando as

conclusões de Marc Bloch 0993: 278) em seu

es-tudo Os r e i s t a u m a t u r g o s , pode-se dizer: o que

criou a fé no Pe. Cícero foi a idéia de que ali devia haver um milagre, ou melhor, um grande protetor.

O Pe. Cícero dos devotos é um padrinho de

lkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

ím

-8 0 R e v is tod e C iê n c ia s S o c ia is v .2 6 n .l/2 1 9 9 5

perecível poder. Nessa cultura, o mundo é

consti-tuído por uma complexa rede de proteções. O ser

humano, por conseguinte, está inserido em laços

de apadrinhamento, apesar das inseguranças e

so-frimentos que marcam o desenrolar do tempo. As

palavras dos poetas populares partem desse

pres-suposto.

A

NEGAÇÃO DO PROTETOR

O padrinho que tem o dever da proteção pode,

também, aplicar o merecido castigo: o pai da com-paixão transforma-se em pai da punição. Nesse caso, o sofrimento assume um claro sentido de lição para

o incrédulo. O pecado mais recorrente, nesse

sen-tido, é o conjunto de declarações depreciativas

sobre a imagem do venerado patriarca. Para o

pe-cador, abre-se uma estrada de infortúnio e

doloroso arrependimento. Às vezes, a punição

as-sume larga intensidade: o pecador é transformado

em animal.

No cordel A m o ç a q u e v i r o u c o b r a , Severino

Gonçalves deixa para o leitor o assombroso

exemplo de um castigo. Trata-se da história da

" fi l h a d u m fa ze n d e i r o " que" n ã o a c r e d i t a v a e m

D e u s / e n e m n a V i r g e m M a r i a " . Não tinha fé

nos poderes de ]uazeiro e, certo dia, mandou um

romeiro dar o seguinte recado ao Pe. Cícero:

"Só creio no padre Cícero quando ele me castigar fizer eu cair as pernas meus braços se deslocar criar ponta e nascer dente correr virada em serpente mordendo quem encontrar.

Quando eu andar feito cobra com o bucho pelo chão os dentes como uns espetos' a cauda como um dragão

os olhos encarnado e feio

daí em diante eu creio no padre Cícero Romão."

O poeta informa que, no dia seguinte, a filha

do fazendeiro sumiu. Após três semanas, chega a

notícia sobre uma cobra que se arrastava nas ruas de ]uazeiro, em triste lamentação. Era a moça que, em forma de serpente, narrava seu impiedoso des-tino. Sua mãe, ao saber desse terrível castigo,

co-meçou a rezar e pedir misericódia ao poder de

Deus. No outro dia, o monstro apareceu e " t o d o

m u n d o c h o r o u / q u a n d o e l a c o m e ç o u / a c o n t a r

(11)

"Triste do cristão no mundo que fala da vida alheia termina assim como eu

leprenta cascuda e feia

vagando no mundo à toa

é infeliz a pessoa que Jesus Cristo odeia.

Quando eu zombei de padrinho era uma gentil menina

porém Deus me castigou

ando cumprindo uma sina

virada em uma serpente culpada disto somente foi minha língua ferina.

Eu vou para o Juazeiro assistir urna missão que vai haver hoje à tarde na matriz da Conceição chegou a hora marcada vou assistir à chegada do Frade Frei Damião.

Nisto a serpente marchou

se arrastando pelo chão

seguiu para o ]uazeiro

na prolongada extensão

quando chegou na cidade

gritou quando viu o frade

valei-rne Frei Damião."

Depois de fazer orações e solicitar ajuda do além,

o velho capuchinho realizou um grande milagre: "a

fedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

fe r a d e s e n c a n t o u - s e / e s t a v a s a n t i fi c a d a " . Essa

história, vale salientar, é o tema central de vários

folhetos. As narrativas mudam detalhes e certa

or-denação dos fatos, porém o conteúdo básico é o

mesmo: dar o exemplo da moça que virou cobra

porque falou mal do Pe. Cícero. No âmbito da

oralidade, esse caso (e suas variações) é tema de

assídua presença.

o caso aqui estudado, ou seja, na cultura dos

devotos de ]uazeiro, o castigo da metamorfose é

um fenômeno de profundo significado. Para os

poetas do povo, essa justa punição revela-se

quan-do o incrédulo falta com o respeito diante do Pe.

Cícero, do Frei Damião e das mães. O título de al-guns folhetos nos oferece uma boa referência dessa questão. Além das histórias da moça que virou cobra

porque falou do Pe. Cícero, encontramos um largo

acervo de casos exemplares: O r a p a z q u e v i r o u

b o d e p o r q u e p r o fa n o u F r e i Damiâo, de José da

Costa Leite; Op r o t e s t a n t e q u e v i r o u n u m u r u b u

p o r q u e q u i s m a t a r F r e iDarnião, anônimo; E x e m p l o

d a c r e n t e q u e p r o fa n o u F r e i D a m i ã o (e virou

macaca), de Vicente Vitorino: O r a p a z q u e v i r o u

b o d e p o r q u e s u r r o u a m ã e d e l e ,de Luís de Lira ou

A m o ç a q u e b a t e u n a m ã e e v i r o u c a c h o r r a , do

conhecido poeta Rodolfo Coelho Cavalcante.

Além de obedecerem a uma "pedagogia do medo"

que reafirma o poder do sagrado e converte o incré-dulo, essas narrativas nos falam, metaforicamente, sobre a diferença entre o homem e os animais. Nes-se Nes-sentido, a essência do homem Nes-seria a sua devoção. Sem o sagrado, seria um animal. O infiel estaria no plano dos inferiores por não possuir religião.

Se não tomar cuidado, o homem pode entrar numa transfiguração ontológica, pois, ao negar o sagrado, ele abandona a humanidade. Ao romper os laços com o protetor, perde-se a proteção; sem proteção, o ser perde a forma e penetra nas malhas do sofrimento.

Nota-se que o padrinho não abandona o afilhado, é

o protegido que, sob a égide do Satanás, nega o

protetor, ou seja, abandona a condição humana. O

homem constrói sua metamorfose nas trilhas do

pecado, quando obedece às ordens do Inferno e

entrega-se aos prazeres da sedução satânica.

O castigo confirma a existência do mundo como

uma estrutura dinâmica constituída por laços de

proteção. O (injfiel que nega o poder do Padrinho

Cícero recebe justa punição: clara evidência da

pri-mordial importância de se respeitar as tessituras do

apadrinhamento que vem do céu ou da terra. Na

esfera celestial, o respeito deve aparecer diante do

Pe. Cícero e Frei Damião, dois representantes do

grande poder divino. Na dimensão terrena, a mãe

ocupa um lugar que sempre exige um respeitoso

tratamento. Falta de postura digna diante da mãe é

outra fonte de castigo.

Um parêntese: é possível inferir que, na

configu-ração familiar dessa cultura, a mãe estaria mais pró-xima do sagrado. Não encontrei folhetos sobre cas-tigos que focalizem, nesse sentido, a figura do pai.

Certamente, indício da mentalidade que fala sobre

a pureza da "Santa Mãezinha", a mulher idealizada

nas elucubrações da Igreja Católica.

A

PRODUÇÃO DA VERDADE

Nas narrativas populares, os devotos constroem

verdades para o sentido da vida e de tudo que existe.

Verdades que, desde 1889, produzem o constante

fluxo das romarias para a "Terra da Mãe de Deus". Deve-se lembrar que as narrativas dos fiéis sem-pre colocam certos fatos dentro de uma lição para

o bom viver. Em cada história, há um exemplo que

mostra como as coisas são, como devem ser ou vão

ser. No substrato das narrativas existe uma revela-

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(12)

ção ontológíca que abre visibilidade para valores primordiais.

Emerge daí uma "verdade de sentido". Um casti-go ou uma dádiva do Pe. Cícero sempre aparecem

dentro de uma rede de significados que mostra a

estrutura do ser.

Para os devotos, as narrativas sobre o Pe.

Cícero são casos exemplares. O castigo e a dádiva

são

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p o s s i b i l i d a d e s r e a i s , que possuem um

sentido coerente.

Em certa medida, essa fé aproxima-se das

cha-madas "culturas primitivas", em que o real confun-de-se com o sagrado. Como afirma Mircea Eliade,

"no nível das culturas arcaicas, a hierofania é ao

mesmo tempo uma ontofania, a manifestação do

sagrado equivale a um desvelamento do ser e

vice-versa." (Eliade, Mircea. "Le symbolisme des ténêbres

dans les religions archaiques", " Ê t u d e s C a r m é

-l i t a i n e s " - P o l a r i t é d u S y m b o l e . Bruges. Desclée

de Brouwer, 1960:15. Citado por Menezes, 1985:

112). Assim, os milagres do Pe. Cícero são aberturas por onde o real e o seu sentido se mostram.

É imprescindível salientar que tais narrativas,

cons-tituídas por um complexo jogo de concepções da

tradição cristã, fornecem elementos que fundamen-tam significados vitais para a vida de cada devoto. Afinal, "o fiel que comungou com o seu deus não é

apenas um homem que vê verdades novas que o

incrédulo ignora: é homem que pode mais. Ele sente

em si força maior para suportar as dificuldades da

existência e para vencê-Ias." (Durkheim, 1989)

Juntamente com a doação de sentidos vitais, a fé

dos devotos fornece uma autodefinição. O fiel usa

suas crenças para se definir, para construir seu

ros-to, num processo de autovalorização. Há uma

enig-mática força quando o fiel declara: " m e u p a d r i n h o

C í c e r o " . Nesse momento, ele anuncia que é

afilha-do afilha-do Patriarca, que é um romeiro da "Terra da Mãe de Deus". Um mortal que possui parentesco com o enviado do Divino.

De forma geral, esse processo de autovalorização é uma característica presente no universo de outras

manifestações religiosas. Bom exemplo disso é a

indagação que Carlos Rodrigues Brandão 0980: 141) recebeu durante a pesquisa para a sua tese de

dou-torado Osd e u s e s d o p o v o . Com a mão na Bíblia,

um fiel da "Pentecostal Independente" se dirigiu

ao pesquisador e disse: "Veja, eu sou preto e sou

pobre, mas sou crente e um salvo no Senhor. E o senhor?"

Acreditar na trajetória miraculosa do Pe. Cícero,

ouvindo e (re)produzindo h i s t ó r i a s d e u m m u n d o

e n c a n t a d o , é construir um ritual de exteriorização

da fé, dando-lhe forma e visibilidade. Significa

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8 2 R e v is tod e C iê n c ia s S o c ia is v .2 6 n .1 j2 1 9 9 5

materializar um sentimento, uma paixão. Um

so-nho que não tem - para a infelicidade do

pesquisa-dor cartesiano - origem e funcionamento

plena-mente definidos.

Cada "causo do padrinho" alimenta essa mesma

fé que produz o encantamento, as palavras sobre

os milagres de Juazeiro. A fé produz histórias e as

histórias produzem fé. Por conta disso, a "literatura de cordel" pode ser uma via de acesso para estu-dos sobre o imaginário religioso. Mas é sempre

vá-lido lembrar que as histórias populares penetram

na memória dos fiéis de forma desigual e sofrem

processos de reelaboração. Não há um estoque de

informações que é simplesmente absorvido por cada

devoto. A margem das peculiaridades é larga e

di-nâmica, embora enclausurada em fronteiras de

con-siderável rigidez.

Nesse rápido estudo sobre "imagens do Pe. Cícero

na literatura de cordel", procurou-se vislumbrar a

fé dos que se serviram de histórias encantadas para

(re)construir o grande santo da proteção. Em

ou-tras palavras: entramos em contato com parte das

narrativas que circulam nos vários caminhos das

devoções de Juazeiro. Na poética dos folhetos de

cordel, os devotos constroem verdades que

forne-cem sentido e força para o viver.

Paul Veyne 0987: 11-12) tem razão ao afirmar

que" ... em vez de falar de crenças, devíamos,

afi-nal, falar de verdades. E que as próprias verdades

eram elas próprias imaginações. Não fazemos uma

idéia falsa das coisas; é a verdade das coisas que

através dos séculos, é estranhamente constituída.

Longe de ser a mais simples das experiências

rea-listas, a verdade é a mais histórica de todas elas.

C .. )esta imaginação é uma faculdade, mas no

sen-tido kantiano da palavra; ela é transcendental;

cons-titui o nosso mundo, em vez de ser o seu fermento

ou seu demõnio. Só que, e isto faria desmaiar de

desprezo todo o kantiano responsável, este

trans-cendental é histórico, pois as culturas sucedem-se

e não se assemelham. Os homens não encontram a

verdade. Fazem-na, como fazem sua história, e elas

pagarn-lhes na mesma moeda".

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Referências

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