• Nenhum resultado encontrado

A MORTE EM RIO GRANDE NO SÉCUL O XIX: UMA ABORDAGEM HISTÓRICAo

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "A MORTE EM RIO GRANDE NO SÉCUL O XIX: UMA ABORDAGEM HISTÓRICAo"

Copied!
7
0
0

Texto

(1)

r:::

\

A MORTE EM RIO GRANDE NO SÉCULO XIX:

UMA ABORDAGEM

HISTÓRICA

o

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

PAULO SÉRGIO ANDRADE QUARESMAoO

Se alguma vez eu sorrir, se alguma luz refugir, por entre tanta amargura, não' cuides ser de esperança: - as flores brotam, criança,

também sobre a sepultural

RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir os preceitos iniciais que envolvem as atitudes coletivas e o imaginário da morte na cidade do Rio Grande no século

XIX, especificamente no início da década de 1880, enfocando os

sepultamentos e o papel das irmandades e ordens terceiras nos rituais

fúnebres.

PALAVRAS-CHAVE: Morte, atitudes coletivas, imaginário, ordens religiosas.

No mundo que compõe a totalidade dos seres vivos (vegetal e animal), podemos afirmar que todos, "exceto as bactérias e alguns protistas elernentares'", estão fadados

à

morte. Mas não é possível aceitá-Ia simplesmente, como concretização final de um raciocínio perante as estruturas sócio-culturais e econômicas relacionadas aos seus mecanismos funcionais. Estudar os mecanismos e estruturas que envolvem a morte não se restringe unicamente

à

compreensão dos estágios físicos que compõem a degenerescência dos órgãos vitais, que provoca, por sua vez, o colapso interno do indivíduo, causando o óbito "natural". Se este fosse o caso, concordaríamos com os enunciados de especialistas da área de saúde, que encerram qualquer discussão a respeito do assunto. Como exemplo, para o geneticista, "(...) a morte, isto é, a saída do mundo vivo, corresponde

à

oArtigo desenvolvido junto ao projeto "Morte e mortalidade diferencial: um estudo na cidade do Rio Grande no século XIX (1880-1900)", coordenado pelo Prof. Dr. Luiz Henrique Torres no Departamento de Biblioteconomia e HistórialFURG.

00 Acadêmico do Curso de História - Bacharelado/Bolsista de Iniciação Científica -CNPq/FURG.

1Eduardo de Araújo,

MLKJIHGFEDCBA

E c h o d o S u l, 2 fev. 1883, p. 1.

2Ruffié, 1988, p. 220.

(2)

parada de um conjunto dos processos bioenergéticos e das funções que eles subentendem, sendo o conjunto dirigido pelo nosso patrimônio genético. Na nossa morte, esse patrimônio, cuja atividade exige energia, torna-se mudo. Ele pára de dar ordens.r'"

Já para o tisioloqista" a morte compreende-se como "a parada completa e definitiva (entendam: irreversível) de todas as funções vitais.

É

rapidamente seguida pela desorganização das estruturas teciduais e celulares"."

As diferentes explicações expostas restringem-se apenas em um nível gramatical e lingüístico, para um fato que é igual para ambas: a definição do colapso irreversível do sistema vital dos seres vivos, isto é, a morte. Há, para o homem, uma definição mais complexa para afirmar o fim do funcionamento de todos os órgãos. Para os seres humanos, podemos definir a morte "natural" da seguinte forma:

(...) uma fase de agonia caracterizada por queda de pressão arterial e por uma série de anomalias nos batimentos cardíacos. Ao mesmo tempo nota-se uma prostração gradual como perda de consciência. No que se refere ao coração, em geral apresenta ou uma parada total, ficando o músculo inerte, ou uma fibrilação ventricular. Mal irrigado, ou não irrigado, o tecido nervoso (em particular o encéfalo) degenera muito rapidamente (entre 2 e 8 minutos, conforme o caso).

A circulação e a respiração estão abolidas, o coração parado em diástole, a cavidade torácica em expiração. (...) Mas quaisquer que sejam as condições de sua morte, os olhos abertos ou semicerrados tomam um aspecto vítreo, ficando a pupila dilatada (midríase). O corpo ainda morno é mole e tem uma palidez de cera. Essa laxidão muscular dura de 4 a 5 horas."

Nas sociedades mais antigas, o cadáver era colocado no caixão no dia seguinte, para ser transportado à igreja para ter a alma "encomendada" e depois ser conduzido "a pé" ou de "carro" - carroça ou charrete na nomenclatura atual - para o sepultamento no cemitério. Em Rio Grande, os "carros recebiam os corpos nas igrejas, depois de encomendados. Também poderiam receber os corpos nas casas e conduzi-Ios para as igrejas".7

Ainda persistem algumas nuanças ao redor do assunto

morte.

Abordar esse assunto é diferente de falar da pessoa morta. A atitude de pensar sistematicamente "na morte e falar constantemente dela trai uma atitude classificada como patolóqica'" e mórbida entre os indivíduos, inclusive nos próprios meios universitários, local que deveria ser propício à discussão de fatos, discursos e acontecimentos científicos. Mas "falar

3Op. cit., p. 209.

4 Fisiologia é a ciência que trata das funções dos órgãos pelas quais a vida se manifesta. s Ruffié, Op. cit., p. 209.

6Idem, p. 210

7Rodrigues, 1985, p. 50.

eDaMatta, 1991, p. 146.

34

BIBLOS, Rio Grande, 11: 33·44,1999.

abertamente da morte define uma atitude moderna e destemida diante da vida, algo que denuncia um questionamento 'científico' e uma atitude 'tranqüila' e resignada face a um momento que, um dia, espera-se, será decifrado como tudo o rnaís"."

O nosso objetivo não é entender somente a estrutura fisiológica da morte, mas sim o conjunto das atitudes e do imaginário coletivo com relação a ela. Este artigo se propõe, deste modo, discutir as atitudes associadas à morte na cidade do Rio Grande no final do século XIX, especificamente o início da década de 1880, através de anúncios fúnebres e religiosos publicados na imprensa local, tanto pelos familiares e amigos como, principalmente, pelas Irmandades e Ordens Terceiras existentes na cidade

6 as quais eram "organizações católicas leigas que, entre outras funçõas'" sociais, econômicas e políticas, criavam uma rede "familiar" ou associativista de auxílio e sociabilidade da população livre, liberta ou escrava, que tinha como uma das obrigações religiosas tratar de assistir os "funerais de seus membros" 11, conforme os seus estatutos.

As principais irmandades e ordens religiosas em Rio Grande, que possuíam catacumbas no cemitério católico e por isso podiam praticar os sepultamentos de seus irmãos, eram: Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo (com capela própria), Irmandade de Nossa Senhora da Conceição (com capela própria), Irmandade da Santíssima Virgem Maria das Sete Dores, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (capela destruída por um incêndio), Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis (com capela própria) e Irmandade de São Miguel e Almas. A Irmandade do Senhor Jesus do Bom-Fim (com capela própria) e a Irmandade de Nossa Senhora Sant'Ana não praticaram nenhum sepultamento de irmãos na década de 1880.

Paralelamente às Irmandades e Ordens Terceiras, havia associações classistas que realizavam um trabalho de auxílio, visto que, durante o Império brasileiro, não existia um órgão nacional que tivesse como intuito o auxílio dos mais carentes financeiramente, havia somente as associações particulares e religiosas. Podemos identificar, neste período de estudo, em Rio Grande, a Sociedade Beneficente dos Artistas, composta de artistas nacionais e estrangeiros e suas famílias, que tinha em seus estatutos artigos que diziam respeito ao sepultamento de seus sócios. Obtemos apenas alguns fragmentos do seu estatuto em 1882, porém suficientes para termos uma idéia clara dos objetivos sociais desta entidade civil.

Capítulo 11

Da Beneficência dos sócios

Artigo 70 - A diretoria dará ao sócio enfermo até a quantia de 16$000 réis,

9Idem.

10Reis, 1991, p. 13.

11Idem, p. 13.

BIBLOS, Rio Grande, 11: 33-44,1999.

(3)

lil!!I[' ,,111

,1,

mensais, deduzindo dela a mensalidadeMLKJIHGFEDCBAd e v id a para o conservar sempre quites. Capítulo 12

Dos Enterros dos sócios e beneficência de suas famílias

Artigo 72 - Logo que constar ao presidente ter falecido algum sócio, mandará o procurador da sociedade informar-sese a família dispõe de meios para o enterro. Artigo 73 - Verificando-se que o sócio morreu na indigência, lhe será feito o enterro do modo que for compatível com as forças da sociedade, ou por subscrição entre os sócios.

Artigo 75 - A despesa com o enterro de qualquer sócio não excederá de cinqüenta mil réis (50$000) incluindo a da missa, do que se dará parte à diretoria.12

o

período que estudamos é extremamente profícuo e essencial, pois ao longo do século XIX observa-se uma mudança da mentalidade coletiva diante da morte. Se no início do século era vital para a salvação da alma os falecidos serem sepultados dentro dos átrios da igreja de devoção e aceitável por todos, na segunda metade do século observa-se o inverso: devido aos surtos epidêmicos e à exalação de supostos fluidos miasmáticos pelos cadáveres, ocorre uma necessidade de transferência para uma distância "satisfatoriamente saudável" dos mortos.

As reclamaçõespopulares foram crescendo e atingiram o auge em1855, quando da epidemia de cólera, época em que o número de óbitos era tão grande que o mau cheiro que e x a la v a dos cemitérios impedia o v iv e r normalmente. Nesse tempo, a Câmara autorizou o funcionamento precário do cemitério, dito extramuros, pois ficava além das trincheiras, sendo o primeiro sepultamento feito o dajo v e m Marcellina,vítima do cólera(13de dezembro de1855).15

A Sociedade Beneficente dos Artistas tinha um compromisso de auxílio às famílias dos seus sócios após a morte destes. Ela auxiliava as viúvas e os órfãos quando da morte prematura do "provedor" da família, conforme as condições financeiras da mesma.

Artigo 82 - As v iú v a s dos sócios perceberão também uma pensão proporcionada à posse da sociedade, conforme o número de filhos que t iv e r e m , não sendo incluída nessa pensão a quantia que perceberem para vestuário e calçado.

Artigo83 - Falecendo também av iú v a do sócio a sociedade d e v e r á mandá-Ia sepultar, tomando sob sua tutela os filhos órfãos, caso não tenham tutor, obrigando-os a freqüentar as aulas primárias, e aplicando-os a um ofício. Artigo 84 - Serão também socorridos com pensões proporcionalmente às pessoas da sociedade, os sócios que por incapacidade física ou moral ficarem privados dep r o v e r a sua subsistência ou de sua família.

13

Após as reclamações exaustivas da população, a Câmara Municipal informa à Assembléia Provincial a decisão de proibir os sepultamentos em lugares religiosos.

Tendo sido proibidos os enterramentos dos c a d á v e r e s nas igrejas, sacristias ou consistórios e bem assim no cemitério e catacumbas do Carmo; sendo designado, para enterrar osc a d á v e r e s dos que forem católicos, o cemitério e catacumbas a cargo da Santa Casa de Misericórdia e, reconhecendo a Câmara que este cemitério hoje se acha em lugar assaz impróprio, pelo crescimento da cidade sobre aquele lado, que do seu estabelecimento em tal lugar resultam gravíssimos males; que afetam inquestionavelmente a salubridade pública; e, que finalmente, impede o progresso da cidade, porque sendo, como é, (...) resolveu a criação de um cemitério geral e nomeado comissões de seu seio, fez levantar a necessária ~Ianta; convidou asd iv e r s a s ordens e irmandades a tomar parte no cemitério. 6

Voltando à análise das Irmandades e Ordens Terceiras, consideramos como as mais importantes, dentre as corporações leigas religiosas, devido ao substancial número de anúncios para as missas em sufrágio dos irmãos falecidos, a Ordem do Carmo e de São Francisco, que praticaram também um número considerado de sepultamentos. Dentre as Irmandades e as Ordens Terceiras, a única a possuir e dirigir um hospital e ter um cemitério era a de Nossa Senhora do Carmo, de acordo com anúncio publicado abaixo:

Através do número de sepultamentos ocorridos entre 1855 e 1861, podemos observar a plena aceitação por

parte

da população do novo cemitério extramuros ou fora das trincheiras 1 da cidade, caindo em desuso o cemitério dito do Bom Fim. "O movimento no cemitério novo, entre 1855 e 1861, foi de 2390 sepultamentos, sendo que 1851 eram pessoas livres e

549 eram escravos. Neste período foi construído um cemitério próprio e decente para os que professavam uma religião diferente da católica (p rotestante )" .18

Conforme e s t a v a anunciado, realizou-se no dia 1.º a inauguração do n o v o hospital da V. O. 3.a do Carmo com numerosa concorrência dep o v o , não só aos atos religiosos, de manhã, como durante o dia e à noite.

O aspecto geral do edifício é belo e de efeito sobre modo agradável.

A atual mesa administrativa, com os recursos de que dispõe, muito tem feito pelo engrandecimento da Ordem, como p r o v a o n o v o hospital, que sed e v e em parte, como já dissemos, aos valiosos concursos do irmão prior e aos

esforços e perseverança dos seus dignos companheiros de mesa.14 ~: Rodrigues, op. cit., p. 50. Idem, p. 50-51.

17 Aceitava-se como limite da cidade a chamada Trincheira, que "era uma amurada com três baluartes, com portão próximo àatual rua Aquidaban, feita de tijolos, barro e conchas quebradas; ia do canal do Rio Grande ao saco da Mangueira, onde hoje fica a rua Major Carlos Pinto". Para saber mais, ver Rodrigues, op. cit.

18Rodrigues, op. cit., p. 58.

1 2 E c h o d o S u l, 27 de .lul. 1882, p. 3.

13Idem, ibidem.

14Idem, 4 fev. 1880, p. 1-2.

(4)

As atitudes do homem perante a morte se transformaram profundamente neste século, verificando-se uma verdadeira ruptura histórica e mental, comparada com o século XIX. "As manifestações de luto (vestimentas negras, não-participação da vida social e inúmeras outras interdições), expressão da dor das saudades e do dilaceramento da separação, eram escrupulosamente respeitadas por um período necessário para a cicatrização da ferida e para a reintegração dos parentes às condições normais de vida,,19. Era dada uma importância à simbologia da indumentária que compreendia o luto. Quando a família não possuía os recursos necessários, havia, em alguns casos, o auxílio dos familiares ou amigos do falecido ou do cônjuge viúvo, que a imprensa denominava de "atos meritórios":

Os empregados da mesa de rendas provinciais desta cidade acabam de praticar um ato que muito honra os seus sentimentos de caridade e seu espírito de coleguismo.

Por morte de Manoel Gomes Limeira, moço pobre, ficou sua viúva reduzida a extrema pobreza, completamente abalada de recursos, a ponto de não ter sequer para vestir de luto seus inocentes filhinhos, quanto mais para fazer o enterro de seu malogrado esposo.

Cientes disto, seus colegas de repartição tiveram a nobre idéia de promover entre si uma subscrição e com o seu produto não só fizeram o enterro do seu finado companheiro, mas também forneceram o luto à sua infeliz viúva e filhos.

É um ato meritório que registramos com íntima satisfação, dirigindo aos que os praticaram as nossas sinceras felicitações".2o

Muitos aspectos permaneceram os mesmos, contudo o sentido original perdeu-se. Atualmente há a simplificação e agilização para pôr fim o mais breve possível àquele momento em que os familiares e amigos despedem-se do morto. "A morte, tão presente, tão doméstica no passado, vai se tornando vergonhosa e objeto de interdição?". O mesmo fato, se acontecido no século XIX, tornava-se um momento propício e natural para a manifestação de todo um conjunto de gestos e circunstâncias que facilitassem a passagem do mundo dos vivos para a morada dos mortos, papel em que as irmandades tinham um destaque maior.

v. o.

3.! de N. S. do Monte do Carmo

A mesa administrativa manda celebrar uma missa em sua igreja quarta-feira 23 do corrente às 8% horas da manhã, por alma de sua irmã D. Maria das Dores da Cunha Pereira, para cujo ato convida a família, parentes e pessoas da amizade da finada, bem como a todos os irmãos da Ordem.

Consistório, em19de Junho de1880. O secretário.

Joaquim Antunes Guimarães.22

19Maranhão, 1996, p. 9.

20

MLKJIHGFEDCBA

E c h o d o S u l, 21lev.1880, p.1-2.

21Maranhão, op. cit., p. 9.

22 E c h o d o S u l, 20 jun. 1880, p. 2.

38 BIBLOS. Rio Grande, 11: 33·44,1999.

Outro aspecto relacionado às atitudes diante da morte em Rio Grande, que merece uma abordagem, são as sociedade musicais, que em muitas ocasiões acompanhavam o féretro da igreja ao cemitério, tocando partituras "adequadas" para a ocasião. Entre estas sociedades, podemos destacar: o Club Diógenes, o Club Mina Genuíno, a Filarmônica Lyra Artística, a Banda Duas Coroas e a Sociedade Musical Floresta Rio-Grandense. Participavam dos ritos fúnebres em três casos: quando convidadas, ou espontaneamente; o terceiro caso dava-se quando um dos membros filiados morria, ocasião em que a sociedade musical sentia-se na obrigação de prestar as suas últimas homenagens ao sócio falecido. Como exemplo, temos o caso observado do Sr. Iduino Hollanda Cavalcanti (falecido em 30/1/80), que era "sócio executante da sociedade musical F lo r e s t a R io - G r e n d e n s e " , cujo enterro, além de ter sido "muito concorrido", teve no "préstito as filarmônicas F lo r e s t a R io - G r a n d e n s e e L y r a A r t í s t ic a " . 2 3

Não somente as irmandades religiosas "facilitavam" a passagem do irmão falecido para o mundo dos mortos através das missas compromissais, como a própria família realizava os seus próprios ritos na intenção de salvar e manter em paz a alma do morto.

Mathias Rodrigues Vasques e sua família, cordialmente gratos se confessam agradecendo a todos os cavalheiros que se dignaram fazer-Ihes o caridoso obséquio de acompanhar o corpo de sua prezada filha Thereza R. Vasques, da casa de sua residência, à igreja do Carmo e dali ao cemitério, igualmente a todos os respeitáveis irmãos da V. O.3.ª deN. S. do Monte do Carmo por sua assistência à encornendação.f"

Na segunda metade do século XIX verifica-se um considerável crescimento e desenvolvimento econômico do Brasil Império. Nas terras do Sul, a cidade do Rio Grande se destacará como o principal entreposto comercial de exportação/importação de gêneros alimentícios, de vestuário, produtos de luxo, armamentos etc., por possuir o único porto marítimo neste período do Brasil Meridional. Será beneficiada com a exportação do charque proveniente da cidade de Pelotas e interior da província, através de seu porto, comercializando entre as províncias do Brasil e as repúblicas do Prata. A partir de 1870 há o estabelecimento de inúmeras indústrias, proporcionando um aumento significativo ao nível do desenvolvimento econômico e urbano no Rio Grande.

O estudo das atitudes diante da morte têm um "valor exemplar e específico, pois a morte representa um 'invariante' ideal e essencial na experiência humana. É um invariante relativo, todavia, visto que as relações dos homens com a morte se alteraram, como também a maneira como ela os atinge, embora a conclusão permaneça a mesma: é a morte ... Eis por

23 E c h o d o S u l, 1 lev. 1880, p.2.

24Idem, 10 lev. 1880, p. 2.

(5)

que, ao fim de toda a aventura humana, a morte continua um revelado r

particularmente sensível,,25. Com relação ao nosso objeto de estudo - Rio

Grande no início da década de 1880 - observamos que dos 689

sepultamentos realizados na cidade, cerca de 16% do total da população

foram sepultados em catacumbas das Irmandades ou Ordens Terceiras do Rio Grande, e 84% do total da população foram sepultadas em catacumbas e covas comuns do cemitério geral, a cargo da Santa Casa. Estes números

persistem, também, quase os mesmos quando são observados

diferentemente os sepultamentos de adultos e menores. Adultos: 17% em

catacumbas das Irmandades e Ordens e 83% catacumbas e covas do

cemitério geral; menores: 14% em catacumbas das Irmandades e Ordens e 86% nas catacumbas e covas do cemitério geral.

Os dados obtidos acima são significativos, principalmente se

compararmos com a população do Rio Grande em 1881, que era "calculada

em mais de 19.000 almas,,26. Aceitando aquele valor numérico, e se a

porcentagem de 16% dos sepultamentos em catacumbas pertencentes às

ordens religiosas fosse transportada para uma comparação com o número

total de habitantes, conforme anúncio publicado no jornal

MLKJIHGFEDCBA

E c h o d o S u l,

teríamos uma cifra que giraria em torno de três mil afiliados nas ordens

religiosas. Contudo, não podemos comprovar esta afirmação, por não

possuirmos bases documentais concretas que comprovem o número de

filiados nas ordens religiosas. Mas este valor denota, g r o s s o m o d o , um

destaque respeitável dado às ordens religiosas no cotidiano diário da

sociedade rio-grandina. Aos olhos desta população do passado, as ordens religiosas possuíam uma importância e um poder social muito significativo,

na solução dos problemas sócio-econômicos provocados pela morte

prematura dos esposos, filhos menores, jovens mães, etc. Possuímos

dados que comprovam que não somente os filiados, também os cônjuges

viúvos e os órfãos dos irmãos falecidos tinham direito a um auxílio

pecuniário, além de poderem ser sepultados nas catacumbas pertencentes

à ordem religiosa associada do falecido, caso a família não tivesse

condições financeiras para isso.

V. O. 3.! de Nossa Senhora do Monte do carmo'"

Tendo de serem exumados os restos anjinhos sepultados nas catacumbas

constantes do quadro demonstrativo abaixo, convido aos pais, pessoas ou

interessados na conservação dos ditos restos, nas referidas catacumbas, a

se entenderem com o irmão procurador geral Alexandre José da Silva, isto

até o dia 14 de Outubro p. futuro, que serão recolhidos ao depósito geral da

ordem.

25Vovelle, 1991, p. 128-129.

26 E c h o d o S u l, 19 out. 1881, p. 2.

27E c h o d o S u l, 16 set. 1880, p. 2.

40 BIBLOS, Rio Grande, 11: 33-44.1999.

Nomes NQda Meses Ano

Catacumba

Oscar, filho da irmã D. M.ª José de C. e Silva 1 Agosto 1877

Albertina, filha do irmão Antônio M. da Silva 2 Setembro "

Manuel, filho do irmão Joaquim F. Coelho 3 Outubro "

M.ª Faustina, filha do irmão Manuel R. Vianna 6 " "

~udith, filha da irmã D. Amélia Ravara Bezerra 8 Dezembro "

Elvira, filha do irmão José A. dos Prazeres 9 " "

Maria, filha da irmã D. Amália L. dos Santos 10 " "

Carlos, filho da irmã D. Julieta B. Torres 11 Janeiro 1878

/João, filho do irmão Francisco R. de Oliveira 12 " "

Alzira, filha do irmão Antônio José Femandes 13 " "

Izabel, filha da irmã D. Clementina Bezerra 14 Março 1878

Antônio, filho da irmã D. M.ª Antª. E. Barreto 15 " "

M.ª Luiza, filha do irmão Eduardo de Almeida 16 " "

Xerxes, filho da irmã D. Amélia S. Barbosa 17 Abril "

Cecília, filha do irmão José B. da Rocha 18 " "

Eulália, filha do irmão Manoel Furtado Gomes 19 " "

UUdith, filha do irmão Eduardo de Almeida 20 " "

Lydia, filha do irmão Femando Joaquim Penna 23 " "

Alfredo, filho do irmão José Ferreira Coelho 24 Maio "

Manuel, filho do irmão Manuel J. da S. Bastos 25 " "

Alfredo, filho do irmão Manuel J. da S. Bastos 26 Agosto "

Eulinta, filha do irmão Luiz Alexandre Duarte 27 " "

Sebastião, filho do irmão Sebastião de Araújo 28 " "

Iothon, filho do irmão Luiz Alexandre Duarte 29 Setembro "

Angélica, filha do irmão Luiz da Costa Amaro 31 " "

Honorina, filha da irmã D. Maria Delcorona 32 " "

Canos, filho da irmã D. Joana Lobo Frick 33 Janeiro "

Amália, filha do irmão Manuel J. da S. Bastos 34 Outubro "

Domingos, filho do irmão Domingos J. Duarte 35 Setembro "

~oão, filho do irmão José Pereira da Silva 36 Outubro "

Olvmoia, filha do irmão Auausto Luiz da Silva 38 " "

Rio Grande, 14 de Setembro de 1880. O Vigário do Culto Divino,

M. R. Vasques

O quadro acima demonstra, mesmo não possuindo documentos que corroborem nosso pensamento, que os sepultamentos dos filhos dos irmãos nas catacumbas pertencentes às irmandades e ordens religiosas era uma

prática usual e comum, o qual era usufruído por todos os irmãos, sem

distinção de sexo.

Um caráter que as Irmandades e Ordens Terceiras possuíam era

realizar missas em sufrágio da alma dos irmãos falecidos nas datas

comemorativas do seu passamento, mesmo daqueles que não morriam nem

eram sepultados na cidade, comprovando a existência de uma ligação de

solidariedade e compromisso entre os irmãos associados às Irmandades.

BIBLOS. Rio Grande. 11: 33-44.1999.

(6)

v.

O.3."de N. S. do Monte do

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

carrno'" A mesa administrativa manda celebrar uma missa em sua igreja quarta-feira

4 de Agosto, às 8 Y2 horas da manhã, por alma de sua irmã D. Nerina Teixeira de Miranda, falecida em S. João do Monte Negro, para cujo ato convida a família, parentes e pessoas da amizade da finada, bem como a todos os irmãos da ordem.

O secretário

Joaquim Antunes Guimarães

Os fiéis pobres se associavam a Irmandades (confrarias religiosas voltadas para a prática de obras de misericórdia) muitas vezes porque, além de garantir "a sua própria salvação assegurada pelas orações dos seus confrades no dia de sua morte", em certas situações também obteriam, para ter enterrado o seu cadáver, o jazigo pertencente

à

irmandade filiada. Para os trabalhadores pobres, "tomar como propriedade a morte é a sua chance de um dia poder escapar do constrangimento da miséria e das injustiças da vida,,29. Em Rio Grande havia toda uma simbologia e um aparato prático para dar as providências quanto ao sepultamento dos cadáveres:

Os carros receberão os corpos nas igrejas, depois de encomendados, e também poderão receber os corpos nas casas e conduzi-Ios para as igrejas. Não se mandará receber corpo algum que, primeiramente, não apresente ao mordomo uma nota com o nome, idade, naturalidade, nacionalidade, estado, profissão, cor e, se for escravo, o nome de seu senhor, e bem assim um atestado do facultativo que declare a causa presumível da morte; este atestado terá o visto do subdelegado da Cidade. Satisfeita a disposição acima, o mordomo dará, à pessoa encarregada do enterro, um bilhete para, no cemitério, ser recebido o corpo e sepultado. Esse bilhete será numerado e conterá o nome do finado, o dia, mês e ano do enterramento e indicará se foi sepultado no chão ou emcatacumba."

Depois que é constatado de fato o óbito, a família assume o seu papel de destaque e importância: são os familiares que fazem os primeiros preparativos práticos para os últimos momentos de convívio com aqueles que lhe eram mais próximos, "fecham suas pálpebras, estendem seus membros e cobrem o corpo com um lençol branco". Em algumas situações "deixa-se o rosto descoberto e iluminado, para que, caso ainda se manifeste o mais leve sinal de vida, possa-se percebê-Ia imediatamente. Pela mesma razão, vela-se o defunto dia e noite, sem nunca deixá-Ia sozinho. Quando o falecido é católico, coloca-se um crucifixo e um ramo de bruxuleio sobre seu peito. As persianas da câmara mortuária ficam semtcerradas':".

As atitudes para com o recém-falecido tentam manter um elo de

28Idem, 1 ago. 1880, p. 2.

29Maranhão, 1996, p. 34-35.

30Rodrigues, 1985, p. 50.

31Fugier, 1991, p. 257.

42 BIBLOS, Rio Grande. 11: 33·44.1999.

ligação entre ele e os vivos, refletindo as crenças e os costumes reinantes nas sociedades do século passado. A dinâmica da vida moderna necessária no sistema capitalista, não permite mais tanto tempo dedicado

à

morte. No final do século XIX existiam alguns estabelecimentos funerários encarregados de preparar todos os ritos fúnebres, como os anúncios dos diários locais:

ESTABELECIMENTOFUNERÁRIO DE VIÚVA MOREIRA& LACROIX

Os proprietários deste antigo e bem conceituado estabelecimento, têm a honra de participar ao respeitável público, que receberam diretamente da Europa um completo e variado sortimento de artigos concernentes ao seu ramo de negócio, como sejam: Veludo, sedas, cetins, damasco liso e bordado, galões, pargas, estrela e lantejoulas douradas e prateada, fina e entre finas, etc, etc.

Encarregam-se de participar com a brevidade: caixões para adultos e anjinhos, dando os passos precisos em tais casos, com também de armações de igreja, parâmentos para a celebração de missa e festividades religiosas (...) garantindo perfeição no trabalho e modicidade nos preços

32 (...).

O próprio dia dos Finados era comemorado com entusiasmo pela população de "todas as classes sociais,,33, que aproveitava o dia dedicado aos mortos para louvar a memória dos familiares, parentes e amigos falecidos, através de missas e orações na intenção de que os "seus" permanecessem na paz eterna.

Como nos anos anteriores, foi extraordinária anteontem a concorrência de fiéis ao cemitério.

Durante o dia um parque de artilharia e os navios da flotilha deram as salvas do estilo.

Felizmente, não houve incidente ou desordem alguma a lamentar, graças ao espírito ordeiro da nossa população e à excelência do horário observado pelos bondes, que andaram corretamente, não se dando desencontro nem irregularidade alguma.34

Manifestações voltadas

à

perpetuação da memória dos falecidos é uma constante das sociedades do século XIX. Roga-se aos familiares, parentes e amigos que acompanhem o indivíduo para facilitar a sua passagem ao mundo dos mortos. A própria escolha do túmulo (cova, catacumba, jazigo) pelo próprio falecido ou pela família do mesmo, de acordo com sua situação financeira, revela a distinção social e econômica que partilhavam quando vivos. O fato imutável de todo homem morrer é

32

o

artista, 1 levo 1882, p. 4.

33

MLKJIHGFEDCBA

E c h o d o S u l,3 novo 1880.

34Idem. 4 novo 1892, p. 2.

BIBLOS, Rio Grande, 11: 33·44,1999.

(7)

verdadeiro, porém distinguem-se a maneira e os rituais dispensados a eles conforme a estratificação social a que pertenciam. Nos cemitérios, a entrada principal é a mais ornamentada, destinada às famílias mais ricas e ilustres da cidade. Uma observação dos cemitérios nos possibilita antever, através dos seus túmulos perpétuos individuais ou de família talhados em mármore, a distinção que havia em vida entre as classes sociais.

A verificação do óbito tinha o mesmo efeito, havia o mesmo nivelamento patológico para todos. A semelhança terminava aí, as circunstâncias ritualísticas posteriores à verificação da morte diferenciavam-se conforme a clasdiferenciavam-se social, isto é, de acordo com o poder econômico de cada um para realizar um cortejo fúnebre que fosse reflexo social de quando era ainda vivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAMATTA, Roberto. A

MLKJIHGFEDCBA

c a s a e ar u a : espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991, 177p.

ECHO DO SUL. Rio Grande,1 lev. 1880. ___ o Rio Grande, 4 lev. 1880.

___ o Rio Grande, 10 lev. 1880.

___ o Rio Grande, 21 íev. 1880.

___ o Rio Grande, 20 jun. 1880.

___ o Rio Grande, 1 ago. 1880.

___ o Rio Grande, 16 set. 1880.

___ o Rio Grande, 3 novo 1880.

___ o Rio Grande, 19 out, 1881.

___ o Rio Grande, 27 jul. 1882. _--:-_. Rio Grande, 4 novo 1892.

FUGIER, Anne Martin. Os ritos da vida privada burguesa. In: ARIÉS, P., DUBY, G. (org.).

H is t ó r ia d a v id a p r iv a d a . São Paulo : Companhia das Letras, 1991. v. 4 : da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial.

MARANHÃO, José Luiz de Souza. Oq u e é m o r t e . 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. 77p. O ARTISTA, Rio Grande, 1 lev. 1882.

REIS, João José. A m o r t e é u m a f e s t a : ritos fúnebres e revolta popular no Brasil no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 357p.

___ o O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: SOUZA, Laura de Melio e,

ALENCASTRO, Luiz Felipe de, SEVCENKO, Nicolau. H is t ó r ia d a v id a p r iv a d a n o B r a s il.

São Paulo: Companhia das Letras, 1997. v. 2, p. 95-141.

RODRIGUES, Sued de Oliveira. S a n t a C a s a d o R io G r a n d e : a saga da misericórdia. Rio Grande: FURG, 1985. 172 p.

RUFFIÉ, Jacques. Os e x o e a m o r t e : uma história emocionante da aventura que é a vida, e sua adaptação às exigências da natureza. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 236p. VOVELLE, Michel. I d e o lo g ia s e m e n t a lid a d e s . 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. 414p.

Referências

Documentos relacionados

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

The lagrangian particle tracking model was used to stu- dy the dispersion of particles released in different lagoon channels, the advection of particles released

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Excluindo as operações de Santos, os demais terminais da Ultracargo apresentaram EBITDA de R$ 15 milhões, redução de 30% e 40% em relação ao 4T14 e ao 3T15,

13 de Fevereiro; (ii) ou a entidades residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação. Não são igualmente dedutíveis para efeitos de

Dessa forma, os níveis de pressão sonora equivalente dos gabinetes dos professores, para o período diurno, para a condição de medição – portas e janelas abertas e equipamentos

Para tanto, no Laboratório de Análise Experimental de Estruturas (LAEES), da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (EE/UFMG), foram realizados ensaios

Inserido nesse contexto expandido, o rádio desdobra-se em novos formatos sonoros. Neste trabalho, nos dedicamos a observar como se dá a adaptação de um mesmo programa