• Nenhum resultado encontrado

O “Caso de Necessidade” na Ordem Política

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O “Caso de Necessidade” na Ordem Política"

Copied!
23
0
0

Texto

(1)

O “CASO DE NECESSIDADE” NA ORDEM POLÍTICA

DIOGO PIRES AURÉLIO

Av. do Brasil, 147, 2º Dtº 1700-067 LISBOA PORTUGAL

diogoaurelio@hotmail.com

Resumo: Há dois tipos de necessidade implicados na ordem política: a necessidade que se impõe como justiça materializada nas leis e nos costumes e a necessidade que se impõe como exceção materializada na suspensão das leis e costumes. Esta última aparece-nos em Maquiavel, identificando a necessidade com a “razão de Estado”, a qual submete qualquer outra razão e dita o que é justo e o que é injusto; aquela, pelo contrário, preserva a “razão de Estado” para situações excepcionais universalmente identificáveis e, portanto, justificadas à luz da razão universal, como podemos ver em S. Tomás. Deste ponto de vista, a obra de Hobbes aparece como uma tentativa para fundamentar a “razão de Estado” na razão universal, ou seja, a soberania absoluta na ordem da natureza. Mas para fundamentar o Estado, a natureza humana tem de ser apresentada como vontade de segurança, e esta tanto pode legitimar o Estado como o seu contrário, o direito de resistência ou revolução.

Palavras-chave: necessidade; justiça; lei; evidência; razão de Estado; contrato; representação; revolução.

Abstract: There are two kinds of necessity involved in the political order: necessity which imposes itself as justice embodied in the law and customs; and necessity which imposes itself as exception embodied in the suspension of the law and customs.This last one appears on Machiavelli, identifying necessity which “reason on State” submits any other reason and decides what is fair and what is unfair; the first one, on the contrary, reserves the “reason of State to unusual situations that everybody can identify and therefore justified by the light of universal reason, as we can see on S.Thomas. From this point of vue, the work of T. Hobbes appears as a trial to found the “reason of State” on the universal reason, i.e., the absolute sovereignty on the order of the nature. However, to found the State, the human nature has to be shown as will of safety, and this can legitimate both the State and its opposite, the right of resistance or revolution.

(2)

Mesmo que o tempo e a prudência, a paciência do saber e o domínio das condições fossem hipoteticamente ilimitados, a decisão seria sempre estruturalmente finita. Por muito tarde que chegasse, ela seria decisão de urgência e precipitação que atua na noite de um não-saber e de uma não-regra (J. Derrida).

INTRODUÇÃO

A necessidade é um conceito de que raramente se fala em filosofia política, ao contrário da liberdade, por exemplo, que aí detém um lugar privilegiado, desde, pelo menos, a obra de Rousseau.

Até certo ponto, este silêncio é justificado. A política foi sempre pensada como uma ciência ou uma arte do contigente – uma ciência prática, como lhe chama a tradição aristotélica, – por oposição à ciência do necessário. Podemos, no entanto, perguntar, independentemente da natureza específica do estudo da política, se a política ela mesma não será, de algum modo, um afloramento do necessário ou, para ser mais exato, uma tentativa de reduzir a imprevisibilidade e a contingência que marca o acontecer humano. Por muito que as leis ditadas pelo poder político sejam diferentes das leis da natureza, elas destinam-se igualmente a fixar modos de agir e a impor limites à liberdade de movimentos. O que é a segurança – individual ou coletiva – senão um certo grau de imunidade à contingência?

Evidentemente, a redução da contingência que a política alcança é limitada. Por um lado, a observância das leis humanas, por mais racionais e justificadas que elas se apresentem, esbarra sempre na liberdade e na convicção individual de que é possível desobedecer-lhes. Por outro lado, é da própria condição dessas leis, na medida em que procedem da decisão política, um determinado coeficiente de aleatoriedade. Toda a lei, seja qual for o fundamento invocado pelo legislador, traduz uma interpretação – entre outras possíveis – do modo como se devem ordenar os acontecimentos e dos fins para os quais estes devem ser orientados. Recorde-se o argumento de Antígona.

(3)

Antígona é o exemplo clássico dessa limitação inerente à lei, em virtude da qual é possível a emergência contraditória de dois géneros de necessidade: a necessidade de enterrar os familiares, obedecendo aos deuses ou, simplesmente, ao que mandam os costumes, e a necessidade de levar os cidadãos a temer a revolta contra os poderes instituídos, a qual sugere que os cadáveres dos revoltosos fiquem à vista e sirvam de exemplo. É no vértice desse cruzamento de dois imperativos, entre os quais é necessário escolher, que reside a essência profundamente política da tragédia.

De acordo com a leitura tradicional e, sobretudo, hegeliana da obra de Sófocles, a opção de Antígona, ao enterrar o irmão, desobedecendo às ordens do rei, corresponderia a um constrangimento ético que se sobrepõe a uma simples lei ocasionalmente imposta pelo poder político. Esta, porém, a lei pela qual fora determinado que o cadáver de Policínio permanecesse insepulto do lado de fora das muralhas, apodrecendo aos olhos de todos, surge aos olhos do soberano como ditada, não pelo seu próprio arbítrio, mas pela necessidade de prevenir os revoltosos, avisando-os das consequências de atos semelhantes. Sem a manutenção da ordem, a cidade arruina-se. É certo que Antígona invoca a Diké, a justiça incorporada na tradição e nos costumes, à qual se têm de moldar os decretos dos governantes, e a Diké, desde pelo menos o poema de Parmênide, andou sempre associada à Ananké, a necessidade que governa tanto o ser como o conhecer. Todavia, no caso concreto apresentado pela tragédia, o que é que dita a Ananké? Deve o rei vergar-se à necessidade ditada pela tradição e os costumes ou, pelo contrário, atender à necessidade de evidenciar ao máximo o que separa os cidadãos dos traidores, de modo a garantir a tranquilidade pública?

Uma análise da tragédia orientada apenas por aquilo a que Max Weber chamou a lógica da convicção tenderá a privilegiar a opção de Antígona e a reduzir a atitude do rei a uma simples manifestação de capricho ou de interesse político, um cálculo meramente estratégico sem o devido lastro de justiça. Se assim fosse, porém, estaríamos apenas perante um simples drama e não de uma verdadeira tragédia. Com efeito, o que há de verdadeiramente trágico na

Antígona de Sófocles é o emergir da necessidade sob rostos diferentes e a

(4)

contrários com que a necessidade se apresenta num momento dado e numa situação precisa. Veja-se como Creonte, o rei de Tebas, justifica a sua decisão: “todo aquele que prefere à sua pátria um ser amado é para mim como se não existisse (...) Porque eu não sou homem para me calar quando vejo a loucura de um só pôr em perigo a sorte de todos. Eu não terei por amigo o inimigo público. (...) E não tolero que os celerados usurpem as honras que são devidas aos homens de bem. Mas todo o patriota, vivo ou morto, achar-me-á sempre disposto a prestar-lhe honras”. Daí a sentença: Policínio, o irmão de Antígona, deve ser “privado de sepultura, ficar como presa das aves e dos cães, e ser objecto de opróbrio” (Antígona, 183-204)1.

Do ponto de vista de Creonte é, por conseguinte, necessária a decisão que tomou e que se revela contrária ao ethos da cidade, segundo o qual o que seria necessário e justo era sepultar os mortos. E não se trata de um mero capricho que a sua condição de rei lhe permitisse. Na verdade, o que vemos a fundamentar essa decisão é o mesmo que aparece a fundamentar a verdadeira decisão política, ou seja, o bem público ou, nas palavras de Sófocles, “a sorte de todos”. Creonte não pretende que os costumes e as leis antigas, que são a essência da cidade, sejam definitivamente abolidas. Considera, no entanto, que elas têm de ser momentaneamente suspensas para que a mesma cidade perdure e para que as próprias leis e costumes possam voltar a vigorar em pleno, restabelecida que seja a ordem. De onde lhe vem a certeza de que a cidade e as suas leis se salvam, paradoxalmente, através da suspensão provisória dessas mesmas leis sem as quais ela não subsistirá como verdadeira polis? Como pode Creonte garantir que o fato de recusar a sepultura ao irmão de Antígona é o meio adequado para obter esse objetivo que é “a sorte de todos”, tornando-se, por isso, uma medida necessária e justa? Finalmente, de onde vem a Creonte a autoridade para suspender as leis em nome das quais é suposto ele governar e assegurar o interesse coletivo e a segurança comum?

Em boa verdade, não existe nenhuma regra de onde se possa extrair tal decisão, porquanto, as regras dizem precisamente o contrário, isto é, que se sepultem os mortos. Face à lei de Tebas, as ordens de Creonte só podem

(5)

apresentar-se como exceção ditada pela vontade do rei e legitimar-se enquanto fruto da necessidade. A exceção, efetivamente, não configura aqui um qualquer momento de anarquia. Apesar de não poder deduzir-se de nenhuma norma anterior e, deste modo, assentar por inteiro na intuição e na vontade de Creonte, a ordem em que a exceção se materializa dá-se ainda sob a forma de lei, e de uma lei com força bastante para fazer calar, por um instante que fosse, as leis e costumes imemoriais. É precisamente esta, aliás, a natureza da exceção tal como a define Carl Schmitt: “a exceção é aquilo que não podemos subsumir; ela escapa a toda a formulação geral mas simultaneamente revela um elemento formal específico de natureza jurídica – a decisão – na sua pureza absoluta”2.

Há, por conseguinte, que atender, na esfera do político, à necessidade que se traduz pela Diké – as leis e os costumes – e à necessidade que leva à suspensão dessas mesmas leis e impõe a exceção. Uma tal equivocidade do conceito não é sem consequências. Em realidade, a cada um desses tipos de necessidade está subjacente uma lógica do político – uma “razão de Estado” – completamente diferente: o primeiro deles pressupõe a ideia de que a comunidade, está assente numa história que legitima e ao mesmo tempo condiciona a decisão política; o segundo, pelo contrário, supõe a comunidade condicionada unicamente pelo seu arké ou fundamento, um fundamento que se revela a si próprio, em cada instante, como a pura necessidade e, nessa medida, como ordem soberana e isenta de qualquer constrangimento. Neste, a “razão de Estado” tenderá a identificar-se com a necessidade, submetendo a partir daí qualquer outra razão e ditando o que é justo. Naquele, pelo contrário, o racional e o justo impõem-se e como que remetem a “razão de Estado” para situações excepcionais, elas próprias identificadas, como adiante veremos, pelo senso comum e pela razão universal como evidentemente necessárias e, como tal, justificadas.

Na conhecida interpretação de Schmitt, uma tal distinção não faria sentido na medida em que, para o autor, toda a “razão de Estado” remete, em última instância, para uma situação excepcional, a situação em que o verdadeiro

2Cf. SCHMITT, 1988, p. 23. Para uma apreciação crítica da doutrina schmittiana a

(6)

soberano, que por natureza é solutus legibus, decide e sem a qual todas as leis permaneceriam incompreensíveis. Porque “a exceção – diz Schmitt – é mais interessante que o caso normal. O caso normal não prova nada, a exceção prova tudo. A exceção não faz mais do que confirmar a regra: na realidade, a regra não vive se não pela exceção. Com a exceção, a força da vida real quebra a carapaça de uma mecânica cristalizada na repetição”3. No entanto, ao

identificar a política com algo que só pode verdadeiramente entender-se a partir do estado de exceção – aquele em que se manifestaria a decisão em estado puro – Schmitt desvincula a exceção da necessidade, a fim de a poder expor à vontade absolutamente incondicionada do soberano. A situação excepcional, o “caso de necessidade”, não é, pois, substancialmente diferente do “caso normal”, em que funciona a regularidade das leis e costumes. Pelo contrário, ele aparece nesta leitura como o instante privilegiado em que o direito e a política desvendam a sua essência e se revelam animados por uma vontade soberana, sem a qual seriam letra morta e vazio institucional. Em que é que se fundamenta esta vontade e as suas decisões? Se ela é, realmente, soberana, só pode fundamentar-se em si mesma, fazendo assim apelo a um domínio que transcende a investigação filosófica ou jurídica para se afirmar, assumidamente, como “teologia política”.

Semelhante identificação da soberania com o absolutamente incondicio-nado inspira-se, como é óbvio, em Jean Bodin e encontra na obra de Thomas Hobbes, pela primeira vez, um quadro teórico relativamente adequado. Mediante, por um lado, a teoria do pacto, por outro, a teoria da representação, Hobbes traça o perfil de um poder soberano cuja liberdade de movimentos não conhece quaisquer entraves no interior do Estado e se diz, por isso, solutus

legibus. A necessidade, porém, não está aqui ausente. Apesar de a ilimitada

margem de decisão do soberano aparecer como exceção permanente, jamais sujeita a uma ordem alheia, ela não se compreenderia, no entanto, nem estaria legitimada, se não correspondesse à permanente necessidade de segurança dos indivíduos, na qual assenta a lei natural que manda a cada um pactuar com os restantes em ordem à obtenção da paz. É, pois, a necessidade que faz a lei,

(7)

deixando assim em aberto o problema de saber como é que esta lei feita pela necessidade se exprime, necessariamente, pela absoluta liberdade do soberano.

O quadro teórico de Hobbes não é, todavia, coincidente com aquele que apresentará Carl Schmitt. Este separa claramente o conteúdo da decisão – a sua justiça ou injustiça intrínseca – da competência de quem decide. O conteúdo avalia-se em função de uma verdade, ou seja, de uma cadeia de razões que se dão por universalmente aceites. A competência, por sua vez, é uma questão de autoridade pessoal que existe ou não existe em quem decide. Para haver autêntica lei do ponto de vista político não basta haver um enunciado que se imponha pelo seu próprio valor de justiça à consciência e à razão individual, é preciso que ele seja imposto pela vontade de alguém, de uma pessoa concreta que possui autoridade. Como diria também Hobbes, auctoritas, non veritas, facit

legem. Mas enquanto Schmitt conclui de imediato pela associação do poder de

decisão política a uma instância que está para lá de toda a teoria e que só se deixa perceber por analogia com a onipotência divina tal como a pensa o nominalismo, integrando assim o que ele chama de teologia política, Hobbes tenta, através de uma teoria da representação que coloca o soberano como simples ator e os súditos como verdadeiros autores, com toda a responsabilidade pelas decisões daquele, (Leviathan, cap. XVI), integrar a autoridade no plano da ciência e, por conseguinte, no plano da necessidade4. É,

como dissemos, a necessidade de segurança que impõe a lei natural, e é a partir desta que se instaura e justifica o Leviatã.

A interpretação hobbesiana da necessidade encontra-se no pólo rigorosamente oposto à que encontramos na Idade Média, designadamente em Tomás de Aquino, que reserva ao “caso de necessidade” o estatuto de pura exceção relativamente ao curso normal e necessário das leis vigentes, concluindo daí que “a necessidade não tem lei”. Além disso, entre uma e outra

4É conhecida a polêmica que desde há muito se trava acerca da coerência da teoria

política de Hobbes no interior de um sistema que explicitamente se pretende mecanicista. Não é aqui o lugar para retomar tão vasta questão. Para o que pretendo mostrar, julgo que o texto de Hobbes sobre a representação (Leviathan, cap. XVI) é suficiente e afasta de forma clara o autor inglês da versão que Schmitt apresenta da soberania.

(8)

destas interpretações, há ainda esse momento decisivo que é a obra de Maquiavel, onde a necessidade se identifica com a própria lei. São três modos distintos de entender a necessidade, mas são igualmente três modos distintos de entender a decisão e, por conseguinte, de entender o político. O Estado, enquanto forma por excelência do político na modernidade, tem os seus pilares assentes na necessidade pensada ao modo hobbesiano. O político, porém, extravasa para lá dessa arquitetura que encerra o Leviatã e defronta-se com situações, como o golpe de Estado ou a Revolução, em que a necessidade emerge sob outras formas. Vejamos com um pouco mais de pormenor as já aludidas interpretações que São Tomás e Maquiavel fazem da necessidade, antes de voltarmos ao modelo hobbesiano.

1. A NECESSIDADE NÃO TEM LEI

Em São Tomás, o “caso de necessidade” aparece identificado como exceção que, por assim dizer, subsume as leis. “Toda a lei – diz o filósofo – está ordenada para a salvaguarda comum dos homens, e quanto mais o fizer, mais alcançará o vigor e a razão de lei. Na medida, porém, em que não corresponder a isso, não está dotada da força de obrigar” (ST, Ia IIae, q.96, art. 6). Este princípio contém em si, antes de mais, um critério para distinguir as boas leis e as leis iníquas e, por conseguinte, o bom governante e o tirano. Mas contém, igualmente, um critério para distinguir os casos em que as boas leis devem ser aplicadas e os casos excepcionais em que elas não são de aplicar.

O critério que distingue a boa lei e o bom governante é o estarem dirigidos ao bem comum. Isto mesmo é afirmado em De Regno, I, 2: “Se a multidão de seres livres for dirigida pelo governante no sentido do bem comum da multidão, o regime será reto e justo, como convém aos seres livres. Se, contudo, o governo se dirigir, não em ordem ao bem comum da multidão, mas ao bem privado do governante, será injusto perverso”. Longe do que preconizava a classificação tradicional, a política surge aqui, de alguma forma, já autonomizada de critérios simplesmente morais ou psicológicos, assumindo um perfil em que os desvios se podem medir com alguma objetividade. Tirano, como o autor afirma imediatamente a seguir, é o governante que “busca pelo

(9)

governo os seus interesses e não o bem da multidão que lhe está sujeita”5. São,

portanto, justas todas as leis que se destinem a manter ou a aumentar o bem da comunidade; são más ou injustas as que beneficiam apenas o governante ou uma parte dos cidadãos, razão por que não estão “dotada(s) da força de obrigar”.

Semelhante dicotomia não é, no entanto, suficiente no plano político, uma vez que o instrumento natural do bem comum – as boas leis – pode, em determinadas situações, produzir o inverso. E o motivo é simples: como “o legislador não pode considerar todos os casos singulares, propõe a lei segundo o que acontece mais freqüentemente, dirigindo a sua atenção para a utilidade comum. Em conseqüência, se surgir um caso em que a observância de tal lei seja danosa ao proveito comum, não deve ser ela observada. Assim, se se estabelecer, numa cidade sitiada, uma lei para que as portas da cidade permaneçam fechadas, isto é, a maioria das vezes, de utilidade comum. Todavia, se acontecer que os inimigos persigam alguns dos cidadãos de quem depende a defesa da cidade, seria o mais danoso para a cidade que as suas portas não lhes fossem abertas” (ST, Ia IIae, q.60, art. 66). A lei, portanto, só o

é verdadeiramente, e só possui “força de obrigar”, quando associada ao bem comum, perdendo esse caráter mal surge associada ao proveito particular e ao conseqüente prejuízo para a sociedade tomada no seu conjunto. Não há sequer lugar ao que chamaríamos a derrogação da lei. Esta, pura e simplesmente, não existe em casos assim.

Levanta-se aqui, no entanto, um problema de interpretação, na medida em que a lei, em determinadas circunstâncias, não perde a sua virtualidade só depois de ter produzido efeitos nocivos para a coletividade, efeitos à luz dos quais concluímos que ela não deveria ter sido aplicada. Pelo contrário, a própria justiça requer que, em determinadas circunstâncias, a lei não chegue a aplicar-se. Quem é que tem competência para identificar tais circunstâncias? Dito por outras palavras, quem decide se um determinado caso é um “caso de necessidade”, implicando, por conseguinte, um “estado de exceção”?

5Cf. BUSA, 1980, vol. III, p. 595. 6Ibid., vol. II, p. 483.

(10)

Em princípio, tal competência cabe ao governante: “se a observância literal da lei não constitui perigo imediato, ao qual seja necessário fazer face, não é da competência de ninguém interpretar o que é útil ou inútil à cidade, pois isto cabe apenas aos príncipes, que possuem autoridade para dispensarem da lei perante tais casos” (ibid.). A prova, porém, de que aquilo que verdadeiramente suspende a lei e dita a situação de exceção não é a qualidade de autor da lei, ou seja, a autoridade do príncipe, mas sim a natureza intrínseca do caso, está patente no fato de qualquer particular, na impossibilidade de consulta ao príncipe, ter competência para determinar a exceção. Assim, “se há perigo imediato, que não admite tal demora que se possa recorrer ao superior, a própria necessidade tem anexa a dispensa, porquanto a necessidade não está sujeita à lei”7. E São Tomás acrescenta: “aquele que, em caso de necessidade,

age à margem das palavras da lei, não julga a própria lei, mas julga o caso singular em que verifica não deverem ser observadas as palavras da lei” (ibid.).

A concepção tomista do “caso de necessidade”, que corresponde, no essencial, à doutrina vulgarmente aceite na Idade Média, é, pois, distinta da exceção teorizada por Schmitt, desde logo, por implicar uma diferente articulação com o poder soberano. Na Teologia Política, o poder de decidir quanto ao estado de exceção é apresentado como a verdadeira marca do poder soberano, de tal modo que só pode ser excepcional a situação que o soberano determinar. Em contrapartida, no De Regno, a excepcionalidade é como que uma marca de certas situações, independentemente da determinação de quem quer que seja, a tal ponto que, perante tais situações, até o súdito, na ausência do soberano, pode chamar a si o reconhecimento da exceção.

Por detrás desta concepção tomista da necessidade está, obviamente, a idéia de que, ao contrário do que dirão Bodin ou Hobbes e, de alguma forma, também Schmitt, o primeiro princípio (o arké) da justiça e do direito não é a vontade do governante. A competência do rei esgota-se na capacidade de enunciar (ou não) as leis, os princípios que regulamentam a aplicação da ordem

7A fórmula de S. Tomás (necessitas non subditur legi) constitui uma variação, sem

alteração do significado, daquela que aparece freqüentemente nos juristas romanos e na Idade Média, depois de ter sido formulada por Graciano: necessitas legem non habet.

(11)

racional da justiça, a qual transcende a sua vontade. Não só não está em seu poder, dados os limites do conhecimento humano, fixar em letra de lei o modo como se deve agir na infinidade dos casos, por vezes contraditórios, com que os cidadãos se podem deparar, como, inclusivamente, não é da sua competência alterar a ordem da justiça. De algum modo, a lei justa, se bem que promulgada pelo governante, deve aparecer como algo que este se limita a traduzir, quase independente da sua vontade. É por isso que, em condições normais, a boa lei assenta numa argumentação explícita ou implícita a partir da qual ela deveria surgir como conclusão necessária para todos aqueles que tivessem conhecimento dos pressupostos ou dos objetivos que a ditaram e, nessa medida, obrigar a razão, senão a vontade, de todos aqueles a quem se destina.

A suspensão da lei em “caso de necessidade” assenta nesta mesma lógica. Tal como nos casos normais a lei justa se impõe universalmente como inquestionável, assim também a sua suspensão deverá impor-se quando a necessidade o exigir. Mas há uma diferença: enquanto para o caso normal a lei pode ser precedida de uma deliberação e eventual discussão, seja por parte das cortes ou de conselheiros, antes da decisão do príncipe que lhe dará força de lei, ou seja, que literalmente a formalizará, no caso excepcional não há lugar nem tempo a formalidades, podendo mesmo, tal como vimos atrás, não haver tempo útil para a consulta ao legislador. Onde é que as medidas excepcionais colhem então a sua legitimidade? Como se justifica o que em condições normais seria injusto? De onde se deduzem imposições como o envio de homens para a guerra ou a aplicação de impostos extraordinários, as quais, um momento antes, iriam flagrantemente contra o que manda a justiça ou o direito consuetudinário?

O já citado Carl Schmitt veria nesta suspensão da norma vigente a marca essencial da soberania. No entanto, para a concepção medieval, nada mais estranho do que associar a decisão soberana ao “caso de necessidade”. Com efeito, a necessidade dilata os limites do poder mas não o seu fim, o qual continua sendo o bem comum. Ora, o bem comum confere validade a todas as medidas tomadas em seu nome, mesmo as excepcionais. É por isso que uma tal dilatação das prerrogativas do soberano em caso algum equivale a uma

(12)

passagem para o arbítrio. Em rigor, o rei não decide, obedece à necessidade, da mesma forma que em casos normais obedece à ordem justa. E não se trata de simples retórica destinada a ocultar o que seria a face oculta do poder por detrás da normalidade ou da necessidade. Com efeito, para que uma situação se configure como de efetiva necessidade, é preciso que ela se apresente como tal aos olhos de todos, isto é, que ela seja uma “evidente necessidade”. Daí que o “caso de necessidade” apareça, neste contexto, geralmente caracterizado como de “evidente necessidade”, sendo esta universal e imediata percepção da sua natureza excepcional o que legitima a não menos evidente necessidade de medidas de exceção. No dizer de Tomás de Aquino, estas apenas são justas quando “uma máxima e evidentíssima utilidade resulta de uma disposição nova, ou ainda quando há uma máxima necessidade resultante do fato de a lei normal conter uma iniquidade manifesta ou de a sua observância ser altamente prejudicial” (Ia IIae, q.97, art. 2).

2. A NECESSIDADE É LEI

Maquiavel é, sem dúvida, o primeiro autor a pensar a política tomando por paradigma “o caso de exceção”, isto é, recusando o pressuposto medieval de uma regularidade dos acontecimentos e das normas, para não ver na história senão uma repetição de lances imprevisíveis e decisões justificadas apenas pela necessidade.

A concepção clássica e medieval da política supunha que as ações humanas poderiam orientar-se unicamente pela razão, mediante a escolha livre do bem em nível individual e em nível coletivo. O governante perfeito seria, assim, aquele cujas decisões se moldavam o mais possível pelos imperativos universais da razão, de modo a evitar que o favorecimento injusto de particulares ou a realização dos seus próprios interesses o desviassem do reto caminho pelo qual deveria constantemente buscar o bem comum. Maquiavel, por seu turno, afasta a hipótese desta escolha uniforme do bem por parte do soberano, na medida em que há decisões más que são necessárias: “É necessário a um Príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a usar ou não essa aprendizagem, conforme a necessidade” (Príncipe, cap. XV, p.

(13)

57)8. Ou seja, enquanto senhor do poder, o príncipe terá de obedecer à

necessidade, isto é, fazer, não o que é bem, mas o que é necessário, sob pena de ser arrastado para a desgraça: “Porque há certas coisas que parecem virtude e que, se as fizer, serão a sua ruína; e há outras que parecem vícios e que, fazendo-as, delas resulta a segurança e a felicidade” (ibid. p. 58).

A uma primeira leitura, poderia julgar-se que o problema se resume a um erro na interpretação dos acontecimentos e que, ultrapassando as aparências, poderia identificar-se racionalmente o que é virtude e o que será vício em cada situação. Não é, no entanto, esse o entendimento de Maquiavel. Pelo contrário, o florentino considera impossível estatuir uma razão dos acontecimentos e, por conseguinte, estabelecer uma tipologia dos comportamentos políticos adequados. Governar é lidar com a interminável sucessão de “casos de necessidade”, os quais exigem medidas impossíveis de deduzir de qualquer princípio racional ou de qualquer norma anteriormente definida, seja ela moral ou política. Diz o autor: “Como todas as coisas humanas estão em movimento e não podem permanecer fixas, semelhante instabilidade leva-as a subir ou a descer; e a muitas coisas que a razão não conduz, conduz a necessidade” (Discorsi, I, 6, p. 123).

A necessidade é, pois, a suprema lei, uma necessidade que, em lugar de se traduzir numa cadeia de fatos previsíveis, se desdobra em casos sempre novos, cada um deles impondo necessariamente um tipo de resposta. Nem tudo, porém, é totalmente imprevisível na torrente dos fatos. Por debaixo da sua seqüência desordenada, há um princípio que permanece, dando lugar àquilo a que Michel Senellart classifica como uma “lógica da desordem”9. Dito por

outras palavras, sob a necessidade que dita a mudança das coisas humanas – os principados, as instituições, as leis, etc. – atua um outro nível da mesma necessidade, o qual permite pensar, porque é sua causa, aquele primeiro nível: “sempre que os homens não combatem por necessidade, combatem por ambição” (Discorsi, I, 37, p. 190). Ou seja, o antagonismo está sempre presente,

8MACHIAVELLI, N. Opere, a cura di Antonio Panella, Scritti Politici, vol. II, 1939. As

citações de Maquiavel que vêm a seguir remetem para esta edição.

(14)

quer ele se explique, superficialmente, por aquilo que seria a necessidade de defesa, quer ele se apresente como injustificado e ditado apenas pela ambição, a qual não é menos necessária. Por isso, Maquiavel acrescenta: “A natureza criou os homens de tal modo que eles podem desejar tudo mas não podem obter tudo: assim, sendo o desejo sempre maior que a faculdade de o realizar, o resultado é o descontentamento com o que possuem e a insatisfação. Daí nasce a mudança da fortuna, pois como os homens, em parte, desejam ter mais, em parte, temem perder o que já têm, cai-se nas inimizades e na guerra, da qual nasce a ruína desta província e a ascensão daquela outra” (ibid. p. 190).

A principal consequência de semelhante antropologia é o desaparecimento da distinção entre guerra justa e guerra injusta, distinção que era essencial na Idade Média para se reconhecer o verdadeiro “caso de necessidade”. É certo que Maquiavel mantém a associação entre a necessidade e a justiça. No Príncipe, por exemplo, cita-se esta passagem de Tito Lívio: “a guerra é justa para aqueles a quem é necessária e as armas são santas quando não há mais esperança para além delas” (cap. 26, p. 193). Mas resulta claro do contexto da citação, em que se exorta Lourenço de Médicis a pegar em armas e a unificar a Itália, que Maquiavel retém unicamente a primeira parte da frase de Tito Lívio, desprezando a segunda, onde é patente a associação da justiça ao tradicional “caso de necessidade” e a situação em que as armas constituem o único recurso. Para o florentino, é impossível estabelecer objetivamente a diferença entre estas e as restantes situações, visto que em política não há senão “casos de necessidade”. Assim, a guerra é sempre justa porque é sempre necessária. Com efeito, “é impossível que uma república se arrisque a ficar quieta e a gozar da sua liberdade e das suas pequenas fronteiras. Porque, se ela não molestar outra, será ela molestada, e do ser molestada nascer-lhe-á a vontade e a necessidade de conquistar. E mesmo que não tivesse inimigo no exterior, encontrá-lo-ia em casa. Assim parece necessário que aconteça com todas as grandes cidades” (Discorsi, II, 19, p. 305).

Política, necessidade e guerra estão, pois, intrinsecamente associadas no maquiavelismo, de tal maneira que nenhum dos conceitos se pode pensar desligado dos restantes. Os adversários de Maquiavel, em particular os teóricos

(15)

da chamada “razão de Estado”, tentarão desmembrar a totalidade assim constituída e restabelecer a subordinação da política à razão universal ou à lei de Deus. Porém, a idéia de que a política possui uma especificidade e um campo próprio no interior do racional, de tal maneira que as suas regras apontam como necessárias certas decisões não fundamentadas na moral ou no direito, irá permanecer inamovível. A coberto das declarações de alguns autores escandalizados com o amoralismo do Príncipe, o que ressalta é, ainda e sempre, a definição de um campo de saberes e técnicas dedicado à conservação do equilíbrio político, ou seja, uma razão de Estado, com tudo o que esta implica a partir do momento em que os seus fins se consideram necessários. As próprias decisões sobre a guerra ou a paz, que a Idade Média subordinava aos princípios da justiça e fazia depender de uma necessidade excepcional, aparecerá em autores como Botero, Justo Lípsio ou Richelieu, tão cuidadosos na defesa da religião, subordinada apenas à estratégia de defesa do Estado, quer do ponto de vista externo, quer do ponto de vista interno. Veja-se, por exemplo, a seguinte observação de Giovanni Botero: “Se nós pensarmos bem por que é que no nosso tempo a Espanha tem vivido em tranqüilidade e a França está perpetuamente envolvida em guerras civis, verificamos que isso resulta, em parte, de a Espanha se ter lançado em guerras internacionais e empresas longínquas, nas Índias, nos Países Baixos, contra os hereges, contra os turcos e contra os mouros, empresas onde investem em parte os braços, em parte o pensamento e a vontade dos espanhóis, gozando assim a sua pátria de uma enorme tranqüilidade e desviando para outros sítios o humor que conduz ao pecado. Em contrapartida, a França, estando em paz com os estrangeiros, voltou-se contra si mesma e, como não tinha outro pretexto, invocou o calvinismo” (cit. in M. Senellart, p. 66).

A razão de Estado anti-maquiavélica, mais do que uma ruptura com a doutrina do Príncipe, traduz a preocupação de refazer a ponte entre os princípios da razão e a inteligência política no que esta apresenta de irredutível à moral. Como vimos, o exercício é acima de tudo retórico, consistindo numa argumentação que apela para sucessivos patamares de inteligibilidade, de modo a que, em última instância, toda a manifestação de poder apareça tutelada pela

(16)

razão universal e, por esta via, não totalmente incompatível, ao menos sob o prisma da eternidade, com a religião e a moral, visto convir ao bem comum. De certo modo, poder-se-ia pensar que havia aqui um retorno à consideração medieval de uma ordem transcendente da justiça que se manifestava na legitimidade argumentada das leis e na evidência dos “casos de necessidade”. Porém, a necessidade perdeu, por um lado, o caráter de excepcionalidade que possuía, assim que a política passou a ser integralmente pensada como manifestação do necessário. Por outro lado, uma vez generalizada, a necessidade deixou de poder distinguir-se, ou seja, a sua evidência abandonou o espaço público para se refugiar nos gabinetes dos especialistas, cujo saber passou a ter-se por critério único para identificar a urgência da situação.

A política do segredo e os arcana imperii possuem uma explicação que se pretende racional e, ao mesmo tempo, pragmática. Racional, porque a gestão do Estado moderno vai implicar toda uma série de saberes cada vez mais diferenciados e fora do alcance do cidadão comum. Só os conselheiros sabem se e como se deve fazer a guerra, qual o melhor momento para a declarar, onde ir buscar riqueza para a sustentar, que direitos consentudinários devem ser suspensos, etc. É por isso que estas e outras matérias semelhantes vão ser progressivamente arredadas dos estados-gerais e da opinião comum, passando o trono a exigir obediência cega na proporção exata em que se reclama da razão esclarecida.

Mas é também pragmática, a política do segredo. Sem ela, seria não só impensável, mas também impossível esse gesto ditado por uma “necessidade extraordinária e absoluta”10 que é o golpe de Estado. Gabriel Naudé, o seu

famoso teorizador, escreve que “nos golpes de Estado vê-se o raio cair antes de se ouvir o seu estrondo nas nuvens; ele fulmina antes de estalar (...); a sua execução precede a sentença”11. Por outras palavras, “a necessidade pode,

sempre em nome do bem comum ou da defesa do Estado, exprimir-se por medidas que são, mais do que extraordinárias ou fora do direito comum, absolutamente extremas. Neste caso, porém, a sua legitimidade deixa de ser

10NAUDÉ, 1988, p. 127. 11Ibid., p. 101.

(17)

evidente, quer para o comum dos súditos, quer para os próprios conselheiros, quer, em última análise, para o seu autor: o golpe será legítimo se for bem sucedido e, assim, retirar o Estado da situação de crise. Como diz também Naudé, na mesma passagem, “tudo aí se passa de noite, na obscuridade e entre o nevoeiro e as trevas”.

A necessidade do golpe de Estado continua, pois, associada à evidência, mas é uma evidência não só inacessível por natureza aos não implicados como, inclusive, uma evidência que só é possível a posteriori, ao contrário das medidas ordinárias de governação, ou até das medidas extraordinárias, que são evidentes ou, pelo menos, passíveis de prévia argumentação com vista a emprestar-lhes alguma legitimidade. No limite, a “suprema necessidade”, do golpe de Estado, esse momento em que a política se revelaria na sua absoluta nudez e liberta de qualquer consideração ou condicionamento moral, aparece desprovida de qualquer lastro de legitimação, confundindo-se a sua razão de ser com uma ausência de razões e a sua necessidade com o puro arbítrio. Sem dúvida, a ação política não perde por isso a sua eficácia. Mas é obrigada a buscá-la na força ou na ideologia, na polícia e no exército ou nos cerimoniais de que se faz rodear a monarquia setecentista à medida que a sua configuração se transforma num decalque da onipotência divina12.

3. A NECESSIDADE FAZ LEI

À primeira vista, o quadro jurídico-filosófico delineado por Hobbes representaria a quintessência deste processo destinado a desligar o poder soberano de qualquer constrangimento exterior à sua vontade e fundamentar racionalmente o absolutismo que outros proclamam de “direito divino”. Hobbes, com efeito, na seqüência da formulação da ideia de soberania por Bodin, considera que “a lei, em sentido próprio, é a palavra daquele que por direito tem o domínio sobre os outros”13. E apresenta, um pouco mais adiante,

12 Vide os estudos de Louis Marin, em particular Le Portrait du Roi em MARIN,

1981.

13 “Law, properly is the word of him, that by right hath command over others”

(18)

no cap. XXVI, a seguinte explicação: “Que a lei nunca pode ser contrária à razão é coisa com que os nossos juristas concordam, assim como que não é a letra (isto é, cada uma das suas frases) que é a lei, e sim aquilo que é conforme à intenção do legislador. Isto é verdade, mas subsiste a dúvida quanto àquele cuja razão deve ser aceite como lei. Não pode tratar-se de nenhuma razão privada, pois nesse caso haveria tantas contradições nas leis como as há nas Escolas. (...) O que faz a lei não é aquela juris prudentia, ou sabedoria dos juizes subordinados, mas a razão deste nosso homem artificial, o Estado e suas ordens. E sendo o Estado, no seu representante, uma só pessoa, não é fácil surgir qualquer contradição nas leis e, quando tal acontece, a mesma razão é capaz, por interpretação ou alteração, de eliminar a contradição”14.

Esta explicação fundamenta-se num cálculo por assim dizer estratégico. Dado que a razão privada, enquanto tal, não pode ser princípio da lei, acabando, aliás, por produzir o seu contrário, ou seja, a anarquia, é necessário que se institua uma pessoa artificial e que esta se exprima como vontade, ou seja, que os enunciados da sua razão se traduzam como ordens. O primeiro destes objetivos atinge-se, como se sabe, através do contrato, o segundo através da teoria da representação. Conjugando um com o outro, chega-se àquilo que é, no entender de Hobbes, a única expressão coerente daquela razão a que a lei não pode ser contrária, como os “nossos juristas” concordam e o autor do

Leviathan também reconhece. Torna-se, porém, evidente que entre esta razão,

que os juristas entendem como a razão universal, e a razão que a vai personificar, a diferença é abissal, pouco mais havendo de comum entre ambas para além da designação. Hobbes, aliás, refuta categoricamente que a razão possa ter outro significado que não seja o de simples cálculo individual das conseqüências de nomes, de tal maneira que, “quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem a razão como juiz, nada mais procuram senão que as coisas sejam determinadas, não pela razão dos outros homens, mas pela sua própria”15. A lei, por conseguinte, traduz uma

observação de Hobbes comentada por Schmitt: “Auctoritas non veritas facit legem” (vide SCHMITT, 1988, p. 43).

14 Ibid., cap. 26, p. 316-317. 15 Ibid., cap. 5, p. 111.

(19)

vontade, o que é o mesmo que dizer uma capacidade pessoal de decidir não limitada por ninguém, nem por qualquer ordem transcendente ou lei anterior, nem mesmo por qualquer outra decisão do próprio. Em última análise, poder-se-ia crer que é ainda uma “razão privada”, a vontade do representante, com a sua capacidade absoluta de a cada momento se refundar (a que mais tarde se irá chamar o poder constituinte), aquilo que, manifestando-se como lei, vai evitar ou pôr cobro à anarquia das razões privadas.

A interpretação de Schmitt vai precisamente neste sentido, ao observar que Hobbes “recusa todas as tentativas para colocar uma ordem abstrata no lugar da soberania concreta do Estado”16. Visto, porém, que a “soberania

concreta” não é senão uma vontade incondicionada, que em cada momento pode decidir sem outra razão que não seja ela própria, a lei furta-se a qualquer encadeamento causal que em última análise a justifique, reabrindo assim a questão da fundamentação racional da ação política. É o próprio Schmitt quem enuncia o paradoxo: “Que um dos representantes mais conseqüentes da ciência natural abstracta do século XVII se mostre tão personalista é qualquer coisa que espanta. Mas isto se explica: como pensador do direito, ele deseja compreender a realidade efetiva da vida social, da mesma forma que, como filósofo e pensador das ciências naturais, quer compreender a realidade da natureza. Que haja uma realidade e uma vida do direito que não tenham de ser a realidade estudada nas ciências naturais, foi coisa de que não se deu conta. Por isso, o relativismo matemático e o nominalismo coexistem nele”17. Ou seja,

a haver decisionismo em Hobbes, ele não pode deduzir-se das hipóteses mecanicistas a partir das quais o Leviathan é suposto instalar a política no quadro da ciência moderna, integrando-se, pelo contrário, numa linha inaugurada por Bodin onde o poder aparece como autofundante e como pura vontade independente face a qualquer ordem de razões18.

16 SCHMITT, 1988, p. 43. 17 Ibid., p. 44.

18 Contra Schmitt, veja-se, por exemplo, E. Balibar: “A interpretação que ele faz da

soberania inverte praticamente o sentido da exposição de Bodin, de maneira a reencontrar nele um primado da exceção que desmente toda a doutrina da República”. De acordo com Balibar, “há, no fundo, duas grandes limitações ‘internas’ ao poder

(20)

Tal interpretação não se limita, porém, a arruinar o propósito sistematizador de Hobbes, no que porventura ele apresenta de mais original, a saber, a política. Ela ignora também a verdadeira natureza da soberania tal como esta resulta da teoria da representação. Na verdade, Hobbes distingue, por mais de uma vez, a pessoa natural e a pessoa civil do soberano, podendo este, inclusive, ser constituído por várias pessoas naturais, como acontece nos governos por assembléia. Convém lembrar que, para uma multidão, “a única maneira de erigir um poder comum (...) é conferir todo o seu poder e força a um homem ou assembléia de homens que possa reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer, designar um homem ou uma assembléia de homens como representante das suas pessoas”19. A pessoa do representante é, pois, uma pessoa jurídica ou civil

instituída pelo pacto, traduzindo assim, não uma razão privada, mas uma verdadeira “razão de Estado”, a razão do homem artificial que faz a lei.

Sem dúvida, esta pessoa civil recebe um mandato que é incondicional e ilimitado, uma vez que, se o representante tivesse de responder pela observância das cláusulas que os representados lhe fixassem, não se teria saído do estado de natureza, onde precisamente não existe nenhuma razão acima das privadas com capacidade para interpretar e julgar se as cláusulas de cada mandato são cumpridas, ficando portanto aberta e por decidir a guerra entre representado e representante. Mas apesar de ser um mandato singular, um mandato que “funda ele mesmo a sua própria realidade”, como o define Y. C. Zarka20 nem por isso deixa de ser ainda como mandato que Hobbes pensa o

mandato do soberano, o que significa que este não pode desinserir-se da teoria da representação. Dito de outra forma, a ilimitação do poder soberano só faz sentido enquanto mandato, se bem que ilimitado, com origem na condição

soberano, porquanto elas exprimem a necessidade, para a sua perpetuação, de uma regulação ou de uma racionalidade própria (...) A primeira limitação concerne ao que na Idade Clássica se chama o jus circa sacra dos soberanos (...). E a segunda concerne ao conjunto das questões monetárias (monopólio da emissão) e da cobrança de impostos (...)” (BALIBAR, 2000, pp. 57-58 e 63).

19 Leviathan, cap. 17, p. 227. 20 ZARKA, 2000, p. 222.

(21)

natural dos indivíduos a quem o medo da morte violenta leva a porem-se de acordo sobre o abandono do direito de se governarem, o qual é transferido para alguém que os representa e decide em seu nome. Por um lado, o fato de ser um mandato ilimitado retira todo o sentido a um estado de exceção isolado: o soberano nunca obedece a qualquer lei exógena à sua própria vontade, pelo que não tem de esperar pela situação de “evidente necessidade” para suspender a lei que ele mesmo ditou. Mas, por outro lado, o fato de ser um mandato torna-o impensável se não se atender à necessidade de segurança em que ele se fundamenta. A correlação soberano-súdito é artificial ou jurídica, mas o seu alicerce permanece na natureza dos homens, de tal modo que o ilimitado poder do representante só se justifica por essa finalidade intrínseca que é a segurança dos representados. É, pois, a necessidade que faz a lei, no sentido em que é ela que desencadeia o mecanismo da representação mediante o qual os indivíduos autorizam uma pessoa a representá-los, quer dizer, a atuar em seu nome com vista à segurança e à paz, única forma de a multidão assumir o estatuto de pessoa e exprimir uma vontade comum.

Maquiavel, já o vimos, identificara a necessidade e a lei, ambas encarnadas na pessoa física do Príncipe e, por isso, o poder deste não conhecia limitações de qualquer espécie, a não ser as que derivassem da sua insuficiente

virtú ou dos caprichos da fortuna. Em Hobbes, ou melhor, no Leviathan21, a

representação instaura a unidade de uma pessoa jurídica a partir de uma multidão de indivíduos que vão permanecer, em simultâneo, como sujeitos de direito na ordem natural e como súditos na ordem jurídica. Tal como em Maquiavel, a lei ditada pelo soberano é incondicionada, pois não há poder – religioso, moral ou outro – que lhe faça sombra. Porém, o soberano hobbesiano, na qualidade de representante, acede à condição de poder ilimitado por força da necessidade de segurança dos particulares, uma necessidade que só pode ser satisfeita pela instituição de uma vontade única. É por isso, ou seja, é porque a ilimitação soberana é apenas instituição que a necessidade inscrita na natureza permanece intacta na pessoa física dos indivíduos sujeitos à lei. É aí,

21 Para uma análise da evolução deste problema na obra de Hobbes e da novidade

(22)

de resto, que o Estado, a pessoa civil formada por representados e representante, encontra a sua legitimidade, enquanto objetivação eficaz da vontade de segurança. Mas é também aí que cessa a esfera do jurídico e ressurge o direito natural, um direito natural que, a partir do momento em que foi criada uma pessoa civil e um representante, só pode manifestar-se como direito de resistência.

Do ponto de vista jurídico, o poder é absoluto e incondicionado, até porque o soberano não firmou qualquer contrato e possui um mandato ilimitado. Do ponto de vista ontológico, porém, este poder ilimitado não possui em si mesmo a sua ultima ratio, a qual se tem de buscar na necessidade com que se coloca a vontade de segurança. Esta vontade só se realiza efetivamente, isto é, como imperativo e como lei, através da pessoa do soberano. Mas isso não significa que ela se negue a si própria no mandato ilimitado que passa ao representante. Pelo contrário, ela mantém-se inalterável enquanto direito natural dos indivíduos e pode manifestar-se autonomamente, sempre que o soberano a contraria em vez de a realizar. Leia-se o cap. XXI do Leviathan, sobre a liberdade dos súditos: “Caso um grande número de homens em conjunto tenha já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão eles ou não a liberdade de se unirem, de se ajudarem e defenderem uns aos outros? Certamente que a têm, porque se limitam a defender as suas vidas, coisa que tanto o culpado como o inocente podem fazer”22. Afinal, como Hobbes

previne, o Leviatã é um deus mortal. E é a mesma necessidade que o gerou enquanto instituição e lei que o fez aparecer como revolução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALIBAR, E. Prolégomènes à la souveraineté: la frontière, l’Etat, le peuple. Les

Temps Modernes, nº 610, Sept.-Oct.-Nov., 2000.

BUSA, R. (ed.). S. Thomae Aquinatis Opera Omnia. Stuttgart-Bad Cannstat, 1980. HOBBES, T. Leviathan. B. Macpherson (ed.). Penguin Books, 1985.

(23)

MACHIAVELLI, N. Opere, a cura di Antonio Panella, Scritti Politici. Milano/ Roma: Rizzoli & C. Editori, 1939.

MARIN, L. Le Portrait du Roi. Paris: Minuit, 1981.

NAUDÉ, G. Considérations Politiques sur les Coups d’Etat (1639). Ed. de Louis Marin. Paris: Les Editions de Paris, 1988.

SAINT-BONNET, F. L’État d’Exception. Paris: PUF, 2001. SCHMITT, C. Théologie Politique. Paris: Gallimard, 1988.

SENELLART, M. Machiavélisme et Raison d’Etat. Paris: PUF, 1989. SOPHOCLE. Antigone. Paris: Les Belles Lettres, 1994.

Referências

Documentos relacionados

Obter bioconjugados anti-NS1 DENV dos quatro sorotipos com pontos quânticos fluorescentes de telureto de cádmio (CdTe), com emprego em ensaios de detecção da proteína

As células T CD4+ do tipo Th1 e as células T CD8+ contribuem para a defesa do hospedeiro contra o VSR, enquanto que a resposta Th2 e Th17 exacerbam as doenças na infecção por

Assim como no caso em que não consideramos destruição do habitat, observamos três regimes diferentes dependentes dos valores dos parâmetros do modelo: • Coexistência de presa

posterior aplicação na indústria de cosméticos. Uma profunda análise da literatura foi efetuada para o conhecimento de quais fontes vegetais ricas em nutrientes poderiam

Outros derivados de argilominerais, como os Hidróxidos Duplos Lamelares (HDL), estão sendo estudados nos últimos anos na área farmacêutica, observando-se um número crescente

Uma empresa S/A, na modalidade de capital autorizado (fechado), que nasceu com 1.307 sócios, um patrimônio que pode chegar a US$ 0,5 bilhão 1 e uma gestão dividida

As exigências da educação neste século apontam para o desenvolvimento de uma aprendizagem onde os alunos sejam desafiados a pensar/refletir e a propor soluções para

População e volumes das células de Leydig As células de Leydig apresentaram aumento nos volumes celulares e estas alterações podem ter ocorrido como um mecanismo compensatório