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Com a literatura, a ler o nosso tempo: uma leitura das "Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros"

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS

Mariany Teresinha Ricardo

COM A LITERATURA, A LER O NOSSO TEMPO:

UMA LEITURA DAS “RrEMEMBRANÇAS DA MENINA DE RUA

MORTA NUA”, DE VALÊNCIO XAVIER

FLORIANÓPOLIS 2019

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Mariany Teresinha Ricardo

COM A LITERATURA, A LER O NOSSO TEMPO:

UMA LEITURA DAS “RrEMEMBRANÇAS DA MENINA DE RUA MORTA NUA”, DE VALÊNCIO XAVIER

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Alckmar Luiz dos Santos

FLORIANÓPOLIS 2019

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Ficha de identificação da obra elaborada pela autora,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC. Ricardo, Mariany Teresinha

Com a literatura, a ler o nosso tempo : Uma leitura das "Rremembranças da menina de rua morta nua, de Valêncio Xavier / Mariany Teresinha Ricardo ; orientador, Alckmar Luiz dos Santos, 2019.

50 p.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Graduação em Letras Português, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. Letras Português. 2. Literatura contemporânea. 3. Valêncio Xavier. 4. Memória. 5. Fragmentação discursiva. I. Santos, Alckmar Luiz dos. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Graduação em Letras Português. III. Título.

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Mariany Teresinha Ricardo

COM A LITERATURA, A LER O NOSSO TEMPO: UMA LEITURA DAS “RrEMEMBRANÇAS DA MENINA DE RUA MORTA NUA”, DE VALÊNCIO XAVIER

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de Bacharel em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa e aprovado em

sua forma final pelo Curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa.

Florianópolis, 01 de julho de 2019.

________________________ Prof.ª Dra. Sandra Quarezemin

Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

________________________ Prof.º Dr. Alckmar Luiz dos Santos

Orientador

Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Prof.º Dr. Jair Tadeu da Fonseca Universidade Federal de Santa Catarina

________________________ Doutoranda Maiara Knihs

Universidade de Harvard

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Aos que sofrem por demasiado em meio às mortes, tendo usurpado de si, dos seus, o direito ao existir.

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AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal de Santa Catarina, pela amplitude de áreas e conhecimentos que abriga e pela diversidade de pessoas que recebe, o que me permitiu transitar por caminhos que não necessariamente aqueles contemplados pelo currículo do curso e conhecer pessoas de diferentes espaços de formação.

À professora Mara Aparecida Andrade da Rosa Siqueira, por ter me apoiado no caminho que me levou à entrada na universidade supracitada.

À professora Maria Salete Borba, com quem, em tempos idos de 2012, na disciplina de Literatura Brasileira III, pudemos estudar Valêncio Xavier.

À professora Maiara Knihs, que, em sua trajetória como professora substituta do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas, no ano de 2014, me ajudou a reunir elementos com os quais pudesse adentrar na escrita valenciana e, mais do que isso, me motivou a continuar.

Ao professor Alckmar Luiz dos Santos que, em 2016, acolheu a proposta de me apoiar em uma pesquisa mais aprofundada acerca de como ler as “Rremembranças...” e elaborar esse Trabalho de Conclusão de Curso, que levou mais tempo do que deveria para ficar pronto.

Ao próprio Departamento, que aqui evoco na pessoa da nossa secretária, Giédry Santos Oliveira, por ter confiado que, em algum momento, esse trabalho realmente receberia um desfecho.

Ao professor Marcos Fábio Freire Montysuma, cuja disciplina de História Oral e Memória, ministrada no Programa de Pós-Graduação em História no ano de 2018, contribuiu muito para que esse trabalho chegasse a uma conclusão.

À Lidia, por cada sorriso e lágrima despontados nesse trilhar da vida em meio à experiência e à pobreza, expressão que se tornou de uso tão significativo para nós.

À Ana e à Suzy, por podermos estar juntas, nos apoiando, nesses tempos em que eu insistia que, mesmo em meio ao caos, eu iria terminar o que havia começado. À Dani Knihs, por ser uma das professoras de dança mais maravilhosas do mundo, e às meninas da turma de dança, por me ajudarem a lutar contra os demônios que às vezes insistem em maltratar.

À minha família, que, mesmo questionando o que tanto faço na universidade, perguntando se vou estudar para sempre, é um dos alicerces para que eu possa continuar em minha teimosia.

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O que esquecer? (D) o que lembrar?

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RESUMO

“Rremembranças da menina de rua morta nua” é um dos livros que fazem parte da obra literária Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006), de autoria do escritor e cineasta curitibano Valêncio Xavier (1933-2008). Valêncio é alguém que, em meio ao seu procedimento de escrita, explora formas narrativas que desafiam uma maneira tradicional e linear de contar estórias. Essa característica marca, para além da obra supracitada, outras publicações do autor, como O mez da

grippe e outros livros (1998), que ganhou o prêmio Jabuti em 1999 por melhor

produção editorial. No que tange a esse escrever, ele usa de métodos que remetem ao movimento Dadaísta, do início do século XX, de forma que desenvolve narrativas marcadas por procedimentos tanto de fragmentação quanto de colagem e/ou montagem. Tendo essas questões em vista, este trabalho analisa de que maneira a elaboração artística presente nas “Rremembranças...” atua em relação a uma situação-base tomada no cotidiano brasileiro: notícias e reportagens sobre uma menina que foi encontrada, morta e nua, dentro de um caixão de brinquedo de um parque de diversões em Diadema (São Paulo), no ano de 1993. O escritor, nesse livro, se apropria desse material e o fragmenta, entrelaçando-o com recortes provenientes de outros espaços discursivos (com bilhetes, textos literários e verbetes de dicionário, por exemplo). O entrelaçar desses fragmentos, por sua vez, tece uma configuração diferenciada a um mesmo assunto, a qual permite com que o leitor não apenas tenha contato com a história do que teria acontecido à menina, da perspectiva do discurso jornalístico, mas também – e sobretudo – problematize esse discurso junto com o texto literário e participe de uma atividade rememorativa que, de certa forma, foge a ele [o discurso jornalístico] e o desafia, na medida em que possibilita uma outra aproximação com o tempo em que vivemos.

Palavras-chave: Rremembranças. Valêncio Xavier. Memória. Discurso. Fragmentação.

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ABSTRACT

“Rremembranças da menina de rua morta nua” is one of the books that are part of the literary work Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006), authored by Curitiban writer and filmmaker Valêncio Xavier (1933-2008). Valêncio is someone who, in his writing procedure, explores narrative forms that challenge a traditional and linear way of telling stories. That feature also marks other publications of the author, as O mez da grippe e outros livros (1998), wich won the Jabuti award in 1999 for best editorial production. About his writing style, he uses methods that refer to the Dadaist movement of the early 20th century. Thus, he develops narratives marked by procedures such as fragmentation and collage and/or assemblage. Taking these questions into consideration, this work analyzes how the artistic elaboration that is present in the “Rremembranças...” acts in relation to a base situation taken in Brazilian daily: news and reports about a girl who was found dead and naked inside a toy coffin at an amusement park in Diadema (São Paulo) in 1993. The writer appropriates this material and fragments it, interweaving it with cutouts from other discursive spaces (notes, literary texts and dictionary entries, for example). The interweaving of these fragments, in turn, weaves a differentiated configuration to the same object, which allows the reader not only to have contact with the story of what would have happened to the girl, but also – and above all – problematize that discourse along with the literary text and participate in a rememorative activity that, in a way, escapes and challenges it [the journalistic discourse], making possible another approach with the time in which we live.

Keywords: Rremembrances. Valêncio Xavier. Memory. Discourse. (De)Fragmentation.

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SUMÁRIO

1 Abertura ... 10

1.1 Preparação: iniciação ao tempo e à memória ... 11

1.2 Notas sobre Valêncio ... 15

2 As “Rremembranças da menina de rua morta nua” ... 17

2.1 Discursos de composição ... 18

2.2 Desenvolvimento e efeitos de escritura ... 27

2.3 O trabalho com a memória ... 35

2.3.1 A menina nos jornais: uma primeira memória ... 35

2.3.2 A descentralização do discurso jornalístico: um outro exercício de memória ... 38

3 Considerações finais ... 45

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1 Abertura

As grandes cidades precisam de espetáculos e os povos corrompidos de romances.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), no prefácio de Julia ou a Nova Heloísa (1761)

Novos romances? Outras formas de tocar. Para este trabalho, não será estudado um livro com uma estória narrada nos moldes tradicionais da escrita romanesca. Em meio a discussões sobre a forma e o informe, sobre o tempo cronológico e o anacrônico, tradição e quebra de tradição, esteve a leitura de

Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006), de Valêncio

Xavier (1933-2008). Naquela época, tempos idos de 2014, pude desenvolver um breve trabalho de análise sobre a estória que dá título ao livro, análise que ficou, desde então, esperando pela continuidade. Eis que chegou o momento para isso.

Inicialmente, gostaria de registrar que situo as leituras que se encontram aqui como provenientes do tipo de encontro que se dá de maneira inesperada. Não imaginava, até tê-lo, que houvesse alguém, na Literatura Brasileira, que houvesse trabalhado com processos de colagem e montagem que remetem, de certa forma, às vanguardas do início do século XX e à produção cinematográfica1 e, com isso, pudesse escrever algo tão caro às produções que povoam nosso sistema literário2. Adotando-a como ponto de partida, pude me aproximar não apenas com os estudos de teoria e crítica literária, e dos próprios movimentos de vanguarda, sobretudo o Dadaísmo, mas também da época de lutas em que vivemos e na qual ainda existe muita exploração e desigualdade, com muitas pessoas sem acesso à boa parte dos bens culturais presentes em cada comunidade do mundo.

Esse é o caso da menina de Diadema, retratada nas “Rremembranças da menina de rua morta rua”, que não pôde viver o suficiente para ter bastante disso e que, mesmo vivendo, poderia continuar circunscrita ao ambiente em que crescia. Poderia, portanto, ainda que passasse à fase da adolescência, ser estuprada e morta. Mas não podemos fechar os caminhos. Seria demasiado cruel achar que a vida

1 Que, lembremos, não deixa de ter seus próprios vínculos com os movimentos de vanguarda. 2 Conforme a noção desenvolvida por Candido (1993).

(12)

reservaria apenas um destino sem perspectiva para as crianças de rua, por mais que a sociedade da velocidade, da mutabilidade e do consumo insista em fazê-lo3.

Nesta situação em específico, Valêncio não deixou apenas um lado aparecer. Em sua atitude, já presente em obras como O Mez da Grippe (1981), de reconfigurar o gênero notícia, acaba por construir um texto que faz jus à memória da menina de forma que jornal algum, sensacionalista ou não, poderia fazer. Além disso, ele provoca cada um dos seus leitores a pensar o lugar que este mesmo tipo de produção ocupa em nossa sociedade, na formação das pessoas que acompanham, nos jornais televisivos e em mídias diversas, a série de crimes que acontecem cotidianamente nos espaços humanos e não humanos, em lugares que não precisam ser tão distantes assim.

Tendo essas questões em vista, neste trabalho trarei, em um primeiro momento, algumas reflexões sobre a vida moderna. Conseguinte, teremos uma breve apresentação sobre quem é Valêncio Xavier. Isso feito, nos aproximaremos da produção valenciana propriamente dita, particularmente das “Rremembranças da menina de rua morta nua”, a produção escolhida para estudo e que nos colocará em um contato com o estilo do autor e da obra e, sobretudo, com a sociedade contemporânea. Isso, por sua vez, permitirá com que visualizemos o tratamento possível de ser dado por uma produção artístico-literária ao mundo em que vivemos, frente aos valores perpetuados pelo modo de vida referido anteriormente.

1.1 Preparação: iniciação ao tempo e à memória

Assim a vida desaparecia, se transformava em nada. A automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo à guerra.

Chklóvski, em “A arte como procedimento”.

A modernidade, a exploração, o trabalho nas fábricas, a sociedade de consumo. Habitamos um tempo marcadamente povoado por essas questões. No grande tempo4, a vontade de supremacia da razão ocidental, aliada ao período das grandes navegações iniciado no século XV, marcou, dentre diversos processos, a

3 Conforme discussão traçada por Bauman (2001).

4 Em Bakhtin (2010), pertenceria ao grande tempo aquilo que faz passado, presente e futuro

(13)

chegada dos europeus e sua cultura ao Novo Mundo, os processos de escravização e de migração aí suscitados, o processo de industrialização, a reprodutibilidade técnica decorrente desse processo e a formação de uma sociedade em que subalternizar e apagar pela diferença, salvo cuidado, periga se tornar regra5. No entanto, atentemos para que esse grande tempo não é marcado por uma via de mão única e sempre houve resistência. Porém, esta nem sempre chega até nós, tendo em vista, por exemplo, a predição dos vencedores por suas próprias histórias (Benjamin, 1987) ou a dificuldade de quem é posto na margem ter acesso à voz ou ser ouvido por aqueles que não integram seus grupos. Nesse contexto, como recuperar, sentir e dar espaço ao que não foi ou é contado? De que forma problematizar a versão tomada como definitiva, as histórias tidas por verdadeiras, (re)construir memórias, não se deixar ir apenas pela linha automatizante à que se refere Chklovski (1971)? Como balançar com o tempo linear e predatório?

Antonio Candido (1918-2017), em fala proferida na inauguração da biblioteca Florestan Fernandes, em 2006, ao criticar os dizeres “tempo é dinheiro”, de Benjamin Franklin (1706-1790), defende o tempo enquanto tecido de nossas vidas6, uma perspectiva que vem ao encontro do que podemos ver enquanto reconstrução de memórias. Isso ocorre na medida em que a forma como lidamos com o tempo, como nos utilizamos dele, reflete no tratamento e atenção que daremos ao que acontece ao nosso redor e a tudo aquilo que nos é contado. Dessa balança não estão distantes os aspectos da formação cultural de cada um, que igualmente pesam para que possa ocorrer uma quebra de percepção, seja em relação ao tempo, aos acontecimentos ou às histórias com que cada sujeito entra em contato.

Nesse momento, para dialogar com essa discussão, gostaria de evocar Walter Benjamin (1892-1940). Uma de suas preocupações diz respeito às transformações por que passa a experiência no decorrer da modernização da sociedade. Ao pensar a perda das experiências comunicáveis pelos soldados, que voltavam mudos da I Guerra (BENJAMIN, 1986), ele reflete acerca da necessidade de eles terem de abrir mão, no combate, de diversas sensações para com o mundo, compartilháveis em termos de humanidade, em virtude daquilo que estavam vivendo no momento.

5 Em diálogo com o que Achille Mbembe (1957-) entende por modernidade, “o outro nome para o

projecto europeu de expansão sem limites que se desenvolveu a partir dos últimos anos do século XVIII” (MBEMBE, 2014, p. 101).

6 Disponível em:

(14)

Ampliando o campo de batalha, podemos chegar à vida moderna, na qual a pobreza de experiência se estende, ocorre um abandono da história coletiva em prol do atual e o trabalho (mal-)assalariado ocupa a energia das massas. Estendendo-a a nossos dias, muitas coisas são organizadas para que as pessoas se preocupem em consumir e valorizar discursos de imediatismo e julgamento, de forma que uma série de situações passa despercebida e a muitos sujeitos não é permitido vislumbrar a história de poder que constitui o seu tempo.

Em parte, essa falta de sensibilidade que marca o nosso tempo está relacionada a uma espécie de privação da faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIN, 1994, p. 198) no estilo de vida ocidental. De acordo com o autor, dentre os eventos que modificaram as narrativas clássicas de troca de experiência7, portadoras de um conteúdo que perdura ao longo do tempo, e sua presença no mundo, está o surgimento da imprensa, da qual emerge a informação enquanto forma de comunicação de algo imediato e plausível, revestido de explicações que, na narrativa tradicional, estaria envolto não por elas, mas, antes, por um ar de incerteza, em que “o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor” (BENJAMIN, 1994, p. 203). Em contraponto, há ainda quem escreva, publique na imprensa – ou fora dela – e se preocupe com isso.

O próprio Benjamin (1989), em seu ensaio sobre Charles Baudelaire (1821-1867), aponta que, à época do poeta, a atividade literária vinculada aos periódicos consistia em uma literatura panorâmica que descrevia os hábitos das cidades (chamadas de fisiologias). Ela era publicada junto a notícias e anúncios e teria uma inofensividade no lidar com a sociedade e com as pessoas que se difere bastante da noção de experiência benjaminiana, que passa pela narrativa. É em Baudelaire, por sua vez, que Benjamin (1989) verá traços de uma memória do exercício de narrar, o que está refletido no trabalho presente em As flores do mal (1857), na experiência da multidão que tocou o poeta e que dialoga com o surgimento de uma literatura mais preocupada com as funções de caráter da massa do que com seus tipos sociais. Temos, nesse sentido, poemas que reviram as faces que se encontram nas ruas e que dizem respeito à experiência baudelairiana diante do seu tempo, ainda tão próximo de nós.

(15)

No sentido desse contato do sujeito com o seu tempo, Agamben (2009) registra que é contemporâneo ao seu tempo aquele que “não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões” e que, “exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e apreender o seu tempo.” (AGAMBEN, 2009, p. 58-59). Anacronismo esse que desloca o olhar para aquilo que, em cada cena presente, remete a um passado que nos parece difícil de alcançar, que escapa à memória e que está longe de obedecer a uma concepção de tempo enraizada em uma linearidade história de progresso e superação.

Esse tempo, em muito marcado pela aceleração decorrente do capitalismo, priva as pessoas de uma série de estímulos que, em outras circunstâncias, elas receberiam. As priva de viver um tempo que não é aquele no qual estão, mas que é vida na medida em que permite sentir e ver o que tempo entendido como cronológico não permite, pois apaga o tempo histórico, o tempo de outras experiências que não aquelas em que se vive em um contexto mais imediato. Para vermos os tempos no tempo de hoje é necessário, pois, perceber mais do que aquilo a que a realidade se mostra e, para isso, é preciso que o ser humano seja tocado, desestabilizado, por assim dizer. Surge a necessidade, portanto, de fazermo-nos tocar, assumir riscos diante de um público cujo corpo se fechou a determinados estímulos, a fim de que o ser humano possa, tenha tempo, de sentir.

Diante desse cenário, o que nos permite tocar nosso tempo? De que forma sentimos o operário? De que maneira sentimos a criança de rua, os marginalizados, o artista? De que forma sentimos os outros, as instituições de poder, a lei? Como somos levados a sentir ou não sentir? O capitalismo nos cerca. O que nos chega? Não há muito tempo para narrativas que dialoguem com o caráter plural de outras épocas, para imaginar, viver além do aqui e do agora, de um contínuo de informações vindas de todos os lados, provindas, sobretudo, da mídia. Mas há mais do que o imediatamente apresentável e o não dito pode, sim, desconfortar e alcançar as pessoas. Como? A quem?

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1.2 Notas sobre Valêncio8

Só me falece é ter eu de ter de te abandonar

Valêncio Xavier, em Macao.9

Valêncio Xavier nasceu em São Paulo, em 1933, e morou em Curitiba desde 1954, onde trabalhou com o cinema e com a televisão. Neves (2006) registra dois momentos importantes da formação de Valêncio: os dois anos em que ele estudou na Escola de Belas Artes de Curitiba e sua estadia em Paris, em 1959, da qual decorreria a influência do Dadaísmo e em cuja época trabalhou como fotógrafo de galerias de arte. Engendrada sua carreira como cenógrafo, na década de 1960, começa a atuar também como escritor de programas televisivos e de teatro, mas acaba por sair da televisão, preferindo o cinema. De acordo com a autora supracitada, ele se afastou daquela por considerá-la um espaço muito comercial.

Em seu percurso dentro da área escolhida, em 1975 ele participa da fundação da Cinemateca do Museu Guido Viaro10, que é dirigida por ele até 1982. Em seguida, atua como diretor do Museu da Imagem e do Som do Paraná entre 1987 e 1991 (ARAÚJO, 2013). É durante a participação nesses espaços que Valêncio dirige suas produções fílmicas, ganhadoras de prêmios, mas, nem por isso, tão conhecidas. Concomitantemente a isso, particularmente a partir da década de 1980, ele passa a se dedicar com afinco ao espaço literário, com uma escrita à sua maneira, influenciada pela mencionada estadia em Paris, por técnicas cinematográficas e seu gosto pelos quadrinhos (NEVES, 2006).

Mesmo tendo publicações literárias que datam da década de 196011, Valêncio demorou a ser notado de forma mais ampla nesse meio e fora dele, o que envolve

8 Longe de chegar a informações exaustivas sobre o autor, já presentes em outros trabalhos, essa

seção se propõe a oferecer um panorama mais geral sobre as atividades a que Valêncio se dedicou, tendo em vista estarem elas relacionadas com a análise literária que será feita. Informações mais detalhadas sobre produções do autor podem ser encontradas em Araújo (2013), Borba (2005), Bueno (2012) e Neves (2006), dentre outras fontes.

9 Um dos livros que compõem a publicação Rremembranças da menina de rua morta nua e outros

livros.

10 À qual é conjunta a criação da Cinemateca de Curitiba.

11 Neves (2006) registra como primeira publicação literária do autor o conto “Acidentes de trabalho”

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fatores que passam por suas publicações estarem presentes em jornais ou revistas e, quando maiores, serem feitas por pequenas editoras. Além disso, há toda uma crítica em torno de sua escrita dita experimental, que acaba por escapar ao que esperam editoras e leitores, o que pode influenciar nas vendas. É em 1998 que ocorre uma publicação por uma editora maior, a Companhia das Letras, o que permite com que haja mais direcionamento da crítica para sua obra: sob o título O mez da grippe e

outros livros são reunidos textos anteriormente publicados pelo autor12. O título ganha o Prêmio Jabuti em 1999. Seguem-se, com publicação pela Companhia das Letras,

Minha mãe morrendo e o menino mentido (2001) e Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006), publicado dois anos antes do falecimento de

Valêncio. Em meio a esse período, é publicado Crimes à moda antiga (2004), pela Publifolha.13

Dentro de uma compreensão que situa a matéria da literatura dentro da experiência do sujeito com o mundo, através dos sentidos e da linguagem, as estratégias de dizer não podem ser tratadas no vazio. Nesse sentido, cabe dizermos que a escrita de Valêncio, sobretudo naquelas obras em que marcadamente ocorrem apropriação de fragmentos e os processos de colagem e de montagem14, em cada recorte feito por ele, remete a um tempo que não é meramente cronológico, mas, antes, anacrônico. Tendo em vista que cada signo tem sua história, suas marcas, suas estadias em diferentes tempos e perspectivas, o escritor, jornalista e cineasta, dentre seus tantos trabalhos, acaba por jogar com variadas violências que percorrem a história de nossa sociedade.

Sedução, sexo, morte, desvalorização da vida, memória, moradores de rua, doenças, linguagem, gêneros discursivos, palavras e imagens, dentre outros aspectos, marcam o tecido das obras citadas. Essas obras, na composição dada por Valêncio, assumem um outro tocar o leitor, que não apenas o de uma poesia camoniana, um bilhete entregue por uma criança de rua no semáforo, uma reportagem, um conto, crônica ou romance. Tal como em um filme, há corte e vazio

12 O mez da grippe (1981), Maciste no inferno (1983), O minotauro (1985), O mistério da prostituta

japonesa & Mimi-Nashi-Oichi (1986) e 13 Mistérios + O mistério da porta aberta (1983-1990) (NEVES, 2006).

13 Valêncio publicou ainda, junto com Poty Lazzarotto (1924-1998), os livros Curitiba, de nós (1975) e

A propósito de figurinhas (1986). O autor escreveu, ainda, uma biografia sobre o amigo, intitulada Poty, trilhos, trilhas e traços (1994). No mais, em 1973, foi publicada, pela Payol, o livro Desembrulhando as balas Zequinha (Neves, 2006).

14 Como o Mez da grippe e outros livros e as Rremembranças da menina de rua morta nua e outros

(18)

entre cada um desses modos de dizer, dos quais emanam uma potência de leitura que permite uma experiência diferenciada para com cada um dos gêneros tomados em suas circunstâncias cotidianas. É nessa direção que vai esse estudo: o que suscita o afrontamento de formas narrativas tradicionais.

2 As “Rremembranças da menina de rua morta nua”

Reunião de recortes das “Rremembranças...”.

As “Rremembranças da menina de rua morta nua” (doravante “Rremembranças...”) é um dos livros que compõem a obra de mesmo título, publicada em 2006. Valêncio, como em “O Mez da Grippe” (1981) e em outros livros do mesmo volume, trabalha com a apropriação de fragmentos discursivos provenientes de diferentes esferas sociais. Na primeira parte desta seção, gostaria que nos aproximássemos de cada um desses recortes. Posteriormente, virão algumas reflexões teóricas acerca do procedimento de escrita presente na mobilização desses recortes, as quais não ajudarão a explorar o trabalho de ressignificação por que eles passam na escritura da obra. Por fim, chegaremos ao impacto que essa ressignificação tem para uma crítica direcionada aos gêneros jornalísticos, mediada por um trabalho em torno de diferentes concepções de memória.

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2.1 Discursos de composição

La logique est une complication.

Tristan Tzara, Manifeste Dada (1918)

O primeiro recorte presente nas “Rremembranças...”, que concede abertura à narrativa, é uma reportagem do Jornal do Brasil e se refere ao programa televisivo

Aqui agora, que, na época (1993), era transmitido pelo Sistema Brasileiro de Televisão

(SBT). O que temos, portanto, não é algo que nos remeta ao assassinato que funciona como uma espécie de mote para a estória, mas sim uma reportagem acerca daquele programa, que recentemente passara por modificações a fim de, com seu jornalismo popular, “atingir consumidores de fino trato”, conforme registrado na abertura do caderno TV do Jornal do Brasil de 27 de março de 1993. Na reportagem citada, Marcos Wilson, um dos organizadores, diz que, “depois de conquistar a credibilidade popular”, querem atingir a “credibilidade do formador de opinião” (WILSON apud RODRIGUES, 1993, p. 95), por meio de um trabalho que visa, entre outras coisas, à eliminação de reportagens que parecessem muito armadas. Nesse processo, para transformar o programa em cult, ganha destaque a figura de Gil Gomes, um cronista policial que é transportado para o livro junto aos demais recortes mobilizados pelo autor.

Na página seguinte, temos o título da reportagem gravada – “A última viagem da pequena ---”, a data (oito de abril de 1993) e a localização desse personagem que vem a ser Gil Gomes. É por meio dele que, durante boa parte da narrativa, acompanharemos o ocorrido. Ele inicia sua fala se referindo à existência de crianças de rua, “um problema brasileiro” (GOMES apud XAVIER, 2006, p. 41). Entre a apresentação dessa problemática e os questionamentos que virão a seguir, sobre como se formam crianças de rua, temos um bilhete entregue a Valêncio Xavier em um semáforo de São Paulo, no mesmo mês da morte da menina:

(20)

Imagem 1 – Bilhete que compõe a escritura de Rremembranças da menina de rua morta nua.

Fonte: Xavier, 2006, p. 41.

Em seguida, conforme mencionado, Gil Gomes indaga acerca da formação de crianças de rua e, depois disso, nos vemos diante de uma foto da menina, retirada de reportagem do Estado de São Paulo (hoje, Estadão) publicada em oito de abril de 199315. É por meio dela que se dá o primeiro contato com a temática que nos é apresentada no título do livro, sendo que somos postos diante da possibilidade de um crime envolvendo violência sexual.

Imagem 2 – Rosto da menina.

Fonte: Xavier, 2006, p. 42.

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São ocultados, nesse tipo de recorte, os olhos e o nome da menina, que não aparecerão em nenhum momento da narrativa, independentemente do lugar de que provêm, embora presentes nas publicações originais. Logo depois da foto, Gil Gomes volta a indagar acerca das razões de ser infligida a uma menina a situação de criança de rua: “Por quê? Por quê?” (GOMES apud XAVIER, 2006, p. 42), e então aparece o primeiro verbete da obra, o vocábulo lembrar:

Imagem 3 – Verbete lembrar.

Fonte: Xavier, 2006, p. 42.

Na página seguinte, temos a repetição de uma manchete – “Menina é achada morta em trem fantasma” – e a descrição da cena do encontro com a menina, nua e ferida em um caixão de brinquedo de um parque de diversões. É nesse momento que sabemos, de fato, o que acontecera à menina da foto e fazemos a relação com o título da narrativa que dá nome ao livro. Notemos que a idade citada na manchete (oito anos) se difere daquela atribuída pela reportagem de Gil Gomes (nove anos).

Nos recortes de jornal que darão continuidade à estória, temos um misto de transcrição e colagem em que aparecem o preço dos jornais (da Folha e do Estado

de São Paulo, os mesmos de que provêm os recortes que se referem ao caso da

menina), uma notícia sobre o caso e o preço do pão. A notícia, que se situa entre o preço dos jornais e o preço do pão, irá corroborar com a informação sobre ter havido um convite para relação sexual, bem como trazer à cena a possibilidade do uso de drogas. A idade da menina novamente figura como a de oito anos, diferentemente da reportagem de Gil Gomes e da publicação que temos na página seguinte, que consiste

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em recortes da Folha16. Na última página citada, temos, ainda, uma fotografia da saída

do trem-fantasma, a “Saída dos sobreviventes”, na qual aparecem crianças. Abaixo dessa imagem, vemos a notícia de que a prefeitura interditara o parque de diversões. Após isso, temos uma outra reportagem de jornal, cujo cabeçalho deixa uma incompletude ao não preencher o espaço que caberia ao que aconteceu com a menina – se chegaria, algum dia, a uma resposta? Encontramos, nesse recorte, referência à prisão de empregados do parque, que negavam ter feito algo, e a duas testemunhas, que confirmavam um convite feito à menina para fumar crack e manter relações sexuais. Além disso, ele menciona os exames feitos pelo Instituto Médico Legal, que apontavam para traumatismo craniano, e ao lugar em que vivia a menina, com a avó. O pai, de quem não sabiam o nome, havia sido morto pelo que a reportagem chama de justiceiros. A mãe, presa por se envolver com tráfico de drogas, recebe um nome e será a ela que Gil Gomes se direcionará, em uma entrevista, na página seguinte, em que reaparece o programa Aqui Agora, sob o cabeçalho Aqui e Agora (grifo meu).

Pela fala da mãe, percebemos que sua história de vida fora igualmente marcada pela violência e pelo abandono. Quando, no decorrer da narrativa, estamos no momento em que Gil Gomes a entrevista, sabemos que aquela foi expulsa de casa por se relacionar sexualmente com um garoto quando tinha doze anos. Desde então, se envolvera com diversos homens e tivera oito filhos – sete, contando que um havia morrido. “Minha vida é uma novela” – ela diz – “Nem um livro maior que o mundo enche ele.” (XAVIER, 2006, p. 47). É então que aparece o primeiro número, em negrito, nas páginas da estória: o número 7. Sete os filhos do abandono de uma história a que não faria jus nenhum livro.

Posteriormente, temos um recorte de jornal que fala de a menina ir almoçar em uma unidade da Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem), bem como de sua estadia nas ruas da cidade, pedindo esmola e “em companhia de marginais do bairro” (XAVIER, 2006, p. 48). A fala seguinte de Gil Gomes será atrelada a essa informação, complementando-a por dizer que a menina às vezes ia dormir na casa da avó. No entanto, como a presença dela era inconstante nesses espaços, houve dificuldade em se notar que havia ocorrido um sumiço. O sumiço de uma menina de rua que, na fala do cronista, aparece enquanto condição relacionada à “falta de oportunidade, de estudo, de tudo” (GOMES apud XAVIER, 2006, p. 48). É nessa mesma página que

16 As reportagens da Folha de São Paulo utilizadas no decorrer da obra são dos dias oito e dez de abril

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recebe destaque, mais uma vez, a presença de um número. Desta vez, o número 9, com referência à idade da menina, conforme o programa: “---, nove anos de idade. Nove, apenas nove anos de vida. Uma menina de rua havia sumido. Onde estava. Estava morta.” (GOMES apud XAVIER, 2006, p. 48).

É depois deste ponto que o fluxo do programa televisivo utilizado na narrativa tem seu primeiro corte para o estúdio:

Imagem 4 – Fluidez das notícias em um programa televisivo jornalístico.

Fonte: Xavier, 2006, p. 49.

Essa ida ao estúdio, aos apresentadores do programa, leva aos espectadores novas informações e assuntos: economia na França, desemprego, ovos de Páscoa e, novamente, o caso da menina... ou não. Vamos ao intervalo. Mais informações e temas. Volta-se. Anuncia-se o programa seguinte e um pouco do que ele vai tratar: o

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dinheiro que os deputados receberão para tratar dos dentes (que não seria pouco, como insinua o jornal) e o caso de meninas de até 17 anos (-17, o terceiro número destacado em negrito) que estão desmaiando misteriosamente no Egito. Nesse momento, cabe deixarmos o questionamento sobre o que, enquanto leitores de uma obra que opta por deixar permanecerem esses elementos, fazemos com esse tipo de informações.

É apenas no final da página seguinte, depois de outras falas que fogem ao caso da menina e que se referem a mais números (salários de funcionários, rendimento de cadernetas de poupança...), é que se retoma, de fato, o que aconteceu à menina, por meio de recortes de jornais impressos. Após a fala de um dos apresentadores: “Um crime brutal, desumano, completamente sem sentido... acompanhe” (XAVIER, 2006, p. 50), aparece um pequeno trecho publicado no Estado de São Paulo, acerca do mau cheiro que levou os funcionários a encontrarem o corpo. O trecho é seguido de uma imagem do “Mundo do Terror”, em que aparece a placa de saída dos sobreviventes já mencionada. Acerca da entrada, a publicação no jornal registra que ela é chamada de “Entrada dos Corajosos – Venha testar sua coragem”. Novamente estão presentes crianças em uma fotografia do cenário externo do assassinato.

Gil Gomes reaparecerá após esses recortes, no parque de diversões, com sua fala acompanhada da gravura de um relógio:

Imagem 5 – Relógio.

Fonte: Xavier, 2006, p. 52.

Ele discorre tanto sobre a presença da menina no parque quanto sobre o brinquedo da Casa do Terror que, conforme referido, é de onde veio o cheiro que direcionou ao encontro da menina. Em meio à fala dele, está um recado de V.X.:

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Imagem 6 – Observação de V.X.

Fonte: Xavier, 2006, p. 52, grifo meu.

Após essa fala, vemos, ainda na mesma página, a notícia de que um funcionário do parque, Oliveira, procurou por um outro, Nena, para ajudá-lo na busca pelo que estava causando o mau cheiro. Noticiada a busca, a narrativa segue com o recorte do vocábulo nénia, que conserva, em sua sonoridade, aspectos que o aproximam do nome do funcionário:

Imagem 7 – Verbete nénia.

Fonte: Xavier, 2006, p. 53.

Após o vocábulo nénia, temos a imagem, que remete a livros de anatomia antigos, de um pé, a parte primeiramente vista quando abriram um dos caixões de madeira na chamada Casa do Terror:

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Imagem 8 – Pé.

Fonte: Xavier, 2006, p. 53.

Nena é retomado nas duas páginas seguintes, citado em uma notícia que remete à investigação do caso (amigas da menina teriam dito que ele teria as pagado, na semana anterior, para que o deixassem sozinho com a menina) e em uma entrevista feita por Gil Gomes, em que o funcionário afirma não ter ele sido responsável pelo assassinato, que ele sequer conhecia a menina.

Por fim, chegamos à última entrada do Aqui Agora na narrativa, em que temos a questão a que não havia resposta: quem teria matado a menina? Gil Gomes se despede, passando a condução do programa para o estúdio. Mas, antes de retornarmos propriamente a este, temos um trecho dos Lusíadas, de Camões, com um dos apresentadores informando do fechamento do parque, tendo em vista sua condição irregular. Segue-se a essa fala um trecho do Leal Conselheiro, tratado de moral de autoria do rei português Dom Duarte (1433-1438). O excerto diz respeito ao exercício de rememoração:

Imagem 9 – Trecho do Leal Conselheiro.

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O programa é finalizado nessa mesma página, pela fala de uma apresentadora, que anuncia o programa a seguir (mais discurso jornalístico, para variar) e se despede do público. Depois disso, temos o que é tratado pelo autor como a última notícia sobre a menina na imprensa, publicada pela Folha de São Paulo em dez de abril. Acompanhada da foto do Mundo do Terror, com a Saída dos Sobreviventes cercada de crianças, nela se anuncia que a polícia suspeita de mais uma pessoa no crime ocorrido.

Na penúltima página da narrativa, vemos ser retomada a fotografia já presente na página 42, quando se anuncia o caso da menina. Dessa vez, sob o rosto da menina, de faixa preta sobre os olhos, se amplia o trecho do Leal Conselheiro citado anteriormente:

Imagem 10 – Segundo trecho do Leal Conselheiro.

Fonte: Xavier, 2006, p. 58.

Finalmente, na última página, figuram para o fechamento da narrativa dois elementos. Primeiramente, o verbete menor:

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Imagem 11 – Verbete menor.

Fonte: Xavier, 2006, p. 59.

Em seguida, os números 8 e 9 separados por um ou e entre pontos de interrogação, que podem remeter à oscilação da idade da menina apresentada nos jornais e jogar, ao mesmo tempo, com o sentido do vocábulo menor enquanto o mais

pequeno. De qualquer maneira, que importaria tanto um número quando uma criança

fora encontrada morta?

2.2 Desenvolvimento e efeitos de escritura

Considerávamo-nos engenheiros, nossa intenção era construir, “montar” o nosso trabalho [...].

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Em diálogo com o que vimos na seção anterior, os primeiros fragmentos que compõem as “Rremembranças...” são recortes que provêm do discurso jornalístico17. Aquele que se refere à renovação do programa Aqui Agora é o único que não diz respeito ao caso da menina, mas, mesmo assim, é o que dá abertura à narrativa, permitindo com que demos alguma contextualização ao programa supracitado. No mais, é ele o responsável por trazer vários elementos sobre o que teria acontecido à menina, devido à elaboração de uma reportagem em torno disso, com a ida do cronista policial Gil Gomes tanto ao lugar em que teria sucedido o assassinato quanto a outros espaços que a menina frequentava.

No caso dos jornais impressos, eles têm suas manchetes, fotografias e notícias em um estilo que reporta aos fac-símiles colados por sobre as páginas, diferentemente do programa televisivo, cujas falas precisaram ser transcritas, o que ocorre com o uso de diferentes tipos de fontes caligráficas. Alguns desses recortes, cabe apontar, têm alguma edição no que se refere à formatação do conteúdo original (o que também pode ter acontecido em relação à fala das demais pessoas, na reportagem gravada), como ocorre na página 44 (Imagem 12), em que podemos perceber uma segunda edição do recorte, quando o comparamos com os originais.

17 Para relembrar, os impressos Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo (hoje,

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Imagem 12 – Manipulação de recorte de jornal.

Fonte: Xavier, 2006, p. 44.

No que se refere a esses tipos de recortes, que abarcam gêneros discursivos próprios da área do jornalismo, eles sofrem, desde a segunda página, interferência de textos que provêm de outras esferas, os quais foram descritos brevemente anteriormente. O primeiro deles, situado após a fala de Gil Gomes sobre o problema das crianças de rua, é um bilhete (Imagem 1) entregue a Valêncio em um semáforo de São Paulo – e sabemos isso porque essa informação está junto ao recorte. Com isso, além de expandir o cenário da presença de crianças de rua, nos vemos diante de uma obra que retrata em alguns momentos, de forma direta, de onde provém o conteúdo que lhe dá vida.

Outra presença bastante interessante, nesse sentido, é a interferência de V.X. a uma fala de Gil Gomes sobre o trem fantasma em que fora encontrado o corpo da menina (Imagem 6). Nesse caso, podemos notar o quão intromissivo o narrador pode ser na escrita de Valêncio, um narrador que percorre nas entrelinhas, no não dito, os discursos retirados do mundo. E isso também por meio de outros elementos, como os verbetes de dicionário, retomados em seu sentido etimológico e em sua grafia antiga. O primeiro deles, que está junto ao questionamento acerca do porquê do assassinato da menina, remete ao que vai se constituir como um dos principais elementos (o

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trabalho em torno da memória) que reconfiguram os recortes de jornal: o verbete

lembrar (Imagem 3). Ele aparece na mesma página em que temos a primeira

ocorrência da foto do rosto da menina, com uma faixa preta sobre os seus olhos e o seu nome18, e logo antes da repetição, por cinco vezes, do cabeçalho de uma reportagem publicada na Folha de São Paulo. Temos, nesse caso, assim como no dos verbetes nénia (Imagem 7) e menor (Imagem 11), a remissão a um contexto mais formal que o do bilhete retomado ou a interferência de V.X., apontando para a pluralidade de lugares em que pode estar registrado aquilo que pertence às significações e questionamentos do ser humano em relação ao que há no mundo.

Além disso, a remissão ao contexto etimológico das palavras, em sua grafia antiga, bem como a apropriação de gravuras antigas (de um relógio – Imagem 5 –, na página 52, e de um pé – Imagem 8 –, na página 53) e das próprias publicações de jornal, que datam de 1993, pode ser pensada do ponto de vista do tempo utilizado e expresso pela narrativa. Tendo em vista que Valêncio se apropria de fragmentos que pertencem a diferentes momentos da história, ele parece jogar com a ideia da existência do passado no presente, compreendendo este enquanto pluralidade de tempos (BORBA, 2011). Temos, portanto, uma temporalidade que pertence a diferentes espaços e tempos dentro de um presente narrativo, o que nos permite estranhar e, por consequência, perceber que há uma historicidade junto a cada signo. Seguindo esse ponto de vista, Alencar Jr. (1998) faz o seguinte comentário acerca das publicações mais recentes que seguem esse estilo:

Ao contrário do espírito das vanguardas, a pós-modernidade articula as fronteiras entre as produções de ontem e as de hoje. A consciência do atual incorpora os traços do passado ao presente, instaurando uma criatividade diversificada. Compreende, assim, que a história não é ou presente, ou passado ou futuro. A pluritemporalidade habita e constitui qualquer recorte amplo nos fluxos diacrônicos. [...] Reconhecendo que o novo nasce do velho, Ferreira Gullar19 sustenta que todas as formas são históricas e se originam

de um processo que transcende a experiência individual. (ALENCAR JR., 1998, p. 46)

18 Ambos não aparecem em qualquer momento da estória, ainda que presentes no programa televisivo

e nos jornais impressos. Podemos depreender disso tanto um cuidado que não foi tomado pelas mídias quanto uma não singularização, que pode ser vista dentro da problemática do tratamento que a sociedade contemporânea, sob a influência da necessidade de categorização atrelada aos estudos científicos, tende a dar às pessoas. Nessa situação em específico, a categoria seria menina ou criança de rua (FARINACCIO, 2013).

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O estranhamento vinculado a esse processo pode ser relacionado, por sua vez, ao tratamento que os formalistas russos davam ao trabalho artístico. Chklovski (1971), citado na abertura deste trabalho, ao discutir a automatização decorrente da vida moderna, registra o seguinte, após se referir a uma fala de Liev Tolstói (1828-1910) acerca da inconsciência que pode marcar processos cotidianos: “Assim a vida desaparecia, se transformava em nada. A automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo à guerra.” (CHKLOVSKI, 1971, p. 44). Em contramão a isso, o movimento formalista de que fazia parte via na escrita poética uma possibilidade de violar as regras da linguagem corrente (KRISTEVA, 1974, p. 101), de maneira que o leitor, de alguma forma, se desestabilizasse e se transformasse, indo um passo adiante de qualquer regra que oprimisse.

Kristeva (1974, p. 101) aponta, nesse sentido, a compreensão da escrita poética pelos formalistas russos (entre os quais está Chklovski), que era vista como uma forma de trabalho que ofereceria a possibilidade de violar as regras da linguagem corrente. Esse outro paradigma de visualização do texto literário permitiu, ao quebrar com a noção de que a literatura funcionaria como simples reflexo da realidade, com que

na prática literária revela[sse]-se como exploração e descoberta das possibilidades da linguagem; como atividade que liberta o sujeito de certas redes linguísticas (psíquicas, sociais); como dinamismo que rompe a inércia dos hábitos da linguagem e oferece ao linguista a única possibilidade de estudar o devir das significações dos signos. (KRISTEVA, 1974, p. 102)

É essa exploração e descoberta das possibilidades da linguagem – verbal e visual – que vemos constantemente no trabalho de Valêncio. Não bastasse isso, o escritor nos coloca diante de um cenário de narrativa que desafia a formulação de um contar a estória, uma vez que a sequência de recortes, por si só, não dá conta de formular todas as palavras a serem lidas e interpretadas.20

No que se refere à materialidade dessa exploração, podemos notar um diálogo com o trabalho feito pelos dadaístas no início do século XX. Na leitura de Kobs (2010), Tristan Tzara (1896-1963), no manifesto Dadá de 1918, defende a “criação de uma

20 Se formos contar para outra pessoa o que acontece nas “Rremembranças...”, por se tratar de uma

narrativa muito visual, não será como ler para alguém um conto de fadas, em que ler o que está escrito dá conta, de certa forma, do conteúdo. Na escrita de Valêncio existe um certo pedido para que digamos algo sobre o que vamos ler – no caso da primeira página, avisaríamos que se trata de uma reportagem sobre um programa televisivo, por exemplo.

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arte que tinha como princípio básico a reorganização de elementos previamente dados” (KOBS, 2010, p. 6). No mais,

Em vez de originalidade, importava a seleção e a reorganização, permitindo que os objetos selecionados servissem à outra coisa, com função diferente da que comumente lhe era atribuída. Sendo assim, a criação artística orientava esse novo olhar, que obrigava também o espectador a mudar a perspectiva, para ampliar a função do objeto, já conhecido, a partir da sugestão de uma função ainda desconhecida, mas possível, pelo deslocamento e pela recontextualização. (KOBS, 2010, p. 7)

É nessa perspectiva que podemos compreender o trabalho de Valêncio na medida em que selecionar e reorganizar são estratégias fundamentalmente importante na tessitura da estória, uma vez que, sem isso, não teríamos o livro, tanto no que se refere à sua parte física quanto à nova leitura que pode ser feita dos elementos presentes no decorrer dele, que estão recontextualizados. Assim, recortes de jornal, bilhete e textos literários passam a assumir um outro significado uma vez incorporados a uma narrativa literária, em uma disposição que permite com que haja algo que possa ser chamado de uma obra literária.

Isso acontece mesmo sem precisarmos variar no tipo de recorte. Por exemplo, temos recortes jornalísticos tanto referentes ao caso da menina quanto a outros assuntos. Ou seja, não falar da menina diretamente não constitui critério de exclusão de conteúdo. O que podemos depreender desse tipo de opção? Uma leitura possível é a ideia de apresentar o papel alienador que tem a mídia através de jornais e de outros meios, na medida em que ela, ao tratar de diversos assuntos, tende a não deixar o espectador refletir muito sobre uma problemática específica que, no caso, seria a da morte da menina. Dessa forma, chega uma série de outros problemas e notícias para as pessoas, que tendem a não fazer nada com elas, a não ser se informar e se dispersar daquele que deveria ser o assunto principal.

O leitor da obra, diante disso, tem a possibilidade de não se envolver com essas informações da mesma forma que quem assistia ao programa ou lia os jornais na época, pois a narrativa acaba evocando outros tipos de relação que não a de distração por essas informações. Além disso, se formos parar para analisar com cuidado, a presença do preço do pão, ainda que possa parecer deslocada em um primeiro momento, pode ser vista em relação com o conteúdo da notícia que aparece anteriormente, em que o gerente do parque diz que havia dado dinheiro para a criança comprar pão e cigarro. No mais, essa mesclagem de conteúdo remete também à

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publicidade presente nos jornais, que nos leva a oscilar entre uma situação-problema e o que o mercado tem a nos oferecer.

Outro ponto interessante na abordagem do conteúdo diz respeito à valoração daquilo que é colado, tendo em vista que discursos jornalísticos, bilhetes entregues em semáforos, gravuras e verbetes de dicionários não costumam ser vistos como objetos artísticos. Exceções podem ser abertas à fotografia e às gravuras. Os

Lusíadas e o Leal Conselheiro, por sua vez, podem ser inseridos no espaço da

literatura. Nesse ponto, mais uma vez encontramos um lugar de encontro com o Dadaísmo, considerando que a crítica à arte enquanto instituição burguesa conferiu ao movimento o desejo por um outro estilo:

Em vez de um estilo rígido, o dadaísmo desenvolveu a justaposição de linguagens, permitindo às colagens verbais, visuais e sonoras indicar a pacífica convivência das contradições e dos opostos. Dentre as vanguardas, sobretudo o dadaísmo evita, portanto, escolher os seus meios de acordo com um princípio estilístico, visto que se utiliza de si mesmo como meio. (ALENCAR JR., 1998, p. 44)

Dessa forma, podemos perceber que a fuga de um estilo pré-estabelecido, com conteúdo pré-estabelecidos, não agradava os dadaístas – assim como pareciam não agradar Valêncio. Nesse viés, é pertinente observarmos que os processos de colagem e de montagem refletem em um encadeamento de elementos que funcionam como pequenos filmes. No que se refere à colagem, de acordo com Perloff (1992 apud CHICOSKI, 2004, p. 83), é um procedimento que deixa explícita a heterogeneidade dos elementos de forma a evidenciá-los. A montagem, por sua vez, conforme a mesma autora, integraria esses elementos a fim de dar-lhes uma unidade.

Ainda sobre a montagem, Kobs (2010) se refere a ela como um “processo que privilegia o teor imagético do texto” (KOBS, 2010, p. 9). Para exemplificar isso, ela cita os versos isolados, sem enjambement, de um poema de Oswald de Andrade:

Bananeiras O Sol

O cansaço da ilusão Igrejas

O ouro na serra de pedra

A decadência (ANDRADE, 1972, p. 72 apud KOBS, 2010, p. 9)

De acordo com Kobs (2010), a montagem, nesse viés, estaria mais próxima do Cubismo do que do Dadaísmo na medida em que haveria certa proximidade entre

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alguns dos elementos colados, questão que não importava muito aos dadaístas, que preferiam investir na disparidade (KOBS, 2010, p. 10). De uma forma ou de outra, podemos visualizar, a partir desse trecho, a existência de lacunas que ficam entre os recortes que compõem as “Rremembranças...”, que precisam ser preenchidas pelo leitor a fim de que esses recortes se tornem narrativas – e narrativas compartilháveis. Vemos, assim, que, na obra, temos uma abertura para a contribuição do leitor que foge a uma concepção meramente linear de leitura:

A colagem textual na obra de Valêncio Xavier [...] caminha em contraposição a um texto linear, pois possibilita diferentes versões sobre o enredo e uma leitura aberta e processual. Com isso, o conto não leva o leitor a um lugar seguro e claro sobre os acontecimentos. Ao contrário, o autor propõe um jogo de quebra-cabeça a ser montado e digerido, aumentando as potencialidades do reduzido discurso dado aos jornais, que, por sua vez, buscam o apelo à tragédia cotidiana para alavancar ibope. (MIGUEL, 2013, p. 194)

Cabe ainda observarmos que a técnica de montagem mencionada nos remete também à atuação de Valêncio enquanto cineasta. Martin (2011) se refere à montagem como “a organização dos planos de um filme em certas condições de ordem e de duração” (MARTIN, 2011) e podemos ver essa organização nas “Rremembranças...” na disposição dos recortes nas páginas, que ora dividem espaço com outros, ora não, e possuem diferentes tamanhos, o que nos faz oscilar entre um maior ou menor tempo de leitura e reflexão. Isso pode ser visto, por exemplo, na situação de repetição da foto da menina, que ocorre nas páginas 42 e 58. Enquanto na primeira página a foto da menina compartilha do espaço com um trecho da reportagem, uma fala de Gil Gomes e o verbete lembrar, na página 58 ela divide espaço apenas com um trecho do Leal Conselheiro, o que permite com que a imagem seja maior. Assim, embora os conteúdos se assemelhem no sentido de evocar e pedir que haja rememoração, na segunda ocorrência isso pode ocorrer de forma mais intensa.

Outra questão que cabe notarmos, para além desses conteúdos relegados a outras esferas sociais que não a da literatura, está a da temporalidade desses conteúdos. Valêncio, em contraste com as ideias dadaístas, não se prende às publicações de um tempo presente. Da mesma forma, contrasta com as produções de uma Pop Art, voltadas para a exploração do contato da arte com o mercado. A opção por recortes de verbetes provenientes de um dicionário etimológico e por escritos e gravuras que remetem a outros séculos demonstra uma sensibilidade

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diferenciada no que tange a ler o tempo em que vivemos na medida em que permite que visualizemos, mais claramente, aquilo que o tece, o passado que se faz presente pela história.

Essa concepção de tempo que pode ser lida na escrita valenciana recordemos ser aquela apontada na abertura desse trabalho, que pode ser compreendida enquanto a mais proveitosa no que se refere a uma leitura de mundo. Isso porque permite que quem lê visualize um tempo histórico e não o viva de forma linear – conforme mencionado anteriormente, não estamos sequer diante de uma narrativa que tenha um início, meio e fim. Temos, antes, um começo e a falta de uma conclusão para a situação-problema apresentada na estória: como não formar meninas e meninos de rua? Quem teria matado a menina? Encontrar respostas resolveria, de alguma forma, o problema?

No entanto, esse tipo de falta de conclusão não implica em uma inconclusividade de leitura. Pois, no ponto de vista adotado nesse trabalho, o que foi escrito por Valêncio cria tanto uma narrativa em torno do caso da menina quanto permite um contato bastante significativo e diferenciado com o que lhe aconteceu, com os crimes a que não podemos dar respostas simples e que se querem esquecidos, ou ao menos deixados de um certo lado, por boa parte de nossa sociedade.

2.3 O trabalho com a memória

A morte é o mais poderoso agente de esquecimento. Mas não é onipotente. Pois os homens sempre ergueram trincheiras de recordação contra o esquecimento na morte [...].

Harald Weinrich, Lete (1997)

2.3.1 A menina nos jornais: uma primeira memória

No que se refere aos discursos jornalísticos presentes na obra, o programa

Aqui Agora é o responsável por trazer vários elementos sobre o que teria acontecido

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ida de Gil Gomes tanto ao lugar em que teria sucedido o assassinato quanto a outros lugares que a menina frequentava. É também com os recortes provindos desse espaço que temos entrevistas com a mãe da menina e com um dos funcionários do parque que atua como cenário do crime. Quanto aos excertos dos jornais impressos, eles figuram ao lado da reportagem tanto na construção visual do trem-fantasma quanto para trazer novas informações sobre o andamento das investigações.

Outro aspecto interessante de ser observado, no que se refere tanto à reportagem quanto aos jornais impressos, diz respeito à presença de discursos típicos que constituem o espaço jornalístico, os quais não fugiram ao autor das “Rremembranças...”: na página 44, temos o preço do pão e dos jornais que noticiaram o caso da menina e, entre as páginas 49 e 50, acompanhamos notícias que não dizem respeito a ele, mas que fazem parte do fluxo de um programa televisivo. Provavelmente a escolha pela presença desses elementos, que parecem desinteressantes ao trabalho em torno do assassinato, diga respeito à preservação do estilo dispersivo que costumam ter os jornais, de modo que o leitor acabe por transitar por diferentes assuntos sem necessariamente se preocupar profundamente com um deles em específico.

Ainda no que tange ao trabalho discursivo que pode ser notado nos recortes jornalísticos, na maioria das vezes eles aparecem, se atuarmos em uma perspectiva externa à manipulação por que passam na obra literária, preocupados em passar a objetividade do que aconteceu, característica que é acentuada pelos recortes feitos pelo autor. Tomemos como exemplo as manchetes e índices das notícias, que visam a chamar a atenção do leitor: “Empregado a teria convidado para manter relação sexual” (p. 43), “Menina é achada morta em trem-fantasma” (p. 44), “Prefeitura interdita parque de diversões” (p. 45). Esses enunciados deixam transparecer o que será traçado nas notícias, tudo perpassado pela legitimação do que estava sendo contado – “Segundo duas testemunhas” (p. 46), “Segundo informações de vizinhos” (p. 48), “As meninas garantiram...” (p. 49). Ou seja, constantemente é recorrido a narrações de pessoas que conheciam a menina.

Diante disso, podemos verificar técnicas jornalísticas mobilizadas para construir um sentido de verdade, tendo em vista que o “O jornalismo não se sustenta sem as fontes de informação. Toda notícia surge a partir de alguma fonte.” (BARREIROS, 2003, p. 66). Para tanto, se recorre a fontes outras de informação que não apenas a constatada pelo encontro com o corpo morto. No entanto, a forma como

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ocorre essa mobilização de informações acontece de maneira diversa nos jornais impressos e no programa, pois neste a legitimação de algumas informações se dá por meio de depoimentos21. No sentido da legitimação, Barreiros (2003, p. 82) aponta para uma das críticas presentes no jornalismo, que diz respeito à reprodução de declarações em contraste com informações mais aprofundadas sobre determinado evento, que seria o que permitiria a aproximação com uma verdade. Porém, nem mesmo as mídias impressas, no caso analisado, parecem dar conta de uma leitura crítica do ocorrido. No mais, a necessidade de passar uma verdade é alicerçada em fotografias, nas mídias impressas e no deslocamento de Gil Gomes (Aqui Agora) até lugares como o parque de diversões ou à Febem, lugar que a menina frequentava.

Acerca da memória presente nesses fragmentos, inicialmente observemos que a memória a ser conservada é desprovida de reflexão emocional apropriada, se é que podemos tratar disso nesses termos. De um lado, querer objetivar deixa no ar uma certa imparcialidade – que não é real. Tratando-se do Aqui Agora, a emotividade é exacerbada, por mais que Marcos Wilson, diretor de jornalismo, o trate como tendo alcançado o limite entre o sensacional e o sensacionalismo.22 Ou seja, vemos, em ambos os lados, a preocupação que Barreiros (2003) aponta no jornalismo com ater-se ao real, “exercendo um papel da orientação racional” (Melo, 1985, p. 9 apud Barreiros, 2003, p. 104). Além disso, o autor se refere a uma outra ideia presente em Melo (1985 apud BARREIROS, 2003), que, ao citar Fraser Bond, afirma que “o primeiro propósito e a responsabilidade do jornalismo é assegurar ao povo a informação. Essa responsabilidade requer uma completa objetividade nas notícias...” (MELO, 1985, p. 17 apud BARREIROS, 2003, p. 104).

Seguindo nessa perspectiva e considerando, em paralelo, as publicações presentes nos jornais, antes de serem ressignificadas pela narrativa de Valêncio, vemos, de fato, uma constante preocupação em passar as informações chamadas de corretas sobre o que realmente teria acontecido à menina. Nos jornais impressos, temos delineado o percurso da investigação e sabemos das suspeitas e dos relatos que os policiais obtiveram até então. Temos, assim, uma memória construída preocupada com um teor de verdade, vinculado ao viés de investigação que permeia

21 Acrescente-se, ainda, que a própria figura de Gil Gomes confere toda uma dramatização ao que é

contado, diferentemente das mídias impressas.

22 “Eu admito que nós estamos equilibrados sobre um fio de cabelo entre o sensacional e o

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as notícias, como se o que estivesse impresso nas páginas dos jornais não se tratasse de algo manipulado.

Com o programa Aqui Agora, por sua vez, Gil Gomes coloca o telespectador diante de uma série de questionamentos – como se formam as crianças de rua? O que teria acontecido à menina? –, que, em um primeiro momento, poderiam até contrastar com a forma como a verdade é construída nas mídias impressas, em que, nos casos selecionados, não há esse tom incisivo de indagações. Esse contraste também pode ser apontado na forma como outras vozes são trazidas, pois, ao invés de uma informação validada com expressões como “Segundo testemunha...”, temos entrevistas com a mãe da menina e com um dos suspeitos do crime, com a pretensão de se expandir a contextualização acerca da história da menina.

No entanto, a verdade, embora construída em meio a uma série de dúvidas, sem apresentar quaisquer respostas mais elaboradas sobre o caso da menina, acaba por encerrar em um certo vazio do programa televisivo, ao se direcionar a outras notícias, ou até mesmo com a finalização do programa, após a informação final de que o parque de diversões seria fechado e que a documentação estava irregular. Faltaria, pois, nesse sentido, os questionamentos críticos: uma documentação irregular, uma mãe que apontou para sua vida de abandono e um funcionário que nega sua participação no assassinato seriam suficientes para uma construção crítica da história que estava sendo contada e para que a percebamos enquanto construção?

2.3.2 A descentralização do discurso jornalístico: um outro exercício de memória

Partindo, agora, do ponto de vista da construção de uma versão sobre a história, a fim de analisarmos a construção empreendida por Valêncio, gostaria de me referir a Tucídides (460 a.C.- ~400 a.C.), historiador da Grécia Antiga, e sua preocupação com haver um método para a pesquisa nessa área de estudos. Isso porque essa preocupação compartilha, com a formação do discurso jornalístico, a ideia de construção de uma verdade (PIRES, 2001). Nesse viés, vemos, nas reportagens e notícias, um constante lidar com o quê, quando, onde e por que, questionamentos básicos do referido método. Entretanto, embora nos deparemos com essas questões, conforme mencionado, não vemos serem discutidos problemas que fujam a um contexto imediato da morte – por exemplo, razões sociais que apontem

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para a formação de crianças de ruas e para mulheres que, muito jovens, se tornam mães e se envolvem em uma série de relacionamentos marcados pelo descompromisso no cuidado com ela e com as crianças. Vemos, portanto, que o teor representacional do acontecimento passa por uma seleção relacionada à impossibilidade de se chegar à verdade e ao que realmente aconteceu, que é irrepetível. O mesmo acontece nas “Rremembranças...”, pois mesmo a escrita literária não dá conta desse tipo de reprodução, compartilhando, nesse sentido, do caráter de representação23. Entretanto, a forma como isso ocorre nesse tipo de discurso e no discurso jornalístico, levando em consideração a obra citada, se dá de maneira diversa.

Certamente que, diante do afirmado, a obra também não traz respostas sólidas às questões de Tucídides. No entanto, ela nos leva a refletir muito mais sobre as perguntas, bem como sobre o que é trazido pelas reportagens e notícias selecionadas, por meio de uma operacionalização diversa do conteúdo. Nesse sentido, é nas “Rremembranças...” em que, de fato, podemos ver um exercício mais elaborado acerca da memória sobre a menina, construído sobre os vestígios do que, um dia, fora veiculado pela mídia, a qual, na época, convém lembrarmos, também recorrera a memórias outras para construir sua história em torno da menina (as falas da mãe e do funcionário e as fotografias da menina e do parque, por exemplo). O próprio título, nesse viés, já mostra indícios de um tipo de um exercício que passa pela organização de algum tipo de vestígio, com base em lembranças.

Essas lembranças, em parte, estão relacionadas aos já referidos recortes de jornais, que, conforme mencionado anteriormente, passam por uma manipulação sobre a disposição dos textos e imagens. Nesta outra seção, gostaria, nesse viés, de chamar a atenção para as fotografias. Essas, de acordo com Barreiros (2003), no jornalismo, significam uma aproximação com a realidade, de forma que é comum seu uso “como ilustração de um texto verbal, junto a este, acrescentando uma informação visual às informações [...].” (BARREIROS, 2003, p. 89) Ou seja, novamente a preocupação é com a objetividade e com a veracidade. Tratando-se das

23 A história, em relação à memória, cria uma narrativa sobre um acontecimento que não mais pode ser

retomado como tal, que é irrepetível. O mesmo temos no caso da literatura, com a diferenciação de que não há nesta, necessariamente, um compromisso com a veracidade dos fatos – veracidade que nem mesmo a área de História dá conta de abarcar, no sentido da possibilidade uma história única (Adichie, 2009) – e há todo um trabalho criativo envolvido que pode jogar, inclusive, com as narrativas tomada enquanto verdades históricas.

Referências

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Assim procedemos a fim de clarear certas reflexões e buscar possíveis respostas ou, quem sabe, novas pistas que poderão configurar outros objetos de estudo, a exemplo de: *

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