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2.3 O trabalho com a memória

2.3.1 A menina nos jornais: uma primeira memória

No que se refere aos discursos jornalísticos presentes na obra, o programa

Aqui Agora é o responsável por trazer vários elementos sobre o que teria acontecido

ida de Gil Gomes tanto ao lugar em que teria sucedido o assassinato quanto a outros lugares que a menina frequentava. É também com os recortes provindos desse espaço que temos entrevistas com a mãe da menina e com um dos funcionários do parque que atua como cenário do crime. Quanto aos excertos dos jornais impressos, eles figuram ao lado da reportagem tanto na construção visual do trem-fantasma quanto para trazer novas informações sobre o andamento das investigações.

Outro aspecto interessante de ser observado, no que se refere tanto à reportagem quanto aos jornais impressos, diz respeito à presença de discursos típicos que constituem o espaço jornalístico, os quais não fugiram ao autor das “Rremembranças...”: na página 44, temos o preço do pão e dos jornais que noticiaram o caso da menina e, entre as páginas 49 e 50, acompanhamos notícias que não dizem respeito a ele, mas que fazem parte do fluxo de um programa televisivo. Provavelmente a escolha pela presença desses elementos, que parecem desinteressantes ao trabalho em torno do assassinato, diga respeito à preservação do estilo dispersivo que costumam ter os jornais, de modo que o leitor acabe por transitar por diferentes assuntos sem necessariamente se preocupar profundamente com um deles em específico.

Ainda no que tange ao trabalho discursivo que pode ser notado nos recortes jornalísticos, na maioria das vezes eles aparecem, se atuarmos em uma perspectiva externa à manipulação por que passam na obra literária, preocupados em passar a objetividade do que aconteceu, característica que é acentuada pelos recortes feitos pelo autor. Tomemos como exemplo as manchetes e índices das notícias, que visam a chamar a atenção do leitor: “Empregado a teria convidado para manter relação sexual” (p. 43), “Menina é achada morta em trem-fantasma” (p. 44), “Prefeitura interdita parque de diversões” (p. 45). Esses enunciados deixam transparecer o que será traçado nas notícias, tudo perpassado pela legitimação do que estava sendo contado – “Segundo duas testemunhas” (p. 46), “Segundo informações de vizinhos” (p. 48), “As meninas garantiram...” (p. 49). Ou seja, constantemente é recorrido a narrações de pessoas que conheciam a menina.

Diante disso, podemos verificar técnicas jornalísticas mobilizadas para construir um sentido de verdade, tendo em vista que o “O jornalismo não se sustenta sem as fontes de informação. Toda notícia surge a partir de alguma fonte.” (BARREIROS, 2003, p. 66). Para tanto, se recorre a fontes outras de informação que não apenas a constatada pelo encontro com o corpo morto. No entanto, a forma como

ocorre essa mobilização de informações acontece de maneira diversa nos jornais impressos e no programa, pois neste a legitimação de algumas informações se dá por meio de depoimentos21. No sentido da legitimação, Barreiros (2003, p. 82) aponta para uma das críticas presentes no jornalismo, que diz respeito à reprodução de declarações em contraste com informações mais aprofundadas sobre determinado evento, que seria o que permitiria a aproximação com uma verdade. Porém, nem mesmo as mídias impressas, no caso analisado, parecem dar conta de uma leitura crítica do ocorrido. No mais, a necessidade de passar uma verdade é alicerçada em fotografias, nas mídias impressas e no deslocamento de Gil Gomes (Aqui Agora) até lugares como o parque de diversões ou à Febem, lugar que a menina frequentava.

Acerca da memória presente nesses fragmentos, inicialmente observemos que a memória a ser conservada é desprovida de reflexão emocional apropriada, se é que podemos tratar disso nesses termos. De um lado, querer objetivar deixa no ar uma certa imparcialidade – que não é real. Tratando-se do Aqui Agora, a emotividade é exacerbada, por mais que Marcos Wilson, diretor de jornalismo, o trate como tendo alcançado o limite entre o sensacional e o sensacionalismo.22 Ou seja, vemos, em ambos os lados, a preocupação que Barreiros (2003) aponta no jornalismo com ater- se ao real, “exercendo um papel da orientação racional” (Melo, 1985, p. 9 apud Barreiros, 2003, p. 104). Além disso, o autor se refere a uma outra ideia presente em Melo (1985 apud BARREIROS, 2003), que, ao citar Fraser Bond, afirma que “o primeiro propósito e a responsabilidade do jornalismo é assegurar ao povo a informação. Essa responsabilidade requer uma completa objetividade nas notícias...” (MELO, 1985, p. 17 apud BARREIROS, 2003, p. 104).

Seguindo nessa perspectiva e considerando, em paralelo, as publicações presentes nos jornais, antes de serem ressignificadas pela narrativa de Valêncio, vemos, de fato, uma constante preocupação em passar as informações chamadas de corretas sobre o que realmente teria acontecido à menina. Nos jornais impressos, temos delineado o percurso da investigação e sabemos das suspeitas e dos relatos que os policiais obtiveram até então. Temos, assim, uma memória construída preocupada com um teor de verdade, vinculado ao viés de investigação que permeia

21 Acrescente-se, ainda, que a própria figura de Gil Gomes confere toda uma dramatização ao que é

contado, diferentemente das mídias impressas.

22 “Eu admito que nós estamos equilibrados sobre um fio de cabelo entre o sensacional e o

as notícias, como se o que estivesse impresso nas páginas dos jornais não se tratasse de algo manipulado.

Com o programa Aqui Agora, por sua vez, Gil Gomes coloca o telespectador diante de uma série de questionamentos – como se formam as crianças de rua? O que teria acontecido à menina? –, que, em um primeiro momento, poderiam até contrastar com a forma como a verdade é construída nas mídias impressas, em que, nos casos selecionados, não há esse tom incisivo de indagações. Esse contraste também pode ser apontado na forma como outras vozes são trazidas, pois, ao invés de uma informação validada com expressões como “Segundo testemunha...”, temos entrevistas com a mãe da menina e com um dos suspeitos do crime, com a pretensão de se expandir a contextualização acerca da história da menina.

No entanto, a verdade, embora construída em meio a uma série de dúvidas, sem apresentar quaisquer respostas mais elaboradas sobre o caso da menina, acaba por encerrar em um certo vazio do programa televisivo, ao se direcionar a outras notícias, ou até mesmo com a finalização do programa, após a informação final de que o parque de diversões seria fechado e que a documentação estava irregular. Faltaria, pois, nesse sentido, os questionamentos críticos: uma documentação irregular, uma mãe que apontou para sua vida de abandono e um funcionário que nega sua participação no assassinato seriam suficientes para uma construção crítica da história que estava sendo contada e para que a percebamos enquanto construção?

2.3.2 A descentralização do discurso jornalístico: um outro exercício de

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