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Cursava a escola pública cia pracinha (la igreja pela manhã e a tarde era tôda m inha; eu me junta­ ra aos v izin h o s no treinam ento de um tiro de guerra. Era cabo e me julgava um general. A ú n i­ ca m en in a que, por bravura galgara êste po.sto.

No tiro, um bom número de arranhões sig n ifi­ cava coragem; eu, naturalmente, não me esforçava para evitá-los.

As casas da nossa rua eram altas e tinham um terraço nos fundos o qual dava vista para a linha do trem e livre acesso aos telhados v isin h o s. Lá eram travadas as n.ossas hatalhas. Investíam os cora fúria cinem atográfica contra tôdas as lagartixas traidoras da pátria que encontrávam os pelas cum iei- ras. Minha mãe, que nunca se conform ou com o meu alistamento, pôs fim à m inha participação na guerra m andando-m e para uma escola à tarde. Fui para lá com o quem vai para o campo de c o n c en ­ tração.

A sala era grande e escura, de paredes de.scas- c a d a s. B ancos com pridos e paralelos formavam uma pauta onde nossas caheças im óveis lembra­ vam notas de uma m elodia sem som . D iante da­ quela figura assustadora de alvos cabelos em coque, não falávam os. Não lembrávamos .sequer de pos­ suir v o z ,

Charnavam-na D . Calusinha. Nunca soube seu nome ao certo, nem de onde veio, nem qual era a sua id ad e. Era uma velha que parecia ter eterna- m ente aquela m esma aparência. Não muito alta; mas que eu, da alturinha dos meus seis anos, julga­ va uma m ontanha. . .

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J U L I A C O N C E I Ç Ã O

O bom de lá era o cheiro de café torrado que inund ava a sala e a goiabeira do qu intal.

Eu era das m ais atrazadas. Da cantilena da taboada sabia apenas a m úsica, não a letra: “d ois e um três. . . e daí em diante embrom ava em lá, lá, lá protegida pelos que s a b ia m . D esses eu tinha uma inveja dan ada. Êles podiam resp ond er sem pausa de segundo quantos eram nove vezes sete ou se o R ficava antes ou d ep ois do P .

Por interm édio de D . Calusinha sofri m inh a prim eira angústia e ainda por sua causa, eu, m e n i­ na esportizada se bem que chorona, tom ei c o n h e c i­ m ento do poder das flores, particularm ente das

r o s a s .

Fiz a descoberta por acaso. No auge da angústia de não saber a lição, com a im agem da palmatória quase m aterializada dentro dos olhos, tive a ideia de roubar algumas dálias de um jar­ dim vizin h o para ela, a ver se ela fechava um p ou ­ co os olhos à m inha ig n o r â n c ia . O m ilagre se fez. Um pouco magro, mas se fez.

Eu havia descoberto a fórmula de chegar atra- zada sem p erigo. Uma vez, à falta de dálias, levei- lhe rosas. Creiam-me: ela sorriu.

Rosas eram a sua única ternura.

Tudo correu mais ou m en os bem para mim durante algum tem p o . Porém, na quinta rosa ela já não sorriu; e foi ao cabo da nona rosa que vi que a palm atória era m aior do que eu pen sava.

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SÔBRE MÁRIO DE ANDRADE, O POETA

ALBÉRICO MOHA

" A h se p u d e sse s c o n te m p l a r agora as águas tristes, Mário, d o s o m b r io fr a te r n o T ie tê ! Delas se eleva

n m a voz que te b u sc a p e la treva

e na qual re p e r c u te (e o rio c h o r a . . . ) a tua p r ó p r ia v o z : "R io, m e u r i o ! ”

Alphonsus de Guiitiaraens Filho Dos «Sonêtos com D edicatórias»

I 0 Homem

O p rim eiro trabalho publicado sôbre Mário de Andrade foi, também, a prim eira visão errônea do Poeta, divid id a com leito re s: o artigo “O Meu Poeta Futurista”, de Oswald de Andrade, veiculado pela im pren sa paulista, em novem bro de 1920. Outros trabalhos se seguiriam, onde Mário de Andrade seria estudado com índ oles (ü v e r s a s.

O artigo de Oswald de Andrade provocou, também, a prim eira m anifestação da severa auto-crítica, que, sempre, acompanharia Mário de A ndrade. Sôbre o referido artigo, escreveu êste último, no “P re­ fácio In teressa n tíssim o ” de “Pauliceia D esvairad a” : “A culpa é minha. Sabia da e x istên cia do artigo e deixei que s a i s s e . ”

O crítico Mário de Andrade, durante tôda a sua existên cia, olhou o poeta, o romancista, o oontista c, todos os outros co-irmãos, com ' hum ildade e im p arcialid ad e. Essa auto-crítica, se variou de in te n si­

dade, culm inou, no d e c lín io de vida do Poeta, com uma tocante iin p icd a d e. Êsse desejo de honestidade, essa constante procura de coerência, dirigiriam a produçãio do artista Mário de Andrade, cons- Mtuindo a mais notável característica do homern^ em si próprio.

ff

Essa apaixonante personalidade, que foi Mário de Andrade, nasceu em 1893, em São Paulo, com o nome de MÁRIO RAUL DE MORAIS ANDRADE, m orrendo em 1945. Destinava-se à Música. Para isso, cursou -o Conservatório Dramático e-Musical de São Paulo. Como frutos dêstes estudos, Mário de Andrade poderia desenvolver, no “Prefácio In teressan tíssim o”, várias com p osições entre a Poética e a Música, que, não sendo originais, valeram como subsídios à esté­ tica então nascitura. Poderia, também, nos legar a deliciosa “Peque­ na História da Música” e outros trabalhos de musicografia, que, ao lado de suas pesquisas folclóricas, sempre se preocuparam com a c o n stru ç ã o do tipo b ra sileiro .

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Todos os ensaístas que se preocuparam, por outro lado, com a personalidad e de Mário de Andrade, concordam em afirmar que a generosid ade constituía a e ssê n c ia prim eira do autor de “Macunaíma*’. Esta bondade o levou a escrever o prim eiro livro de vers-os. “Há Uma Uôta de Sangue em Cada P o em a ”, publicado em 1917, sob a assinatura de Mário Sobral, é um libelo contra a guerra — que, se não vale pelo m odo pelo qual foi dito, vale, justamente, p-or ter com eçad o a d izer. O cunho sim bolista desses poem as não deixa o leitor rec o n h ec er o ?:Iário de Andrade posterior, mas, o sentido pacifista dessa m ensagem inicia a d efin ição do homem. Em “Itinerário de P assárgada” (E d . “Jornal de Letras”, pág. 65), Manuel Bandeira nos conta que, ao ler “Há Uma Gôta de Sangue em Cada P o em a ”, achou os versos “de um ruim esq u isito ”, prom etedor.

Tôda a obra de Mário de Andrade representa a procura, lenta e apaixonada, de um tip o b r a s il e ir o . O amor pelo hom em , em geral, e, pelo brasileiro, em particular, inundou a obra do grande paulista, com o, por outro lado, guiou os seus passos, em v id a .

Êsse amor pela hu m anidade e pelo gênero brasileiro lançou Mário de Andrade à diversos recursos — que, nem sempre, produziram bons resultados. Os artifício s de sua linguagem , por exem plo, nada mais eram que tentativas de arquitetar um tipo, e x clu siv a e rigorosa- mente b rasileiro. Os seus trabalhos de m usicografia e as suas p esq u i­ sas folclóricas pretendiam , somente, erguer os alicerces de um ternário n o s s o .

Veremos, depois, os vários recursos, de que se serviu Mário de Andrade, para a sua sonhada construção de uma literatura brasileira — no que, por muito tempo, foi in c o m p r e e n d id o .

0 pensador Mário de Andrade definiu, perfeitam ente, o hom em Mári.o de Andrade: “A c o n v ic ç ã o intelectual nos obriga a forçar n o s­ sas sin cerid ad es espon tâneas ou erradas, em proveito de uma s in c e ­ ridade m aior” . E diz m ais: “Tôda aquisição de téc n ic a é um trabalho forçado ou pelo m enos, não é uma esp o n ta n e id a d e . N ós v ivem os eter­ nam ente adquirindo c o n v ic ç õ e s novas e num eterno trabalho de ree­ ducação de nós m e sm o s” . ( “Correio da M anhã”, 3 1 / 8 / 5 7 ) .

I I 0 Multiforme Mário de Andrade: tentativa de c o n c i l i a c ã o entre oI pensador e o criador

Pede-se uma revisão de Mário de Andrade — que o sr. Adalmir da Cunha Miranda já in icio u ( “A E sfin ge de Mário de A n d rad e”, “Re­ vista B r a silic n se ”, págs. 130 e seg.) . A p ersonalidad e dêsse hom em fiesco n ce rta . A sua obra choca, ainda h o je . A m u ltip licid a d e do autor de “O Em palhador de P a ssa r in h o s” deve ser estudada, com c u id a d o .

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Os e stu d io so s da obra e da pers.onalidade de Mário de Andrade se divid em , frequ entem ente, em função da m u ltip licid a d e do hom em . Com efeito, o ensaísta se vê diante de d o is b lo c o s: de um lado, se encontram o poeta, o rom ancista, o contista — .o criador — ; do outro lado, estão o crítico, o ensaísta, o folclorista, o m u sicó g ra fo . Surge,, então, a pergunta: queni valeu m ais? o pensador -ou o criador?

O sr. H aroldo Bruno afirma que, talvez, a obra do ensaísta Mário de Andrade tenha m aior p erm an ên cia e unidade que a p rodu­ ção do poeía Mário de A n drade. Ensaísta im parcial, diz o sr. Harol­ do Bruno, a prosa de Mário de Andrade chegou a ter sabor clássico

( “Bevista B ranca”, n‘> 22, maio, 1952: “Nota sôbre Mário de A n d rad e” ) .

Assim, o crítico fundam entava, sempre, as suas afirm ações em pesquisas sociológicas, estéticas ou h istó r ic a s. Era um erudito, um intérprete social, conclu i o sr. Haroldo Bruno.

A verd ade é que a sen sib ilid ad e poética de Mário de Andrade iiã.0 interferiu com o seu espírito analítico ou crítico (V. “A Crítica de Mário de A n d rad e”, np “Jornal de Crítica”, de Álvaro L i n s ) .

Para justificar a sua opin ião, o sr. Haroldo Bruno observa, ain­ da, que o crítico Mário de Andrade “defen dia uma ordem estética quase oposta àquela dos m odernistas, se é que êstes a*tiveram ” . E, m ais: “Há, provavelm ente, também, um Mário de Andrade a n d ou n-m odernista” . E xem p lifica, então, com o “Baile das Quatro Artes”, o s “A spectos da Literatura B rasileira” e a célebre con ferên cia “O Movimento M odernista” .

Com efeito, Mário de .Andrade tinha padrões artísticos e cultu­ rais imutáveis, in d ep en d e n te s da estética m odern ista. R elativam en­ te à ordem estética defen did a por Mário de Andrade, escreveu o sr. .Adalmir da Cunha Miranda: “ . . . se êsses elem entos eram opostos àqueles de uma ordem estética dom inante entre os m odernistas, não eram, realmente, opostos aos elem entos de uma ordem que Mário de -Andrade desejou d efinir para o m odernism o e que talvez os estudio­ sos do futuro apontem como a legítim a estética do m o d e r n i s m o . . . ” P en sam os dêsse m o d o . Aliás, o sr. Haroldo Bruno teve, recen- lem ente, oportunidade de explicar o seu pensam ento, in vocand o a con ferên cia do Ministério das Relações Exteriores (cita d a ), quando Mário de Andrade se criticou, severamente ( “Leitura”, n‘> 1 ). Mas, cremos, se é verdade que não podem os negar essa conferência, m enos verdade não é que pod em os enxergar, na obra de Mári.o de Andrade, a constante preocupação de equilíbrio entre forma e conteúdo tanto em sua criação, como em seus juízos.

Manuel Bandeira ( “Apresentação da P oesia Brasileira” ) prefere o Mário de Andrade pensador ao criador, dêle dizendo que foi “mais exem p lo do que c riação” .

O sr. Reynaldo Bairão lembra, oportunamente, que, em “O Em palhador de P assarin h os”, Mário de Andrade se declara crítico

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ap o lo g ético . Na verdade, critican d o “Fogo Mortò”, de José L ins do Hêgo, diz o poeta de “Lira Paulistana” ; “eu escolh o para estudar apenas os que eu admiro e am o” , (p ág. 2 4 7 ).

Ora, hoje, que se desen volve a ten d ên cia de dar cunh o rigoro­ sam ente cientificio à crítica literária — pedin do-se, até, a ajuda da Estatística — , não pod em os aceitar a p erm an ên cia da obra critica de Mário de Andrade, em relação à sua obra p o é tica . Não, que d esp re­ zemos os seus estudos valorativos, pelo con trário. Apenas, não vem os com o afirmar a su periorid ade da obra de um crític o apologético

(c o n fe s so ), sôbre a produção de um poeta esforçad o.

A crítica literária quer, agora, cam in har “a p o ste r io r i” . I. A. Richards, em “Notas sôbre um .\cô r d o entre a Critica Literária e Algu­ mas C iên cias” ( “P rin c ip ies of Literary C riticism ”, Routledge and Kegan P aul), esíuda as novas orientações dadas à crítica, que tornam ingênuos todos os trabalhos apologéticos, embora sua valia peça outro estudo.

Por isso, preferim os o poeta Mário de Andrade. Mas, não se veja nisto desprezo ao c r ític o . O próprio Mário de Andrade declarou que cra apologético, porque não era profission al da crítica literária.

Não lîoifs'e com oção entre o pensador c o criador, quando vivos. Mário de Andrade procurou c o n c ilia r o tradicionalisniio com o revolucion arism o : com batia o regionalism o, que criava, em sua o p i­ nião, exotism o e estagnava a partç progressista de nossa cultura.

É verdade que êle improvisiou e destruiu, mas, procurou a com o­ dar os e x ce sso s predatórios do m od ern ism o com as trad ições v ig en ­ tes. Para tanto, tentou arquitetar um tipo brasileiro, o que o levou a criar uma linguagem artificial.

Senão, vejamos o que fez Mário de Andrade: destruiu, in trod u ­ ziu -o verso livre, limpou a linguagem dos resq uícios parnasianos e sim bolistas, trouxe os aspectos co tid ia n o s c p rosaicos da vida para a nossa poesia, inovou a forma, apresentou a visão anedótica do m un­ do, libertou as palavras e, finalm ente, procurou interpretar as regiões brasileiras, em seus passadio c p resen te. Em sum a: foi m odernista total. Por isso já se d isse: “é na obra dêsse representante m ais c red en ciad o e im portante da geração de tudo que a sem ana (de Arte Moderna) teve de positivo e negativo, que poderem os m elhor — m ilh orm enle, com o diria êle - notar todos os d e f e i t o s , tõdas as vir- ludes da “sem a n a ” . (S.M ., “Sul”, pág. 2, n<> 1(5, 1952).

Se o pensador afirmou, às vezes, idéias que o criador d e sp re ­ zou, acreditam os, por outro lado, que, sem pre, houve uma procura perm anente de coerên cia, em Mário de A ndrade. Ele tinha uma séria Ijreocupação do sentido perm anente da arte, uma h on estid ad e ímpar e um amor imen.so pelo Brasil.

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I l l Mario de Andrade, Poeta do B ra s il

, As duas grandes constan tes da obra poética de Mário de Andra­ de, são, em n ossa o p in iã o , a sua euforia “arlequinal” e o seu enorm e

sen tim en to do hom em e do m u n d o . Assim, procurarem os estudar, rapidam ente, a sua felicid a d e l)uliçosa e o seu amor pela hum anidade.

A p oesia prim eira de Mário de Andrade surge eufórica, pro­ curando resolver as amarguras cotidianas, com a dança, a m úsica e o r iso . A com pan han do êsse sentim en to de felicidad e, se poderá per­ ceb er, de certo m odo, a evolução do próprio Poeta. No fim d^ sua vida, Mário de Andrade não pôde rir, não pôde dan çar. Precisava, então, de amor, de a p oio.

Mas, nos seus prim eiros livros de poemas, respirava felicid ad e in te n sa . F elic id a d e, que era, de certo modo, o sentim en to de con - íorraidade com o d e stin o . Em “Pauliceia D esvairad a” hà griios de revoita contra ordens so cia is e ordens estéticas, mas, há, também, um a irrequieta s a tis fa ç ã o :

' “Meu coração sen te-se alegre! E ste f r i o z i n h o a rreb ita d o dá u m a v o n ta d e d e s o r r i r ! ”

Esta felicidad e, era, afinal, sin ce ra . Já se acentuou que, me.smo cm m eio à serena tristeza de “O Losango Caqui”, êle pôde gritar que “a própria dor é uma fe lic id a d e !” (R eynaldo Bairão, “Notas sôbre Mário de A ndrade”, “R evista B ranca”, número c ita d o ). Mais tarde, «;e habituou à recitar, a,os brados, o seu poem a “D a n ça s”, com o nos diz Paulo Mendes Campos ( “Saudades de 44”, em “M anchete” ) .

Só com sofrim entos, se poderá ser feliz, neste mundo, pensa o P o e t a .

“(^lã do Jahotí” prepara terreno para a suave tristeza de “Re­ mate de Males” . Aqui, Mário de Andrade se afirma com o lír ic o . A sua tristeza parece na.scer de uma intensa solid ão.

“Louvação da T arde”, um de seus mais belos poemas, precede os “Poem as da N egra” e os “Poem as da Amiga” . Nos prim eiros, tra­ tou o elem ento folclórico sem exotismo, com o queria que se fizesse. D eles escreveu Manuel Bandeira; “Não liá exem plo disso em nossa p o e sia . Os ingleses é que são assim ” . ( “Flauta de Papel , pág. 2 6 ) .

Mas, a tranquila tristeza desses poemas não im pediu Mário de Andrade de dizer:

“Me sin to sn a v issim o de m a d r e s s i l v a s . . . ” Essa tristeza é sabedoria, é certeza:

“.4/i, m e u am or,

Não é imiiiha a m p lid ã o que m e d e se n c a m in h a , Mas a v ir tu o s id a d e ! ”

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o sentim ento de fe lic id a d e que cristalizou a c o n c e p ç ã o de vida dos p rim eiros livros de Mário de Andrade, esfria, a p ou co e pouco, desde “O Carro da M iséria” . Êle volta, às- vezes — mas, já sem o sabor espon tâneo de antes. Em “O M ovimento M odernista”, üisse Mário de A ndrade: “Tudo o que eu fiz foi e sp ecialm en te uma cilada da m in h a felicid ad e pessoal e da festa em que v iv e m o s ” (Rio, C . E . B . , 1 9 4 2 ).

\ consagração lírica com eça, realmente, com o “Rito do Irmão P eq u en o”, outro de seus m ais lin d o s p o em a s. E, após os estados lír i­ cos de “Lira P aulistana”, Mário de Andrade já não sente eu foria: quer salvar o m undo, se in u n d an d o de amor pela h u m a n id a d e . Mas, “Medi­ tação sôbre o T ie tê ” verem os em seguida, dentro do estudo da outra grande constante da p oesia de Mário de A ndrade: justamente êsse grande amor pela h u m an id ad e.

Por que Mário de Andrade publicou o seu p rim eiro livro?

Não há d ú vidas: “Há Um a Gôta de Sangue em Cada P o e m a ” .surgiu d evid o à n e c essid a d e prem ente que sentiu a se n sib ilid a d e do Poeta de gritar contra os horrores da guerra. N este livro Mário de Andrade revela, logo, o seu enorm e amor pelos h o m e n s.

Por que “P auliceia Desvairada foi pu blicad o?

Em carta à Manuel Bandeira, exp lic o u o P oeta: o e scâ n d a lo criado pelo artigo de Oswald de Andrade, a n e c essid a d e de um e x e m ­ plo, levaram Mário de Andrade a publicar êsses p o em a s. Já se vê, portanto, o senso de resp on sab ilid ad e que caracterizaria a obra e a vida dêsse paulista. Pois, se há desabafo pessoal, em “P au liceia D e s­ vairad a”, há, também, um elevado grito de in d e p e n d ê n c ia literária

— uma declaração de amor à realidade b rasileira.

D êsse livro já se d isse que “só vale com o crítica estético-social, não tendo in ovação poética de im p o r tâ n c ia ” (D om in gos Carvalho da Silva, “Notas Sôbre o V erd eam arelism o”, “Revista B ran ca”, nú­ mero c i t a d o ) . Mas, em Mário de Andrade — m ais do que em qual­ quer outro vulto de nossas letras posteriores à 1922 — , se torna in d isp e n sá v el o c o n h e c im e n to do hom em , para a perfeita in te lig ê n c ia de sua p o e sia . Se con sid erarm os o amor pela hum anid ade, que já desponta em “P auliceia D esvairad a”, se con sid erarm os as razões de sua publicação, se c on sid eram os a euforia (fórm ula de vid a) q u e êsse livro encerra, não nos preocu parem os com a ausên cia de gran­ des e x p e riên cia s p oéticas — qne, afinal, se realizaram d e p o is . Aliás, na famosa c o n fer ên cia do d e c lín io de sua vida, o próprio Mário de Andrade nos e x p lic a o pionto: “E m e cabe finalm en te falar sôbre o que cham ei de “atualização da in te lig ên cia artística b r a sileira ” . Com efeito: não se deve c o n fu n d ir isso com a liberdad e de pesquisa estética, p ois esta lida com formas, com a téc n ic a e as rep resen ta­ ções da beleza, ao passo que a arte é m uito m a is larga e com p lexa que isso, e tem uma fu n cion alid ad e im ediata, social, é uma pnofissão e uma fôrça interessada na vida!

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Por outras palavras: a “in te lig ên cia e stética ” só procura a for­ m a. Mas a prim eira só se realiza pela arte. Ora, arte é expressão cie s o c ie d a d e . Por isso, tem “fu n cio n a lid a d e h u m an a” . É, por isso, o Conteúdo que in teressa à in teligên cia artística.

Mas, é êste sentim en to profundo de id e n tific a ç ã o com os h om ens e com o m un do (que se acentua com o “Noturno de Belo H orizon te” ), que produz a obra m aior de Mário de A n drade. Tôda ela reflete um grande amor pela hu m anidade, em geral, e, pela realidade brasileira, em particular.

Por amor aio nosso ternário, foi artesão, criou uma linguagem literária — procurando sintetizar m od ism os de todos os cantos do p a ís . E surgiram as cjissonâncias rítmicas, as transfigurações léxicas, ü integração do elem ento folclórico, a libertação das palavras. Por amor a.o tipo brasileiro, cujos alicerces pretendeu erguer, descolocou pronom es, flex io n o u advérbios, criando uma linguagem artificial, pessoal, req uintada. Mas, êle próprio reconh eceu o êrro: “Abando­ nei, traição c o n sc ien te, a ficção, em favor de um hom em de estudo que fundam entalm ente não so u ” ( “O Momivento M odernista”, citad a).

Sôbre o problem a da língua, declarou, uma v e z : “Isso é um assunto que está m e ab orrecen do. De resto, não é o problema da e x istên cia ou não da língua brasileira que interessa ao escritor b r a sileiro , 0 problem a é outro: é um problem a de hon estid ade a rtística” . ( “Correio da IVfanhã”, 3 1 . 8 . 5 7 ; v . “Mário de Andrade e o Problem a da L íngu a”, em “Crítica de E stilos”, de A. M. M ach ado).

Por hon estid ad e, pesquisou o nosso folclore e tentou d e se n ­ volver a nossa m u s ic o g r a fia : “em toque rasgado botei a hôca no inundo cantando na fala im pura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa g e n te ”, nos diz êle ( “Macunaíma” - O herói sem nenhum ca rá ter ). Como se vê, amou, pensand o ou crian d o.

A “Meditação sôbre o T ietê ” é a culm inação dêsse obsedante am or. Amor b íb lic o . O seu m elhor poema, em nos.so julgamento. O s r . R eynaldo Bairão disse que êsse amor de Mário de Andrade pela hum anidade era o resultado do seu aparente n a r c is is m o : Penso ser essa forma narcisista de encarar o mundo o que mais contribuiu para a p o e sia de Mário de Andrade parecer, ante a nossa sensibilidade, com o o resultado de um incom ensurável amor pelos h o m e n s” . E o lúcid o ensaísta (obra citada) documenta a sua afirmação:

“E sto u p e n s a n d o nos te m p o s d e a ntes d e eu n a s c e r . . . ”

O que não se pode negar é o respeito bíb lico pelo homem, que .se in ic ia com a sua obra, cresce com o “Noturno de Belo H orizonte”, amadurece com o “Rito do Irmão P eq u en o” e se consolida com a “Meditação sôbre o T ie tê ” :

“Desqiie m e fiz p o eta e f u i trezen to s, eu a m e i T o d o s os h o m e n s, o d iei a guêrra, salvei a p a z ! ”

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Foi assim, Mário de Andrade. Amou o m undo e o Brasil. Pro­ curou ser coerente, c on sigo próprio, p ensand o ou c ria n d o . In ven­ tou a m oderna poesia brasileira, porque teve a necessária coragem . E teve, ainda, a coragem (e a h on estid ad e) de se criticar, tão im p ie ­ dosam ente, em 1942, 3 anos antes de sua m orte: “tendo deform ado tôda a m inh a obra por uma an ti-ind ividu alism o d irigid o e voluntário, tôda a m inha obra não é mais do que um h ip er in d iv id u a lism o im p la c á v e l!”

Já na “Meditação sôbre o T ie tê ” êle con fessara: “eu m esm o desisti dessa felicid ad e de.shimbrante” . Estava amargo. “É m elan ­ có lico chegar assim no crepú scu lo sem contar com a solidariedad e de si m esm o ”, disse, no M inistério das Relações E xteriores. Mas, ainda assim, foi im parcial con sigo p róprio.

E não era só o-sentim ento de culpa que o levou a tanto: “E outra coisa sinão o respeito que tenho pelo d e s t i n o dos mais novos se fa­ zendo, nãio ine levaria a esta co n fissã o bastante cruel, de perceber em quase tôda a m inha obra a in s u f ic i ê n c ia d o a b s ie n c io n is rn o (gri­ fam os) ” .

Amou a hum anidade até o fim .

As 42 obras que a “Pequena Bibliografia Crítica da Literatura B rasileira”, de Otto Maria Carpeaiix, registra sôbre Mário de Andra­ de, não dim inuem a n ecessidade, cada vez maior, de uma revisão do autor de “Pauliceia D esv a ira d a ”, “essa baita paixão pelo B rasil!”

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o s C I N C O D E D O S

C o n t o d e J O S É T U R I S C O

Alguém nie aperta as m ãos. Alguém que eu não e o n lie ço . Sinto o peso da noite a esmagar-me a alma, ao m esm o tempo que um frio in sen sato faz eom que meu eorpo estrem eça. O homem que me aperta as m ãos olha-m e eom firmeza, eorno se quizesse forçar m inha mente a r e c o n h e c ê -lo . São quase três horas da madrugada e a zona com er­ cial está d eserta. Não há ninguém pelas ruas, a não ser nós d o is. Não sei ao certo por que estou aqui, sei som ente que ontem a noite não consegui adorm ecer e o m esm o aconteceu hoje, e então um louco desejo im peliu-m e a vir cam inhar pela zona com ercial da cidade em plena m adrugada. Mas este h o m e m . . . Que é esse homem?

— Não se lembra de mim, pergunta-me ele.

Passo as mãos pelos olhos e tento não ser descortez dizendo que não o r ec o n h eç o . Èle parece com p reen d er:

— Claro, não sabe quem sou . Você vê-me todos os dias, mas não me c o n h e c e .

Estou agora sentind o mêdo e d escon fio que o frio que sinto não é natural. Este homem não pode e x is tir . Ele continu a a olhar dentro de meus o lh o s. Levanta a mão aberta e a coloca ante eles.

— Olhe, eu tenho cin co d e d o s.

T im id am en te respondo que eu tam bém . Ele abana a cabeça várias vezes, com o se quizesse dizer que eu não o tinha com preendido.

Olhe, cu tenho duas mãos sorri - ele completa - sao dez (le d o s .

Novam ente ele abana a cabeça, mas agora leva as mãos ao rosto e o segura com d esesp êro .

Estamos parados junto a um grande e d if ic io . Os únicos ruidos ])ereebíveis partem do cais do porto. Pelo m enos há alguém vivo nas red ondezas. Respiro aliviado porque eu tenho m êd o.

— Será que o mar tem razão? Acordo so b re ssa lta d o .

— Razão como?

.... Em devolver sempre os seus m ortos.

-r- Pode ser. Quem sabe? Mas acho que ele está certo em devolver os seus m ortos.

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•'X

— Você tem razão. É isso m esm o , 0 mar toma os h om ens, usa os, d ep ois os d evolve.

— Mas m ortos!

— Eles foram usados, não servem m a is. Para que vivos?

Começo a andar. Meu com p an h eiro segue-me um pouco atraz. Meus olhos procuram febrilm ente rom per a escurid ão deserta e des­ cobrir alguém . Mais tarde, descubro junto a um grande e d ifíc io uma mulher escan dalosam ente vestida, fum ando um cigarro^ com o a e sp e ­ rar alguém ou alguma c o is a . ,É estranho encontrar uma m ulher a estas horas pelas ruas do c o m é r c io . Ncrn p erd id as andam por aqui. Esta é a zona m ais vazia da cid ade e eu sou um hom em perd id o dentro dela.

A mulher adianta-se e chega-se junto a m i m . P ede-m e um cigar­ ro. É uma m ulher de mais de trinta anos, corpulenta, usando um v e s­ tido estam pado muito justo que lhe realça as form as. uma p r o sti­ tuta, não há d ú v id a . A cendo-lhe o cigarro, não corresp on d o a seu sorriso e continu o a peram bular. Ela fica a olhar-m e. Mais adiante duas m ulheres passam rápidas, barulhentas, v in d o não sei de o n d e . É estranho que meu m êdo tenha passado e chego a esquecer-m e da presença m isteriosa desse hom em que c am in h a a meu lad o. Mas ele não d e i x a : .sempre que dele me vou e sq u ecen d o acontece qualquer coisa que o faz voltar a tona de m inh a m em ória.

— Olhe, eu tenho c in c o d e d o s.

O coração me bate m ais ráp id o. Mêdo e irritação se juntam . — Já s e i. Você já me d isse.

Então ele com eça a chorar, um lam ento lânguido e trágico. Parece que ele tem pena de mim e que qualquer coisa que não sei o que é o atorm enta. T enho im pressão que esta coisa terrível r elacio­ na-se a m im . Súbito resolvo perguntar:

—■ Finalm ente, que aconteceu ? Ele s o r r i :

Oh] Nada. . . Para o sen h or é tão pouco, que chega a ser um nada. Oh! com o eu tenho pena do senhor!

■— Ora, se provoco pena o que m e aconteceu não pode ser tão pou co.

Meu gênio violento com eça a tomar conta de mim e já sinto os sintom as de sua dom in ação.

Ouça aqui, é m elhor parar com iss o . Porque não vai em b o­ ra e me deixa em paz?

Não posso, responde-m e, tenho de estar sem pre com o sen h or. Não posso deixá-lo, seria o seu fim .

Para em m eio à calçada. — Finalm ente, quem é você?

F:ie abre os braços, murmura qualquer coisa que não ouço, depois baixa os braços desan im ad o e tristonho com eça a cantar, a p r in c íp io muito baixo e lentam ente, d ep ois vai elevand o a voz favo­ recido pela acústica da rua deserta.

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“Os h i n o s que criei, as c a n ç õ e s que in v e n te i, as alegrias que se m e e i

se p e r d e r a m nas vid a s que c o r t e i ’ /

Meu niêdo volta e já não me acho tão certo de que esse homem é lo u c o . Um a id e ia atravessa rapidam ente o meu céreh ro: ou serei eu o louco? .

“Agan, ogan, agan, o g a n .

A cada passo que d o u a lua ca i. A ca d a passo que d o u a lua ca i. A ca d a passo que d o u a lua c a i” .

Continua a cantar e os .seus cabelos estão revoltos, parecendo m uito m ais bastos do que eram na ocasião do nosso e n con tro.

Sua m úsica tem um efeito incom parável sob m im; a tristeza que me com b alia de há m uito desapareceu e em seu lugar surge uma h ilaried ad e estranha, uma alegria de bêbad o. Passo então a cantarolar uma cantiga que nem sei se exfste ou se a estou com ­ p on d o esse in sta n te. Mas estou alegre e é o que vale.

R esolvem os atravessar a rua; estam os rindo, gargalhadas m onstruosas, hiper-alegria, satisfação enorm e de v iv er . Dobramos a esqu ina e ainda sob as pilastras dum e d ifíc io , encontram os uma v e lh in h a . Seu sorriso é meigo, m uito terno; tenho a im pressão de que se trata de uma viúva que vai receber a pensão deixada pelo m arido m orto. Está com um vestido preto e branco, ostentando ao p e sc o ço rugoso um colar de contas também negras. Dou-lhe boas noites e nem me preocupo em saber o que a senhora está a fazer nas ruas aquelas horas; acredito firm em ente que está apenas madrugando para ser a prim eira a receber o seu din heiro na manhã que se a v isin h a . De repente surgem as três m ulheres que já tinha visto anteriorm en te. Atiram-se ao nosso encontro, beijam e abraçam a mim e a meu co m p a n h eir o . Enojados as rep elim os. Procuro afas­ tar a senhora da co n fu sã o . Então ela, a velhinha, atira-se a meu pes­ coço e beija-me profundam ente na b o c a . Recuo aturdido. Ela diz:

__Venha, meu filh o . Estou louca por v o c ê . Vamos fazer um am orzinho?

Não resisto e saio a correr desabaladamente pelas ruas. Meu estranho com p anh eiro segue-me muito espantado a gritar d eses­ peradam ente :

__ Olhe, eu tenho cin co dedos, c in co dedos, cin co dedos! Não ou ç o . Tôda a m inha esperança repousa no sol que vem rom pendo a madrugada.

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W I L S O N

R O C H A

NOTAS BREVES E ATUAIS

S Ô B R E A S A R T E S

P L A S T I C A S NA BAHIA

Como lôda a gente sabe, de alguns anos para cá tem se v e r ifi­ cado na vida artística da Bahia um anim ad or m ovim en to de ren o­ vação. No que se refere às nossas ativid ades no cam po das artes plásticas em geral, e da pintura em particular, se p r o c ed éssem o s à um exam e c o n sc ien te das nossas positivas realizações nos últim os dez anos, viriam naturalmente em d iscu ssão m uitos p r ó s e c o n tr a s . A cre­ ditamos porém que se im põe uma constante revisão de atitudes e de con ceitos, uma vez que a atividade e a e x p e r iê n c ia artísticas, co m o a cultura de um m odo geral, não podem ser privilégio de n in g u é m .

Kntre nós, com um am biente violentam ente transform ado na ultima década pel,o total desp restígio da pintura acadêm ica até então ( om inante, vim os surgir uma nova e experim ental geração de pin- ores, escultores e arquitetos. Entramos assim numa fase de renova­ ção estetica, num período de d esen volvim en to de estrutura. P eríod o em que se faz necessário analisar valores, uma vez rom p idos aqueles

JU1Z.OS pre-estabclecidos e superado o lam entável espírito reacion ário

em assunto de arte.

Se, paralelam ente ao exam e dos proces.sos de.ssa renovação e.sté- íca, procurássem os analisar e com p reen d er as nossas c ircu n stân cias sosians, nao poderiam os certam ente emprestar m aior im portância ao o( o lastante com p lexo em que estão representadas as ten d ê n c ia s da atual geração, ten d ên cias ainda im p recisas e quase sem pre caren- es de au tenticid ade. Tentar caracterizá-la.s, seria exagerada arbi- t ia iie d a d e . Sobretudo porque é em nosso próprio m eio, com as p e r i­ gosas facilid ades que ele oferece, que os talentos in d iv id u a is e n c o n ­ tram as m aiores ameaças e as grandes d ificu ld ad es para atingir enfim a m aioridade.

Quando, hoje, em dia, .se fala em arte e artistas atuais da Bahia, ninguém .sob essa designação está .separando determ inad as obras de um conteúdo, e nem siqiier pensa-se em fazer algo que viesse resultar no estabelecim ento de um n ecessário critério de .seleção. Em nome da aite, infelizm ente, a Bahia foi subitam ente tomada de assal­ to por tódas as e sp é cie s de aventureiros das mais várias p r o c e d ê n ­ cias e transformada num parai.so deles, pintores muralistas de im p r o ­ v iso . Com as raras e x c e ç õ e s do painel de Portinari no Banco da Bahia, do de Hansen no Moinho Salvador, e das pinturas m urais de (lenaro de Carvalho na Loja Ermor e na “b o ite ” do Hotel da Bahia,

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M A P A

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e as de Carlos Bastos no interior do Anjo Aziil e na r esid ên cia do pai do artista, bem com o o mural de Quaglia no E d ifíc io Siierdieck,. e o de Maria Célia numa das escolas do Conjunto E d u cacion al Car­ n eiro Ribeiro, tudo o m ais do quanto nos têm dado ultim am ente à título de pintura mural, é de tão baixo nível, tão carente de técnica, e, não raro, de tanto mau gôsto e tão preten cioso, que d isp ensaria qualquer com entário se não servisse com o tem servid o e x c lu s iv a m e n ­ te p a r a T é n e f ic ia r d eson estos e prom over m ed íocres no campo da ativid ade artística bahiana.

Quanto m ais olhássem os, na história da Bahia, o seu grande passado artístico, mais grotesco e decadente nos pareceria por certo o capítulo presente de sua pintura mural in fla cio n á r ia . Essa aven­ tura do im p roviso e da in c o n seq u ê n c ia , essa praga do mau gôsto que deu lugar ao tão m elan cólico muralisrno bahiano dos nossos dias, < om o se não bastasse no próprio mau gôsto, tem exercid o uma ação destruidora em artistas nossos dos m ais prom issores, com o é, p or exem plo, o caso de Carybé, que nos aparece com o um cam peão dessa má pintura, e Mário Cravo, que, iraindo o s seus belos p r in c íp io s e negand o a sua prom essa de um grande talento de escultor, despreza in e sp licà v e lm en te a sua rara capacid ade de trabalho e as e x c e p c io ­ nais c o n d iç õ e s que aqui encontrou, para se dedicar, como o vem fazendo insisten tem en te, à uma sub decoração onde ele próprio não e sco n d e ver senão um “n e g ó c io ” como se se tratasse de vender cacau.

Estim ulados pela propaganda e pelo efeito im ediato de “recei­ tas” arranjadas, fàcihnente vive na Bahia de hoje qualquer pseudo artista predisp osto à exploração do baixo nível mental da nossa classe dom inante, da estupidez dos nossos governantes ou das h o n ­ rarias facílim as do Salão Bahiano de Belas .\rtes, que, lamentàvehnen- te, se desprestigia de ano para ano. Precisam os urgentemente da m aior severidad e c rític a . A crítica não é só uma n ecessidade como é sobretudo uma e x ig ê n c ia .

Confuso e desordenado, com tão poucos objetivos sólidos e com os seus poucos valores tão confun did os, o nosso m eio artístico está se lim itando quase que totalmente ao vício do com odism o, desse com od ism o ião trágico e que à outros cam in hos não conduz senão os do artificialism o, da com ercialização e da com pleta falta de escrú­ pulos. P recisam os reagir em face dessa estúpida subestituição de tabús. Precisam os agitar o nos.so confun did o e corrom pido am bien­ te artístico. P recisam os iimpá-lo de v ício s tão degradantes e amea­ çad ores. Reagir contra o prim arism o e a d eson estid ade. Mas reagir antes que seja tarde, antes que traidores do nosso pas.s'ado de tradi­ ções culturais transformem numa ditadura a nossa cultura atual.

Cabe sobretudo à juventude essa luta, porque na juventude sempre estará a melhor esperança. Que prossiga calorosamente a d is­ cussão e que se abram os mais amplos debates. Só assim a renova­ ção continuará. E, isto sim, é o mais im portante.

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E N S A I O C R I T I C O - I I

F E R N A N D O P E S S O A

C A R L O S A N Í S I O M E L H O R

D epois de estabelecido, com o p rop edêutica ao estudo e in ter­ pretação da poesia de Fernando Pessoa, aqueles c o n c e ito s: id é ia e imagem, cujo esclarecim en to importa de sobrem odo a com p reen são básica de sua poesia, resta a con sid erar o m odo pelo qual êle realiza a síntese destes dois elem entos que apontam os com o a m ais bri­ lhante solução de sua arte p o é tica . T om em os a últim a estrofe dc seu poema, de grande recurso verbal, “ü ltim o S o r tilé g io ” :

C o n v erta -m a a m i n h a ú ltim a \magia N u m a estátua d e a m o r em c o rp o v iv o ! M orra q u e m sou m a s q u e m m e f u i e havia, A n ô n im a p r e s e n ç a que se beija,

C arne do m e u a b stra to a m o r ca tivo Seja a m o r te de m i m em que re v iv o ; h tal qual fu i, não s e n d o n a d a eu seja.

Aqui esgotaram-se todas as p o ssib ilid a d e s estéticas e filo s ó fi­ cas do verbo ser. A sua am plitude in d e fin ív e l exp ressou por im a­ gens quase tácteis. O conteú do m etafísico da e x istê n c ia revelou-se em p r ofu n d id ad e. E sem perder as características da m ais ortodoxa forma p oética.

O sentido existen cial em prestado aos verbos de ligação fornece ao Poeta os recursos para a in trosp ecção proiistiana e as perqui­ rições do tempo na m em ória.

Com que â n sia tão raiva Quero aquele o u lro ra E eu era fe liz? N ão sei. Fui-o, outrora, agora.

Em um outro sentido, o da visão m ística, aparece contudo a ínesma preocupação pela análise da ex istên cia agora na intem- p oralid ade.

F oi u m d esejo que, se m c o rp o ou boca, A teus o u v id o s d e sonhar-te^ d isse A fra se e tern a im e r e c id a e lo u ca A que os d e u ses e sp e r a m da le d ic e Com que o O lim p o se a p o u c a .

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A im agem conceituai, p erm ita-nos o n eologism o, é ilustrada « n tr e outros nos seguin tes versos :

A h ! O teu téd io é u m a está tu a da m u l h e r que h á d e v ir O p e r f u m e que os c r is â n te m o s teria m se tiv e s s e m .

Os elem en tos de que se co m p õ e o pensam ento, d isso cia d o s na op e r a çã o mental, sincretizaram -se aí no cam po e stilís tic o . O m esm o iico n tece com as flex õ e s e x is te n c ia is do verbo ser.

N e s te m o m e n t o in s o n e e triste E m q u e não sei q u e m h ei d e ser P esa-m e o i n fo r m e real que e x iste N a n o ite a n tes de a m a n h e c e r .

O verbo, elem en to axial das prop osições, o m ais flexível dos e lem en tos para a expressão, é explorad o cm tôda sua d u etílid a d e.

Eu já não sou q u e m era; O que s o n h e i, m o r ri-o E até d o que h oje sou A m a n h ã d ire i, quem dera Volver a s ê - l o ! . . . Mais fr io O v e n to vago v o lto u .

A tristeza e o desencanto de ser, a nulidade da e x istê n c ia c o n s­ tituem a pedra de toque de suas m ais belas c o m p o siç õ e s. Suas im agen s emprestam ao pensam ento filosófico, existenciali.sta im a­ nente, um poder de elucidação que só a linguagem poética (e Berg­ son já o apontara) pode oferecer.

A v id a é c o m o u m a s o m b r a p o r sô b re u m rio Ou c o m o u m pas.so n a a lfo m b r a que jaz vazio; O a m o r é u m so n o para o p o u c o se r que se é. A glória c o n c e d e e nega; não tem v e rd a d e s a fé .

A poesia orfica, cultivada p o r Goethe, quando se sentira plena­ m ente capaz em sua evolução c intuída por Blake, porque santo, encontra-se em Fernando Pessoa, intelectualizada, fundida em essên ­ cia verbal.

Hoje que a tarde é calm a e o céu tranquilo, E a n o ite chega sem que eu saiba bem , Quero considerar-,rne e v er aquilo

Que sou e o que sou o que é que te m .

Olho p o r todo o m e u passado e vejo Que fu i q u em fo i em torno m eu .

S a lvo o que o vago e in c o g n ito desejo De ser eu m e s m o d e m e u se r m e d e u .

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0^

C hegado aqui, o n d e estou, c o n h e ç o Que sou d iv e r s o n o que i n fo r m e estou N o m e u p r ó p r io c a m i n h o m e a tra vesso N ã o c o n h e ç o q u e m f u i n o que h o je so u .

Nesta última estrofe, com penetrada, tôda ela, de id é ia s teoso- fistas que fecundaram grande parte da filo so fia do sécu lo XIX, o problem a “d e o se r la n ça d o ao m u n d o ” que analisa, êle próprio, a questão de sua origem e fim, adquire uma lu cid ez pela d is s o c ia ­ ção dos verbos ser e estar, in e x iste n te na lingua fran cêsa em que também foi form ulado o problem a e x isten cia l (L ’Être jeté au m on d e — Gabriel M a r c e l).

Por vêzes, o jogo verbal assume um caráter tão e so térico que se torna m esm o in telig ív el aos não in ic ia d o s nas doutrinas de Max H eindel ou nas acrobacias de H egel.

T iv e s se q u e m c rio u O m u n d o d e seja d o

Que fô sse o u tro que sou T e r-m e-ia o u tro c r ia d o .

Ha trechos em que o virtu osism o verbal atinge a um requinte de tal m odo que com prom ete m esm o a seriedad e filo só fic a de seus tem as. Muito embora sejam excertos de lir ism o .

Mas o olhar, d e estar o lh a n d o O n d e n ã o olha, voltou,

E e sta m o s os d o is fa la n d o O que se n ã o c o n v e r s o u . Isto acaba ou c o m e ç o u ?

A estrofe que se segue a esta, apre.senta-se com o uma e sp é c ie de contra-cam po já que estam os a falar de im agens em poética dialiogação.

S o m m o r to das águas m a n s a s Que c o r r e m p o r ter q u e ser. L e v a não só as leimbrançás, • Mas as m o r ta s e sp era n ça s.

M ortas p o r q u e hão d e m o r r e r .

F ernando Pessoa não é um filósofo, com o H eidegger não é um poeta. Mas .o problem a da exi.stência “sob o p êso da m orte” está pre.sente em am bos. Vejamos o que afirma Joseph Lentz acerca da e.ssencia do e x is te n c ia lism o : Al final de mi vida veo que m e espera in evitab lem en te esta m uerte mia, a la que tengo que a c o g er en mim. Su p resen cia amenazadora llega hasta al m om ento actual de vida e n so m b re cie n d o la . (1) Ao se penetrar na e ssê n c ia da metáfora I El Moderno Existencialismo Aleman y Frances

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e x isten te nos versos citad os de F . P . h averem os de c o n v ir que os p en sam en tos são id ê n tic o s . E que Fernan do P essoa é o autêntico poeta de filo so fia de e x is tê n c ia .

O Poeta só se descobre m ed ian te o poder da sim patia que obriga o leitor a um contacto pessoal e diuturno com sua obra. As ob servações que pretendi expor (e pretendo continu ar) servirão de roteiro às e x ig ê n c ia s estéticas ou filo só fic a s de sua poética, c o m ­ p lexa com o acen tu am os.

E xiste uma bibliografia extensa sôbre F ernando P esso a . Infe- lizm en te esta, pela d ificu ld a d e de intercâm bio com a cultura por- tuguêsa, é pouco accessível para n ó s . O ferecem os ao leitor uma lista das que julgamos m ais im portantes à com p reen são e exegese do P oeta.

Em p róxim o trabalho delin earem os uma breve biografia.

B I B L I O G R A F I A

C arlos Queiróz — H om enagem a F ern an d o Pessoa — Com os E x cer­ to s das su as C a rta s de A m or — Coimbra, 1936.

Adolfo C asais M onteiro — In tro d u ção a F ern an d o P essoa — P oesia (V n. 6 ).

Ja c in to do P rad o Coelho — D iversidade e U nidade em F ernando P esso a — Lisboa, 1949.

Jo ão G asp ar Sim ões — Vida e O bra de F ernando P esso a — 2 vols. — Lisboa, s. d. (1951).

M aria d a E n carn ação M onteiro — Incidências In g lêsas n a Poesia de F ern an d o P esso a — E d . d a A u to ra — Coimbra, 1956.

A rtig o in E nciclopédia P o rtu g u e sa -B ra sileira. D icionário de L ite ra tu ra U niversal — P erd ig ão . C a rta s in P re se n ça — n. 48.

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Aspectos Folclorícos

de M a n i f e s t a ç ã o

Religiosa na Bahia

p a u l o g i l s o a r e s

N a B ahia, quem tiv e r a preocupação de e s ta r em co n tacto com o povo, h á de en co n trá-lo num estad o de evolução c u ltu ra l relig io sa que não acom panha o desenvolvim ento social e técnico d e sta fase do século que vivem os. C renças no poder m ilagroso de certo s elem entos n a tu ra is e p rá tic a de fó rm u las m ág icas d enotam o estado de estac io ­ n am en to n u m a fase de religião que ain d a ad m ite todos os excessos de sin cretism o religioso como aquele que sofreu a m an ifesta çã o n e g ra de culto a O rixás, o candom blé, e a união de p rá tic a s relig io sas do catolicism o com sessões de baixo esp iritism o onde esp írito s de caboclos baixam e dão e n tre v is ta s. Mesmo e n tre aquelas pessoas que se dedicam ap en as ao candom blé e lá realm en te en co n tram a razão e a fin a li­ dade de su as vidas m ísticas, g u a rd a d a s as devidas d istân c ia s com referên cia aos te rre iro s do Achê Opô A fonjá, G antois, O gunjá, E ngenho Velho e outros, h á aquelas que fazem com que o culto yo ru b an o deixe de ser um a m an ifestação sóbria, a p e sa r de p rim itiv a, p a ra to rn a r-se cen tro s de p rá tic a s que não dizem bem do conceito que êstes cen tro s deveriam g o zar; isto além da co n cen tração de «filhos de santo» que jiada m ais são do que p e d e ra sta s em busca de u m a fu g a n as fru stra ç õ e s de ser hom em quando d e sejariam ser m u lh er. E ain d a as funções especiais p a ra tu ris ta s que, como em todo lu g a r e a in d a m ais na B ahia são de u m a irrev erên cia tre m e n d a . D essa situ aç ão é que h á o m otivo de a p a re c e r em re v ista s que se especializam em re p o rta g e n s onde o sensacionalism o é a p a la v ra de ordem , fo to g ra fia s de cenas de culto, ta is como P ad ê (despacho de E xú, em issário dos o rix ás) e la ô s p in ­ ta d a s e ra sp a d a s (noviças em fase de in ic ia ç ã o ). E x iste ain d a o sério problem a de alg u n s «pais de santo» que a ce itam em seus te rre iro s a p ro stitu iç ão .

E s ta s derivações das finalidades das casa s de culto do candom blé é devida em g ran d e p a rte a «pais de santo» irresp o n sáv eis, dêsses que são cham ados pelos verdadeiros B ab alo rix ás e Y alo rix ás’ «pais com san to feito, em pé», o que sig n ifica que e s ta g en te foi im provisada, nao teve a fase séria da iniciação no culto, a fase da c a m a rin h a . E sses im provisadores, aprendem um c an to num terreiro , um toque de ata b aq u e n o utro e pouco m ais ta rd e m o n tam su a c a sa de c u lto . Isto c o n tn b u e g ran d e m en te p a ra a decadência do candom blé que tende, não a d esaparecer, m as a popularizar-se, aceitan d o u m a série de sin cretis- m os e fazendo concessões de tô d a ordem que te rm in a rã o p o r d esm o ra­ liza-lo. C h eg ará a época em que não m ais terem o s u m a c asa de culto da en v erg ad u ra do Achê Apô A fonjá, dirigido p o r Senhora, que g u a rd a a trad iça o h erd ad a d iretam e n te dos elem entos a fric an o s de que ela é leg ítim a e a u tê n tic a re p re s è n ta n te . T erem os em tro c a tip o s como João- sinho da Goméia, que dá toques com convites im pressos e u tilisa o

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«ballet» como req u in te co reo g ráfico n a d a n sa dos san to s, não p o r tra n sfo rm a ç õ e s evolutivas, o que não esp eram o s p ^ ra um culto que se b a seia n a tra d iç ã o a frican a, m as pela im provisação a que j á e s ta ­ m os assistin d o , não sem m água, p ela coisa fe ita em c a r á te r de espe­ tácu lo p a ra tu r is ta s . N a B a h ia os tu r is ta s são u m a p ra g a que p re c isa ser e x te rm in a d a . C hegam a todo m om ento e como um g ran d e polvo querem receb er tôda, e de vez, nos seus ten tácu lo s, a B ah ia que, com o a m a n te que se presa, só se dá aos p o u c o s.

T al estad o de coisas in flu en cia g ran d em en te o povo pelo seu p e r­ m an e n te co n tacto com o candom blé e com tu r is ta s . E daí o a p a re c i­ m ento de u m a nova in d ú stria p o p u lar que vêm desenvolvendo os a rte sã o s b ah ian o s: e s ta tu e ta s de ferro ou b a rro cosido rep resen tan d o E xú que os tu r is ta s com pram no M ercado M odelo. É m uito «chic» t e r e sta s e s ta tu e ta s em a p a rta m e n to s ao lado de p in tu ra s de p o rtin a ris ou m es­ mo de c o n cretistas, sob a rq u ite tu ra s de niem ayers, próxim os a ja rd in s de b u rles.

Se por um lado o tu r is ta faz com que se d esagregue a p u reza dos cultos de candom blé, por o u tro a I g r e ja exerce tam b ém a sua influência, a lg u m as vêzes com req u in tes inquisitoriais, obrigando, ain d a agora, a u m a cam u flag em no c u ltu a r orixás, um sincretism o com san to s do agio- logio católico,, como se já fôsse pouco ou pequeno o sincretism o exis­ te n te . F alan d o ap en as no C atolicism o como única religião que aqui n a B ah ia exerce rea lm e n te u m a influência no com p o rtam en to social do hom em comum, porque o P ro te stan tism o , religião que reu n e um núm ero considerável de crentes, lim ita-se a o lh ar a realidade social do can ­ domblé como u m a m an ifestação dem oníaca, o que fac ilita e to rn a cômoda a ta r e f a de estu d á-la p a ra co m b atê-la.

Ê stes os fa to re s a tu a is que a tu a m de m an e ira decidida no com ­ p o rta m e n to do hom em de desenvolvim ento m en tal p rim á rio . E de ta l

m an eira que o faz ser sem pre um indeciso, um que não sabe a m a ­ n eira a c e rta d a de m a n ife sta r seu m isticism o. Fa-lo h e sita r e n tre c a to ­ licismo, espiritism o, candom blé, p ro te sta n tism o ou m esmo fica r sem o bri­ gações religiosas, o que n a B ah ia não é realm en te fácil. B a sta im ag i­ n a r que quando não tem os pela fren te um a procissão, tem os ao lado um. bozó com g alin h as m o rtas, cabeças de bode, charutos, pipocas e cachaca, ou quando n ad a u m a vela ardendo abandonada n um a en cru ­ zilh ad a. Sem fa la r nos casos que nos co n tam os m ais velhos a respeito de pessoas que não tem r e lig iã o .. . A inda as som bras das igrejas, que as tem os m u itas, que nos acom panham em tô d as as ru a s .

Tem os p resen te tô d a e sta p ro b lem ática a t u a l . Não devemos, e n tre ­ ta n to , esquecer a h e ra n ça cu ltu ral religiosa que nos leg a ram nossos fo rm adores étn ico s. T en tan to aqui m a rc a r com tra ç o s larg o s a s c a ra c ­ te rístic a s m ais p rim á ria s da psicologia dêsses form adores no m om ento histórico que viveram , aliás coisa sabida por todos, tem os êsses elem en­ to s em plena selva tro p ical de um B rasil ain d a por co lo n izar.

O índio, elem ento nativo, e sta v a acostum ado a c u ltu a r a n a tu re z a : raio, sol, lua, trovão, arco-iris, etc., ao lado da crença no ex istir de seres m íticos que p ro teg iam a flo resta; sacis, caiporas, curupiras, ia ra s

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e ta is . Com a ch eg ad a do colonizador, teve pelos p a d re s je s u íta s os novos fundam entoS de u m a religião que desconheciam , porém a tr a tiv a pela m an e ira como e ra en sin ad a com su as m úsicas e su as encenações. Depois, o P e . A n ch ieta com su a abnegação à cau sa do índio, fez com que êste recebesse todos os ensin am èn to s d a cateq u ese d a religião que vinha dos reis católicos. E ain d a não e sta v a com pleto o serviço c ate- quético, g u a n d o chegou o elem ento a fric an o com seu culto p a ra ain d a m ais confundir o índio.

O africano, elem ento m ístico p o r excelência, a rra n c a d o do seu con­ vívio n a tu ra l n as te r r a s da Á frica, onde vivia com suas p rá tic a s re li­ giosas, crendo n a beleza quase a b so lu ta de Y em anjá, no poder do raio de Xangô, nos ciúm es de Y an sã e Obá, n a bondade de Olorum , o pai celeste. C om pletam ente d esaju sta d o n a nova te r r a e n a 'n o v a condição de vida, pois de povo livre veio p a ra o tra b a lh o escravo d a m o n o cu ltu ra do açú car; veio do cam po ab erto , p a ra o chicote d feitor, a rudez do senhor de engenho e a proibição de su as p rá tic a s relig io sas. Não podia b a te r a ta b aq u e s p a ra seus o rix ás. E começou o tra b a lh o de sin creti- zá-lo com os sa n to s que as sin h ás c u ltu av am nos o rató rio s e capelas da fam ília. P o r outro lado, recebendo do índio u m a nova m ito lo g ia que devia ser r e s p e ita d a .

O p o rtu g u ês, elem ento descobridor da te r r a dos pau^ verm elhos e das a ra ra s , e ra o único de ra ç a com trad içã o cu ltu ral, a p e sa r de ser o fo rm ad o r étnico em su a p red o m in ân cia um rude, um degredado por crim es p ratica d o s n a c ô rte ou quando m u ito um m arin h eiro das fro ta s que aqui vinham p a ra o com ércio do p au b ra s il. T in h a o p o rtu g u ês ain d a recente os quadros da Inquisição em te r r a s da E uropa, quando en tro u em co n tacto com o culto yo ru b an o e a relig ião n a tu ra l dos indios. R espeitando a Ig re ja C ató lica em p rim eiro lu g ar, a c e ita v a e n tre ­ ta n to , m ais p o r m êdo que p o r respeito, as o u tra s m an ifestaçõ es reli­ giosas de índios e a fric a n o s. Donde u m a série de p rá tic a s m ág ica s e superstições a p a re c e ra m .

O co m p o rtam en to religioso do hom em a tu a l o u tro não poderia d eix ar de ser com ta l c a rg a h e re d itá ria e crem os que o u tra não se rá a m an e ira relig io sa de se r de nossos consequentes, porque pouco nos tem os preocupado com as geraçõ es que v irão e qual o m a te ria l que devem os g u a rd a r p a ra elas, donde a co n tin u ação dêsses fa to re s que tem os atáv ico s e s tá a sse g u ra d a .

E s ta s as influências a tá v ic a s e as a tu a is que so fre o hom em com um da B a h ia . D aí su a confusão, su a facilidade em c u ltu a r diversas rehgioes que p o r su as n a tu re z a s com plexas não poderiam de nen h u m a m an e ira se r u n id as em um único modo de m an ifestação , não fôsse a ingenuidade da c u ltu ra religiosa e o modo im e d ia tista de e n c a ra r a vida e seus fa to s tra n s c e n d e n te s . P o r isso, en co n tram o s as pessoas p rim itiv a s in te ira m e n te in te g ra d a s no seu m isticism o inculto, n as orações que sao rezad as a todo in sta n te p a ra d e te rm in a d as situ açõ es e sem pre aliad as ãs p rá tic a s m á g ic a s. M uitas, ou quase tô d a s essas orações nao trazem^ o «im p rim atu r» e o «nihil o b stat» d a s a u to rid ad e s cató li­ cas, m as são in d istin ta m e n te resad a s em tem p lo s e em te rre iro s . H á

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a té, p o r v irtu d e d essas orações com p rá tic a s m ág icas, u m a p ro fissão p o r vêzes rendosa, a de «Rezador», que a exerce com seriedade, porque o povo crê no poder m aléfico do o lh ar e é com um ouvir-se o seg u in te d iálo g o :

— Que m enino bonito! — B enza-o Deus!

Ê ste «benza-o Deus» é a fô rça an iq u ilad o ra do possível m au_olhado que p o d eria tr a z e r a ex p ressão «que m enino b o n ito » . Quando h á o caso de u m a p essoa e s ta r com m au-olhado, o rezad o r reza-a, fazendo sôbre ela cru zes com um galho de a rr u d a . R eza-se um P a d re Nosso, u m a Ave M aria e G lória. Se o galho de a rru d a m u rc h a r no P a d re N osso, o olhado foi posto p o r hom em ; se n a Ave M aria, foi posto por m u lh e r. E s ta é a oração:

Com dois te b o ta ra m Com trê s te tiro Com a g ra ç a de Deus E da V irgem M aria.

E seg u em .se as orações, m .anifestações aliad as à p rá tic a m ág ica que bem c a ra c te riz a o estad o c u ltu ra l do bahiano e n este caso não sòm ente o hum ilde, m as tam b ém alg u n s de c u ltu ra m éd ia.

O u tro exem plo de oração aliad a à p rá tic a m ág ica é e sta que se segue p a ra «espinhela c a íd a » :

C risto m orreu C risto ressu cito u E sp in h ela de fulano C risto lev an to u .

R eza-se tr ê s vêzes, puxando-se o cabelo do a lto d a cabeça ou com um a colher de p a u su ja de cinza que se e sfreg a n a g a rg a n ta do doente.

Quando tem os um cisco no olho, p a ra que êle nos deixe de inco­ m odar, pega-se a p álp eb ra e puxando-a, reza-se:

Corre, corre cavaleiro A casa de S ta . Luzia Diz a ela que me em p reste A p o n ta do lenço dela P r a eu tir a r um cisco De den tro de m eu olho ou e sta o u tra que se segue:

S a n ta L uzia passou por aqui Com seu cavalinho

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í-.'

^>.1-Dei-lhe pãx>, disse que não D ei-lhe m eu cisco

D isse que sim .

N a ta r e f a d iária de la v a r roupa, as lav a d eiras do Dique co stu m am ferv er as peças p a ra que não fiquem e n c a rd id a s. Quando fazem fog-o e a fu m aça vai p a ra o lado onde elas e stão lavando e h á a n a tu ra l ir r ita ­ ção dos olhos, elas rezam a seg u in te oração p a ra liv rar-se da fu m aça:

S an tin h o p rá cá F u m a ç a p rá lá

C arn eirin h o no meio P r á poder a tr a p a iá .

N e sta q u ad ra in g ên u a en co n tram o s p e rfe ita m e n te sin cretizad o s os e n k - n am en to s da Ig re ja , porque ê ste «carneirinho no meio» é a fo rm a assim ilad a do «A gnus D ei» .

D uas orações que tra g o com igo lem bram -m e a in fân c ia que ain d a não vai longe m as j á deixa sau d ad es pela c e rte z a que ten h o de que não v o lta rá n u n ca. U m a é p a ra dôr de den tes que a m in h a m ãe rez av a r

S a n ta Polonia São C lem ente F a ç a p a ssa r

E s ta dôr de dentes

E fazia-m e cruzes no ro sto a té que eu ad o rm ecia e esquecia o d e n te . A o u tra é a .oração que fech av a o corpo a m o rd ed u ras de cobras:

São B ento Pequenino S anto do a lta r

A rreda, a rre d a -cobra Qu’eu quero p a s s a r.

Onde en contram os p e rfe ita m e n te o sin cretism o de p rá tic a s m á g i­ cas com orações é n a «O ração a B e a ta C atarin a» que aco m p an h a a s p ra tic a s m ág icas da P em b a ou Pem be-ó, pó colorido com o qual se

faz um chá e dá-se p a ra as pessoas que querem os b en eficiar ou p reju d icar:

«D igna sois vós aquela sen h o ra que p a s s a r pela p o rta de A b raão e a c h a r 400 hom ens tão b ravos como os leões e vós com vossas p a la ­ v ra s a b ra n d a r seus corações. Ouví, ó m in h a S a n ta B e a ta C a ta rin a , vós és de a b ra n d a r os corações de todos os m eus inim igos p a ra mim, que se tw e re m pés, não ihe alcancem ; que se tiv erem m ãos, não me a g a r- rein; que se tiv erem olhos, não m e enx erg u em e se v e ja m tã o p e rs e ­ guidos e a m a rrad o s de pés e m ãos como N osso Senhor Je su s C risto se VIU am a rrad o n a cruz p a ra todo sem p re. A m em .

R eza-se trê s P a d re s Nosso, trê s Ave M aria e trê s G lória,

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