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MEDÉIAS: A CARACTERIZAÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA NAS TRAGÉDIAS DE EURÍPIDES E SÊNECA 1

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MEDÉIAS: A CARACTERIZAÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA NAS

TRAGÉDIAS DE EURÍPIDES E SÊNECA1

Giovana Gonçalves dos SANTOS (PG - UEM) Marisa Correa SILVA (UEM)

ISBN: 978-85-99680-05-6

REFERÊNCIA:

SANTOS, Giovana Gonçalves dos; SILVA, Marisa Correa. Medéias: a caracterização da personagem feminina nas tragédias de Eurípides e Sêneca. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 440-447.

O motivo que nos levou a enfocar o tema deste trabalho, ou seja, a caracterização da personagem feminina Medéia, nas tragédias de Eurípides e Sêneca, foi a luta pela igualdade em que a mulher se encontra inserida já há algum tempo. Houve uma significativa ascensão do sexo feminino, no que diz respeito à sua função e ao acesso de bens na sociedade, se levarmos em consideração a história da humanidade.

Atualmente, a mulher encontra-se, ao menos no Ocidente eurocêntrico, num mesmo patamar de direitos semelhantes ao do homem. Entretanto, essa conquista tem levado séculos para acontecer. O espaço tradicionalmente reservado à mulher na sociedade greco-judaica-cristã, bem como em várias outras, era o da submissão e da ampla dependência do poder masculino.

Nesse aspecto, a Grécia clássica influenciou fortemente a civilização Ocidental, pois sua população era regida pela soberania dos homens, vistos como os únicos que possuíam o direito de gozar uma vida livre, sem restrições. Como resultado disso, as mulheres viveram num regime de vida enclausurada, submetidas à supremacia masculina que a sociedade lhes havia outorgado.

Em vista disso, a sociedade romana, posterior à grega, teve uma certa melhoria no que diz respeito às mulheres, embora houvesse alternância entre períodos nos quais as leis concediam certa independência à mulher com outros em que essa relativa liberdade era tolhida. Ainda assim, herdeiras do estilo grego autoritário, as mulheres não eram completamente livres, nem tampouco conseguiram uma igualdade ao sexo masculino.

Os escritores dessas épocas compunham dramas e sátiras nas quais surgiam, direta ou indiretamente, situações típicas de suas sociedades. Entre eles, Eurípides, o

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dramaturgo grego, compôs em suas tragédias o retrato crítico de sua sociedade. E por ser inovador, utilizando a porção frágil e humana de seus protagonistas como foco, foi tido como exemplo para os escritores romanos, sendo que vários temas de suas peças foram retomados, como a obra Medéia, também abordada pelo romano Sêneca.

Forma que surgiu no século V a.C. no mundo grego, a tragédia, segundo Aristóteles, nasceu do ditirambo, hino em honra de Dioniso. Giordani (1972) afirma que, aos poucos, a tragédia foi buscando inspiração não só nas lendas dionisíacas, mas nas aventuras de deuses e heróis, constituindo-se assim, o repertório da tragédia. Há que levar em conta, também, a ação interior, os movimentos da alma, os sentimentos e pensamentos que conduzem aos atos materialmente vistos ou imaginados.

Para Grant (1994), a tragédia era compacta e concisa; visava expressar os mais profundos pensamentos de que são capazes os seres humanos. Sua função era examinar e avaliar, geralmente num contexto mitológico, as relações com os mortais e as divindades, além de expor e analisar a opinião dos próprios cidadãos atenienses que compunham a platéia. De todos os elementos qualitativos, o mais importante é o mito, que arranja sistematicamente as ações, ou seja, que Aristóteles assimila ao conceito contemporâneo de “fábula” ou “diegese”.

Para Aristóteles, o mito é o gerador da tragédia, sendo o elemento central; sem ele, tal gênero não poderia existir. É ratificado como princípio e alma da tragédia, vindo somente depois os caracteres, ou seja, as personagens.

Partindo de um dos princípios de Costa (1992), em relação às ações da personagem, citaremos uma personagem que reconhece os fatos e age violentamente: Medéia.

Não há como citar o mito de Medéia sem desligá-lo do mito de Jasão. Segundo Guimarães (1972), Jasão era filho de Éson, herdeiro do reino da Tessália, mas não ocupou o trono, pois seu irmão Pélias usurpou-o.

Logo após o nascimento de Jasão, Pélias mandou matá-lo, mas ele acabou salvo por seus pais que o entregaram à guarda do centauro Quíron. O centauro cuidou de Jasão até completar vinte anos. Na mesma época, Pélias organizava uma festa à qual Jasão compareceu.

Pélias reconheceu Jasão: este para chegar à festa, precisou atravessar um rio a nado, perdendo uma de suas sandálias, que fez com que o tio lembrasse que ouvira de um oráculo a profecia de que um estrangeiro descalço seria seu inimigo mortal.

Para evitar a perda do trono, Pélias enviou Jasão para a captura do Velocino de Ouro, um tosão (pele de carneiro com pêlos) totalmente de ouro, feito de um carneiro muito especial, que tinha a habilidade da fala e do vôo. Fora um presente que Néfele ganhara do deus Hermes. Néfale deu o carneiro a seus filhos, Hele e Frixo, quando foram perseguidos pela madrasta. Os irmãos montaram no animal, que os levou voando, para a Cólquida. Lá o carneiro acabou sacrificado a Zeus, e sua pele, o velo, foi dada de presente ao rei Eetes, pois lhe traria prosperidade e poder. O velo ficava sob a guarda poderosa de um dragão, num bosque.

Pélias tentou enganar Jasão, dizendo que se ele conseguisse o velocino, receberia o trono de volta, pois o rei acreditava que seria uma tarefa impossível e mortal para o sobrinho. Jasão montou uma expedição a procura do Velocino, num navio construído por ele, o Argos, e acompanhado pelos Argonautas (cinqüenta e dois heróis que se tornaram marinheiros para participar da aventura), seguiu em direção à Cólquida. Tendo enfrentado a difícil e perigosa viagem, chegaram ao distante país. Mas, o rei Eetes não

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permitiu a tomada do Velocino, impondo algumas condições à entrega do Tosão de Ouro.

Segundo Grimal (2000), num só dia Jasão deveria tomar dois touros furiosos, que tinham patas de bronze e sopravam fogo pelas ventas, colocá-los ao arado, fazer lavrarem um terreno virgem e semear a terra com dentes de dragão, os quais haviam sobrado da semeação de Cadmo. Feito isso, deveria matar os guerreiros gigantes que nasceriam dos dentes semeados. Só então, poderia apanhar o precioso Velo suspenso de um carvalho, guardado pelo dragão. Logo após, Jasão deveria matá-lo. Eetes apenas designou esta tarefa porque estava confiante na morte certa de Jasão.

Certamente, Jasão não teria sobrevivido à tarefa sem ser ajudado por Medéia, feiticeira famosa, filha do rei Eetes, neta do sol, e sobrinha da feiticeira Circe. Ficando apaixonada por Jasão, resolve ajudá-lo, livrando-o de todos os males e auxiliando-o a cumprir a tarefa através de sua feitiçaria.

Medéia deu a Jasão uma garrafinha com suco de ervas mágicas que, untadas no corpo, o tornavam invulnerável. Deu-lhe uma pedra para lançar no meio dos gigantes monstruosos que nasceriam dos dentes do dragão, assim Jasão poderia matar os poucos que sobrariam, pois os demais brigariam pela pedra. A seguir, ela fez adormecer o dragão com seus encantamentos e Jasão o matou.

Cumpridas todas as tarefas, preparam-se para a partida. Entretanto, Eetes, furioso, resolve incendiar o Argos e eliminar Jasão. Medéia, sabedora dos planos do pai, corre para informar o amante. Apressando-se, fogem, e Medéia os acompanha. O rei lança-se em perseguição aos fugitivos, atinge o rio Fásis e envia seu filho Apsirto com a ordem de receber o Velocino de Ouro e de trazer Medéia. Esta, loucamente apaixonada pelo herói, não hesita: apodera-se do irmão, degola-o e despedaça seu corpo, jogando os membros ao longo do litoral, certa de que o rei não irá adiante e recolherá os tristes despojos a fim de dar-lhe uma sepultura digna, atrasando, assim, a perseguição ao aventureiro. E assim, tudo acontece. Eetes desiste da perseguição, ocupando-se em recolher os restos mortais do filho.

Jasão foge com Medéia e passou pela corte de Alcínoo, rei dos fenícios, que já havia recebido o pedido de Eetes para mandar-lhe a filha de volta se os Argonautas passassem por lá. Alcínoo prometeu atender ao pedido, mas somente se Medéia ainda fosse virgem.

Arete, mulher do rei, ciente dessa condição, levou-o ao conhecimento de Medéia, e Jasão uniu-se a ela sem perda de tempo na caverna de Mácris.

Retornando triunfante a Iolcos, na Tessália, Jasão consagra seu navio a Netuno e entrega o Tosão a Pélias, e logo soube o que ocorrera durante sua longa ausência. Seu pai, fora perseguido por Pélias, que se recusava, agora, a entregar o trono, como antes havia prometido.

Medéia encarrega-se da vingança; faz com que as próprias filhas matem o pai. Entretanto, Jasão não conseguiu o trono, pois temendo retaliações, foge com Medéia para Corinto, e tem com ela dois filhos.

Eurípides inicia sua tragédia a partir daí, anos após o nascimento dos filhos do casal. Jasão abandona Medéia e os filhos para casar-se com Creúsa, filha do rei Creonte. Mas Medéia, tendo sido expulsa do país pelo rei, que temia o poder da magia dela, aproveita-se do curto espaço de tempo que lhe resta no país e acaba por assassinar o rei e sua filha, e depois os próprios filhos, para vingar-se de Jasão.

Eurípides, o autor da versão mais antiga que conhecemos de Medéia, segundo Giordani (1972), era de origem humilde, nasceu em Salamina (ilha situada nas

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proximidades de Atenas), provavelmente em 485 a.C.. Segundo Jaeger (1995), Eurípides é um lírico dos maiores, incomparável nas vozes líricas da realidade; também é por excelência, o primeiro psicólogo, pois é o descobridor da alma num sentido completamente novo, o inquiridor do inquieto mundo dos sentimentos e das paixões humanas. Eurípides teve o mérito de introduzir a crítica na tragédia.

Desta maneira, a psicologia de Eurípides teria nascido na coincidência entre a descoberta do mundo subjetivo e o conhecimento racional da realidade, que naquele tempo se desenvolvia com a filosofia grega. A sua poesia seria inconcebível sem a investigação científica. É a primeira vez que, com despreocupado naturalismo, introduz-se no palco a loucura, com todos os introduz-seus sintomas.

Sendo assim, os gregos foram os pioneiros na criação do gênero dramático. Portanto, a literatura grega teve grande influência sobre a romana. Dentre os muitos escritores que utilizaram o mito de Medéia, Sêneca foi um dos mais importantes.

Giordani (1975) diz que, Lúcio Aneu Sêneca, conhecido como Sêneca, o jovem, nasceu em Córdoba, por volta do ano 4 a.C. e era proveniente de família que tinha por tradição a atividade intelectual. Ainda criança, foi enviado a Roma para estudar oratória e filosofia. O escritor e filósofo destacou-se como estilista. Numa prosa coloquial, seus trabalhos exemplificam a maneira de escrever retórica, declamatória, com frases curtas, conclusões epigramáticas e emprego de metáforas. A ironia é a arma da qual se utiliza com mestria, principalmente nas tragédias que escreveu, as únicas do gênero na literatura da antiga Roma. Versões retóricas de peças gregas, elas substituem o efeito dramático por efeitos brutais, como assassinatos em cena, vingança e discursos violentos, numa visão trágica e mais individualista da existência.

Paratore (1987) menciona que as tragédias de Sêneca foram escritas como forma de reivindicação da liberdade contra a tirania de Nero.

Segundo Cardoso (1989), a linguagem de Sêneca é bem característica da época em que viveu. Tem traços acentuadamente retóricos, o que lhe confere, ao lado da solenidade própria do gênero, um tom artificial.

Giordani (1975), encerrando suas considerações sobre Sêneca, nos diz que o escritor retirou-se da vida pública em 62 d.C.. Morre em 65 d.C., quando é acusado de fazer parte de uma conjuração contra o imperador Nero. Este manda matá-lo, cortando-lhe as veias. Mas Sêneca não morre com os cortes e apressa-se em beber um veneno para poupar-se da dor e antecipar sua morte.

E é no estilo dramático que Medéia está inserida, tendo como modelo, não só nesta tragédia, mas nas demais de sua autoria, o mais dos trágicos helênicos: Eurípides. Portanto, temos a Medéia escrita por Eurípides em meados de 431 a.C e a escrita por Sêneca no ano 41d.C..

Temos como objetivo analisar a personagem feminina Medéia na obra de Eurípides e de Sêneca, e para isso faz-se necessário entendermos o contexto histórico e o papel da mulher nas épocas em que as duas obras estão inseridas.

Na sociedade grega, a mulher era um símbolo de fraqueza; não podendo ter os mesmos direitos dos homens e nem podendo realizar as mesmas funções, sendo considerada um ser inferior. Para Duby e Perrot (1990), a mulher grega não era considerada uma cidadã, era apenas considerada filha de cidadão, isto é, esta qualidade era apenas designada para o homem.

Em todo o caso, as mulheres, as crianças e os escravos não eram considerados cidadãos. Eram membros da família (mulheres e crianças), mas só indiretamente é que eram membros da cidade, sendo esta sua pátria, mas não faziam parte do domínio

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público, porque segundo os homens, não faziam parte do gênero de coisas que constituem a vida pública. Nem discutir temas polêmicos, política ou filosofia era permitido às mulheres, sendo que o seu lugar era dentro de casa e sua ocupação, o trabalho doméstico.

Segundo Giordani (1975), a mulher romana teve uma crescente conquista comparada à civilização grega. Enquanto solteira, estando ainda em poder de seu pai, não poderia usufruir o mesmo prestígio que sua mãe. Após o casamento, tornava-se uma matrona, aparecendo freqüentemente ao lado do marido como fiel colaboradora, partilhando da alegria das festas, da autoridade do lar e das honrarias da vida pública.

Desta maneira, o casamento significava em geral, para a mulher romana, alargamento no horizonte de suas atividades. Mas o amor à vida doméstica foi um dos aspectos mais característicos da civilização romana, sendo as qualidades nobres da matrona romana: ser dona de casa, consciente de seus afazeres e fiel ao marido. Dizia-se, como elogio dessa mulher: “Foi casta, cuidou da casa e fez lã.”(Giordani, 1975:167).

E como no lar a matrona romana desempenhava importante papel, podendo inclusive administrar as despesas, compreende-se a sua influência na vida social de Roma.

Diante dessas considerações a respeito da condição feminina da mulher grega e romana, faz-se necessário, agora, uma breve explanação sobre a estrutura das duas tragédias.Temos dois enredos escritos diferentes: A Medéia de Eurípides parece ser mais completa em comparação com a de Sêneca. Seu enredo é muito mais teatral, seus diálogos mais elaborados. O texto de Sêneca é provido de cenas violentas, pois as tragédias, em sua época, eram escritas para serem lidas e não representadas, como podemos observar na cena em que a protagonista joga os cadáveres dos filhos, de cima de sua casa para Jasão. Sobre este fato, observamos:

Sêneca é o último autor dramático romano a desfrutar de importância literária, embora suas tragédias escritas provavelmente para a leitura não para a representação, se ressintam de certa falta de teatralidade. Sêneca escreveu peças para serem lidas, possivelmente em sessões públicas freqüentadas por uma elite, familiarizada com os velhos mitos e habituada com textos em que os aspectos retóricos eram valorizados acima de tudo. (CARDOSO, 1989:49).

A história diferencia-se em algumas partes: Logo no início, em Eurípides, a ama dá início à peça com seu diálogo, enquanto em Sêneca, o prólogo é feito por Medéia. E assim sucedem-se essas posições diferentes de diálogo, resultando num texto menos extenso para Sêneca.

A personagem Medéia, de Eurípides, é provida de um intenso sentimento de sofrimento. Por ser deixada por Jasão, sente-se traída e amargurada, possuída por uma grande tristeza. Neste sofrimento estão embutidos os problemas de um tempo em que predominava a exclusão e o preconceito contra a mulher.

Entretanto, não eram precisamente Medéias as mulheres de Atenas. Eram oprimidas demais, submetidas à educação rígida que as levava a acreditar na própria inferioridade e em seu dever de submissão. Por isso, Eurípides escolhe a bárbara Medéia, que mostra a natureza elementar da mulher, livre das limitações da moral grega. O senso crítico, aliás, é predominante nas falas de Medéia, que faz reflexões filosóficas sobre a posição social da mulher, como observamos em Costa (2003):

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Medéia é, acima de tudo, consciente de sua condição de mulher, inserida numa sociedade comandada por homens. Sabe das sanções, das humilhações e dos preconceitos que sofrerá por ter sido abandonada pelo marido. Medéia reflete sobre a condição frágil da mulher na sociedade, pois o destino de todas é o casamento, dedicar-se à vida doméstica, ao marido, mas dedicar-se este não cumpre o juramento, os laços que os uniram em matrimônio, à mulher nada resta além de aceitar a situação de abandono, ou seja, a mulher não tem o direito de voz, de reivindicar seus direitos, torna-se, nas mãos do marido, um objeto que pode ser trocado a qualquer momento. (COSTA, 2003: 66). Dotada de grande inteligência, Medéia sabe justificar a coragem de uma mulher: segundo ela, “vezes sem número a mulher é temerosa, covarde para a luta e fraca para as armas. Se, todavia, vê lesados os direitos do leito conjugal, ela se torna, então, de todas as criaturas a mais sanguinária!”(p. 29).

Durante todo o texto de Eurípides, a personagem é movida pelo ódio, pelo orgulho ferido em ser traída pelo homem a quem entregou sua confiança. Arrepende-se de ter traído seu pai, cometido crimes por pura devoção a Jasão, que na primeira oportunidade, deixou-a sem hesitar para casar-se com a filha do rei e tornar-se cidadão entre os gregos e não mais estrangeiro, conseguindo assim, o respeito do povo.

Entretanto, é com a trama da morte dos filhos que Eurípides faz sua personagem relutar contra a própria ação maléfica. Lesky (1996) nos diz sobre a figura “demoníaca” de Medéia, através da intenção do infanticídio:

A princesa da Cólquida que Jasão tirou da sua pátria e abandonou em terra estranha é, sobretudo a mulher que opõe à ofensa a ao sofrimento o caráter desmedido de sua paixão. Por isso esquecemos a feiticeira com seus truques mágicos, ainda que possam também ser utilizados para ação, no devido lugar. Não como bruxa e sim como pessoa humana é demoníaca esta Medéia, que é transformada por Eurípides em assassina dos próprios filhos. (LESKY, 1996: 201).

Porém, por várias vezes, tomada de sentimento materno, ela sucumbe perante o sofrimento vingativo que se apresenta como superior a ela, dividindo-se assim, entre praticar ou não o infanticídio. Seus monólogos ilustram a luta que ela trava consigo mesma, até tomar a decisão de matar mesmo as crianças. E por fim, sai triunfante, vingada, e ao mesmo tempo voltada para a dor de ter perdido os filhos, isto é, ilustrando a imagem da vitória na derrota.

A Medéia de Sêneca é composta por características diferentes. Primeiramente, a estrutura de seu enredo é apresentada diferentemente: não há diálogos construídos de maneira audaz. O coro que tem uma importante participação em Eurípides, em Sêneca perde todo o diálogo com Medéia, não dando tanta vivacidade à obra.

A caracterização da personagem de Sêneca também é diferente. Medéia é deixada por Jasão, mas este quase a convence de que pensava primeiramente nela e nos filhos quando a traiu, ou seja, de que o casamento seria um “sacrifício” que ele faria pelo bem da família.

Embora sendo traída, Medéia ainda se demonstra apaixonada por Jasão; pede para Creonte que o devolva: “Se for do teu agrado, condena a ré. Mas devolve-lhe o que a torna criminosa.” (p. 88).

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Por vezes, Medéia defende Jasão, num sentimento esperançoso e apaixonado: “O verdadeiro amor não tem medo de ninguém. E se ele tiver que ceder à força e dar-se por vencido, pelo menos podia procurar sua esposa e falar-lhe uma última vez.” (p. 92). Sêneca não apresenta uma Medéia tão inteligente e dominada pelo senso crítico e pela cólera, pois não faz menção à condição da mulher da época. A sua personagem é movida pela paixão, até seus atos são justificados. A idéia da morte dos filhos é criada através do ponto fraco de Jasão.

Jasão: Desejaria atender teu pedido, juro-te, mas o amor paterno me proíbe. Se quisesse obrigar-me a este sacrifício, o rei mesmo, meu sogro, não obteria nada. Eles são minha razão de vida. Eles são a consolação desta alma roída pelos sofrimentos. Renuncia, antes, ao respirar, aos meus próprios membros, à luz. (p. 97). Medéia: Ele ama de tal maneira os seus filhos? Muito bem. Descobri o ponto vulnerável. (p. 97).

Entretanto, antes de cometer o assassinato do primeiro filho, também sucumbe, como em Eurípides, perante o sentimento materno; mas para provar a si própria que vence o amor que ainda sente por Jasão é que comete o infanticídio.

Observamos que Sêneca reescreve a tragédia numa nova civilização: a romana. Não lhe era tão necessário citar as condições das mulheres em que estavam inseridas na obra de Eurípides. Sêneca, sendo considerado estoicista, preferiu atribuir ao sentimento da paixão a causa de toda a cólera de Medéia, que pratica todos os seus horrores motivada pelo amor ferido que sente por Jasão. Não se pronuncia explicitamente sobre a natureza da vingança de Medéia, mas mostra a complexidade do coração ignorado, isto é, ele apresenta uma personagem direcionada para o aspecto psicológico, introduzindo-o em cenas violentas, mostrando os danos causados por uma mente dominada pela paixão.

Eurípides, por sua vez, também ressalta o aspecto psicológico, entretanto, diferenciando-se de Sêneca, ao escrever a tragédia representando os sofrimentos das mulheres de seu tempo, incorporando-os à grandiosa plástica de representação, fazendo-se completamente inovador. Ele coloca a mulher como um fazendo-ser crítico que tenta buscar liberdade e justiça para sua vida e exalta a inteligência dessa mulher. Ele sublinha na paixão, quase demoníaca de Medéia, a dependência do mundo, do espaço social em que vive. A salvação de sua personagem só viria com o incremento do erro como forma de reparação à sua honra, o que era completamente grandioso numa tragédia de sua época grega.

Decorrente do preconceito masculino, obtido por aspectos sociais, a antiga sociedade clássica subtraiu de seu povo a influência inteligente e a sabedoria da mulher. Mesmo diante dessa fragilidade, havia homens inovadores, críticos àquilo que vivenciaram. Apesar de alguns autores considerarem Eurípides como misógino, este apresentou Medéia sob um olhar crítico a respeito da posição feminina, sendo precursor em sua época. Sua Medéia representa a fortaleza feminina que era reprimida e desvalorizada, resultado da época preconceituosa em que a época grega estava inserida.

Diferenciando-se de Eurípides, Sêneca apresentou uma Medéia movida pela paixão, mas não ostentou uma crítica à sociedade romana, no que diz respeito à condição social feminina, talvez porque não fosse tão necessário à sua época, pois as matronas romanas, suas contemporâneas, conseguiram uma certa liberdade. Ele prefere explorar a profundidade de um coração ferido pela traição, sendo a paixão exacerbada a causadora de muitos males, fazendo com que sua protagonista perdesse a razão.

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Contudo, estes dois célebres dramaturgos, Eurípides e Sêneca, usando de recursos estilísticos próprios, deram à sua obra uma profunda avaliação da condição social e psicológica da mulher diante da sociedade em que viveram, tornando Medéia uma das mais complexas e intrigantes personagens da literatura.

REFERÊNCIAS

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COSTA, E. B. A Poética de Aristóteles e a Personagem Feminina na Tragédia Grega. (Dissertação de Mestrado) UNESP de São José do Rio Preto, 2003.

COSTA, L. M. A Poética de Aristóteles. Mimese e Verossimilhança. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1992.

DUBY, G. & PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente. Vol. I. Antiguidade. Trad. Alberto Couto, Maria Manuela Marques da Silva, Maria Carvalho Torres, Maria Teresa Gonçalves e Teresa Joaquina. Porto: Afrontamento, 1990.

EURÍPIDES. Medéia, As Hipólitas, As Troianas. Trad. e estudo introdutivo Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

GIORDANI, M. C. Antiguidade Clássica I: História da Grécia. Vozes: Petrópolis, 1972. GIORDANI, M. C. Antiguidade Clássica II: História de Roma. Vozes: Petrópolis, 1975. GRANT, M. História Resumida da Civilização Clássica: Grécia e Roma. Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

GUIMARÃES, R. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo: Cultrix, 1972.

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LESKY, A. A Tragédia Grega. Trad. J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 1996.

PARATORE, E. História da Literatura Latina. Trad. S. J. Manuel Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

SÊNECA, L. A. Obras. Trad. e estudo introdutivo G. D. Leoni. Rio de Janeiro: Ediouro, 1979.

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