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ANA MARIA MACHADO: DA CRIAÇÃO FICCIONAL À CRÍTICA – O VALOR DA LEITURA LITERÁRIA

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária

Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio

ANA MARIA MACHADO: DA CRIAÇÃO FICCIONAL À CRÍTICA –

O VALOR DA LEITURA LITERÁRIA

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Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio

ANA MARIA MACHADO: DA CRIAÇÃO FICCIONAL À CRÍTICA

O VALOR DA LEITURA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção do título de MESTRE em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação da Profa. Dra. Diana Navas.

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Ao meu pai Jorge, por representar minha existência.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, em primeiro lugar.

Ao meu pai Jorge, que sempre me apoiou e acreditou em meus sonhos.

À minha mãe Vera, que, onde quer que esteja, está olhando e torcendo por mim.

Ao meu marido Roberto, pelo amor dedicado, apoio e compreensão, e por embarcar comigo neste sonho.

À Bella, minha incansável companheira de tantos momentos e diversas madrugadas.

Às minhas tias Iracy e Célia que me apresentaram, em minha tenra infância, ao universo da leitura, em especial, dos contos de fadas.

Aos meus amigos, que mantiveram, de perto ou de longe, uma torcida pela realização desta pesquisa.

À minha orientadora Diana Navas, pelo conhecimento, atenção, disposição e esclarecimentos.

Às professoras Juliana Loyola e Maria Aparecida Junqueira, pelas ricas contribuições no Exame de Qualificação.

A todos os professores deste Programa, que lançaram luz à elaboração desta pesquisa.

À Ana Albertina, secretária deste Programa, pelo esclarecimento de diversas dúvidas.

À CAPES, por proporcionar esse período tão importante de enriquecimento profissional e pessoal.

A todos aqueles que contribuíram, de alguma forma, para a produção deste trabalho, e pela aprendizagem ao longo dessa trajetória.

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“Simplicidade não é superficialidade”

“É muito comum que os romancistas contem como seus personagens os surpreendem, de vez em quando, agindo por conta própria. E é verdade, a gente não manda neles e tem que permitir que sigam por onde queiram. De certo modo, essa experiência de criar vidas alheias se parece muito com o trabalho do sonho. [...] Mas digo isso também porque não quero mentir para quem me lê, não além do inevitável ato de fingimento que é qualquer ficção. É honesto lembrarmos que essas vidas são inventadas, essas situações são criadas, mas nosso encontro nestas páginas, seu e meu é real.”

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RESUMO

Este trabalho se propõe a estabelecer, na obra de Ana Maria Machado, a relação entre a produção literária e a produção crítica da autora, verificando como ambas se apoiam em aspectos semelhantes, revelando um projeto literário, pautado na importância da leitura literária. Para isso abordaremos como, para ela, a crítica é fundamental na sua criação ficcional e está muito mais relacionada com o prazer de escrever e refletir, do que com a tarefa de condenar ou exaltar a ficção. Seu texto crítico, portanto, lança luzes à criação, ajudando-a a ser compreendida como obra múltipla de sentidos. Sendo assim, abordaremos um corpus específico dentro de sua vasta criação ficcional e crítica que explora o universo dos livros, a saber Silenciosa Algazarra (2011),

Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Texturas:

Sobre Leituras e Escritos (2001) e como corpus ficcional História meio ao contrário (1978), Bisa Bia Bisa Bel (1982), Era uma vez um tirano (1982),

Do outro lado tem segredos (1984), De fora da arca (1996), A audácia dessa mulher (1999) e A princesa que escolhia (2006).Buscamos assinalar como suas histórias são cheias de significados, nutridas de ambivalência e rupturas, mergulhadas no simbólico e que essas linhas se cruzam no próprio ato da leitura, porque nascem de uma dinâmica de rompimento de barreiras, traçando um projeto político-ideológico a partir de temáticas que abordam o questionamento ao poder, às relações sociais e aos temas que delas advém. Diante desse posicionamento, objetivamos, nesta pesquisa, estudar paralelamente as linhas mestras na obra crítica e ficcional de Ana Maria Machado, averiguando como ambos os discursos se cruzam, revelando um projeto literário alicerçado por valores que têm na leitura literária o caminho na formação do ser humano.

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ABSTRACT

This essay proposes to establish, in Ana Maria Machado’s books, the relation between writings and literacy criticism of the author, showing how both of them are based on similar aspects, revealing a literary project, ruled by the importance of literary reading. In order to do it, we are going to approach how criticism is essential for fictional creation and it is much more related to writing and reflecting than coordinating or praising the fiction. Her critic composition, therefore, highlights the creation, helping her to be understood as a title with wide fictional and critic creation and the criticism which explores at book universe such as Silenciosa Algazarra (2011), Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Texturas: sobre leituras e escritos (2001) and also as fictional corpus História meio ao contrário (1978), Bisa Bia Bisa Bel (1982), Era uma vez um tirano (1982), Do outro lado tem segredos (1984), De fora da arca (1996), A audácia dessa mulher

(1999) and A princesa que escolhia (2006). We emphasize her meaningful stories, nurtured by ambivalence and ruptures, filled in symbolism and how these lines cross throughout the reading because they come from a barrier rupture dynamics, depicting a political and ideological project from a set of themes which approach the debates about power, social relationships and the topics which come from them. Towards this position, we have the objective to study, in parallel, the master lines in Ana Maria Machado’s critic and fictional writings, determining how both of speeches cross each other, revealing a literary project based on values which are described on literary reading the way for human being formation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

1. AS VÁRIAS FACETAS DE ANA MARIA MACHADO... 15

1.1 Ecos de uma infância leitora... 15

1.2 Era uma vez uma escritora e tradutora... 23

1.3 ... E assim nasceu a escritora-crítica... 32

2. DO FEMININO À TRADIÇÃO: A VOZ DA CONTAÇÃO... 39

2.1 As múltiplas mulheres de Ana Maria Machado... 40

2.2 A perpetuação da tradição no contador de histórias... 53

3. DO POLÍTICO AO UNIVERSAL: A AUTORIDADE DO CLÁSSICO... 61

3.1 Do autoritarismo à construção do literário... 61

3.2 Universalidade: a manutenção do clássico na literatura... 67

4. O PROJETO LITERÁRIO DE ANA MARIA MACHADO... 85

4.1 O valor da leitura literária... 93

CONCLUSÃO... 99

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INTRODUÇÃO

é fundamental para um criador ter uma crítica capaz de ser sensível ao que o texto tem condições de evocar (MACHADO,2011, p.69)

Este trabalho pretende estabelecer, na obra de Ana Maria Machado, a relação entre a produção literária e a produção crítica da autora, verificando como ambas se apoiam em aspectos semelhantes. Para tanto, serão analisados, simultaneamente, textos críticos e ficcionais, a fim de apreender seu projeto literário, cuja proposta está alicerçada na importância da leitura.

A projeção do nome de Ana Maria Machado se deve ao talento dessa grande escritora da literatura brasileira, reconhecida por diversas premiações nacionais e internacionais. Destacam-se, nesse cenário, o maior prêmio literário do Brasil, o Machado de Assis (2001), concedido pelo conjunto da obra pela Academia Brasileira de Letras – ABL, e o Hans Christian Andersen (2000), considerado o Nobel da literatura infantil mundial, oferecido pela Internacional Board on Books for Young People. Com certeza, tais prêmios garantiram maior mérito à escritora na eleição para a cadeira de número 1 da ABL, a qual anos depois a elegeu como presidente.

Nosso interesse pela obra de Ana Maria Machado data de reminiscências da infância, e, posteriormente, do curso de Especialização. A escolha deu-se, também, em decorrência da leitura de seus ensaios, os quais frisam a importância da leitura desde a mais tenra idade, sugerindo um projeto literário alicerçando toda a produção da escritora. O que mais desperta a atenção, ao conhecer a profundidade de sua obra crítica, é o fato de ser pouco explorada em pesquisas acadêmicas. De certa forma, isso nos impulsionou a buscar compreender a proposta que Ana Maria Machado desenvolve em seus ensaios.

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11 inesgotável, consistindo uma plenitude na multiplicação dos sentidos, na linguagem plurissignificativa e potencial à medida que se submete às novas leituras, ou ao universo expandido do leitor. A autora afirma ainda que a crítica deve ser criadora e digna, usando a linguagem de maneira que, ao explorar a obra, compreenda-a como aberta e cheia de sentidos, ajudando também a compor essa criação, dando-lhe sombra e volume, “sem medo de submergir na

coexistência de sentidos que caracteriza a linguagem artística, uma linguagem

simbólica e trabalhada” (2011, p.133). Com isso, a criação só tem a ganhar, tratando-se de uma espécie de provocação, um estímulo sedutor que provoca no crítico o desejo de escrever também. Trata-se de uma crítica que, por participar da criação, está relacionada muito mais com o prazer de escrever e refletir, do que com o prazer de condenar ou exaltar, caracterizando um juízo final.

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12 Monteiro Lobato, personagens conhecidos do leitor, e também parte de suas próprias referências culturais.

Mediante o posicionamento da autora, objetivamos, nesta pesquisa, estudar paralelamente as linhas mestras na obra crítica e ficcional de Ana Maria Machado, averiguando como ambos discursos se cruzam, revelando um projeto literário por parte dessa escritora.

A obra crítica de Ana Maria Machado é vasta e se desenvolve em oito livros: Contracorrente (1999), Texturas: sobre Leituras e Escritos (2001),

Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Recado do Nome (2003), Ilhas no tempo: algumas leituras(2004), Romântico, sedutor e anarquista: como e por que ler Jorge Amado hoje (2006), Balaio: Livros e Leituras (2007) e Silenciosa Algazarra (2011). No entanto, iremos nos voltar com mais atenção às obras Silenciosa Algazarra, Como e por que ler os clássicos universais desde cedo e Texturas: sobre Leituras e Escritos, para compor o corpus da pesquisa relativo à crítica, à quais condensam os valores críticos da autora, em especial, o valor que ela atribui à leitura literária.

Enquanto corpus ficcional, elegemos História meio ao contrário (1978),

Bisa Bia Bisa Bel (1982), Era uma vez um tirano (1982), Do outro lado tem segredos (1984), De fora da arca (1996), A audácia desta mulher (1999), A princesa que escolhia (2006).

O estudo da obra crítica e ficcional de Ana Maria Machado exigirá, primeiramente, o levantamento de dados autobiográficos, apresentando as várias facetas da autora. Nosso o objetivo, aqui, é expor sua trajetória de leitura, atentando para a representação e a importância na vida da escritora.

Isso será desenvolvido no primeiro capítulo deste estudo, intitulado “As várias facetas de Ana Maria Machado”. Para tanto, coletaremos também informações na web site de Machado, www.anamariamachado.com.br, e nas produções autobiográficas já mencionadas. Além disso, nos apoiaremos em um diálogo com as teorias de Mikhail Bakhtin, em Estética da criação verbal (1997), Walter Benjamin, em O Narrador (1996), dentre outros.

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13 ensaísticas. Para isso, contamos, como base para o diálogo, com um corpus crítico e teórico: Altas Literaturas (1998), de Leyla Perrone-Moisés; A personagem de ficção (1968), de Antonio Candido; Literatura Infantil Brasileira História e Histórias, de Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2010);

Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil (1991), de Nelly Novaes Coelho; O texto sedutor na literatura infantil (1986), de Edmir Perrotti; O ato da leitura, uma teoria do efeito (1996), de Wolfgang Iser; A história da literatura como provocação à teoria literária (1994), de Robert Jauss;

Literatura Comparada (2001), de Tania Carvalhal; além dos ensaios e criações literárias de Ana Maria Machado.

O segundo capítulo, intitulado “Do feminino à tradição: a voz da

contação”, tratará, exclusivamente de dois valores que primeiro saltam aos olhos na obra da autora: o valor do feminino e o valor da tradição. Buscaremos mostrar como o feminino aparece na obra para ser transformado pela leitura, ou seja, como possibilidade de emancipação da mulher; já o valor da tradição aparece como indicador de manutenção – seja da família, da figura do contador de histórias, da cultura e dos saberes fundamentais ao humano. O foco desse estudo serão os livros Bisa Bia Bisa Bel, A audácia dessa mulher, De fora da arca, Do outro lado tem segredos e História meio ao contrário.

Em “Do político ao universal: a autoridade do clássico” nosso terceiro capítulo, focaremos em dois valores com os quais a obra dialoga fortemente: o político e o universal. Aqui mostraremos como a obra de Ana Maria Machado, por meio de um discurso fortemente enraizado na problemática brasileira, não deixa de expandir seus horizontes de atuação abraçando o universal, pois, a mudança de cenários não interferem no que é intrínseco ao humano. Veremos como isso possibilitará a reunião de grandes vozes da literatura de todos os lugares e tempos nos livros da autora, em especial em, História meio ao contrário, Era uma vez um tirano e A princesa que escolhia que serão alvo do nosso estudo.

No quarto capítulo, “O Projeto literário de Ana Maria Machado”

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14 obras críticas. Para tanto, contamos e nos apoiamos nos livros Silenciosa Algazarra (2011), Como e por que ler os clássicos universais desde cedo

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1. AS VÁRIAS FACETAS DE ANA MARIA MACHADO

1.1 Ecos de uma infância leitora

Nascida no dia 24 de dezembro de 1941, em Santa Teresa, região central do Rio de Janeiro, Ana Maria Machado veio ao mundo como um presente de natal. Suas férias escolares tinham como destino a casa da avó materna, no Balneário de Manguinhos, Espírito Santo.Conta que, nessa casa, conviveu com os avós, primos, tios, pais e suas histórias, além de desfrutar do mar e danatureza que o lugar oferecia:

Jantávamos cedo, à luz do dia. Depois, em volta de uma fogueirinha, ouvíamos e contávamos histórias. Em noite de luar, saíamos para caminhar na praia e fazíamos concursos de quem contava a história mais bonita. Cada adulto tinha sua especialidade. Vovô Ceciliano contava casos de verdade, lembranças riquíssimas de uma vida muito interessante e variada, das experiências em sala de aula, dos políticos que conheceu (foi prefeito de Vitória duas vezes), dos tempos em que abria estrada de ferro pelo meio da mata, conhecia índios, participava de caçadas... Vovó Ritinha contava maravilhosas histórias de folclore, recheadas de jabutis e macacos, de vigário, juízes e almas do outro mundo, povoadas por Pedros Malasartes e Joões Bobos. Tia Dinah tinha um interminável repertório de histórias de três irmãos que saíram pelo mundo em busca de aventuras. [...] Tio Guilherme era folclorista, cantava congos, tangolomangos e romances tradicionais ibéricos, falando na Nau Catarineta ou em Juliana e no Senhor Dom Jorge (MACHADO, 1996, p.15-16).

Ao contar sobre suas férias com a família e, como todos se posicionavam valorizando a tradição de contar histórias, Machado nos remete ao que Walter Benjamin (1996) propõe acerca dos narradores, tradicionais: o narrador marinheiro (viajante/comerciante) que vem de longe e o narrador camponês. Enquanto o camponês conhece bem sua tradição, a história de seu povo e de seu país, o narrador marinheiro viaja muito e conhece outros tipos de histórias ouvidas e trazidas por outros viajantes. O narrador precisa, levar em consideração a interpenetração desses dois tipos de contadores orais.

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16 Benjamin podem ser encontrados na trajetória de Ana Maria Machado que, munida de tal sabedoria advinda das histórias de seus familiares, semelhantes aos “narradores camponeses”, pode beber da tradição do seu povo e tudo aquilo que poderia ser compreendido como uma “herança cultural”.

A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção [...]. Na realidade esse processo, que expulsa, gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas. (BENJAMIN, 1996, p. 201)

Em Esta força estranha trajetória de uma autora (1996), Ana Maria Machado conta que, com menos de cinco anos de idade, já sabia ler, embora não se lembre do processo de alfabetização:

Eu estava no jardim-de-infância da Escola Machado de Assis, escola pública em Santa Teresa, no Rio. A professora se chamava dona Jurema. Lembro muito bem dela e da escola, incluindo o enorme pátio coberto onde tínhamos recreio quando chovia, e o vidro da clarabóia no teto, por onde a gente via o céu quando brincava de roda

e ficava deitada no chão, cantando “Carneirinho, carneirão”, depois do pedacinho que dizia: “... para todos se deitar...”. Mas não lembro

da alfabetização. (MACHADO,1996, p. 16)

Ela ressalta, ainda, a influência e importância que Monteiro Lobato teve na sua formação, pois fora presenteada com Reinações de Narizinho no seu quinto aniversário, obra que marcaria sua vida para sempre:

Não lembro da alfabetização. Lembro que para a festa de fim de ano, pouco antes de eu fazer cinco anos, Dona Jurema distribuiu um bilhete para a gente levar para os pais, e nele dizia a minha mãe que devia mandar papel crepom de alguma cor que eu não lembro, para fazerem minha fantasia de dália, porque o teatrinho ia ser sobre um jardim e eu fazia papel de flor. Eu li e não gostei, não queria aquela cor, queria amarela e reclamei. Ela levou um susto. Como é que eu sabia o que estava escrito? Ainda por cima, manuscrito... Recolheu o bilhete e mandou outro, convocando minha mãe para uma conversa no colégio. Mamãe veio e levou outro susto. Também não sabia que eu estava lendo fluente. [...]

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17

[...] eu estava muito interessada em descobrir se em Manguinhos não haveria um jeito de entrar no Reino das Águas Claras, e queria saber quem era Tom Mix...

Meus pais me explicaram, me levaram para ver desenho do Gato

Félix num cinema chamado Trianon, com um letreiro “Sessão

passatempo – o espetáculo começa quando você chega”. E sei que,

ao menos algumas partes, eu lia sozinha – não esqueço do livro, da sensação de pegar um pão quentinho e cheiroso, com manteiga derretendo, e ir deitar na rede ou sentar de atravessado na poltrona, com o livro na mão, o coração batendo forte, assustada porque Dona Benta estava correndo perigo, sentada no pé do Pássaro Roca, pensando que era uma árvore... (MACHADO, 1996, p. 17-18).

Ao falar sobre seu processo de alfabetização, é possível notar que Machado produz um efeito de silenciamento1, empregando outro discurso que projete a imagem de alguém, priorizando a inserção do leitor em um universo culto e letrado por meio da sua iniciação no mundo da escrita em um contexto familiar. Com base nesse conceito, pode-se dizer que Machado, ao invés de narrar frustrações, problemas, dificuldades e angústias durante seu processo de alfabetização, opta por expor características que estão relacionadas com outro tipo de informação, ou seja, aquela que se configurou através do letramento. Mediante tais informações, percebe-se que, para a autora, é plenamente possível ser alfabetizada em um ambiente repleto de livros, com acesso aos bens culturais, dispensando cartilhas com silabação, sem medo de praticar o erro e ser punida, lendo em voz alta, ouvindo histórias, e, por fim, realizando a leitura sem considerá-la algo difícil. Com isso, ela evidencia que a enunciação2 está muito mais comprometida com a formação do jovem leitor no universo da leitura do que com o processo de alfabetização escolar. Note-se que a escritora, assim como fez ao contar sobre seu processo de alfabetização,

1 Segundo Orlandi (1989, p. 40) a explicação concebida para tal discurso, está relacionada com “a prática

de processos de significação pelos quais ao dizer algo apagamos outros sentidos possíveis, mas

indesejáveis, em uma situação discursiva dada”.

2 Segundo Bakhtin (1999, p. 112) a enunciação “é o produto da interação de dois indivíduos socialmente

organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa do mesmo grupo social ou não, se for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por traços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido etc). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et urbi, na

realidade é claro que vemos ‘a cidade e o mundo’ através do prisma do meio social que nos engloba.Na

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18 não se estende em detalhar como se deu essa prática, mas se limita a expô-la como algo natural, sem grandes problemas. Ao optar por tal discurso, contando-nos o que aconteceu em sua vida para tornar a leitura algo corriqueiro, esquiva-se de explicar por que a leitura foi um processo natural, quando começou, por que lia ou como lia. Fazendo isso, Machado evidencia fatores que implicam o processo de significação de uma leitora sem conflitos, sem crise alguma, o que remete a alguém que se tornou o que é hoje através da leitura.

Portanto, os acontecimentos narrados por Machado contribuem na construção da imagem de uma escritora que teve contato com os livros desde muito pequena. Ela conta que os pais liam muito e compartilhavam com os filhos tudo o que liam; e os filhos, por sua vez, interessavam-se pelo que os pais tinham para ensinar. Convivia em um ambiente em que a leitura, o questionamento para entender o mundo, a pesquisa e o desejo de saber eram de grande importância:

[...] meu pai e minha mãe conversavam animadamente sobre as leituras, todos nós (a filharada) tínhamos vontade de entrar naquele mundo. A Ilíada e a Odisséia, Dom Quixote, A divina comédia, O paraíso perdido, Vidas paralelas de Plutarco, são alguns livros que eu

lembro perfeitamente de ver com marcador dentro, pousados numa mesinha-de-cabeceira. Ou, de repente, ele fazia uma pausa, lia para ela um trecho em voz alta, sublinhava com um lápis. [...] Falei nesse ambiente que me cercava porque acho que é um retrato de algo que só muito mais tarde eu vim perceber que era esquisito e anormal, mas que para mim era absolutamente natural durante toda a minha formação: tinha livro por todo canto. As pessoas à minha volta liam e valorizavam o livro como um bem precioso. Não porque fossem economicamente privilegiadas. Mas porque não concebiam que se pudesse viver sem ler, sem perguntar, sem consultar dicionário, sem procurar respostas. (MACHADO, 2001, p. 180- 181).

Mediante a imagem tão bem construída de leitora desde a infância e com o apoio familiar, é possível notar que essa seleção de recortes que retratam sua afinidade e paixão pela leitura, sem mencionar sequer um ponto negativo nessa trajetória, remete à valorização desse discurso. A partir disso, configura-se uma ideia bem delineada que leva a crer que o que ela nos conta foi importante para definir o que ela é hoje, fazendo do seu exemplo “modelo”

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19 oferecendo um depoimento que caminha na mesma direção de um postulado muito frequente, que é o da formação pela exposição da criança aos livros, aos leitores, ao ato em si, no seio dafamília, na escola etc.

Ela se apresenta com características de alguém que se preparou muito para desempenhar a função de escritora desde muito jovem, e desde muito cedo teve acesso a bens culturais diversos, como livros, viagens, bibliotecas, esculturas, e pessoas que lhe ajudaram em muitos momentos da sua vida. Enfim, sempremuito ligada às tradições:

Não sei direito com que idade eu estava, mas era bem pequena. Mal tinha altura bastante para poder apoiar o queixo em cima da escrivaninha de meu pai. Diante dele sentado escrevendo, eu vinha pelo outro lado, levantava os braços até a altura dos ombros, pousava as mãos uma por cima da outra no tampo da mesa, erguia de leve o pescoço e apoiava a cabeça sobre elas. [...]

Só que no meio do caminho tinha outra coisa. Bem diante dos meus olhos, na beirada da mesa. Uma pequena escultura de bronze, esverdeada e pesada, numa base de pedra preta e lustrosa. Dois cavalos. [...]

– O da frente se chama Dom Quixote. O outro, Sancho Pança. [...] Em seguida, eu quis saber onde eles moravam. [...]

– É na Espanha, muito longe daqui – disse meu pai. [...]

– Mas também moram aqui pertinho, quer ver? Dentro de um livro. Levantou-se, foi até a estante, pegou um livro grandalhão, sentou-se numa poltrona e me mostrou. Lá estavam várias figuras dos dois, em preto-e-branco. (MACHADO, 2002, p. 7-8).

Mesmo antes de aprender a ler, Machado já havia se interessado pelo universo letrado no qual estava inserida. Não era um ambiente qualquer: tratava-se do escritório de seu pai, que tinha a escrita como ferramenta de trabalho. Enquanto muitos leitores não tinham nem o pai por perto, ou um pai que tivesse a escrita como ofício, ou um pai com quem pudessem dialogar, Ana Maria Machado tinha tudo isso, além de ter o contato com objetos da cultura clássica burguesa, por exemplo, a escultura de bronze de Dom Quixote e Sancho Pança e a possibilidade de saber que a história dos dois estava registrada em um livro, e, mais ainda,saber quem eram e o que fizeram.

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20 Entrega e paixão que, desde cedo, movem a leitora para outros livros e outras leituras:

Posso evocar lembranças de infância, mergulhada em livros de Monteiro Lobato ou Mark Twain, deitada atravessada na poltrona ou escondida num canto atrás do sofá para não ser interrompida, e viajando para mundos maravilhosos. Aquela sensação única de beatitude escondida, que Clarice Lispector já qualificou tão bem, chamando-a de “Felicidade Clandestina”. [...] O ranger da rede que balançava enquanto a minha avó contava histórias. O perfume do livro novo, não sei se do papel, da tinta ou da cola que prendia a capa costurada. O peso de meu primeiro Robinson Crusoé aberto no colo, ilustrado por Carybé. O frescor dos ladrilhos da varanda em meu corpo nas tardes de verão em que eu me deitava de bruços no chão para ler A ilha do tesouro. O pão quentinho e crocante, com manteiga

começando a derreter, que marcava a hora da merenda, única interrupção possível a me retirar de uma balsa no Mississípi com Huckleberry Finn ou de uma cavalgada entre Paris e Londres ao lado de D´Artagnan – manteiga que depois deixava marcas nas páginas dos livros que tinham que ser cortadas antes de lidas, garantia de sua virgindade. E,evidentemente, minha mania de sublinhar, colorir ilustrações e escrever nas margens era motivo de repreensões sem fim (MACHADO, 1999, p. 70).

As leituras, portanto, refletiram em sua escrita desde pequena. Era aluna de grande destaque e, além de ler muito, gostava de escrever. Sua primeira história, publicada aos doze anos de idade, intitulava-se “Arrastão”:

[...] no colégio, minhas professoras de português no ginásio (dona Laís e dona Anéris) iam correndo conosco às páginas das antologias de leitura e nos apresentando a um acervo básico de poetas e prosadores entendidos como um patrimônio comum de clássicos que era essencial conhecer. Ao mesmo tempo, exigiam redações e análise que nos faziam compreender a língua por dentro, suas belezas e possibilidades. Um de meus textos foi tão elogiado e premiado que o mostrei em casa. Meu tio Nelson, que estava lá, o levou para tio Guilherme, folclorista e essa acabou sendo minha estreia literária. Devidamente assinado e aumentado, por encomenda da revista Folclore, saiu publicado meu “Arrastão”, sobre as redes de

pesca artesanal em Manguinhos. Para mim, orgulho supremo foi que nada na revista o caracterizava como tendo sido feito por uma menina de doze anos. (MACHADO, 1996, p. 27)

Machado nos conta que assim como Lobato marcou sua infância, Mark Twain marcara sua adolescência:

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Tom Sawyer incorporava um traço que sempre marcou minhas amizades pela vida afora: a indicação de livros bons. Como Tom adorava ler e vivia falando em um monte de livros, saí atrás dos que eu não conhecia. E fui descobrindo O Conde de Monte Cristo, O máscara de ferro, Os três mosqueteiros, enfim, a obra de Dumas pai

e Dumas filho, e mais Emílio Salgari, Rafael Sabatini e quantas outras aventuras de capa-e-espada se ocultassem nas coleções da Nacional e da Vecchi. E mais: piratas, corsários e capitães para todo gosto, Tarzans em todas as selvas... (MACHADO, 1996, p. 26).

Mais tarde, ao concluir o ginásio, apaixonou-se pela forma como Rubem Braga escrevia:

[...] toda semana [o jornal] trazia sua equipe de cronistas, entre os quais Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, que eram meus preferidos. Mas nenhum me fascinava como o Braga, pela maneira como escrevia, pela sua capacidade de captar a poesia do quotidiano, de usar um fiapo de assunto e ir tão longe... Eu recortava e guardava o que ele escrevia (também no Diário de Notícias), colecionava, lia e relia, sabia trechos de cor. O que fazia com as palavras era tão bonito que me dava um aperto no coração, vontade de chorar, de sorrir, de gritar para o céu, sei lá... (MACHADO, 1996, p. 32).

Com isso, fica claro o compromisso que Machado sempre manteve com a leitura. Muito autônoma, era tomada pelo prazer de ler e sentia na alma os efeitos de cada livro que explorava. Sua infância leitora evidenciava o que futuramente iria exercer: por meio de interferências, escrevia nas margens e deixava marcas onde seu senso crítico falava mais alto. Enquanto para muitos leitores isso possa vir a ser monótono, para ela representava possibilidades de intervenção. Ou seja, para ela, a leitura deveria ser acompanhada de um processo de aprendizagem: é necessário ler não apenas por prazer e para o deleite, mas para sentir, para vivenciar, para experimentar, para aprender a opinar. Ana Maria Machado faz da leitura um processo bastante vivo e intenso, definindo leitura como interação que pressupõe resposta ao texto, implica a disposição de reagir a ele3. Com isso, estamos diante de uma leitora ativa, que interfere, rabisca, opina, que tem como resultado em um processo de criação, reflexão e até mesmo contestação daquilo que aparentemente era imutável4.

3 Para George Steiner (2001, p. 5), a leitura “contém dois elementos cruciais: a reação em si e a

responsabilidade que isso representa. Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido; é embarcar em uma troca total”.

4 Alberto Manguel (2005, p. 11) propõe que “A leitura é uma conversa. Os lunáticos respondem a

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22 Considerando esses ecos da trajetória leitora de Ana Maria Machado, ressaltamos a importância da leitura na formação de bons escritores, sujeitos que antes de desenvolverem a escrita, desenvolvem bem a leitura. Contudo, nota-se que o que Machado quer destacar é que o acesso a diferentes livros, quaisquer que sejam, faz parte da bagagem cultural do escritor. A escritora mostra-nos que a leitura dos clássicos, ainda que na infância ou na adolescência desses escritores, foi importante para definir o que eles viriam a ser assim que ficassem adultos. Além disso, Machado fala do que cada leitura significou para ela: sensação de deslumbramento e fascínio, intensa felicidade, abertura das portas do mundo real e encantamento. Todos esses aspectos aparecem na trajetória dessa leitora e marca a bagagem, a formação cultural, artística e afetiva que a construiu enquanto leitora e, mais tarde, como escritora5.

Ana Maria Machado recorre à sua própria história para compor um exemplo na formação dos bons leitores. Desta forma, sua trajetória pessoal de leitora pode propor entendimentos para a escritora que é hoje, construindo uma espécie de modelo de racionalidade para explicar e controlar sua própria formação de escritora por meio da formação leitora. Ela surpreende por sua história conter tantos elementos positivos que, talvez, sejam os principais responsáveis pela escritora de sucesso que é hoje: acesso aos bens culturais, contato com pessoas que se interessavam pela leitura, desenvolvimento da escrita, leitura de gêneros e escritores diversos.

leitor não é registrada, mas em muitos momentos ele sentirá a necessidade de pegar um lápis e escrever as respostas nas margens de um texto. Esse comentário, essa glosa, essa sombra que às vezes acompanha nossos livros favoritos estende e transporta o texto para o interior de um outro e de uma outra experiência; empresta realidade à ilusão de que um livro fala a nós (seus leitores) e nos faz viver.

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1.2 Era uma vez uma escritora e tradutora...

Meu nome é Ana Maria Machado e eu vivo inventando histórias. E dessas que eu escrevo, algumas viram livros. Adoro o meu trabalho. Ainda bem, porque acho que não ia conseguir viver se não escrevesse. Já fui professora, já fui jornalista, já fiz programa de rádio, já tive uma livraria e nesse tempo todo nunca parei de escrever. (MACHADO, 2001, p. 1).

Antes de optar pelas letras, Ana Maria Machado começou a estudar pintura, primeiro na Escolinha de Arte do Brasil, de Augusto Rodrigues, depois no Atelier Livre do Museu de Arte Moderna, onde foi aluna de Aloísio Carvão. Nessa época, livros e pincéis eram inseparáveis para a autora. Participou da fundação de um jornal chamado O Metropolitano, juntamente com Roberto Pontual, Cacá Diegues e Arnaldo Jabor.

A fim de melhor compreender a sociedade brasileira, por meio da geografia econômica, Machado se matriculou no curso de Geografia, tentativa em vão, pois, com menos de um ano, trancou o curso. Em seguida, deu início ao curso de Letras, fato que impulsionou a sua dedicação às letras: “havia

tempo iam se embolando e se amontoando lá dentro de mim, parece que

pediam para tentar sair de alguma forma” (MACHADO, 1996, p.40), deixando

de lado a pintura. Durante o curso, começou a trabalhar como repórter no Correio da Manhã. Em 1964, curiosamente ano que marca o início da Ditadura Militar no Brasil, a escritora se forma, dois anos depois conclui seu mestrado no Rio de Janeiro e começa a lecionar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Em 1968, já casada e mãe de Rodrigo, começou a escrever para a Revista Recreio, da Editora Abril, juntamente com sua então cunhada Ruth Rocha, Marina Colasanti e Joel Rufino:

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24 No ano seguinte, vivenciou experiências férteis e enriquecedoras, sob a influência dos atos da ditadura. No segundo semestre desse mesmo ano, foi perseguida e presa pela segunda vez (a primeira se deu quando tinha 4 anos, juntamente com seu pai), fato que impulsionou Machado a se mudar com o marido e o filho para Paris. Mesmo distante, continuou escrevendo para a revista Recreio, trabalhou como jornalista na revista Elle, além de se tornar professora assistente na Sorbonne. Machado exerceu várias atividades paralelamente com sua carreira de escritora e jornalista. Dentre eles, responsável pelo acervo do setor sobre a América Latina em biblioteca francesa, dubladora de documentários, participante em exposições de pintura. Foi orientanda de Doutorado de Roland Barthes, estudando a obra de João Guimarães Rosa, texto publicado como ensaio, intitulado O Recado do Nome

(2003).

Em 1971, nasce Pedro, seu segundo filho e, apesar de tantos compromissos, Machado continuou a escrever histórias infantis com assiduidade, que contava para seus filhos:

Para poder alfabetizar Rodrigo em português, desenvolvi também uma série, trabalhosíssima, de histórias bem brasileiras e divertidas, com palavras fáceis de ler. [...] Estava definitivamente viciada em escrever, nunca mais parei. (MACHADO, 1996, p. 61)

Embora o regime militar ainda imperasse no Brasil, em 1972, retorna e concentra seu trabalho na imprensa. Não abandona, no entanto, suas histórias infantis e, em 1977, lança seu primeiro livro Bento-que-bento-é-o-frade. Mas foi com História meio ao contrário (1978) que ganhou seus primeiros prêmios: João de Barro e Jabuti.

Diante do êxito de suas publicações, a escritora passa a ficar conhecida e a receber diversos convites de editores para que publicasse outros textos que se encontravam engavetados. No ano seguinte, Ana Maria Machado abre a livraria Malasartes, espaço voltado especificamente para o público infantil no qual atuou por dezessete anos como livreira. Apesar do atribulado ritmo de trabalho, publicou Alice e Ulisses:

Em 1983, tomei coragem e publiquei meu primeiro romance para adultos, Alice e Ulisses, muito bem recebido pela crítica. Ao mesmo

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primeiro nos países escandinavos e, em seguida, na Alemanha, na França e na Espanha. Paralelamente, fui passando a fazer palestras para professores pelo interior do Brasil e desenvolvi cursos e seminários sobre promoção de leitura no exterior. (MACHADO, 2001, p. 5).

No início da década de 80, a escritora deixa o jornalismo e passa a se dedicar exclusivamente à produção de livros destinados aos públicos adulto e infantil. Fato que levou Machado a diversos prêmios, tais como: Selo de Ouro, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1980, com Raul da ferrugem azul; Prêmio Casa de lãs Américas (prêmio de reconhecimento no exterior), em Cuba, em 1981, com o livro infantil De olho nas penas; de Melhor Livro Nacional do ano, com Bisa Bia, Bisa Bel, em 1982; Livro Altamente Recomendável, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, com Alguns medos e seus segredos, em 1984; Prêmio APPLE, pelo Instituto Jean Piaget, na Suíça, em 1988, com Palavras, palavrinhas e palavrões; e Lista de Honra, pela IBBY, em 1982, com Bisa Bia, Bisa Bel.

Seus livros começaram a ser traduzidos no exterior, primeiro em países escandinavos e, em seguida, nos europeus, França, Alemanha e Espanha, o que resultou em diversos convites para ministrar palestras para professores e desenvolver cursos e seminários sobre a importância da leitura. Atestando, assim, a forte semelhança entre seu projeto literário e o de Lobato, com Ana Maria Machado, de um lado, temos a renovação da literatura infantil brasileira e, de outro, o esforço pela ruptura, de uma tradição alienante na literatura infantil.

No final de 1989, a escritora recebeu um convite para trabalhar na BBC de Londres, onde permaneceu por oito meses, concluindo seu romance

Canteiros de Saturno. Mas foi em 2000 que veio a consagração: recebeu o prêmio Hans Christian Andersen como melhor escritora infantil do mundo. Em 2001, ganhou um importante prêmio concedido pela Academia Brasileira de Letras - o Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Recebeu a medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e a Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República.

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26 com obra significativa para o público infantil, havia recebido. Ana Maria Machado orgulha-se do feito, afirmando que mesmo Monteiro Lobato não conseguiu o posto quando se candidatou. Em 2012, foi eleita a presidente da ABL, onde atuou durante dois anos.

A autora traçou seu projeto político- ideológico a partir das temáticas que aborda. Dentre eles estão: o questionamento ao poder, às relações sociais, à brincadeira e o jogo, à solidariedade e a amizade, à liberdade e escravidão, à repressão e o exílio, à busca pelo crescimento pessoal e à construção do eu, à magia e o imaginário, ao cotidiano e as relações familiares, ao mistério, ao amor, à condição feminina e à diversidade cultural. Outra marca muito forte nas obras de Ana Maria Machado é a sensibilidade que, segundo ela, legitima a fala dos silenciados, através da cultura oficial, dos excluídos e dos marginalizados.

Além disso, compõem seu projeto: a frequência insistente do tema leitura e escrita, o emprego de múltiplos recursos linguísticos, a versatilidade da linguagem literária e a humanização do leitor, pautados no profundo respeito que demonstra ter pela criança e pelo jovem. Machado retoma, assim como seu mestre Monteiro Lobato, personagens conhecidos do leitor, partindo de suas próprias referências culturais, renovando-os e enriquecendo-os ao dar nova vida a eles, uma vez que os reinventa.

Quanto às traduções e adaptações, Ana Maria Machado realizou dezenas em inglês, espanhol e francês, dentre elas estão: O Impressionismo: um olhar mágico, A floresta, Céus e estrelas, A Amazônia, Renoir: um eterno verão, Van Gogh: um toque de amarelo, O rei Artur e os cavaleiros da távola redonda, A Grécia, O Egito, Índios da América do Norte, A Europa, Maia, Peter Pan, A Princesinha, O Jardim Secreto, Dom Quixote,

Alice no país das maravilhas, Robinson Crusoé, A Bela Adormecida e outros contos de Grimm, Branca de neve e outros contos de Grimm,

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27 Em entrevista a Mario Feijó Monteiro (2001), Ana Maria Machado fala do processo de adaptação, pontuando os procedimentos, a fidelidade à obra literária e o caráter autoral da recriação em seus textos:

O máximo que se pode fazer é selecionar elementos da obra original, desprezando outros (com extremo cuidado para não trair o conjunto), e procurar uma linguagem que, para outros leitores, tenham um efeito semelhante ao que em sua origem a obra recriada poderia ter sobre os leitores para quem se dirigia. Para mim, essa concepção de autor determina que o original de uma obra adaptada terá que funcionar como mapa e bússola da adaptação. No caso de uma adaptação não-literária (para teatro, cinema, dança, enfim, outros meios), a liberdade é bem maior, pela necessidade de tradução para outra linguagem. Mas na obra literária, creio que a adaptação tem a obrigação ética de ser fiel. [...] Não há limites. A recriação de uma obra literária a partir de outra existente pode se servir apenas de uns poucos elementos da original e fazer algo totalmente novo, diferente e até conflitante com ela. Nesse caso, a obra original é apenas um pretexto para a manifestação de outra autoria. Podíamos falar em Joyce e Homero para exemplificar o que estou dizendo. Ou Dom Casmurro e Otelo. (MACHADO, 2001, p.139).

A adaptadora expõe também as razões para a adaptação de um clássico da literatura:

No caso das adaptações destinadas a um público juvenil, para que

elas agucem a curiosidade e funcionem como um “trailer”, mostrando que existe aquela obra, tem aquele clima e trata daquilo — um dia a obra pode ser buscada em sua íntegra. Ou, pelo menos, para dar uma visão geral do patrimônio cultural que todos herdamos e não vamos conseguir ler em sua totalidade. Para que possamos depois ler outros livros, posteriores aos clássicos, e entender suas alusões e referências, por exemplo. (MACHADO, 2001, p.139)

E por fim, expressa o porquê do trabalho de adaptação ser estimulante e desafiador:

Pela intimidade com o original que propicia ao adaptador, faz a gente perceber o texto de dentro, é uma oportunidade de leitura privilegiada muito estimulante. E cheia de desafios, em cada opção do que se vai incluir ou excluir na adaptação [...]. (MACHADO, 2001, p. 140).

Assim como prega Lobato, para Machado os quesitos obrigatórios para uma boa adaptação são a linguagem adequada à faixa etária, o possível encantamento do jovem leitor e à fidelidade ao enredo6.

6 Em Dom Quixote das crianças (1956, p. 12), Monteiro Lobato afirma que “se o autor complica, cabe ao

adaptador descomplicar, deixando a obra estilo de clara de ovo, bem transparentinho, que não dê

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28 Com relação à tradução, a autora observa que se perdem muitos fatos importantes, mas quando é realizada com cuidado, pode ter um ganho potencial por se tratar de uma recriação. Ela também cita os valores regionais que marcaram fortemente a tradução das obras de Cervantes, Gabriel Garcia Marques, Shakespeare, Camus e que, nem por isso, deixaram de ser universais. Com isso, é possível perceber que o trabalho de tradução e adaptação para Ana Maria Machado não são tão diferentes.

Ana Maria Machado escreveu muitos livros desde a publicação do primeiro, sua tese de doutorado intitulada Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz de seus personagens. Após a publicação de seu primeiro livro infantil, Bento-que-bento-é-o-frade, em 1978, a escritora nunca parou de escrever, chegando a cerca de duzentos livros publicados. Ganhou, ainda, vários prêmios e foi nomeada para vários postos. Enfim, é uma escritora de sucesso pelo que escreve, que tem consciência do que é escrever e reconhece seu papel como alguém que sabe usar a escrita:

[...] a palavra escrita é muito generosa, porque não há limites para seu alcance. Todo mundo no planeta, de alguma maneira, participa da criação, por meio dos mais diferentes caminhos. Mas creio que aqueles que têm condições de criar por meio da escrita têm que ser muito humildes diante das obrigações para com ela, e não devem confundir seu alcance com coisas passageiras como fama ou sucesso. Pode ser muito gostoso para a vaidade individual ficar dando entrevistas ou indo a colégios, encontrando alunos e professores que celebram a presença física do autor, e carinhosamente lhe fazem festa. Mas nesse momento, o escritor está deixando de lado sua forma específica de criação recolhida e solitária

– a escrita – e tentando se apropriar de outra, que não é sua –

aparição pública ou o magistério. (MACHADO, 1996, p. 66).

Trata-se de uma escritora para o público de todas as idades, reconhecida nacional e internacionalmente, amplamente premiada e que evidencia sua trajetória de escritora a partir de seu passado, da sua história de formação, demarcando traços e informações muito bem selecionados, encontrados em seu material autobiográfico7.

7 Bakhtin (1997) afirma, acerca da pertinência de informações de uma autobiografia, que não se trata de

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29 Ademais, seu discurso é muito bem articulado, pois os aspectos apresentados em sua trajetória de formação com a escrita e, principalmente, com a leitura, em diversas fases, culmina no que Bakhtin denomina como

“primado da alteridade”8. Quando Machado constitui sua trajetória de escritora, traz em sua própria projeção a imagem de alguém que, além de se tornar uma leitora muito jovem, tornou-se escritora também precocemente:

[...] Lia o que meu avô me dava, o que meu pai me indicava, o que minha mãe estava lendo, o que meus amigos emprestavam. E escrevia. Redações na escola toda semana. Um artigo sobre pesca artesanal em Manguinhos para uma revista de folclore, que meu tio levou para publicar sem ninguém identificar que fora escrito por uma menina. Cartas para meu avô, meus primos, meus amigos. E cartinhas de amor adolescente. Numas férias arrumei um namorado em Vitória, o mais lindo e cobiçado da turma. Durante todo um ano, foi uma troca de cartas esperadíssimas – e minha palavra tinha que ser suficientemente sedutora para fazer com que aquele gato não me esquecesse e suspirasse pela minha volta. Alguém quer melhor motivação para a escrita? No ano seguinte, outros gatos, em outros cenários, faziam parte do grêmio do colégio – em pouco tempo eu era redatora do jornalzinho escolar, fazendo várias seções diferentes em estilos diversos. Ainda não inventaram melhor oficina da palavra. (MACHADO, 2001, p. 188-189).

Além das leituras dos livros, Machado aponta que seu ofício de escritora se deu também através da escuta de histórias orais como provérbios, cantigas, rezas, que sua avó Ritinha contava para os netos:

[...] o caminho da leitura à escrita também foi natural, duas faces de uma mesma moeda. Bem do jeito da sabedoria popular que ensinava:

"Escreveu, não leu, o pau comeu”. Porque essa sabedoria popular é

que estava na base de tudo. Os livros eram só uma fórmula de multiplicar esse saber acumulado havia gerações, de trazer a palavra de gente de longe (como Dona Benta, que não estava ao meu lado como à vovó Ritinha) ou de muito antes (como o Andersen que escreveu O patinho feio no tempo em que ainda não havia Zé

Macaco e Faustina). De qualquer modo, minha noção de sabedoria tinha a ver era com a minha avó. Ela é que tinha provérbio, cantiga e reza para tudo quanto era situação, dava jeito em tudo, fazia chá de folha de goiabeira, cataplasma para o peito, sabia qual galinha do galinheiro ia botar ovo naquele dia, cerzia roupa rasgada, fazia doce, consertava brinquedo, guardava barbante no bolso e alfinete de fralda na caixinha... E sabia as melhores e mais incríveis histórias, melhor do que qualquer livro. Nas férias, quando íamos passar o verão com ela em Manguinhos, no Espírito Santo, era um repertório interminável. (MACHADO, 2001, p. 186).

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30 Nota-se que Ana Maria Machado busca na própria origem, uma prática já existente de contar histórias, estabelecendo um vínculo com seus antepassados e cultuando a memória daqueles que são origem e motivo de sua própria existência. Fato que, de maneira simbólica, torna-se elo de identidade entre o passado e o presente, entre histórias e a história, entre diferentes culturas passadas de avós para netos. Com base em tal procedimento, pode-se fazer referência ao que Bosi (1992) afirma em Dialética da colonização:

A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca a fala que invoca. No mundo arcaico tudo isto é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outro retornado agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade. A esfera do culto, com a sua constante reatualização das origens e dos ancestrais, afirma-se como um outro universal das sociedades humanas.(BOSI,1992, p. 15).

Estamos diante de uma escritora que sempre esteve amparada por pessoas que gostavam de contar histórias, no caso, sua avó Ritinha, cujo conhecimento de mundo não estava em nenhum livro. Embora tivesse aprendido a ler muito tarde, ela conta que sua avó era dona de um repertório de dar inveja a muita gente e reconhece que ouvir suas histórias fora imprescindível para querer reproduzi-las aos seus irmãos e primos, e, depois, descobrir que poderia registrá-las através de sua escrita:

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31 Ao reconhecer que ouvir as histórias de sua avó impulsionou-a a tomá-las para si e reproduzi-tomá-las a seu modo, aponta a crença num discurso em que a

palavra não é uma unidade “neutra”, mas uma forma abstrata da língua à

espera de um falante que atualize seu sentido e o faça renascer para uso contínuo da linguagem.9

Contudo, Machado torna-se diferente e singular quando traça sua história mostrando-nos que leitura e escrita fizeram parte de sua formação de

maneira “natural”, espontânea, prazerosa e alegre, sem desvincular a escrita

da leitura. É importante ressaltar que, ainda que Machado reconheça a importância e a necessidade da prática intensiva da escrita, ela se esquece de mencionar que a escrita é também um processo trabalhoso, que exige dedicação e muito cuidado.

Durante a adolescência, Machado continua investindo na relação complementar entre leitura e escrita, demonstrando desenvolvimento nessas duas habilidades, conferindo grande atenção a outros autores, que admirava:

A minha adolescência foi repleta de livros, que me proporcionaram grandes prazeres e descobertas. Ficava abismada com o jeito de escrever de grandes autores e cronistas, como Rubem Braga. Na escola, em casa e com meus amigos, estava sempre rodeada de gente que também gostava de curtir a vida tendo bons livros ao seu lado. (MACHADO, 2001, p. 2).

Ana Maria Machado sabe muito bem o que quer defender e, assim como fez com a imagem do escritor como leitor, ocupa posições que estão em concordância com o que pretende apresentar: a do escritor formado a partir de situações, experiências, contatos marcados pela tradição e pelo que efetivamente viveu.

9 Segundo Bakhtin (1997, p. 350), a palavra é sempre interindividual, e reúne em si as vozes de todos aqueles que a utilizam ou têm utilizado historicamente, “a palavra (e em geral, o signo) é interindividual. Tudo o que é dito, expresso, situa-se fora da “alma”, fora do locutor, não lhe pertence com exclusividade. Não se pode deixar a palavra para o locutor apenas. O autor (locutor) tem seus direitos imprescritíveis sobre a palavra, mas também o ouvinte tem seus direitos, e todos aqueles cujas vozes

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1.3 ... E assim nasceu a escritora-crítica

Dentre os mais de duzentos títulos de autoria de Ana Maria Machado para as mais diversas faixas etárias, há um tipo de produção que recebe pouca atenção de pesquisadores: os ensaios. Esse gênero, em sua obra, evidencia-se a partir de sua biografia, ou evidencia-seja, de sua infância leitora que gerou uma escritora de sucesso e, posteriormente, uma crítica literária que não se desvincula desses traços autobiográficos10.

Embora os ensaios sejam comuns entre os escritores, e ainda que haja números significativos de pesquisas, dissertações ou mesmo artigos que analisam a relevância da produção de Ana Maria Machado para a literatura infantil brasileira, notamos que esses estudos estão focados exclusivamente em suas obras ficcionais, privilegiando principalmente os aspectos linguísticos . Em decorrência disso, optamos por contemplar algumas obras críticas de Machado, dentre as quais está Contracorrente : conversas sobre leitura e política, coletânea de artigos e conferências (1999). Nela, a escritora aborda temas relacionados à leitura, literatura e política, tópicos que prevalecem no livro, uma vez que suas reflexões propõem que a leitura e a literatura encontram-se carregados de ideologia. Para ela, toda obra de arte, incluindo a literatura, tende a ser subversiva e a afirmar a rebeldia individual frente às autoridades. Com relação à política, discute acerca do lugar do escritor na transição democrática, sua importância na sociedade e os problemas que enfrentou com a censura na década de 60, e sobre todos os escritores que lutaram contra a censura e a repressão do Regime Militar. Há também relatos sobre como era encarada a literatura infantil, além do destaque à relevância de Monteiro Lobato para a literatura infantil nessa época. Ademais, aborda também o processo de redemocratização da década de 80, o retorno dos exilados, a anistia e os livros de memória e de depoimentos, além das

10 De acordo com Bakhtin (1997), a autobiografia baseia-se no relato oral ou escrito que alguém faz da

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33 chamadas patrulhas ideológicas e assuntos afins. No livro, a autora propõe que, para a defesa e a sobrevivência de suas ideias e do ser, e diante do sistema político e da estrutura econômica e social criados pela globalização, é necessário estar na contracorrente, ou seja, contra o sistema e as normas vigentes:

Sou mesmo contra a corrente. Contra toda e qualquer corrente, aliás. Contra os elos de ferro que formam cadeias e servem para impedir o movimento livre. E contra a correnteza que na água tenta nos levar para onde não queremos ir. No fundo, tenho lutado contra correntes a vida toda. E remado contra a corrente, na maioria das vezes. Quando as maiorias começam a virar uma avassaladora uniformidade de pensamento, tenho um especial prazer em imaginar como aquilo poderia ser diferente. Sou mesmo contra a corrente (MACHADO, 1999, p. 7).

Em Texturas - sobre leituras e escritos (2001), Machado reúne artigos e transcrições de palestras sobre questões ligadas aos livros, à leitura, à literatura, à formação do leitor e sobre como esses assuntos devem ser tratados pela sociedade e pela comunidade escolar. Para Machado, é essencial acirrar o debate sobre temas como leitura, literatura na escola, leitura dos clássicos da literatura infanto-juvenil, formação de leitores críticos, num momento em que, cada vez mais, o Brasil entende que é a hora de repensar os velhos modelos de ensino, que não dão conta das necessidades de crescimento e de invenção, nem conseguem transmitir valores humanitários e éticos. Além de tratar a respeito de assuntos polêmicos, a escritora narra vários episódios sobre sua trajetória leitora e o seu processo de escrita, ou seja, como se tornou escritora, a influência que recebeu em casa para aprender a ler e a escrever e como é a vida literária e profissional de uma escritora que escreve não apenas para crianças, mas também para adultos. Além disso, defende a ideia de que a leitura literária constitui um fator de liberdade e transformação, pois faz com que pensemos na vida, nos modos de ser e estar no mundo, levando-nos à reflexão como resistência contra estereótipos e à luta por uma educação melhor:

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analisar, criticar. Um ato de resistência cultural. Perguntar “para onde queremos ir?” e “como?” pressupõe uma recusa do estereótipo e uma

aposta na invenção. Pelo menos, uma certa curiosidade diante de uma opinião que não é exatamente igual à nossa – e o benefício da dúvida, sem a convicção do monopólio da verdade. Só a cultura criadora, com sua exuberância, pode alimentar permanentemente essa variedade pujante e nova. E só a educação pode dar elementos para distinguir com clareza os protótipos dos estereótipos. (MACHADO, 2001 p. 88).

Em Recado do nome (2003), a autora faz uso das obras Grande Sertão Veredas e Corpo de Baile, ambos de Guimarães Rosa, tendo como objetivo analisar o papel de cada nome na construção dos personagens e o universo em que estão inseridos – social, religioso, histórico e físico. Além disso, avalia a importância na escolha desses nomes na elaboração da estrutura narrativa:

O Nome, em Guimarães Rosa, não atribui ao personagem uma característica marcante que o acompanha em todas as situações vividas, mas, ao contrário, vai recebendo em cada novo momento um novo significado e, frequentemente, um novo significante, num processo de permanente mutação do signo. (MACHADO, 2003, p. 50)

Nessa obra, Machado examina a relação entre o nome próprio e a estruturação da narrativa. Consciente da pluralidade de sentidos que a palavra adquire, a escritora demonstra que o nome é carregado de significados e encontra-se na origem do processo criativo literário.

Ao escrever Ilhas no tempo: algumas leituras (2004), a autora faz um convite ao leitor a explorar o prazer da leitura. O livro consiste em reflexões de uma escritora brasileira que faz brotar sensações, desde o convívio, desejo de compartilhar ideias e, principalmente, o prazer raro de ler um bom texto. Nessa obra, a autora fala também da escrita de livros, da leitura e da literatura. Aborda política, cultura, liberdade, através de análises sobre o tempo e a sociedade contemporânea, sugerindo uma leitura de nós mesmos e da vida que vivemos.

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35 sobre criação literária e a palavra escrita em geral, outros versam sobre questões culturais contemporâneas.

No livro Romântico, sedutor e anarquista Como e por que ler Jorge Amado hoje (2006), provoca uma reflexão mais aprofundada sobre o romancista e defende como incontestável a qualidade das obras do escritor baiano, autor de uma literatura que ousou falar brasileiro. Embora todas essas obras críticas sejam grande contribuição para esta pesquisa, iremos nos voltar com mais atenção às obras Como e por que ler os clássicos universais desde cedo (2002) e Silenciosa Algazarra (2011), por evidenciarem de forma mais clara o valor da leitura literária.

No primeiro, Como e por que ler os clássicos universais desde cedo

(2002), a escritora tematiza assuntos polêmicos para o campo da leitura – sua importância desde a tenra idade, e a relevância da leitura de clássicos. A autora nos insere em uma viagem de fantasias e aventuras, contada de maneira muito informal. A obra é dividida em capítulos pontuais, que objetivam reafirmar que um clássico permanece sempre atual, perene, longe da efemeridade de escritores superficiais, que, muitas vezes, são apenas produto da mídia. O livro aborda clássicos gregos e sua influência em outras obras, tal como fez Monteiro Lobato em O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules. Fala sobre a Sagrada Escritura e as lendas do Rei Arthur em

Cavaleiros da Távola Redonda, e sobre o magnífico Cervantes em Dom Quixote de La Mancha. A obra revisita também os contos de fadas. Também faz honrarias a diversos autores, entre os brasileiros, a Monteiro Lobato, de Reinações de Narizinho e do fantástico universo do Sítio do Pica Pau Amarelo, mencionado em todos seus ensaios. Cita ainda Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Roland Barthes, Jorge Luis Borges e José Lins do Rego, ressaltando a importância que os clássicos tiveram na vida desses autores enquanto leitores infantis, pois a bagagem cultural e afetiva adquirida enquanto criança, muito influenciou na vida adulta desses grandes escritores. Nessa obra a autora destaca o valor da leitura literária, fazendo referência aos clássicos universais.

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36 infalível de gerar horror ao livro. Com relação aos cânones, propõe que um primeiro contato com um clássico deve ser feito através de adaptações bem feitas, e defende a ideia de que clássico é eterno e não sai de moda.

Não estou propondo nem sugerindo que crianças e jovens se ponham a ler filosofia, tragédias teatrais em sua forma original [...] O que interessa mesmo a esses jovens leitores que se aproximam da grande tradição literária é ficar conhecendo as histórias empolgantes de que somos feitos. [...] Também não é necessário que essa primeira leitura seja um mergulho nos textos originais.Talvez seja até desejável que não o seja, dependendo da idade e da maturidade do leitor.Mas creio que o que se deve procurar propiciar é um primeiro encontro. (MACHADO, 2002, p.12)

É importante ressaltar que, nessa obra, Machado faz uso de situações vividas por ela em seu percurso de leitora. Nota-se um tom de oralidade, fazendo uso de um percurso muito sutil e delicado ao mencionar as sagradas escrituras, as proezas dos cavaleiros da idade média, os contos de fadas, as estórias marítimas, os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo dentre outras.

O segundo, Silenciosa Algazarra (2011), é o mais recente ensaio da autora, e reúne palestras, ensaios, artigos e conferências que escreveu ao longo do tempo. Aqui, ela contempla vários temas distintos, dentre os quais estão a censura, a importância da leitura para crianças em hospitais, a intertextualidade e mesmo a crítica. Trata-se de uma obra que permite ao leitor um contato maior com as reflexões e práticas que a autora constrói em torno da concepção de leitura literária, literatura, literatura infantil e juvenil.

O título é sugestivo, estabelecendo um paradoxo. Na introdução

Machado faz referência à sua infância, na qual “algazarra” traz a imagem de

alegria espontânea do grupo de crianças de sua família, e “silenciosa” por

leituras que não são feitas, que se calam perante o universo de possibilidades. E afirma:

estantes de livros com um número imenso de vozes querendo falar, à espera de serem ouvidas, todas com algo a dizer, mas sendo ignoradas, [...] um alarido calado à força e uma alegria amordaçada pela ignorância. (MACHADO, 2011, p. 8)

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37 deve ser repensado para que os jovens entendam que há prazer na leitura de livros, mesmo que eles não se tornem leitores assíduos quando forem adultos.

No primeiro capítulo “A importância da leitura”, apresentado no Encontro Nacional “Crer para ver” em São Paulo, a escritora remete o leitor ao prazer

oferecido pela leitura e também tece suas experiências como escritora, levando questões dos bastidores da produção de literatura para crianças e jovens, no que diz respeito à produção, edição e venda. Em vários outros, ela revisita sua

experiência como autora que participou da “revolução” da literatura infantil brasileira. Reflete sobre o que impulsionou autores, que não estavam envolvidos com o ensino de literatura infantil, como Lygia Bojunga, Ruth Rocha, Joel Rufino dos Santos, a voltarem sua escrita para crianças a partir da ditadura militar. No capítulo “Quando os livros conversam: presença de

intertextualidades na literatura infanto-juvenil contemporânea”, os

procedimentos intertextuais são desvendados em várias obras, inclusive da própria autora, e é a partir daí que se aprofunda em outras questões culturais.

Também no capítulo “Contador que conta um conto faz contato em algum ponto”, faz menção à escrita de Monteiro Lobato e Grimm, refletindo sobre a

particularidade e universalidade que trouxeram para sua vida de leitora e escritora, evidenciando alguns valores críticos.

Após apresentarmos as obras ensaísticas de Ana Maria Machado, é importante ressaltar que a ausência de um estudo mais aprofundado por parte da crítica reforçou ainda mais a relevância do nosso trabalho e nos instigou a desenvolvê-lo. Essas últimas obras citadas foram eleitas como principais, pelo fato de evidenciarem o valor literário da leitura, além dos outros valores que serão identificados no capítulo seguinte.

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38 outro e com a ajuda do outro (TODOROV, 1981 apud BRANDÃO, 1993, p. 8). Como é possível notar em todos seus ensaios e também a partir de sua fala em Esta força estranha: trajetória de uma autora (1996):

Referências

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