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Universalidade: a manutenção do clássico na literatura

3. DO POLÍTICO AO UNIVERSAL: A AUTORIDADE DO CLÁSSICO

3.2 Universalidade: a manutenção do clássico na literatura

Concebem, assim, uma literatura de valor universal, que tem por base convicções humanísticas de igualdade e fraternidade. Não há dúvida de que o progresso e a rapidez dos meios de transporte e de comunicação contribuíram fortemente para o cosmopolitismo e o internacionalismo. A ampliação demográfica do público virtual obrigou os modernos a pensarem a “universalidade” em termos muito mais vastos e diferenciados do que no século XVIII. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p.168-169)

Como já mencionado, Leyla Perrone-Móises em Altas Literaturas (1998), elege alguns críticos escritores que, por sua vez, enumeram alguns valores ditos modernos. Dentre eles está a universalidade, um valor identificado na obra de Ana Maria Machado. Em Como e por que ler os

clássicos universais desde cedo (2002), a autora faz um mergulho nos

clássicos da literatura, utilizando linguagem simples e tom de oralidade, para apresentar o leitor às obras, seja apontando a importância do cânone, seja enfatizando sua universalidade.

Logo no capítulo inicial, registra vários pontos importantes acerca da leitura, afirmando que: “Ninguém deve ser obrigado a ler; ler é um direito, não um dever. É alimento do espírito. Igualzinho à comida.” (MACHADO, 2002, p.15)24.

muitos escritos literários, um caráter tirânico porque detentor de algo que o faz superior aos outros mortais - é o guardião de um poder que a ele foi conferido por Deus.

24 Em “O direito à literatura”, Antonio Cândido (1995) reafirma o direito que todos temos à boa literatura, colocando-a junto aos direitos humanos como elemento de organização individual e social. Afirma também que direito humano é aceitar que aquilo que é indispensável para mim, também o é para meu próximo, ou seja, a literatura é tão importante quanto os direitos básicos, tais como moradia,

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Nesse primeiro capítulo, Machado ainda faz mais algumas observações e uma delas consiste na crítica que direciona à escola e aos pais que obrigam crianças e jovens a lerem somente para fazer prova. Cita Monteiro Lobato, para quem obrigar alguém a ler um livro, mesmo que seja pelas melhores razões do mundo, só serve para vacinar o indivíduo para sempre contra a leitura; e Oscar Wilde, para quem os acadêmicos e aqueles que se acham donos da literatura muitas vezes empregam os clássicos ao modo do guarda com seu cassetete, para dar com eles à cabeça dos outros, principalmente dos inovadores que querem sair da linha e se afastar do que presumem ser a legalidade literária. Para a autora, a leitura dos clássicos para crianças e jovens não consiste no contato forçado com Machado de Assis, Raul Pompéia ou José de Alencar para efeito de fazer prova ou de cobrança valendo nota. Ela defende a ideia de que se o leitor travar conhecimento com um bom número de narrativas clássicas desde pequeno, mesmo se esse contato for feito por meio de boas adaptações, esses eventuais encontros com nossos mestres da literatura virão a acontecer naturalmente no final da adolescência. E frisa, ainda, que as adaptações dirigidas ao público infanto-juvenil servem para estimular a curiosidade e funcionam como um “trailer”, mostrando em que consiste a obra, para que, posteriormente, esse jovem possa buscar tal narrativa em sua íntegra.

Nesse mesmo ensaio, é possível identificar a universalidade presente em diversas narrativas mencionadas por Machado. No entanto, daremos prioridade ao que ela afirma acerca dos contos de fada. No capítulo “Encantos para sempre”, discorre acerca do lugar que essas narrativas ocupam na academia e entre os críticos literários, por serem compreendidas como obras de pouco prestígio e, talvez por isso ou em consequência disso, serem direcionadas às crianças. Na visão da escritora, isso não passa de preconceito por se tratar de contos que partiram de criações populares, o que significa que foram feitos por artistas do povo, anônimos, e não por escritores de reconhecimento e fama. Além disso, para ela, “o alto nível da qualidade

alimentação, água, emprego. Defende a ideia de que a literatura de qualidade e uma boa música também são fundamentais para todo ser humano. Porém, esses quesitos não são colocados em questão, pois não refletimos que nossos direitos são literalmente iguais ao de nossos semelhantes.

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artística e força cultural são atestados pela sua universalidade e sua permanência” (MACHADO, 2002, p. 69).

Para muitos estudiosos, a origem desses contos está associada a alguns ritos das sociedades primitivas, em especial, aos ritos de passagem de uma idade para outra, ou de um estado civil a outro, o que justifica tantas marcas simbólicas acerca da puberdade e do início da atividade sexual. Observe-se a insistência no sangue feminino, em Branca de neve, A Bela

Adormecida, ou mesmo na cor vermelha, como é o caso de Chapeuzinho Vermelho e A Bela e a Fera, que podem representar os vestígios da primeira

menstruação.

A escritora afirma que essas narrativas corriam por todo canto e, às vezes, serviam de tema para que algum escritor se inspirasse e desenvolvesse sua própria narração. É o caso de Charles Perrault, que reconta e publica alguns desses contos, especialmente para crianças da corte real, pois os narra em finos versos ou prosa burilada, fazendo com que todos fossem acompanhados de uma moral. Wilhelm e Jacob Grimm optam por apresentar esses contos em prosa e com uma linguagem bem próxima da oralidade e modo falado pela gente do povo, mantendo o máximo de fidelidade ao linguajar utilizado pelos contadores populares. Já Hans Christian Andersen não se limitou em recolher e recontar essas narrativas, mas criou várias histórias novas, seguindo o modelo dos contos tradicionais e trazendo sua marca individual e inconfundível para eles, ou seja, “uma visão poética misturada com profunda melancolia” (MACHADO, 2002, p. 72), em O Patinho Feio, A Roupa

Nova do Imperador, A Menina dos Fósforos, A Pequena Sereia, Polegarzinho, dentre outras.

Além disso, Machado faz uma crítica aos escritores contemporâneos que tentam mudar os finais desses contos, almejando poupar as crianças da violência, como por exemplo, empurrar a bruxa má de João e Maria para o forno quente, ou até mesmo poupando os pais dessas crianças pelo papel ativo e terrível que desempenharam ao abandoná-los na floresta:

Os autores originais, geralmente gente do povo, de pouca instrução, muitas vezes camponeses, predominantemente mulheres, eram humildes contadores de histórias tradicionais. Despretensiosos, prestaram um imenso serviço cultural à humanidade, preservando esse riquíssimo acervo de contos populares até os nossos dias. Não

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está certo agora um candidato a autor ou pretenso pedagogo se invista unilateralmente do poder de modificar essa criação, e queira fazer crer a todas as gerações posteriores que é melhor do que eles – seja poupando o Lobo de engolir a avó, seja Cinderela ficar amiguinha das irmãs. (MACHADO, 2002, p. 76)

Para ela, a narrativa literária tem como base diversos elementos que vão se correspondendo de modo coerente, e que, aos poucos, vão erigindo um edifício de sentidos: “é para isso que o homem conta histórias – para tentar entender a vida, sua passagem pelo mundo, ver na existência alguma espécie de lógica” (MACHADO, 2002, p. 74). Ela afirma que cada texto e cada autor tem uma maneira de lidar com os elementos que constituem essas narrativas, e eles se adequam às diversas formas de expressão e conteúdo, de modo a manter a coerência interna que lhe dá sentido. Sendo assim, mexer nisso equivale a transformar a nova versão em alguma coisa “esdrúxula”, sem sentido algum.

A universalidade e permanência que permeiam esses contos permite que se possa aproveitar plenamente sua ampla descendência, uma vez que esse gênero foi um dos mais fecundos no imaginário popular. Para atestar isso, até hoje deparamo-nos com narrativas, dentre as quais podemos incluir temas cinematográficos, que continuam contando a história de Cinderela, A Bela e a

Fera, Branca de Neve, mas com outra roupagem. Dentro da literatura, isso

volta inúmeras vezes, seja através de reimersão ou reinvenção desse universo, como é o caso de Marina Colasanti, ou ainda como pretexto para inspiração, no caso de A Bela e a Fera, de Clarice Lispector, ou até mesmo Fita Verde no

Cabelo, de Guimarães Rosa, entre outras as narrativas voltadas

exclusivamente para público infantil. Os contos populares sempre trouxeram uma imensa carga de significados, que permitem uma grande economia da narrativa e boa densidade semântica, enriquecendo-os de novos sentidos. Assim afirma Machado:

Como esses contos tradicionais são os clássicos infantis mais difundidos e conhecidos, a gente sabe que pode se referir a eles e piscar o olho para o leitor, porque conhece o universo de que estamos falando. Fica possível, então, fazer paródias aos contos de fadas e brincar com esse repertório, aprofundando uma visão crítica do mundo a partir de pouquíssimos elementos. Mas para que esse jogo literário possa funcionar plenamente, para que o humor seja

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entendido e a sátira seja eficiente, é indispensável que o leitor localize as alusões feitas, identifique o contexto a que elas se referem e seja, então, capaz de perceber o que está fora de lugar na nova versão. (MACHADO, 2002, p. 81)

No artigo Reino das fadas às avessas25, publicado pela Revista Entre Livros, Gabriela Romeu define as mudanças que as narrativas contemporâneas atravessaram:

Essa desconstrução do reino do "era uma vez" é constantemente promovida por escritores contemporâneos de literatura infantil. São autores que bebem nas fontes dos textos tradicionais, mas modificam a ordem narrativa, invertem o papel de personagens e brincam com as conhecidas fórmulas dos contos de fadas. Clássicos, aliás, cuja leitura, segundo Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fadas (Paz e Terra), é de extrema importância para o desenvolvimento infantil. Os contos de fadas, explica Bettelheim, anunciam já nos primeiros anos de vida que a luta contra as dificuldades é inevitável. (ROMEU, 2007, p.20)

A estudiosa completa, citando algumas personagens que sofreram mudanças se comparadas aos contos clássicos:

Em algumas obras, os personagens-símbolos dos contos de fadas – princesas, fadas, seres encantados, por exemplo – são virados do avesso. Se toda princesa é dócil, recatada e submissa no imaginário infantil, Formosura surgiu para mudar isso de uma vez por todas, em A Princesinha boca-suja (Scipione). O autor, Cláudio Fragata desconstrói mais uma personagem-símbolo dos contos de fadas. Formosura não está à espera de um príncipe encantado, é valente e diz tudo o que lhe dá na telha – para desespero de Cinderelas, Brancas de Neve e Rapunzéis. O ilustrador Odilon Moraes, premiado com o livro A princesinha medrosa (Companhia das Letrinhas), encontra o tom certo para misturar delicadeza e rebeldia em Formosura. (ROMEU, 2007, p. 20).

Para exemplificarmos a universalidade dos contos de fadas, tomaremos por base as ficções História meio ao contrário (1978) e a A princesa que

escolhia (2006). Em ambas as obras, Machado, como boa leitora antes de

escritora, faz uma releitura dos contos de fadas misturando temas da atualidade aos clássicos e do maravilhoso à realidade, por meio da

25 Disponível em : http://revistaentrelivros.uol.com.br/Edicoes/10/Artigo14533-1.asp> Acesso em 08

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originalidade de uma linguagem marcada pela ruptura e das invenções e reinvenções26.

História Meio ao contrário (1978), chama a atenção do leitor já pelo

título. Trata-se de uma narrativa que inicia como os finais comuns à grande maioria dos contos de fadas: “E então eles se casaram tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre” (MACHADO, 1978, p. 3). Por sua vez, o final surpreende por ser o conhecido “Era uma vez...”, aderindo a uma estrutura circular. A continuação agora se lança como convite a que outros continuem tecendo essas histórias que vêm sendo narradas desde há muito tempo, como ela mesma afirma em seu ensaio Silenciosa Algazarra (2011):

Ao começar meu História meio ao contrário, eu sabia que queria partir da frase “E viveram felizes para sempre...” para terminar meu livro com a fórmula “Era uma vez”. Para isso, precisaria reescrever de outra maneira um conto de fadas clássico, revisitando de modo crítico personagens e situações. Ao me dar essa mistura inicial de limites e liberdade, acabei entrando numa aventura altamente intertextual que não esperava e me levou por muitos outros caminhos, em que faço descrições recorrendo a versos antológicos de poetas brasileiros, lugares-comuns de nossa história literária e até trechos do Hino Nacional. (MACHADO, 2011, p. 98)

As referências ao título27 aparecem logo no início da obra: “então é melhor mudar de história porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo ou toda ao contrário” (MACHADO, 1978, p. 4-5). Em seguida, o narrador reafirma a parcialidade dessa contradição “Mas vamos começar de novo pelo começo. Ou pelo fim, que esta história é mesmo ao contrário”.

Se no primeiro parágrafo da obra Machado resgata o final consagrado pelas narrativas dos contos de fadas de antigamente, no parágrafo seguinte, a

26Compagnon (1996,p.29) afirma acerca do ato de reescrever “(...) escrever é sempre reescrever, pois une o processo de leitura e escrita. O trabalho da escrita é uma rescrita já que se trata de converter elementos separados e descontínuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los (de tomá-los juntos), isto é, de lê-los: não é sempre assim?Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou as transições que se impõe entre os elementos postos em presença um do outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário. (COMPAGNON, 1996, p.29)

27Nessa obra, é possível notar a ratificação no nível do enunciado na relação com o cânone, anunciando seu rompimento, conforme refletem Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2010, p. 157): “Logo no início do texto, o narrador manifesta consciência da inversão sistemática a que submete os constituintes tradicionais do gênero e do reflexo disso no modo de narrar”.

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metanarrativa pode ser compreendida como um processo responsável pela construção da própria tessitura narrativa:

... E então eles se casaram e tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre... Tem muita história que acaba assim, mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar, pode muito bem ser por aí. (MACHADO, 1978, p. 4).

Diante disso, nota-se que a digressão da voz narradora permite focalizar a importância do passado na construção do presente, uma vez que a narrativa contemporânea relaciona-se com a visão do cânone, estabelecendo diálogos com eles. Assim como todo texto literário resgata textos anteriores, confirmando o que Umberto Eco (1985, p.20) diz acerca de que “os livros falam sempre de outros livros e toda história conta uma história já contada”, a de Machado leva-nos ao conceito de intertextualidade:

[...] a repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto, etc.) nunca é inocente. Nem a colagem nem a alusão e, muito menos, a paródia. Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o reinventa. Toda apropriação é, em suma, uma “prática dissolvente”. (CARVALHAL, 2001, p. 53-54)

Em seus ensaios, Ana Maria Machado também discorre sobre a intertextualidade, refletindo que somos uma “gota d’água no grande oceano da literatura”, pois não podemos ter a pretensão de querer inventar nada do zero. Herdamos uma língua e herdamos também uma tradição literária, artística e cultural, que não é exclusivamente nossa, mas de toda a humanidade:

[...] o que chamamos de reescrita é, na verdade, uma criação de outra obra, com sua própria originalidade. Não uma condensação ou adaptação. Jamais uma reiteração. Trata-se apenas do aspecto que assume a continuidade de uma criação coletiva da humanidade. Tanto Virginia Woolf como Borges já insistiram em afirmar que os livros dialogam entre si, continuam uns nos outros, criam até mesmo próprios precursores. [...] A leitura é uma arte da réplica, frisava Ezra Pound. O diálogo faz parte da natureza da literatura. (MACHADO, 2011, p. 98-99)

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Essa aguda observação vale para toda a literatura, inclusive a infantil, que não deve limitar seu sentido, mas ampliá-lo. A autora afirma que o modelo que se oferece a esse diálogo exige ser reinventado, pois cada paradigma propõe, dialeticamente, a invenção de outro num novo sintagma que será a prática criadora de cada autor. Só faz sentido retomar um material existente se for para fazer com ele algo novo, assim “como lembra Roland Barthes, é inútil reescrever se não partir de uma decisão de repensar” (MACHADO, 2011, p.99).

Retomando a ficção, o narrador afirma que irá narrar a história da filha do casal, a Princesa, que começa com a união de seus pais. Aqui o narrador dialoga com o leitor da história, colocando os porquês de toda esta inversão. Nesse primeiro momento, a autora inverte a ordem das histórias tradicionais, iniciando-a pelo fim. Mas vale ressaltar que essa subversão se estende também ao tratamento do enredo, que vai apresentando claramente um ponto de vista crítico sobre a ordem estabelecida, levando o leitor a pensar, por meio da história, acerca da realidade e do contexto no qual o livro está inserido.

A metanarrativa, processo presente na literatura contemporânea e enunciado já nas primeiras páginas de História meio ao contrário, sinaliza a construção do que se tece o texto: índios e piratas povoam as referências desse tecer narrativo em que há “uma história grande e principal toda cheia de historinhas pequenas penduradas nela” (MACHADO, 1978, p. 5), no dizer do próprio narrador, articulando realidade e imaginação, entretecendo textos e tempo. Com isso, nota-se que a metalinguagem utilizada por Machado se mistura ao tom ensaístico e despreocupado, mesclando-se a uma efusão do eu, dando à narrativa um caráter intimista, pois é nesse momento que ficamos sabendo estar diante de uma narradora que, por gostar muito de inventar, não se acha “muito boa contadeira de histórias”, conforme justifica: “Fico misturando as coisas que aconteceram com as inventadas. E quando começo a conversar vou lembrando de outros assuntos, e misturando mais ainda” (MACHADO, 1978, p. 5).

Além desse diálogo intertextual e metalinguístico com a tradição dos contos de fadas, contextualizado em um cenário com castelos, reis, rainhas, príncipes, princesas, dragões e gigantes, é possível perceber que a autora ousa, por sacudir a poeira que repousa sobre a tradição, questionando assim

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esse “feliz para sempre”. Ela investe contra a passividade do “sempre”, que acaba por enclausurar as pessoas e, por consequência, as personagens da narrativa. Ainda que afirmando ser “muito difícil” e até “sem graça”, o narrador realça valores essenciais à condição de ser feliz, condições presentes na vida do rei e da rainha como a sorte por terem saúde e amor:

Isso era o mais difícil de tudo. Viver feliz para sempre não é fácil, não. Para falar a verdade, nem é muito divertido. Fica tudo tão igual a vida inteira que é até sem graça. E eles conseguiram essa felicidade para sempre porque tiveram alguma sorte e muita esperteza. (MACHADO, 1978, p. 6)

Logo de início, nota-se a diferença entre essa história e os contos de fadas. Ao mesmo tempo em que o leitor é inserido no universo das histórias de reis e princesas, ele é levado à reflexão diante desse universo. Além disso, a ruptura da obra se dá, também, através da composição das personagens. Como já mencionado no capítulo anterior, o Rei de História meio ao contrário rompe com o arquétipo que configura sua função, ou seja, não consegue mudar a ordem da natureza, interferindo na alternância dos dias e das noites, nem tem o domínio social, pois não consegue realizar o esperado destino da filha: casá-la com o Príncipe. E, tampouco, representa o saber, o que é evidenciado nas ações e nos pensamentos do Primeiro Ministro: “o Rei representa ao mesmo tempo a puerilidade e o autoritarismo” (ZILBERMAN, 2003, p.180). A puerilidade, marcada pelas atitudes de ignorância e por crises de “real fúria”; o autoritarismo, por berrar, urrar, gritar, em diversas passagens da narrativa, rompendo, assim, com a verdadeira função de ordenar e harmonizar. No entanto, outros atributos relativizam seu perfil, pois na visão da Rainha e da Princesa, ele nunca mentia, configurando o arquétipo de pai protetor, aquele capaz de resolver uma situação problemática.

A figura do Rei, nesta obra, evidencia o trabalho estético de Machado, pois ela cria a ironia a partir de expressões polissêmicas. Para exemplificarmos

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