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Gestão educacional: entre instrumentalização e formação

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Academic year: 2020

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Política e Gestão da Educação - 01 p. 35 - 46

GESTÃO EDUCACIONAL: entre instrumentalização e

formação

Pedro Goergen

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RESUMO

Este texto traz ao debate alguns aspectos filosófico/antropológicos que podem contribuir para pensar a gestão escolar. Nesse sentido, apresenta um resgate da temática e localiza as mudanças ocorridas na gestão no contexto da sociedade contemporânea. Enfatiza a gestão educacional como processo aberto e sem modelo ideal, pressupondo iniciativas abertas à construção de experiências novas. Destaca ainda que gestão pressupõe formação contínua possibilitando a educação cumprir seu papel transformador.

Palavras-chave: Gestão Educacional. Formação. Conhecimento.

MANAGEMENT EDUCATION: between and training instrumentalization

ABSTRACT

This paper brings to the fore some philosophical/anthropological aspects that can contribute to thinking the issue of school management. In this sense, it features a recovery of this theme and places the changes in management in the context of contemporary society. Furthermore, it emphasizes educational management as an open and non-ideal model process which as-sumes an open-minded attitude for building new experiences. It also underlines that manage-ment presupposes continuous developmanage-ment, which enables education to fulfil its transforma-tive role.

Keywords: Educational Management. Training. knowledge

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A gestão é para muitos a solução de quase todos os problemas em áreas como política, economia, produção e relações humanas de modo geral. Nestas áreas, há uma verdadeira avalanche de publicações sobre gestão, consumida por um significativo número de pessoas interessadas no sucesso pessoal ou empresarial. Certamente, a grande

procura dos cursos superiores de

administração também está relacionada a esta tendência. Difunde-se a ideia de que as técnicas administrativas ou de gestão são uma forma segura de garantir sucesso. Embora não seja difícil mostrar que a gestão não é uma panaceia universal, sabe-se, também, de sua efetiva importância em todas as áreas das atividades humanas, inclusive na educação onde é considerada um mecanismo essencial à qualidade, à democracia e ao sucesso do processo formativo. (COLARES; XIMENES-ROCHA; COLARES, 2012).

Minhas considerações têm como obje-tivo trazer ao debate alguns aspectos filosófi-co/antropológicos que, a meu juízo, podem contribuir para pensar a gestão escolar, en-volvendo aí suas várias dimensões e agentes, ou seja, diretores, pedagogos, coordenadores e técnicos pedagógicos. A decisão por uma abordagem geral do tema deve-se, de um lado, à minha incompetência técnica na área porque não sou formado em gestão e, de ou-tro, à convicção de que é salutar, vez ou outra, suspender o tempo, sair da rotina do quotid-iano que nos prende ao imediato e dificulta o olhar amplo e de conjunto. Como diz o con-hecido ditado popular, de tanta árvore já não vemos a floresta. Mas é a visão geral que muitas vezes nos permite vislumbrar saídas para muitos problemas que nos assoberbam no dia a dia. Por este mesmo motivo, embora ciente que estou diante de gestores, prefiro,

propositadamente, tratar a gestão em seu conjunto no intuito de evidenciar que a gestão educacional é, por definição, um trabalho de equipe.

Aos diretores, pedagogos, coordena-dores e técnicos pedagógicos, ou seja, aos res-ponsáveis pela gestão, cumpre encontrar, em conjunto, a voz e os gestos necessários à es-cola nas condições transformadas e transfor-mantes em que vivemos. Diferentemente da família ou da comunidade, o ambiente esco-lar é organizado de maneira formal à luz de um Plano Pedagógico, levado a termo no jogo relacional entre educandos e profissionais da educação. O conjunto das atividades daí decorrentes se inspira em dois níveis de pensamento: no conhecimento consolidado num corpo teórico, resultado de estudos e pesquisas, e no manejo quotidiano de situações concretas e sempre novas do processo educativo. O primeiro se conquista pelo estudo e pela investigação e o segundo pela lide inteligente, criativa e dialógica do dia a dia. De um lado, o saber consolidado, de outro, a inteligência prática, formando um todo em que estas duas dimensões se interligam e complementam.

Estes são, por consequência, também os eixos formativos dos gestores: aquisição de conhecimentos consolidados no campo da gestão educacional e o treinamento da imaginação criativa e crítica do manejo de situações reais, do momento, do único. Qual jogador de xadrez, o gestor vale-se tanto de um vasto arsenal de conhecimentos, de regras e estratégias de jogo, testadas e consagradas, quanto da habilidade, experiência e perspicácia crítica para a tomada de decisões situacionais em meio ao conjunto de circunstâncias que fazem de cada situação um momento original.

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nossa maneira ocidental de pensar, sempre apostamos na ideia de um mundo coeso, igual para todos. Pareceu-nos sempre mais plausível, mais lógico e prático, acreditar na unicidade, até mesmo por uma questão de simplicidade ou de comodidade. Com base nesse pressuposto, tudo se tornaria mais fácil de ser administrado. Essa maneira de pensar se embasava na convicção de que o arquiteto de tudo, do mundo e do homem, era o mesmo e, sendo ele divino, sua obra não poderia ser múltipla, diversa, contraditória. A sabedoria divina só poderia ter originado um mundo simples, harmonioso e equilibrado.

Este se tornou o modelo de leitura e de interpretação de tudo, a base do pensamento e do agir, de Platão a Tomas, de Tomas a Descartes. Aos jovens cumpria adaptar-se ao estabelecido e à educação cabia realizar este mandado, por bem ou por mal. Todos estavam de acordo com essa tradição, de maneira que os educadores podiam justificar seus procedimentos, por mais duros que fossem, com base num indiscutível princípio de autoridade assentado em pétreas bases culturais ou mesmo religiosas.

Na modernidade com o surgimento do pensamento científico e político/social, bem como a valorização do indivíduo e da subje-tividade esta fundamentação transcendental foi descartada e substituída pela autoridade racional do próprio homem. No exclusivo uso de sua razão, o ser humano se considerou ca-paz de distinguir, em definitivo, a verdade do erro, o bem do mal. A verdade racional, segu-ra e livre de qualquer dúvida, como Descartes havia demonstrado, tornara-se o novo padrão de verdade. A verdade segura de si mesma, fundada numa razão olímpica, apolínea, livre das diatribes ébrias de Dioniso é o suposto da ciência moderna. Só uma pode ser a ver-

dade, homogêneo deve ser o agir; tudo o mais é ignorância ou falsidade. Este modelo dualis-ta, que contrapõe verdade e erro, bondade e maldade, tornou-se o modelo epistemológico e ética, sobre o qual se construiu a escola moderna. Persistiu, portanto, a estratégia pedagógica da imposição, embora em nome de uma nova autoridade: a razão.

No Século XIX, sobretudo com a incômoda e perturbadora intervenção de Nietzsche, começou uma reação contra o novo autoritarismo racionalista, segundo muitos, branco, masculino e europeu. Dividida em muitas frentes, esta reação abriu portas para a irreverência do diferente, do múltiplo, do conflito, restabelecendo a, talvez, mais matricial condição humana: a condição da incompletude, da incerteza e da eterna busca. Marx fala do conflito e a nova física da

imprevisibilidade como elementos

estruturantes e constituintes do real. Passadas poucas décadas, o discurso já é o de uma nova era, dita pós-moderna, do fim das certezas, da volatilidade dos valores, do descrédito da autoridade. Sem bem saber onde estamos e para onde vamos, dominam hoje conceitos, para uns novidadeiros e vazios para outros

densos e definitivos, do efêmero

(LIPOVETSKY, 2002), do líquido (BAUMAN, 2001), do complexo (MORIN, 2000).

Nesse percurso, a educação transfor-mou-se, profundamente, em sua prática e objetivos, na medida em que se desfizeram os consensos tradicionais, sobretudo aqueles que embasavam o conceito de autoridade. Este havia sido sempre o apoio, o recurso, a justi-ficativa de toda a prática educativa. Agora, nesta nova condição de vazio de autoridade, a pergunta posta é como organizar, planejar e, sobretudo, como executar os procedimentos educativos sem o recurso à autoridade, aos

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princípios ou ideais fixos e consensuais? Con-ceitos como ordem, disciplina, respeito, pos-tura ética, responsabilidade, cooperação, tor-nam-se dúbios e incertos numa sociedade que vive sob os auspícios do econômico, da mer-cadoria, da competitividade, da utilidade. Neste contexto, gerir e organizar o processo educativo torna-se inseguro, desprovido de certezas, sujeito à negociação, ao diálogo, ao entendimento possível. Com o passar do tem-po, esse processo de relativização vai assumin-do contornos cada vez mais nítiassumin-dos e radicais. Permitam-me nomear, provisória e topica-mente, alguns cenários, agora já como olhar voltado para a gestão do processo educacio-nal:

- Muda profundamente a gestão num contexto em que não predomina mais a aprendizagem de conteúdos e posturas prontas, mas a criatividade frente a futuros incertos e imprevisíveis;

- Muda profundamente a gestão quando a educação se divide entre objetivos, necessidades e interesses locais, regionais e globais, muitas vezes conflitantes e excludentes entre si;

- Muda profundamente a gestão quando se desfaz a relação entre ética, formação e conhecimento, transformando-se este último em mercadoria a ser adquirida à luz de interesses crescentemente econômicos e mercadológicos.

- Muda profundamente a gestão quando se transformam os conceitos de espaço e tempo no contexto das novas tecnologias em que tudo se torna volátil, acelerado e descartável;

- Muda profundamente a gestão quando a educação é feita à distância em função dos novos métodos, materiais e

conceitos pedagógicos.

- Muda profundamente a gestão quando a educação passa a ser idealizada e operacionalizada a partir de fins instrumentais e utilitários;

- Muda profundamente a gestão quando a educação e a formação da identidade já não acontecem na família, na comunidade ou na escola, mas no espaço virtual de sites e blogs.

Nestas condições, a educação e, com ela, a gestão tornam-se processos em construção, abertos, sem plano e objetivos definidos. Percebe-se, com crescente nitidez e preocupação, que cada criança é uma criança, cada aluno um aluno, cada classe uma classe, cada professor um professor, cada escola uma escola e cada situação (social, cultural, econômica) uma situação. Frente a este

cenário indefinido e em permanente

transformação e mudança, a dialogicidade e a criatividade tornam-se as principais virtudes. Como em qualquer espaço da vida, também a relação educativa necessita tornar-se criativa. Faz-se mister uma nova inteligência criativa. Num contexto desprovido de regularidades, os participantes do processo educativo, ou seja, os alunos, os pais, os professores, os gestores, a escola e a comunidade como um todo devem entrar numa relação criativa. Disparar este processo, dando-lhe continuidade e mantendo seu caráter democrático, é tarefa dos diretores, supervisores e orientadores, em suma, dos gestores educacionais.

Esta nova forma de ser inova os modos de convivência das pessoas, tanto na sociedade em geral, quanto na escola em particular. As partes diversas e divergentes devem entrar em conversa. Conversa, para o

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filósofo Hans-Georg Gadamer (2008), é uma espécie de jogo. No conceito jogo (Spiel), está implícito um movimento que não se fixa em nenhum alvo. Envolver-se num jogo é participar, engajar-se numa estrutura aberta de experiência de homem e de mundo. Neste sentido, o jogo é um fenômeno essencial à vida e à cultura humanas porque envolve a compreensão do mundo, do outro e de si mesmo nessa perspectiva da convivência aberta. Jogar, nestes termos, significa colocar as próprias convicções em jogo no encontro com o outro, o diferente, o estranho.

Para que este jogo do encontro seja possível, é preciso superar a estratégia do confronto assumida pela escola moderna; é preciso avançar do confronto para o encontro com o outro. Tradicionalmente, a educação foi uma relação de confronto entre o dirigente político e o súdito, entre a autoridade religiosa e o fiel, entre pais e filhos, entre educadores e educandos, entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal. Divinização contra satinização; anjos de um, demônios de outro lado. Descartes e Rousseau se deram conta da transformação em curso ao qualificarem como ridículos os colégios autoritários do seu tempo, mas foi este último que soube tirar as consequências pedagógicas dessa percepção. Lemos no Emilio que “mestre não deve instruir, mas conduzir”, que o preceptor “não deve dar preceitos, deve fazer com que (as crianças) os encontrem” (ROUSSEAU, 1992, p. 28).

Mesmo que a modernidade seguisse por caminhos diferentes, tortuosos e auspiciosos num mesmo gesto de libertação de antigas e assunção de novas cadeias, estes dois filósofos tiveram uma intuição que os colocava, já então, a frente do tempo. O Emilio não recebia nada pronto. Tinha que procurar,

experimentar, arriscar-se. Estava nascendo algo novo em termos educacionais: o reconhecimento do outro num projeto de construção aberto e partilhado de vida e de futuro. Este jogo é sempre uma aventura porque ninguém sabe como vai terminar e, como toda a aventura, envolve riscos.

Mas é esta aventura arriscada em direção ao outro, digo concretamente, em direção ao aluno, ao colega, aos funcionários, aos familiares que pode nos oferecer oportunidades especiais de fazer novas, inusitadas e transformadoras experiências de si mesmo, do outro e do mundo. Talvez seja este o caminho para renovar a educação como prática formativa, uma noção ainda hoje pouco familiar à atual engenharia epistêmica da educação presa, de um lado, aos conceitos tradicionais de verdade e autoridade e refém, de outro, dos novos imperativos da utilidade e do mercado. A experiência mostra que esse trabalho coletivo, envolvendo pais alunos e funcionários, tem dado bons resultados, precisando, no entanto, ser fortalecida e reinventada no trabalho da equipe gestora da escola.

Com estas considerações proponho que a gestão educacional seja entendida como um processo aberto. Não há modelo de gestão ideal, algo como um receituário aplicável em qualquer situação. Há sim uma permanente construção, sempre democrática, não de modelos, mas de experiências novas, de jogos, no dizer de Gadamer (2008), para situações educativas sempre únicas e abertas. Para que isto seja possível, é preciso discutir o que é educação num contexto em que o modelo tradicional de educação, preso a um conceito fixo de verdade, foi superado. Sem este recurso da autoridade, o que resta é o diálogo (HABERMAS, 1989), o reconhecimento

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(HONNETH, 2003), o jogo aberto (GADAMER, 2008) respeitoso e responsável.

Dialogar significa relacionar-se com o outro sem intenção de convertê-lo, como fazem missionários e pregadores, interessados em conquistar o outro para sua própria maneira de pensar e ser. É, ao contrário, reconhecer o outro, partilhando de sua autonomia, de sua realidade, suas tradições e valores em diálogo aberto como forma de convivência fecunda e enriquecedora. Ao invés de inventariar estratégias de imposição de comportamentos, de olhares, ou pensamentos tidos como melhores e superiores, a gestão

deve elaborar e viver processos de

hominização na perspectiva uma nova erótica da relação educativa na escola. Uma hominização que supera a tradicional animalização do outro pelo respeito e inclusão.

Não é por acaso que o erotismo se tornou um dos conceitos favoritos de autores críticos do cientificismo moderno como Adorno, Horkheimer, Honneth e Winnicot. O que seria esta erótica? Seria o olhar para o outro; o reconhecimento da alteridade, da diferença; a abertura para os estímulos vindos do outro; o jogo aberto do encontro na busca do melhor para todos. Neste sentido, uma das tarefas da gestão é criar um ambiente de relações humanas, de partilhamento do espaço e tempo, do uso de recursos pedagógicos e humanos, ao abrigo de plano pedagógico formativo e erótico.

Trata-se de uma nova gestualidade, ou seja, de um conjunto de acenos vindos de uma nova racionalidade de reconhecimento do ou-tro. Até hoje a racionalidade subjacente à edu-cação segue fortemente marcada por posturas ora medievais, ora modernas, ambas focadas em modelos de verdade e comportamento a serem impostos ao outro, seja em

nome de uma metafísica transcendentalista, seja em nome de uma racionalidade cientifi-cista autoritária. Tanto uma quanto outra visam o domínio e a colonização. Estas ver-tentes subjazem até hoje, pelo menos em boa medida, à nossa realidade escolar.

Em meio a esses ecos que ainda ressoam fortes do passado, a escola se transforma numa complexidade movente em águas revoltas, turvas e desafiadoras, que exigem novas técnicas de navegação. Ao contrário da estabilidade, da previsibilidade e da permanência do passado, são hoje o imediatismo, a celeridade, o eficientismo, o utilitarismo, o cientificismo e o mercadismo que puxam os fios do tecido pedagógico. Neste contexto, já não basta uma teoria geral de gestão, composta de conhecimentos e princípios gerais; são necessárias novas leituras, uma hermenêutica capaz de compreender e fundamentar as decisões e as ações em meio a uma realidade que se afigura fragmentada, líquida, incerta e sem rumos. Atrevo-me a ponderar que, neste cenário, a gestão é a arte de conduzir e otimizar o processo educacional com base, de um lado, em conhecimentos técnicos gerais, avalizados por pesquisas e experiências anteriores e, de outro, na sabedoria prática e criativa do manejo de situações incertas, fluidas, singulares, surpreendentes.

Neste sentido, sua tarefa seria, pois, otimizar o processo pedagógico valendo-se de conhecimentos e da arte criativa, sempre democrática, de responder à especificidade e à plasticidade do momento em que pessoas únicas interagem em momentos e condições únicos. Esta dupla determinação resulta em estratégias, métodos organizativos e formas de articulação sempre novas em que se articulam o conhecimento consagrado e a

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sensibilidade criativa, insisto, na interação de todos os envolvidos.

De modo geral, pode-se, então, dizer que nos encontramos diante do confronto ou dilema entre dois modelos de gestão: De um lado, o modelo tecnicista de eficiência e produtivismo e, de outro, o modelo humanista de formação das pessoas. Temos aí uma ambivalência entre duas posições teóricas divergentes das quais uma se volta à formação integral, epistêmica, ética e estética de pessoas, visando uma gestão de traços humanísticos e, a outra que favorece o uso de técnicas de gestão, visando a otimização da

aprendizagem, da competitividade, da

utilidade, da instrumentalização em função das exigências do mercado.

Mesmo reconhecendo as dificuldades e os desafios do mundo tecnológico e mercantil, penso que a educação não pode render-se ao tecnicismo, ao instrumentalismo e ao eficientismo. Os seres humanos não se igualam a peças que devem ser limadas e polidas para o encaixe perfeito na grande máquina, mas indivíduos únicos, livres e autores si mesmos. Cabe à educação oferecer ajuda para que possam realizar este seu destino, gerando um espaço consagrado à formação integral da identidade da pessoa. A gestão educacional como parte desse processo deve, pois, ser pensada sempre na perspectiva do educativo da formação da pessoa. Por isso, a pergunta fundamental da gestão não diz respeito ao que é dirigir, supervisionar ou orientar, mas o é que educar. Quando focada, centralmente, apenas na eficiência e na produtividade, a gestão erra seu alvo e se frustra.

Não se trata, então, pelo menos não apenas, de aplicar técnicas instrumentais e eficientistas de gestão, se estas não estiverem

a serviço do que é essencial: a formação do ser humano. Não é preciso dizer que esta posição enfrenta enorme resistência em tem-pos de mercadorização, objetalização e instru-mentalização, conforme mencionei anterior-mente. É bem verdade que, em função de seu sentido formativo, a educação sempre segue à retaguarda do mercado e, em boa medida, isto deve ser assumido porque é da natureza da educação ser conservadora. É sempre con-servador assumir responsabilidade introduzir as novas gerações na tradição, na cultura, nos costumes, conhecimentos e valores da so-ciedade. Isto não impede que a educação as-suma também o compromisso de preparar em termos de conhecimentos e habilidades, as novas gerações para a inserção e atuação no mundo e na vida contemporâneos.

Observe-se, no entanto, que, por mais que se apresse e atualize, a educação escolar, por sua precípua natureza, não consegue atender ao ritmo das mudanças, nem às exigências e expectativas do mundo do mercado e do trabalho. Enquanto a educação trata de atendê-las, o mercado já se move em novas direções de modo que a educação sempre permanece defasada. É, portanto, ilusório imaginar que seria possível fazer uma educação escolar just in time com mundo dos negócios. E, mesmo que fosse possível, não seria esta a responsabilidade da educação escolar. Nada justifica que se relegue ao segundo plano os elementos mais permanentes e formativos da personalidade e do caráter, até mesmo porque esta é a plataforma sobre a qual se erige o bom cidadão e profissional.

A educação não pode ajustar ou reduzir seus objetivos integralmente ao mercado porque, como diz João Barata-Moura “a educação é um processo vital, o que quer

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dizer: cumpre-se ao longo da vida, em união estreita com a formação/construção do ser humano que cada um de nós protagoniza” (2003, p. 32). Ultrapassa, portanto, a relação com o mercado porque representa um agir moral, cognitivo e estético constituinte da identidade e não apenas um treinamento para a economia. Podemos, então, dizer que a educação se move, como o equilibrista sobre o cabo de aço, buscando o equilíbrio entre, de um lado, as exigências do mundo econômico e do trabalho e, de outro, a responsabilidade da formação ética das pessoas. Esse é um enorme desafio que não sabemos ainda como equacionar.

Evidentemente sem ignorar a realidade do trabalho e os rumos do mercado para o qual a juventude deve ser preparada, a educação precisa preservar uma autonomia relativa para a realização de seus intentos e objetivos próprios, referentes à formação do ser humano em suas dimensões epistêmica, ética e estética. A educação é, portanto, muito mais que o preparo e a adaptação dos educandos ao mercado. Se estivermos de acordo com estes princípios gerais, podemos perguntar em que medida a gestão escolar se orienta nestas dimensões superiores da educação ou, em sentido contrário, quanto ela se ajusta, direta ou indiretamente, ao mandado daquilo que Adorno (1985) chamou de well adjusted people, pessoas bem ajustadas ao sistema econômico. Numa palavra, as dimensões do ético e do estético, vale dizer, a formação integral da pessoa são aspectos fundamentais do processo educativo ao qual a gestão serve de ferramenta.

O que ocorre hoje, em tempos de predomínio do econômico, é que se tenta impor à escola os estandares da qualidade empresarial. Trata-se de uma grande falácia.

Primeiro, como vimos, porque a educação ultrapassa os limites do econômico e, segundo, porque a transferência de posturas técnicas de uma área para outra não dá resultado se isto ocorrer entre áreas tão distintas em seus propósitos e procedimentos quanto as da educação e da economia. Se, nesta última, é possível elaborar e impor técnicas de cima para baixo ou de fora para dentro, visando otimizar o retorno do processo produtivo, no caso da gestão escolar, trata-se muito mais de um processo horizontal de capacidade de leitura, de investigação crítica, de interação com estudantes, pais, colegas, funcionários, visando a formação de pessoas e não a produção de artefatos.

Educar é um trabalho de interpretação,

de investigação crítica, de diálogo

permanente, focado não apenas na dimensão da gestão, mas da educação como um processo abrangente e integral, do qual a gestão é apenas uma parte. Insisto, então, que a pergunta que o gestor deve ter sempre diante de seus olhos é como ele pode contribuir para melhorar a qualidade da educação. Antes de se definir o que é uma boa gestão, é preciso saber o que é educação e, na sequência, o que é uma educação de qualidade. Essa é a questão nodal, que se coloca diante de nós, ameaçadora, como o mistério de uma esfinge: decifra-me ou te devoro. Talvez nunca nos livremos da ameaça deste mistério assustador porque pela própria condição do ser humano histórico ela não encontra resposta definitiva. É muito mais uma tarefa de Sísifo a ser eternamente retomada. O que pode ser considerado educação de qualidade em determinado contexto, não o é, necessariamente, em outro. Educação de qualidade e, por consequência, gestão de qualidade resultam da busca dialógica, incessante e permanente segundo as circunstâncias, ou seja, o momento

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histórico, o contexto cultural e econômico, as carências, os ideais, os valores das as pessoas envolvidas.

Qualidade é um conceito fluido, relativo, mas não indiferente. Deve haver pontos de referência que, mesmo sem serem absolutos, nos sirvam de parâmetro a educação ou a gestão de qualidade. Vivemos num mundo em que a diferença, a complexidade e o conflito são condições

incontornáveis de entendimento e

convivência, de compreensão e transformação da realidade. Na ausência de fontes externas, permanentes e universais, o caminho é o diálogo, respeitoso e democrático, de construção das formas de ver o mundo, a vida e a escola, que nos sirvam de orientação.

Esta construção, por sua vez, é uma trama no qual se cruzam fios da tradição, vivências do presente e perspectivas de futuro. Por isso, pode-se dizer que as referências que nos servem de base para a avaliação da qualidade da educação são históricas e contextualizadas, sem, contudo, serem relativas. São essas narrativas confluentes e conflitantes, com suas contradições, seus desejos e sonhos, o chão sobre o qual se articula o processo pedagógico e sua gestão. Isto faz da gestão uma tarefa de enorme complexidade e responsabilidade.

Além desse aspecto da instabilidade, complexidade e dialeticidade há ainda outra questão que me parece muito relevante para o debate da qualidade. Desde as reformas neoliberais da década de 80 e 90 do século passado que determinaram a redução do papel do Estado e a expansão do interesse privado, reforçou-se o caráter utilitarista e mercantil da educação. Esta guinada histórica

representou, segundo Magalhães, uma

reviravolta da “herança rousseauneana em

educação” que colocava “no centro da ação educativa, não o desempenho pessoal, social e econômico dos educandos, mas o seu desenvolvimento integral” (2010, p. 44). De agora em diante, a formação humanística deveria ceder lugar à adaptação aos interesses do mercado.

Esta viragem teve forte influência sobre a gestão escolar, pois, se antes o foco recaia sobre a educação num sentido mais amplo de

formação humana, agora passou a

predominar a preparação para o mundo econômico. Ficou consagrada a expressão

educação instrumental com a qual Adorno

chama atenção para os riscos de uma

educação que faz da eficiência e

competitividade seus principais vetores de qualidade. “[...] A realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens, de forma que esse processo de adaptação se realiza hoje de um modo antes automático” (1995, p. 144). A adaptação à realidade econômica se transformou na premissa maior de todo o processo educativo, cabendo à gestão organizá-la de maneira que tal premissa se realize em plenitude.

Do ponto de vista da gestão, foram tamanhas as repercussões que resultou delas

Nova Gestão Pública (NPG) inspirada no

modelo empresarial que, segundo Magalhães, subordina as preocupações pedagógicas aos critérios de eficiência e qualidade. A eficiência e a eficácia, diz o autor, “são alcançadas através da utilização de instrumentos de gestão usados no setor empresarial, como a especificação dos objetivos dos serviços, a competição por clientes, a medição do desempenho, a descentralização dos processos de tomada de decisão e a utilização dos mercados para a prestação de serviços” (2010, p. 41). Os fundamentos conceituais e

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ideológicos desse modelo, embasados no princípio de que a educação é mercadoria e os educandos clientes, incidem claramente sobre a educação.

A orquestração generalizada de inculcação de que tudo se reduz ao mercado e que, portanto, um enorme leque de instituições sociais, deve amoldar-se a este novo paradigma, atinge todos os níveis da educação formal. Cada vez mais ela deve se concentrar no produto e não no processo. Por isso, segundo Torres, “a interação entre os contextos econômicos e políticos da globalização é o que tem motivado a maioria das discussões sobre a necessidade de uma reforma educacional” (2004, p. 28). Nestes termos, a educação se torna uma função do sistema encarregada, como dissemos acima, de adaptar as novas gerações e as pessoas e maneira geral aos imperativos, especialmente os econômicos do sistema. É o predomínio dessa orientação sobre a vida das pessoas que permite a Richard Sennet dizer que, “a sociedade moderna está desabilitando as pessoas na condução da vida quotidiana” (2012, p.10). O mundo de hoje busca a neutralidade, a domesticação da diferença porque a diferença gera angústia. Todos se conectam apenas na economia do consumo, da competição e não da cooperação (SENNET, 2012, p. 18/19).

A educação foi sequestrada e posta à

disposição dos interesses sistêmicos

hegemônicos. Embora este seja um assunto muito discutido no campo da educação superior, de modo algum se limita a este espaço do processo educativo. O que é muito visível na educação superior (GOERGEN, 2010), devido ao ingresso iminente dos jovens no mercado de trabalho, começa a ser preparado desde a infância quando se molda

o espírito das crianças para o valor dos conhecimentos úteis, da atitude de competitividade, da busca da vantagem, da supremacia do material. São produtos conceituais veladamente introjetados nas crianças e jovens de maneira a naturalizar a atitude de submissão ao grande irmão (mercado) a cujas mãos invisíveis parece impossível resistir.

Destacando um desses elementos, ve-ladamente presentes na educação, Adorno é incisivo: “A competição entre indivíduos e entre grupos, conscientemente promovida por muitos professores e em muitas escolas, é considerada no mundo inteiro e em sistemas políticos bem diversos como um princípio pe-dagógico particularmente saudável. (...) Sou inclinado a afirmar (...) que a competição, principalmente quando não balizada em for-mas muito flexíveis e que acabem rapidamen-te, representa em si um elemento de educa-ção para a barbárie. [...] A competieduca-ção é um princípio no fundo contrário a uma educação humana” (ADORNO, 1995, p. 161).

Talvez sejam os próprios jovens que, de uma forma ou outra, nos sinalizem uma atitude de resistência. Relatando uma ampla pesquisa sobre adolescentes e redes sociais, Roxana Murdochwicz, nos diz que “a internet deu aos adolescentes a oportunidade de converter-se em produtores de conteúdos. Lhes permite expressar-se com sua própria voz e representar suas experiências com suas próprias palavras” (2012, p11). Este novo cenário comunicativo modifica e reconstrói as estratégias de formação da identidade o que interessa sobremodo à escola e sua gestão, pois, a escola é certamente também um ambiente de construção da identidade. Esta identidade assume hoje outras dinâmicas na medida em que se altera o antigo ideal de

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identidade entendida como o igual, o harmônico em si mesmo é substituído por um modelo que engloba a diferença, a desarmonia e as incertezas, próprias da conectividade.

Generalizando um pouco, pode-se diz-er que o vínculo das crianças e jovens com a tecnologia num mundo globalizado e com-plexo determina uma nova maneira de ser, uma nova forma de construção de identidade. E, considerando agora que o fim precípuo da gestão é servir a estes intentos, pode-se depreender o quanto é desafiadora esta nova realidade e suas inovadoras formas de social-idade. Então, nas palavras de Murdochowicz, “antes de julgar e avaliar, os adultos deveri-am, quem sabe, ter em conta a sociedade em seu conjunto e olhar os modelos que se ofere-cem diariamente aos adolescentes. Só então será possível encontrar as respostas que aju-dem a compreender melhor a cultura juvenil” (2012, p. 78).

A gestão, muito além do rotineiro re-curso a técnicas preformuladas, se vê ante o árduo desafio de imaginar os detalhes espe-cíficos das experiências concretas do outro, experiências essas que, gostemos ou não, são fundamentais na constituição da personalidade. As relações humanas representam hoje um espaço indeterminado aberto à experimentação, que significa abrir espaço para a vida e o olhar das outras pessoas, tanto no ver como no ser visto.

É hora de finalizar. A gestão é um encargo difícil em tempos difíceis. Mas é precisamente nesses momentos que a educação precisa de uma boa gestão. É nesses períodos de maior perturbação, instabilidade e incertezas que cabe à educação contribuir para manter o rumo e o rumo é o ser humano histórico, cultural e livre. Não se mantém o

rumo com queixas e lamúrias, nem com a entrega cega à rotina do quotidiano, das tarefas, da burocracia. Mantem-se o rumo pelo pensamento, pela criatividade, pela crítica e luta nos espaços adequados focados na formação integral e humana das futuras gerações, por mais distintas que sejam da nossa. Nosso compromisso não é tornar o futuro igual ao presente; nosso compromisso é tornar o futuro melhor, mais humano, mais ético e mais feliz. Para isso, precisamos ter objetivos e rumos, porque sem rumos não há caminhos.

O que define a educação hoje não são os problemas que tem, mas a maneira como os enfrenta. A única forma que temos é o pensamento, a inteligência, a criatividade, o diálogo. Os gestores têm que saber de sua responsabilidade porque a formação e o conhecimento são decisivos para o futuro do Brasil e dos brasileiros, estejam eles onde estiverem, no imenso chão desta nossa terra. Por muitas razões, a educação está em transformação e, se ela se transforma, deve transformar-se também a gestão. Não há como voltar às condições antigas, como parece ser o sonho dos saudosistas. Com tristeza e melancolia tais sonhos se desfazem no ar. O que nos cabe é inventar o futuro.

Recebido em: agosto de 2012 Aceito em: setembro de 2012

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. Educação e emancipação. S. Paulo: Paz e Terra, 1995.

BARATA-MOURA, J. Educação

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