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INTOLERÂNCIA CONTRA RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS: REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO INCENTIVO AO DIÁLOGO EM PREGAÇÕES CRISTÃS

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Laude Erandi Brandenburg**, Mateus Andrey Dolny***

Resumo: o presente artigo explora possibilidades de combate à intolerância religiosa

no Brasil por meio do incentivo ao diálogo em pregações cristãs. A partir de revisão bibliográfica, percebe-se que os índices de perseguição religiosa são maiores contra religiões de matriz afro do que contra religiões cristãs. Essa perseguição, tão antiga que ajudou a moldar as religiões afro-brasileiras em sua origem no processo de colonização e escravidão, hoje é incentivada pelo discurso anti-dialogal de igrejas neopentecostais contra essas religiões. Em um contexto ainda majoritariamente católico-cristão, o incentivo ao diálogo na pregação das igrejas cristãs surge como elemento importante na busca pela tolerância.

Palavras-chave: Intolerância Religiosa. Religiões Afro-brasileiras. Pregação. Ensino

Cristão. Diálogo.

A

motivação para o desenvolvimento da presente pesquisa surge a partir da leitu-ra de um artigo de Fabrício Veliq (2019) sobre intolerância religiosa no Bleitu-rasil. O artigo foi intitulado Da Intolerância ao Diálogo: um caminho necessário. Em sua pesquisa, o autor desenvolve um pouco o conceito de intolerância, reflete sobre a Verdade e o Medo como fontes de intolerância e termina sugerindo que uma visão trinitária de Deus deveria conduzir as pessoas cristãs a posicionamen-tos mais dialogais.

INTOLERÂNCIA CONTRA RELIGIÕES

AFRO-BRASILEIRAS: REFLEXÕES SOBRE

A IMPORTÂNCIA DO INCENTIVO AO

DIÁLOGO EM PREGAÇÕES CRISTÃS*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 31.01.2020. Aprovado em: 12.05.2020.

** Doutora em Teologia (Faculdades EST). Docente do Programa de Pós-graduação em Teologia, da Graduação em Teologia e da Licenciatura em Música (Faculdades EST). Líder do Grupo de Pesquisa Currículo, Identidade Religiosa e Práxis Educativa. E-mail: laude@est.edu.br

*** Mestrando em Teologia (Faculdades EST). Bolsista CNPq. Pesquisador do Grupo de Pes-quisa Currículo, Identidade Religiosa e Práxis Educativa. E-mail: mateus.ady@gmail.com

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Ao conferir os dados nas fontes disponibilizadas pelo autor, foi possível notar uma di-ferença discrepante entre a intolerância contra religiões de matrizes africanas e o restante das religiões no Brasil. Essa percepção levou o pesquisador e a pesquisadora a estruturar os dados a fim de visualizar a questão da intolerância religiosa ao longo dos últimos anos no Brasil. Como ficará mais claro ao longo da pesquisa, percebe-se que a perseguição às religiões de matrizes africanas não se dá apenas em maior quantidade, mas o índice de intolerância a essas religiões se mantém constantemente no topo ao longo dos últimos anos. Os ataques a essas religiões são variados. Vão desde o discurso de ódio até a destruição

de imagens, incêndios de casas, invasões de templos e agressões (MARTON, 2019). O discurso de ódio das igrejas cristãs, especialmente de algumas neo-pentecostais, e as atitudes desprezíveis de seus seguidores e de suas seguidoras contra as religiões de matrizes africanas não são eventos desconexos. O dis-curso motiva a ação. A liderança, seja ela qual for, pode incentivar práticas de tolerância ou de intolerância. E algumas lideranças neopentecostais têm feito um trabalho intencional de incentivo à intolerância.

Nesse sentido, propõe-se refletir sobre o tema em 3 etapas: primeiro, analisar o concei-to de inconcei-tolerância religiosa e refletir sobre a influência do sentimenconcei-to na práti-ca. Em seguida, refletir sobre os dados de intolerância no contexto brasileiro, focando-se especialmente em destacar os altos índices de denúncias de into-lerância religiosa contra as religiões de matrizes africanas. Por último, refletir sobre o poder do discurso de quem ensina fazendo um paralelo com as prega-ções de um escopo selecionado de igrejas cristãs. Será feita uma proposta de que as lideranças dessas igrejas têm a possibilidade de incentivar práticas de tolerância à maior parte da população brasileira, criando um movimento con-trário ao empreendimento neopentecostal1. Talvez esse possa ser um começo

para a transformação em nosso país.

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL: MAIS DO QUE UM TERMO

Intolerância religiosa, como sugere Rocha, pode ser uma prática resultante de senti-mentos relativos a uma perspectiva individualista e fechada de mundo. O autor supõe, por exemplo, que um desses sentimentos é o etnocentrismo, caracteri-zado como “uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos va-lores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA apud CUNHA, 2016, p. 17). O sentimento, assim, não estaria restrito a uma área da vida. Seria a base por meio da qual a pessoa interpreta e experiencia o mundo. Nesse sentido, ainda que em muitos lugares as religiões não sejam estritamente étnicas,

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pensado a partir dos próprios valores, não há diálogo. A partir dessa visão, re-sultam diferentes atitudes de intolerância. Afinal, por desconsiderar outras vi-sões, a recusa ao diálogo necessariamente culmina em ações que desprezam ou menosprezam a visão de mundo alheia. Conforme Miranda Filho (2007, p. 21): Do ponto de vista empírico, a intolerância é uma manifestação perversa, como cremos, de uma auto-afirmação [sic] excludente, particularista, tribalista, que institui fronteiras apenas com o propósito de demarcar o território do mesmo em relação ao outro, do nosso em relação ao deles – ‘os infiéis’ – numa ope-ração em que os segundos são sempre potencial ou realmente excluídos, senão eliminados. Ser intolerante é instituir uma identidade (de Ego, de grupo), com o propósito de negar ao outro sua humanidade, sua dignidade.

Portanto, a intolerância religiosa não se resume a um sentimento de desprezo, mas cul-mina em atitudes de exclusão, opressão e violência. É mais do que um termo. É um símbolo, um movimento, uma ação complexa que envolve a teoria com a prática. É negar a dignidade alheia. Essa prática “pode se manifestar inclusive no compartilhamento de locais ou transportes públicos, como no caso de uma mu-lher que por trajar um turbante branco [...] foi expulsa do ônibus em que viajava [...]” (SILVA, 2007a, p. 15). Assim como a intolerância não se restringe a uma área da vida, também não há restrições de espaços para a prática de intolerância. Com isto em mente, quer-se propor que a intolerância religiosa é reflexo de um pen-samento totalmente anti-dialogal. O entendimento de que se possui a verdade absoluta sobre todas as coisas leva à falta de abertura a diferentes pensamen-tos. A falta de abertura leva ao distanciamento. O distanciamento à incom-preensão. A incompreensão leva ao julgamento preconceituoso, ao medo e ao desprezo. O preconceito, o medo e o desprezo levam a práticas de exclusão e de ataque ao que é diferente.

Todas as pessoas vivem a partir de seus dogmas. As pessoas devem ser livres para ser quem são, desde quem acredita que a homossexualidade é pecado até quem pratica e vive diferentes tipos de sexualidades. O problema começa com a ausência do diálogo. Sem diálogo, estas duas pessoas não se compreendem e podem tentar (e, de fato, é o que costuma acontecer) impor sua visão de mundo uma sobre a outra, o que inevitavelmente leva à opressão, à intolerância e, pos-sivelmente, à violência (BRANDENBURG; DOLNY, 2019, p. 25).

No último tópico, será refletido sobre a importância do discurso de lideranças religiosas no ambiente de algumas igrejas cristãs brasileiras para o incentivo de posturas mais tolerantes e dialogais. Antes disso, julga-se fundamental perceber que a

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intolerância religiosa no país está bastante direcionada às religiões de matriz africana. Parte disso pode ser explicada pelo plano consciente e bem calculado de algumas igrejas neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de incentivo ao desprezo por essas religiões (ORO, 2007, p. 43). Verifica-se no Brasil das últimas duas décadas um acirramento dos ataques das igrejas neopentecostais contra as religiões afro-brasileiras [...]. Esse ataque é resultado de vários fatores, entre os quais podemos destacar: a disputa por adeptos de uma mesma origem socioeconômica, o tipo de cruzada proselitista adotada pelas igrejas neopentecostais [...] e, do ponto de vista do sistema sim-bólico, o papel que as entidades afro-brasileiras e suas práticas desempenham na estrutura ritual dessas igrejas como afirmação de uma cosmologia manique-ísta (SILVA, 2007a, p. 09-10).

Assim, algumas igrejas neopentecostais inspiram em sua membresia um posiciona-mento fechado, anti-dialogal. Hoje, figuram como uma das fontes de ódio e intolerância contra religiões de matriz africana. Seu projeto de dominação se baseia em estabelecer que o diálogo deve ser rejeitado e o proselitismo aceito como forma de salvação de pessoas ‘tomadas pelo demônio’, as quais personi-ficam o lado do mal na batalha maniqueísta incentivada por igrejas neopente-costais2. Entretanto, não se trata de algo totalmente novo. A seguir, propõe-se

uma breve reflexão sobre o histórico de desenvolvimento das religiões de ma-triz africana no Brasil, sob a perspectiva da opressão e da intolerância vivida por seus adeptos e suas adeptas desde o período escravagista até a intolerância incentivada por igrejas neopentecostais contemporâneas.

INTOLERÂNCIA CONTRA RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: DA COLONIZAÇÃO AO NEOPENTECOSTALISMO

Devido à subjetividade da questão da vivência religiosa, é difícil chegar a um nú-mero preciso em censos sobre a religiosidade de um contexto. Mais espe-cificamente, no contexto brasileiro, por causa da questão histórica e do sincretismo que o envolvem, essa dificuldade é intensificada. Constata-se, por exemplo, que “muitas pessoas que frequentam [sic] terreiros de um-banda com assiduidade são católicas” (SCHULTZ, 2005, p. 30). Por isso que, “no caso das religiões afro-brasileiras, o censo oferece sempre cifras subestimadas de seus seguidores” (PRANDI, 2003, p. 16). Essa dificuldade se dá especialmente pelas consequências das imposições dos colonizadores e da Igreja Católica na região.

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du-rante o processo de colonização das terras brasileiras. A região hoje chamada de Brasil, inclusive, foi a segunda maior importadora de escravos do período de ‘conquista’ (um eufemismo para genocídio e estupro de todos os povos da região) do ‘novo mundo’ (JENSEN, 1999, p. 275). Nesse processo, antes do estabelecimento da República, “para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e principalmente depois, sendo negro livre, era indispensável [...] ser católico. Por isso, os negros que recriaram no Brasil as religiões africanas [...] se diziam católicos e se comportavam como tais” (PRANDI, 2003, p. 16).

Oficialmente, somente no estabelecimento da República houve aceitação de outras re-ligiosidades além do catolicismo no contexto. Entretanto, mesmo depois do advento da República, a população afro-brasileira continuou a se identificar como católica. Consequentemente, houve um processo de sincretismo religio-so, no qual as religiões afro-brasileiras assimilaram para si partes não só do catolicismo, mas do espiritismo e de religiões indígenas (PRANDI, 2003, p. 16-20). Juntamente com a Umbanda, que mesclou catolicismo, espiritismo e religiões de matriz africana a partir do século vinte, afirma Schultz (2005, p. 54-55) que

essas religiões consolidaram-se como estruturas independentes em diferentes lugares do país, com diferentes nomes segundo a origem da tradição ou nação africana. Assim, na BA surge o candomblé; no RJ, a macumba; em PE, o xangô; no RS, o batuque, no MA e PA, o tambor de mina etc3.

Mesmo assim, apesar do estabelecimento dessas novas e independentes religiões, per-cebe-se que o desenvolvimento e a vivência de religiões afro-brasileiras sem-pre tiveram uma relação íntima com o catolicismo. A obrigação de agir como católica, fez com que a população afro-brasileira vivesse períodos de opressão religiosa que culminou em um processo de sincretismo4. E assim, durante um

período de mais de três séculos, pessoas foram trazidas de diferentes países do continente africano para servirem como escravas e viverem sob as práticas de uma religião imposta. E, ainda que oficialmente a escravidão tenha sido abolida em 1888, somente nos anos 1930 a população afro-brasileira teve o primeiro acesso a oportunidades em larga escala de trabalho formal (SAN-SONE, 2002, p. 254). E apenas aproximadamente 40 anos depois, a partir dos anos 1970, devido às novas ascensões sociais possibilitadas pela economia brasileira, a população negra experienciou a possibilidade de organizar asso-ciações para buscar reconhecimento de sua cultura (SANSONE, 2002, p. 255). As consequências da colonização e da escravidão para a tentativa do

estabelecimen-to vivencial, econômico, religioso e cultural da população afro-brasileira são enormes. Contando até os anos 1970, são quatro séculos de opressão,

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exclu-são, humilhação, abuso e falta de oportunidades separados por menos de meio século do momento em que essa pesquisa é elaborada. Não se pode ignorar todos estes fatores. Apesar disso, o foco aqui é a espiritualidade. Nesse senti-do, sobre o aspecto religioso, afirma Prandi (1998, p. 155):

Só muito recentemente as religiões de origem negra começaram a se desligar do catolicismo, já numa época em que a sociedade brasileira não precisa mais do catolicismo como a grande e única fonte de transcendência que possa legitimá-la e fornecer-lhe os controles valorativos da vida social.

Esse período de mudança recente, entretanto, não parece culminar com um momento de tolerância e liberdade religiosa para pessoas adeptas a religiões de matriz africana. Apesar da perda de força e influência do Catolicismo, uma outra e mais nova religião cristã tem ganhado cada vez mais proporções e influência no contexto brasileiro: o neopentecostalismo. Conforme Silva (2007b, p. 207-208), o neopentecostalismo surge nos anos de 1970 propondo uma batalha es-piritual contra outras denominações religiosas. Nesse incentivo, que pode ser definido também como incentivo à intolerância, as religiões afro-brasileiras são tidas como o principal inimigo a ser combatido. As motivações para este ataque são definidas por Silva (2007b, p. 208-209) da seguinte maneira: O ataque às religiões afro-brasileiras, mais do que uma estratégia de prose-litismo junto às populações de baixo nível socioeconômico, potencialmente consumidoras dos repertórios religiosos afro-brasileiros e neopentecostais, é consequência [sic] do papel que as mediações mágicas e a experiência do tran-se religioso ocupam na própria dinâmica do sistema neopentecostal em conta-to com o repertório afro-brasileiro. O desenvolvimenconta-to recente do caconta-tolicismo carismático atestaria a demanda crescente por tais mediações também nesse segmento religioso majoritário. No Brasil, enquanto os processos de seculariza-ção e racionalizaseculariza-ção atingiam os setores cristãos (catolicismo, protestantismo histórico etc.), o pentecostalismo surgiu como uma possibilidade, ainda tímida na primeira e segunda fases, mas muito forte na terceira, de valorização da ex-periência do avivamento religioso. No neopentecostalismo, essa característica radicaliza-se em termos de transformá-la em uma religião da experiência vivida no próprio corpo, característica que tradicionalmente esteve sob a hegemonia das religiões afro-brasileiras e do espiritismo kardecista. Combater essas reli-giões pode ser, portanto, menos uma estratégia proselitista voltada para retirar fiéis deste segmento — embora tenha esse efeito — e mais uma forma de atrair fiéis ávidos pela experiência de religiões com forte apelo mágico, extáticas, com a vantagem da legitimidade social conquistada pelo campo religioso cristão.

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Nesse processo de conquista do ‘novo mundo religioso’, pessoas participantes de igre-jas neopentecostais são incentivadas ao ataque às pessoas adeptas a religi-ões de matriz africana. É um projeto bem estruturado de dominação. Ambas as religiões costumam disputar por um mesmo público-alvo. Para conseguir conquistar um maior número de adeptos e adeptas, igrejas neopentecostais in-cluem em suas práticas um intencional incentivo ao desprezo e ao ódio pelas religiões de matriz africana. Mas, explica-se essa ação com princípios teológi-cos próprios. Como sugere Silva (2007a, p. 10-11):

Os ataques feitos no âmbito das práticas rituais das igrejas neopentecostais e de seus meios de divulgação e proselitismo têm como ponto de partida uma teologia assentada na idéia [sic] de que a causa de grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas. Caberia, aos fiéis, segundo essa visão, dar prosseguimento à obra iniciada por Jesus Cristo de combate a tais demônios [...]. O panteão afro-brasileiro é especialmente alvo deste ataque [...].

Como na reflexão anterior, entretanto, religião e doutrina, assim como a intolerân-cia religiosa, não estão desvinculadas de práticas. O pensamento, moldado pelo ensino das igrejas, molda a prática. Por isso, Silva (2007a, p. 12) constata que:

Insuflados por essa crença [de que as religiões afro-brasileiras devem ser combatidas], os membros das igrejas neopentecostais muitas vezes invadem terreiros visando destruir altares, a quebrar imagens e a ‘exorcizar’ seus fre-qüentadores [sic], o que geralmente termina em agressão física. No Rio de Janeiro, umbandistas do Centro Espírita Irmãos Frei da Luz foram agredidos com pedradas pelos freqüentadores [sic] de uma Iurd situada ao lado desse Centro, na Abolição.

É a consequência da criação desta imagem de um inimigo a ser combatido. Este ini-migo é combatido por meio de ataques às pessoas participantes de religiões de matriz africana. As pessoas sustentam a existência da crença. Por isso, a discurso de intolerância contra estas religiões acaba culminando em práticas agressivas de opressão e exclusão. E, nesse contexto histórico complicado de desenvolvimento das religiões de matriz africana no Brasil, os dados de per-seguição dos últimos anos apontam para uma perper-seguição constante a estas religiões. Estes dados serão expostos a seguir.

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A INTOLERÂNCIA EM NÚMEROS: RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM EVIDÊNCIA

Logo ao início do artigo que motivou a presente pesquisa, o autor faz algumas afirma-ções instigantes. Segundo Veliq (2019, p. 126-7):

A intolerância religiosa é uma realidade que afeta grande parte da população mundial. No Brasil, conforme dados divulgados no Jornal Estadão de 12 de novembro de 2017, o Ministério dos Direitos Humanos apurou que de janeiro de 2015 até o primeiro semestre de 2017, houve uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas no país.

Este número, que por si só já se mostra extremamente alto, torna-se mais preo-cupante com a informação dada pela Agência Brasil de que, no Rio de Janeiro, no período de janeiro a março de 2018, os casos de intolerância religiosa subi-ram 56% em comparação ao primeiro trimestre de 2017.

Para se falar sobre os índices de perseguição e intolerância religiosas, seria interessante fazer algum tipo de comparação. Sem ela, não sabemos se uma denúncia de intolerância a cada 15 horas no Brasil é um índice ‘extremamente alto’. O aumento dos casos de intolerância no Rio de Janeiro, por si só, fornece uma comparação: entre os anos de 2017 e 2018. Entretanto, as informações disponibilizadas pelo site de notícias Estadão sobre a intolerância no Brasil não permitem comparações. O autor tam-bém não propõe alguma. Mas, ao conferir nas fontes se havia alguma comparação não citada, percebeu-se que os números para as diferentes religiões são bastante desiguais. O número de denúncias de intolerância religiosa contra religiões de ma-triz africana é bem maior do que contra as demais religiões brasileiras.

Nesse sentido, propõe-se uma releitura dos dados a fim de apontar para um tipo de problema mais específico: a intolerância religiosa contra religiões de matriz africana. Essa proposta surge a partir da leitura dos dados de perseguição re-ligiosa às diversas religiões no Brasil e ao cristianismo ao redor do mundo. Busca-se, primeiramente, analisar se a perseguição ao cristianismo no Brasil tem números ‘extremamente altos’. Existem diferentes censos sobre religião e perseguição ao cristianismo a nível mundial. Entre eles, destaca-se a pesquisa anual feita pelo grupo Open Doors, localizado nos Estados Unidos. Este grupo é, na verdade, uma missão vinculada a nenhuma instituição, focada no apoio às pessoas cristãs perseguidas nos locais mais perigosos do mundo. A partir da leitura dessa pesquisa, percebe-se que o Brasil não é um país com alto índice de perseguição às pessoas cristãs.

A pesquisa, que lista os 50 países com os maiores índices de perseguição às pessoas cristãs, se chama World Watch List. De maneira resumida, a metodologia é

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constituída por pontuações dadas à pressão vivenciada pelas pessoas cristãs em diferentes esferas da vida (privada, familiar, em comunidade, nacional e na igreja), somadas a uma pontuação dada aos índices de violência contra pes-soas por causa de sua fé cristã. Quanto maior o número das pontuações, mais próximo ao primeiro lugar se encontra o país (OPEN DOORS, 2020, p. 02). Com o suporte dessa pesquisa, quer-se destacar dois pontos importantes:

primeiramen-te, percebe-se que o Brasil não está no ranking dos 50 países mais perigosos para se viver a fé cristã. Nesse sentido, talvez os dados do Brasil destacados anteriormente, lidos como um único índice (sem pensar nos números especí-ficos para cada religião), não sejam ‘extremamente altos’ em relação ao cris-tianismo mundial. Essa poderia ser uma definição para os números da Coréia do Norte, por exemplo, onde além da população ser majoritariamente ateia, também se costuma prender ou matar as pessoas que são descobertas como cristãs (OPEN DOORS, 2020, p. 07).

Em segundo lugar, percebe-se também que, excetuando-se a Colômbia, número 41 do ranking, todos os outros 49 países se localizam na África, na Ásia e na Ocea-nia. Nos contextos da Europa e das Américas, devido ao histórico de formação e colonização (no caso das Américas) intimamente conectados com a difusão do cristianismo católico, a perseguição às pessoas cristãs, que compõem a maioria da população, não é alta. E isso fica mais evidente quando se destrin-cham os dados de intolerância no Brasil.

Acontece que não podemos deixar de falar de intolerância religiosa no Brasil sem destacar os altos números de perseguição às religiões de matriz africana. Se-gundo dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a diferença entre os dados de perseguição a religiões de matriz afro e a religiões cristãs nos últimos anos é significativa. A seguir, disponibiliza-se uma tabela baseada nas informações disponibilizadas pelo Ministério em seu site para facilitar a visualização dos números. Trata-se de uma tabela simples que compreende a porcentagem do total de denúncias de intolerância a di-ferentes religiões (Umbanda, Candomblé, demais de matriz africana, o total dessas e, para fins de comparação, Católica e Evangélica) em cada ano, desde 2014 até 2018.

Tabela 1: Relação de denúncias: religião x porcentagem

RELIGIÃO 2014 2015 2016 2017 2018

UMBANDA 11,41% 2,52% 9,75% 10,06% 14,23%

CANDOMBLÉ 8,72% 6,65% 9,09% 9,68% 9,29%

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Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2019)

Especialmente nos últimos três anos, a diferença entre a porcentagem de denúncias contra as principais denominações cristãs e contra as religiões de matriz afri-cana. Em 2016, o número para religiões de matriz africana é quase 5 vezes o total da Católica e da Evangélica, quase 3 vezes em 2017 e 6 vezes em 2018. Além disso, chama a atenção a regularidade da diferença. Não se trata de um ou outro ano em que houve um surto de intolerância. Durante (pelo menos) esses 5 anos, as religiões de matriz africana sempre foram mais vezes alvo de intolerância religiosa registrada.

Mais impressionante do que apenas olhar para estes números é pensar em sua relação com o contexto brasileiro. Afinal, essa porcentagem não é relativa à quantida-de quantida-de quantida-denúncias calculadas proporcionalmente ao número quantida-de pessoas aquantida-deptas àquelas religiões. Essa porcentagem é relativa ao total de denúncias. Assim, no Brasil, maior país católico do mundo, que, em seus últimos censos, registra 86,8% de sua população como cristã (formada quase inteiramente por pessoas católicas e evangélicas) (ALVES, 2017, p. 216), o índice de 2018 de denún-cias de intolerância religiosa contra a fé cristã foi aproximadamente 6 vezes menor do que contra religiões de matriz africana, que constituem uma parcela muitíssimo inferior da população.

Entende-se os limites da presente pesquisa. Para uma reflexão mais profunda sobre a situação, uma pesquisa sociológica, antropológica e teológica mais abrangente seria necessária. Certamente estudos sobre racismo, preconceito, influência do período de escravidão e da desigualdade econômica, para citar apenas alguns, podem contribuir para uma visão mais completa daquilo que faz com que estes dados sobre perseguição demonstrem tal realidade. Será bom se esta pesqui-sa incentivar alguém a explorar algo nesse sentido. De qualquer forma, tais dados demostram que, em denúncias que identificam as religiões atacadas, as religiões de matriz africana estão em clara evidência. E, em um país com uma religiosidade tão diversa quanto o Brasil (SCHULTZ, 2012, p. 29-63), chama a atenção essa preferência constante.

continua... RELIGIÃO 2014 2015 2016 2017 2018 DEMAIS DE MA-TRIZ AFRICANA 4,03% 4,86% 4,35% 7,08% 5,53% TOTAL (MATRIZ AFRICANA) 24,16% 14,03% 23,19% 26,82% 29,05% CATÓLICA 6,04% 2,34% 1,84% 5,77% 1,98% EVANGÉLICA 10,74% 3,60% 2,77% 5,03% 4,55%

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É importante que se pensem maneiras de transformar essa situação. Os mesmos da-dos permitem ainda o levantamento de uma outra hipótese: é provável que as igrejas cristãs, devido às suas grandes proporções no contexto brasileiro, te-nham grande influência e, por isso, suas lideranças tete-nham a possibilidade de incentivar a maioria da população brasileira a terem práticas mais tolerantes. Uma ação assim faria um contraponto ao plano de incentivo à intolerância de igrejas neopentecostais. A seguir, sob a perspectiva do incentivo ao diálogo como principal fonte de geração de tolerância, será pensado como o discurso tem o poder de moldar as práticas de quem o ouve.

PREGAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO: DIÁLOGO PARA COMBATER A INTOLERÂNCIA

Como disse uma vez Nelson Mandela, pensando na transformação de um contexto de opressão, a melhor e mais poderosa arma com a qual as pessoas podem se equipar é a educação (LIMB, 2008, p. 100). A educação, assim, não é tida como um mero auxílio de absorção cognitiva de conhecimentos e de aprofun-damento em determinados conteúdos. A educação pode ser vista como um ins-trumento que possibilita a transformação de realidades, que podem ser opres-sivas de diversas maneiras. Nesse sentido, ela pode ser usada para ambos os lados: para o incentivo à intolerância ou para o incentivo à abertura e a busca pelo diálogo. Pode dar forças a movimentos fundamentalistas ou fortalecer laços entre pessoas de diferentes religiosidades. Dessa maneira, entende-se que a pregação da igreja cristã possibilita a criação de um movimento que cria um contraponto ao empreendimento neopentecostal de incentivo à intolerân-cia contra religiões de matriz africana, mas também a qualquer sentimento de intolerância vivenciado por membros da igreja cristã. Para entender melhor essa aplicação, julga-se necessário definir bem os termos.

‘Igreja cristã’, ‘ministro’, ‘ministra’ e ‘pregação’ são termos que podem ser utilizados com sentidos e significados muito diferentes. As formas de culto e de pregação no Brasil são diversas e variadas. Por isso, faz-se um recorte para pensar em possibilidades de incentivar a tolerância a partir do discurso. Dessa maneira, será possível propor novas perspectivas que podem ser bem aplicadas. Afinal, trata-se de uma proposta bastante prática que depende de algumas caracterís-ticas básicas para poder ser aplicada.

No presente trabalho, o termo ‘ministro’ e ‘ministra’ quer englobar a pessoa que lidera a comunidade religiosa cristã, não importando a quantidade de lideranças que se tenha em uma denominação. O que importa é que seja a pessoa responsável pela ‘pregação’ nos cultos. Com ‘pregação’, não se quer falar sobre toda e qualquer atividade do ministro e da ministra, como quando se entende todo o

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agir ministerial como forma de anunciar (ou pregar) o Evangelho. O sentido neste trabalho é restrito: pregação é o momento da prédica, da homilia, do sermão. É apenas uma das partes da liturgia do culto tradicional cristão, junto com as orações e a confissão de pecados, por exemplo.

Por fim, com ‘igreja cristã’, quer-se abranger algumas das igrejas cristãs históricas no Brasil. Assim, exclui-se as igrejas pentecostais e neopentecostais, por exem-plo. Com esse termo, refere-se apenas às igrejas Católica Apostólica Romana, Luterana, Presbiteriana e Anglicana. Dessa maneira, seleciona-se um escopo bem delimitado no qual se pensa a pregação em um contexto de cultos e práti-cas litúrgipráti-cas bastante semelhantes (WHITE, 1997, p. 29-34). Nesses cultos, o momento de pregação é um dos elementos fundamentais, no qual o ministro e a ministra tem a liberdade de ensinar às pessoas da comunidade.

Nesse sentido, é interessante perceber as semelhanças entre a pregação e o ensino de docentes nas escolas. O formato tradicional de ensino engloba uma sala de aula com cadeiras enfileiradas voltadas para frente, onde a pessoa docente permanece como centro das atenções. Ali se expõem os conhecimentos sobre determinados assuntos e as pessoas aprendizes escutam o discurso da pessoa docente. No culto, o que muda é apenas o conteúdo ensinado e o local de ensi-no. A pregação tradicional consiste em um momento dentro da capela de uma igreja com cadeiras enfileiradas voltadas para frente, onde a pessoa pregadora tem um tempo de ensino. Ali, expõem-se princípios doutrinários e suas even-tuais aplicações para a vida das pessoas da comunidade.

Esse momento tem grande importância para o culto e o viver cristãos. Segundo Adam (2013, p. 162):

Nada é mais vital para a vida e sobrevivência da igreja do que o culto e, dentro dele, a pregação. É pela pregação – em sua graciosa articulação divina e hu-mana – que a fé é gestada e nutrida. Essa fé viva mantém a igreja viva. Ou seja, descuidar da pregação significa colocar, no mínimo, a fé em risco, e, junto com ela a própria igreja; junto com a igreja, a própria teologia. Em pleno século XXI, pregar no culto cristão é tarefa sublime e, ao mesmo tempo, tarefa comple-xa e desafiadora.

Trata-se de algo fundamental para o desenvolvimento e o fortalecimento da fé cristã. Por meio da pregação é possível influenciar a vida das pessoas da comunidade cristã. Por um lado, pode-se incentivar o ódio e a intolerância, como no caso de algumas igrejas neopentecostais. Por outro, poderia servir como fonte de in-centivo ao cuidado, ao amor, ao diálogo e, por isso, à tolerância. Entretanto, o Brasil enfrenta um momento de crise na pregação cristã. Adam (2013, p. 161) afirma que “a prédica, além de não comunicar, não agradar, não surte os efeitos

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sociais, culturais, espirituais de outrora. Não alimenta como alimentou. Não mais ajuda a responder e apontar saídas diante das crises dos novos tempos”. Ao contrário do que se tem colocado em prática, ir ao encontro dos diferentes tipos

pro-blemas enfrentados pelas sociedades e buscar soluções para eles é justamente o que caracteriza o viver cristão neste mundo. Segundo Volkmann (2011, p. 157), é o que caracteriza o próprio da igreja cristã:

Ou ela [a comunidade; a igreja] é missionária ou ela deixa de ser igreja. Porque o próprio Deus é missionário. Por isso o lema para a igreja não é: fazer crescer a igreja aumentando o número de seus membros, mas é: serviço ao mundo em favor do Shalom de Deus. Por isso uma comunidade não deve visar, em primei-ro lugar, a si mesma, mas deve estar voltada para as necessidades do mundo. E nessa tarefa ela pode e deve colaborar com todas as demais instâncias que têm em vista um mundo mais sadio, mais fraterno, mais humano.

Assim, pode-se afirmar que a pregação cristã alcança seu objetivo quando prepara a comunidade para ir ao encontro das necessidades do mundo. Nesse sentido, “o discurso sobre a fé parte da vida cristã da comunidade e se orienta para ela. Uma reflexão que não nos ajuda a viver segundo o Espírito não é uma teologia cristã [...]. Isto não elimina seu caráter rigoroso e científico. Simplesmente o situa” (GUTIÉRREZ, 1987, p. 50). A pregação, portanto, pode ser vista como elemento fundamental no processo de transformação. Por ser um momento especial e importante nos cultos cristãos, pode preparar, através do ensino, a comunidade cristã para compreender e transformar os diferentes contextos de opressões, dificuldades e dores. Aqui, destaca-se especialmente o contexto de intolerância religiosa.

José Libâneo é um defensor dessa visão quanto a qualquer prática educativa. Autor da área de Educação, Libâneo (2006, p. 16-17) defende que o ensino está intima-mente relacionado com as possíveis e desejadas transformações sociais: o trabalho docente é parte integrante do processo educativo mais global pelo qual os membros da sociedade são preparados para a participação na vida social. [...] Cada sociedade precisa cuidar da formação dos indivíduos, auxiliar no desenvolvimento de suas capacidades físicas e espirituais, prepara-los para a participação ativa e transformadora nas várias instâncias da vida social. Não há sociedade sem prática educativa nem prática educativa sem sociedade. A prática educativa não é apenas uma exigência da vida em sociedade, mas também o processo de prover os indivíduos dos conhecimentos e experiências culturais que os tornam aptos a atuar no meio social e transformá-lo em função de necessidades econômicas, sociais e políticas da coletividade.

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A pregação, enquanto prática educativa dentro do contexto da igreja cristã, teria, por-tanto, essa finalidade de preparar as pessoas da comunidade para conhecer e transformar os diferentes contextos. Especialmente pelas proporções da igreja cristã no Brasil, pode-se entender a pregação como parte do ensino presente na sociedade, de forma que se caracterize como uma das possibilidades de trans-formação. Em uma sociedade religiosamente diversa, supõe-se que o elemento fundamental para esse processo seja o incentivo ao diálogo.

O pluralismo religioso apresenta como exigência o diálogo entre as diferentes tradições e culturas religiosas e o alargamento das fronteiras. O diálogo neces-sita acontecer não somente entre as diferentes tradições religiosas, mas também com toda a sociedade que nem sempre está aberta à alteridade e ao diálogo respeitoso com aqueles e aquelas que expressam a sua fé de forma diferente do que a maioria, no caso do Brasil, a religião de matriz cristã (SILVA; ULRICH, 2017, p. 88).

Estes dois contextos brasileiros – de diversidade religiosa e de intolerância contra reli-giões de matriz africana – exigem o esforço pelo diálogo. A falta de abertura e o desconhecimento das diferentes religiões e religiosidades levam à intolerân-cia. Nesse sentido, os ministros e as ministras da igreja cristã têm, por meio de sua pregação, a possibilidade de fortalecer ou enfraquecer o sentimento e a prática de intolerância religiosa. E a chave para a mudança de um para outro está no diálogo. No relatório Delors (1998, p. 98), encaminhando pela UNES-CO para se pensar sobre aspectos importantes para a Educação do século vinte e um, afirma-se:

Por fim, os métodos de ensino não devem ir contra este reconhecimento do ou-tro. Os professores que, por dogmatismo, matam a curiosidade ou o espírito crítico dos seus alunos, em vez de os desenvolver, podem ser mais prejudiciais do que úteis. Esquecendo que funcionam como modelos, com esta sua atitude arriscam-se a enfraquecer por toda a vida nos alunos a capacidade de abertura à alteridade e de enfrentar as inevitáveis tensões entre pessoas, grupos e nações. O confronto através do diálogo e da troca de argumentos é um dos instrumentos indispensáveis à educação do século XXI.

Dessa forma, o incentivo ao diálogo começa pela própria atitude da pessoa responsável pelo ensino. No caso das igrejas cristãs, são os ministros e as ministras. Dentro do contexto da igreja cristã, inclusive, o dogmatismo fundamentalista é espe-cialmente perigoso. Afinal, ali se ensina sobre verdades absolutas sobre coisas relativas à fé e a vida (BRANDENBURG; DOLNY, 2019, p. 22). Entretanto,

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se por isso não se incentiva a curiosidade e a abertura ao diálogo com outras religiões, pode-se incentivar o fechamento ao que é diferente. Esse fechamen-to culmina em mais infechamen-tolerância religiosa. Pois, como afirmam Silva e Ulrich (2017, p. 89):

É na relação respeitosa com o outro que o autoconhecimento também se realiza. Quando se negligencia o intercâmbio criativo entre as religiões, elas se tornam guetos, considerando-se portadoras de verdades únicas, fortalecendo a into-lerância religiosa, gerando violências, como a que temos assistido no Brasil, especialmente, contra as religiões de matriz africana.

Assim, supõe-se que seja possível iniciar um movimento de incentivo à tolerância a partir da pregação cristã. Se o diálogo e a abertura para a compreensão da fé e da visão de mundo alheias forem incentivadas e colocadas em prática pelo mi-nistro e pela ministra, é possível que a comunidade cristã, enquanto aprendiz do ensino da igreja cristã, comece a ser (re)constituída por um sentimento de tolerância religiosa. Esse movimento poderia surgir como contraponto ao em-preendimento neopentecostal de incentivo à intolerância. Com isso, as pessoas da comunidade cristã estariam sendo preparadas para transformar o contexto conforme suas necessidades. Afinal, além de conhecer melhor o contexto reli-gioso diverso e complexo do Brasil, as pessoas da comunidade cristã também estariam sendo incentivadas ao reconhecimento da dignidade da fé alheia e, consequentemente, da dignidade da vida alheia.

CONCLUSÃO

Intolerância religiosa é um mal presente na sociedade brasileira. Esse mal, entretanto, é direcionado em larga escala às religiões de matriz africana. Nesse sentido, quando se pensa em intolerância religiosa no Brasil, é importante considerar que alguns grupos religiosos, especialmente os do cristianismo, não sofrem perseguição como estas religiões. Nessa perseguição, dois fatos são especial-mente importantes: 1) intolerância religiosa não é apenas sentimento, mas prática excludente e opressora; 2) a perseguição não afeta apenas as religiões enquanto estruturas físicas e teóricas, mas afeta a vida das pessoas religiosas, que sofrem grandes perdas em decorrência da intolerância.

Frente a este mal decorrente de uma visão de mundo individualista e anti-dialogal, é importante pensar em possibilidades de transformação. A partir da prática e do incentivo ao diálogo, é possível que a tolerância também seja colocada em prática pelas pessoas da igreja cristã. Neste caso, o Brasil estaria ganhan-do aliaganhan-dos e aliadas muito importantes na luta contra a intolerância religiosa.

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Afinal, as igrejas cristãs ainda constituem a maior parte da religiosidade bra-sileira. Por isso, um movimento de incentivo à tolerância poderia contrapor a intolerância religiosa mantida pelo discurso de algumas igrejas neopentecos-tais. Não se sabe exatamente as consequências de um movimento de tamanha escala. Trata-se de uma proposta baseada em argumentos do campo da Ho-milética e da Educação, que sugerem que há de fato uma influência exercida pelo incentivo ao diálogo. De toda forma, entende-se que a pregação cristã não pode ser vista como a única ferramenta de transformação, como se pudesse ser caracterizada como a salvação da sociedade brasileira. É só mais uma possibi-lidade. Mas sempre se deve começar de algum lugar. Quem sabe o incentivo ao diálogo pode ser um desses começos.

INTOLERANCE AGAINST AFRO-BRAZILIAN RELIGIONS: THOUGHTS ON THE IMPORTANCE OF ENCOURAGING DIALOGUE IN CHRISTIAN PREACHING

Abstract: the research explores possibilities of combating religious intolerance in

Brazil by encouraging dialogue in Christian preaching. After a literature review, it is clear that the rates of religious persecution are higher against African-based religions than against Christian religions. This persecution, so old that it helped to shape Afro-Brazilian religions in their origin in the process of colonization and slavery, is today encouraged by the anti-dialogical discourse of neo-Pentecostal churches against these religions. In a context still mostly Catholic-Christian, the encouragement of dialogue in the preaching of Christian churches appears as an important element in the search for tolerance.

Keywords: Religious Intolerance. Afro-brazilian Religions. Preaching. Christian

Teaching. Dialogue.

Notas

1 O ‘empreendimento neopentecostal’ é o intencional incentivo de algumas igrejas neopente-costais à intolerância contra religiões de matrizes africanas. O tema será trabalhado adiante. 2 Julga-se importante estabelecer que, de maneira alguma, quer-se incentivar a intolerância contra igrejas neopentecostais. A presente pesquisa propõe a análise de uma parte bem de-limitada de todo o trabalho dessas igrejas. Não se pretende criar um movimento semelhante ao analisado e julgar igrejas neopentecostais como o lado do mal em uma suposta batalha maniqueísta. Pessoas de outras denominações podem ser intolerantes, bem como podem ser tolerantes participantes de igrejas neopentecostais. O que se quer aqui é exclusivamente analisar a bibliografia sobre o discurso neopentecostal em relação às religiões de matriz africana, sem que, com isso, feche-se ao diálogo com igrejas neopentecostais. Sobre a boa influência dessas igrejas na sociedade (ROCHA; TORRES, 2009, p. 205-240).

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3 Para melhor compreensão sobre a cosmovisão das diversas religiões afro-brasileiras e a história de seu desenvolvimento, cf. Carneiro (2019); Manoel (2012) e Prandi (2001). 4 A análise da presente pesquisa tem como perspectiva principalmente a questão da opressão

religiosa. Entretanto, não há como deixar de afirmar que o comércio de pessoas africanas para serem usadas como escravas é uma realidade histórica horrível, que não pode ser tratada como mero dado histórico. Trata-se de um dos episódios mais tristes e inaceitáveis da história. A questão da opressão religiosa é só uma entre tantas práticas abomináveis do processo de colonização do novo mundo.

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Tabela 1: Relação de denúncias: religião x porcentagem

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