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Origem, nascimento e batismo: análise sociológica sobre a concepção do caráter nacional e a origem da ideia do malandro na obra Memórias de um sargento de milícias

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Ederson Duda da Silva Enderson Santos Oliveira

análise sociológica sobre a concepção do

caráter nacional e a origem da ideia do malandro

na obra Memórias de um sargento de milícias

(langduda@gmail.com) (enderson460@gmail.com) Graduandos em Sociologia e Política pela FESPSP

Resumo

O objetivo deste artigo é discutir, com apoio de Candido (1993) e de Andrade (1978), a relevância da obra Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, na literatura brasileira. Abrangeremos para o campo da sociologia em que iremos debater, principalmente, a concepção de caráter nacional e a ideia de “malandro”, assim intitulado por Candido. Em seguida, com ajuda dos estudiosos da sociedade brasileira, como Chaui (2007), Leite (2002) e Oliveira (2012), iremos levantar a problemática sobre a ideia de caráter nacional, a fim de podermos compreender tal conceito dentro da referida obra. Nossa hipótese é a de que por não retratar os conflitos de classes sociais, a obra de Almeida não carrega a ideia de caráter nacional ou ethos do povo brasileiro.

Palavras-chave

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1. O romance social e obra de Manuel

Antônio de Almeida

A história do século XIX pode ser apresentada como a da “construção de nações” (HOBSBAWM, 1990), a construção da ideia de identidade nacional. Também pode ser apresentada através do avanço da industrialização, a concentração de pessoas e a consequente urbanização das cidades - em escala nunca antes vista, criando novas formas de desigualdades.

Neste mesmo período, houve uma resposta da literatura aos impactos da industrialização e as transformações sofridas pela sociedade. Pela primeira vez a miséria e a desigualdade se tornaram um espetáculo inevitável aos olhos da sociedade. Desta maneira, escritores ligados as correntes do Romantismo perceberam essa realidade desigual no seio das sociedades modernas e começaram a colocar, cada vez mais, o pobre como tema importante, tratando-o com dignidade, não mais como delinquente, personagem cômico ou pitoresco.

Ao contrário do romance épico, onde a narrativa procurava exaltar as qualidades idealizadas do herói (geralmente retratando a aristocracia e a monarquia), o romance social que surge no contexto destes escritores do século XIX, procura dar ênfase à narração dos costumes, das motivações comportamentais e dos padrões de conduta da vida social.

Para Candido (1993), Os miseráveis, de Victor

Hugo, seria o livro mais emblemático deste período, onde o romance social traria cortes humanitários, com toques messiânicos, focalizando as camadas populares e o precarizado como tema devidamente importante a ser tratado. Assim, a partir desta época a literatura romântica desenvolveu cada vez mais a crítica visando o lado social, como viria a acontecer com o Naturalismo

e o Realismo posteriormente, que buscaria retratar como personagens centrais o operário, o camponês, o pequeno artesão, a prostituta e o descriminado em geral (CANDIDO, 1993).

No contexto brasileiro, ainda no século XIX, Manuel Antônio de Almeida, no seu único romance

Memórias de um sargento de milícias, também foge

completamente aos postulados do idealismo romântico, descartando o psicologismo do romance épico e escapando ao sentimentalismo e ao heroísmo para enveredar pela crônica de costumes e tipos urbanos, vistos pelo ângulo cômico das classes populares do Rio de Janeiro.

O que distingue essa obra das narrativas brasileiras da época é que Almeida a apresenta através de um realismo corriqueiro, que pode ser percebido na reprodução de hábitos comuns da sociedade e que faziam parte de sua vivência, retratando o sujeito popular ao invés de heróis e heroínas das classes altas.

Memórias surge inicialmente como um romance

de folhetim, no suplemento dominical Pacotilha do

jornal O Correio Mercantil do Rio de Janeiro, onde os

capítulos apareceram sem autoria e, em seguida, quando da edição em livro, em dois volumes, entre 1854 e 1855, a autoria foi atribuída como sendo à de “um brasileiro”. É uma obra coberta por senso crítico e de consciência da existência de uma realidade permeada pelas desigualdades sociais. O romance busca, sobretudo, destacar assuntos relevantes da sociedade carioca em questão. E como coloca Mário de Andrade:

As Memórias de um sargento de milícias são um desses

livros que de vez em quando aparecem mesmo, por assim dizer, à margem das literaturas. O que leva os seus autores a criá-los é especialmente um reacionarismo temperamental que os põe contra a retórica de seu tempo e antes de mais nada contra a vida tal como é, que eles então gozam a valer, lhe exagerando propositalmente

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o perfil dos casos e dos homens, pelo cômico, pelo humorismo, pelo sarcasmo, pelo grotesco e o caricato (ANDRADE, 1978, p. 312-313).

A obra de Almeida utiliza-se da análise e da compreensão da sociedade carioca, em particular, e da sociedade brasileira, em geral, cuja dimensão mais profunda estaria no ato de captar não só os costumes do Rio de Janeiro, mas o espírito, o ethos brasileiro –

principalmente por retratar a sociedade carioca a partir da visão popular e não da classe dominante no período retratado.

Assim, resgatando Candido:

[...] o livro de Manuel Antônio é talvez o único em nossa literatura do século XIX que não exprime uma visão de classe dominante [...]. Pelo fato de ser um principiante sem compromissos com a literatura estabelecida, além de resguardado pelo anonimato, Manuel Antônio ficou à vontade e aberto para as inspirações do ritmo popular. Esta costela trouxe uma espécie de sabedoria irreverente, que é pré-crítica [...] (CANDIDO, 1993, p. 43)

Ao reduzir os fatos e os indivíduos a situações de tipos gerais da sociedade brasileira, especificamente a do Rio de Janeiro, Almeida concedeu a obra um caráter popular com traços semi-foclóricos, retratando os costumes locais a partir de um realismo espontâneo e comum da dinâmica do Brasil (CANDIDO, 1993) no “tempo do rei” (1808-1822).

Memórias, portanto, acaba tendo um papel

fundamental na literatura brasileira por ser o primeiro romance escrito dentro de uma perspectiva popularesca que não exprime uma visão da classe dominante, mas que nos traz a mimésis da classe intermediária carioca,

resultando em um amplo quadro de costumes da época do rei D. João VI. O autor ao mesmo tempo em que se recusa a uma visão romanesca ou embelezadora da

sociedade carioca, busca através da visão dessa classe intermediária a representação do sujeito simples, do ser humano com suas imperfeições e perfeições, oscilando entre a ordem e a desordem (CANDIDO, 1993). Com isso, na visão de Candido (1993), ele seria o primeiro autor a buscar, em literatura, o caráter nacional brasileiro, que resulta num “herói sem nenhum caráter”1, ou

melhor, que viria a apresentar os traços fundamentais do estereótipo do brasileiro.

Ainda, segundo Candido (1993), a “força” da obra de Almeida em persistir no tempo reside no fato de as Memórias destrincharem o movimento mais amplo do panorama social, sendo o livro mais rico em informações seguras, o que mais objetivamente se embebe numa dada realidade social.

2. Ethos do povo brasileiro em Memórias

A palavra ethos vem do grego e significa um

determinado modo de ser, ou seja, um conjunto de valores que orientam o comportamento do ser humano em relação aos outros na sociedade em que vive. Em sociologia, o ethos seria a síntese dos hábitos

e comportamentos de um povo, as características mais gerais que diferenciam um determinado grupo social de outro. O ethos, então, carregaria os costumes mais

corriqueiros que determinam o conjunto de ações sociais e culturais de um grupo, tratando-se, portanto, do caráter, da identidade social de um povo especifico.

Tradicionalmente a literatura possui um papel fundamental para as vicissitudes da sociedade. Na instituição deste imaginário social, certas obras e autores possuem uma grande importância para a

1 Manuel Antônio de Almeida, em Memórias, teve o feito de antecipar,

de forma espontânea, o conceito de “malandragem”, do caráter nacional brasileiro, que só encontrou seu ápice, ganhando força, com os modernistas, principalmente com o advento da obra Macunaíma (1928), de Mário de Andrade.

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construção do ideário nacional, buscando retratar, a partir de seus contextos e realidades díspares, o ethos

de um determinado povo. A literatura acaba, assim, assumindo papel de mediador entre a ficção e a história, trabalhando como um sistema de linguagens através de signos e significantes que retratam uma dada cultura e seus hábitos mais gerais - ou folclores.

Analisando Memórias podemos notar nas

descrições das relações familiares, dos costumes e hábitos domésticos, a intenção de Almeida em descrever os traços quase folclóricos e populares da sociedade carioca.

[...] Como todos sabem, a festa do Espírito Santo é uma das festas prediletas do povo fluminense. Hoje mesmo que se vão perdendo certos hábitos, uns bons, outros maus, ainda essa festa é motivo de grande agitação; longe porém está o que agora se passa daquilo que se passava nos tempos a que temos feitos remontar os leitores. A festa não começava no domingo marcado pela folinha [...] Aquele que escreve essas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de ver as folinhas, porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só as crianças como ele davam-lhe atenção e achavam nelas prazer; [...] porém era costume, e ninguém vá lá dizer a alguma velha desse tempo que aquilo devia ser por força muito feio, por que leva uma risada na cara, e ouve uma tremenda filípica contra as nossas festas de hoje (ALMEIDA, 1996, p. 58-59).

A impressão da realidade apresentada em

Memórias, para Cândido (1933), não vem dos dados

extraídos da sociedade do “tempo do rei”, mas seria decorrente de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou ‘destino’ das pessoas nessa sociedade; tanto assim que o real adquire plena força quando é parte integrante do ato e componente das situações (CANDIDO, 1993, p. 35).

A mimésis da sociedade carioca descrita por

Almeida no período joanino entra no quadro geral da crônica de costumes, onde o autor nos fala de dentro da obra, porém participando apenas como cronista. Quando apresenta aspectos negativos da época o faz com muita discrição, não tem a intenção de dar exemplos ou corrigir os defeitos da sociedade em questão.

O fato de Memórias retratar as classes populares,

ou intermediárias, num contexto em que o ideário da época ainda estava preso aos colonizadores e à civilização europeia, explicaria porque a obra almeidiana não teria sido reconhecida de imediato. Ao descrever a sociedade carioca do início do século XIX, Almeida acabaria, conforme Candido (1993), construindo a sociedade brasileira numa perspectiva inovadora.

A narrativa de Memórias é construída por pessoas

do povo. É o caso da bisbilhotice, do agregado parasita, da vizinhança invejosa, do padre lúbrico. Mesmo não tendo vivido no “tempo do rei” Almeida capta os elementos culturais mais marcantes do cotidiano urbano do Rio de Janeiro do período joanino - e que tiveram continuidade até a sua época -, transpondo com originalidade para a sua ficção. Situada num meio-termo entre imaginação e folclore, a obra almeidiana consegue contribuir, portanto (embora de forma não estritamente documental), para a reflexão sócio-antropológica da sociedade brasileira do período entre 1808 e 1820.

O autor descreve de forma precisa os lugares e costumes cariocas comuns da época: o “canto dos meirinhos”, as procissões (do Ourives, a Via Sacra do Bom Jesus), o Oratório de Pedra, as baianas das procissões, a festa do Espírito Santo, etc. Acaba optando, portanto, por retratar o povo de forma transparente, na sua linguagem coloquial, nos seus vícios e virtudes mais corriqueiros. Desta maneira os tipos idealizados por Almeida acabariam contribuindo para certas ideias recorrentes sobre o caráter nacional brasileiro,

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principalmente no que se refere à malandragem - traço que até hoje é revisitado pela antropologia e sociologia brasileira.

3. A estrutura social em Memórias

De forma geral, é nítido o esforço de Almeida em retratar o mais fielmente possível o estado moral da sociedade brasileira de seu tempo. O que não poderíamos afirmar é que ele teria sido motivado pelo “interesse nacional” que fundava o romantismo daquele período - cujo um dos objetivos era compreender os tipos e a organização das camadas mais populares, principalmente o “empenho” e o “compadrio”. Conforme nos indica Candido (1933), tendo em vista a totalidade de Memórias, não seria possível, pois,

considerá-la como um documento: o mais indicado seria afirmar que o autor soube intuir o histórico e o social, diluindo-o na construção literária da obra.

Socialmente, a obra almeidiana abrange os estratos intermediários da sociedade brasileira no início do século XIX - período em que a família real portuguesa se refugia no Brasil. Percebemos esse cenário social apresentado por Almeida, por exemplo, na descrição do passado de Leonardo-Pataca:

Sua história tem pouca coisa de notável. Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria, aborrecera-se, porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que vemos empossado, e que exercia como dissemos, desde tempos remotos (ALMEIDA, 1996, p.3).

Nota-se, no trecho acima, que Leonardo-Pataca

não é um mero trabalhador desempregado que vem ao Brasil tentar a sorte, mas é alguém que abre mão do trabalho com vendas em sua terra natal para compor a rede pública de serviços como meirinho na cidade de

Rio de Janeiro.

De modo geral, além de uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia, o autor coloca em cena personagens pouco recorrentes das narrativas românticas, a saber: prostitutas, comadres, parteiras, barbeiros, professores, feiticeira, ciganas, meirinhos, etc. Podemos dizer que a ação da narrativa ocorre na região central do Rio de Janeiro, e que apenas em poucos momentos ela se desloca para o subúrbio.

As personagens que compõem Memórias têm

como características comuns à relação de influência ou de troca de favores. Esta relação apresentada por Almeida acaba se transformando no esqueleto de sustentação do romance, onde o tratamento burlesco dado pelo autor às personagens não apaga a fidelidade do quadro social que buscou retratar, nem a seriedade das conclusões que possam dele desprender, a saber: a riqueza da vida cultural do povo humilde, seus mecanismos eficientes de adaptação ao poder, seus vínculos de solidariedade, a contraditória hierarquia dos valores que movem o comportamento coletivo. Ou seja, Almeida transpõe para o plano da narrativa, isto é, para o plano estético, traços corriqueiros estruturantes da sociedade brasileira, do qual Candido (1993) afortunadamente destacou: uma dialética da ordem e da desordem. Assim, a sociedade caracterizada em Memórias seria marcada por dois polos:

o da ordem, representada pelo poder, pela moral oficial, pelo discurso religioso, pelo Major Vidigal, por D. Maria

e Luisinha; e o da desordem, representada pelos que

resistem à ordem estabelecida, isto é, o povo malandro, amancebado e festeiro, o Leonardo, o capoeirista

valentão, o Caboclo do Mangue, a cigana e quase todas as

personagens populares do romance.

A pouca dinamização do comércio, bem como a quase nula relação de trabalho presente nesse estrato social intermediário, condicionou a atuação

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das personagens principalmente para o campo da esfera pública burocrática - ou relegada a irrisórios comércios e pequenos serviços de pouca dinamização econômica. Esta condição quase informal na relação de trabalho faz com que as personagens trafeguem nesses dois níveis (ordem e desordem), ao ponto do indivíduo descumprir a lei como uma condição de sobrevivência e preservação social, sem que se possam julgar moralmente suas transgressões. Portanto, o lado positivo sempre contracena com o lado negativo, onde, de certa maneira, um acaba neutralizando o outro.

Para sobreviver às personagens que compõem os estratos intermediários dessa sociedade acabam, por diversas vezes, exercendo diferentes serviços e atividades, como podemos ver na personagem da

Comadre:

A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia. Muito agitada e cheia de acidentes era a vida que levava a comadre, de parteira, beata e curandeira de quebranto; não tinha por isso muito tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos (ALMEIDA, 1996, p. 31).

Mesmo sendo pessoas “livres”, diferentemente da base social escravizada, pode-se dizer que o principal drama dessas pessoas era a proximidade com a pobreza. Dessa forma, Almeida descreve-os como personagens que, necessariamente precisam buscar alternativas para resolução de seus problemas sociais, ou pelo menos, “driblá-los”, para que o “fantasma” da pobreza e miséria se afastasse. Esta forma de vida é latente na personagem do Compadre:

Quando passou de menino a rapaz, e chegou, a saber, barbear e sangrar sofrivelmente, foi obrigado a manter-se a sua custa e a pagar morada com os ganchos que fazia, porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre (ALMEIDA, 1996, p. 37).

Inúmeras passagens caracterizam aquilo que Candido chama de “balanceio caprichoso entre ordem e desordem”. Assim, o “drible”, o “arranjei-me” do compadre, neste caso, é dado posteriormente quando ao receber a missão de entregar uma herança à filha de um comandante da embarcação, onde prestava serviço como sangrador, toma para si a riqueza deixada pelo falecido. Ao longo da obra é possível notar a somatória dos fatores estruturais da sociedade influenciando os comportamentos das personagens. Além do Compadre,

poderíamos citar a descida do Major Vidigal às fraquezas

“da carne” ou os relacionamentos amorosos de

Leonardo filho como pontos nevrálgicos desse “balanceio

caprichoso”.

Essa dialética é estrutura própria da narrativa e esta imbricada a todo tempo na obra de Almeida. Em boa medida, explica os vetores operacionais do comportamento humano de seus personagens. Ela se refere à composição, de forma universal, da vida do brasileiro comum. O truque, o arranjo, o “jeitinho”, a “trapaça”, o golpe, a ausência de culpa, a malandragem, etc, por fim, acabam sendo fundamentais para a compreensão de comportamentos que estão fortemente enraizados na estrutura social brasileira.

Esse arquétipo social em Memórias é limitado ao

que Cândido (1993) chamaria “uma pequena burguesia urbana” - aqui classificada como classe intermediária. Almeida revela-nos os condicionamentos recíprocos entre as instituições morais e a sociabilidade dessa classe, que se dá a partir da lógica da dialética de ordem e desordem. Escolhe, por motivos imprecisos, não tratar das elites dirigentes escravagistas e da camada de negros submetidos a escravidão, deixando de lado a inserção e interação dessas classes nesse quadro de costumes e tradições2.

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Neste ponto cabe destacar o fato de que ao preferir não retratar as relações econômicas e políticas da história brasileira, Almeida acaba não tratando das classes de poder, os escravocratas, e a dos escravos, os explorados que representavam a força de trabalho propriamente dita na época. A exclusão do povo escravizado e dos senhores de escravos que possuíam o poder de mando na narrativa de Memórias acaba

demonstrando as contradições e a fragilidade das formulações que tenderiam a construção do caráter nacional contidas na obra, pois a mesma apresenta aspectos psicológicos de um povo sem relacioná-los com fatores econômicos, políticos e sociais que neles interferem.

Deste modo, sustentar a construção da brasilidade apenas baseando-se nos hábitos e costumes particulares de um grupo ou de uma classe de uma determinada época e local específicos, generalizando suas características mais corriqueiras, como se fossem de toda uma nação, na visão de Dante Moreira Leite (2002) tenderia mais a uma dominação pseudocientífica que constitui e mantém ideologias conservadoras ou burguesas, que deformam a realidade no intuito de fortalecer e manter o status quo.

Em seu livro O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia (2002), Leite identifica-se com a

preocupação voltada aos aspectos sócio-econômicos que interferem nos traços psicológicos e culturais de um povo, utilizando-se de uma abordagem que visa estudar mais o caráter de classe do que o de nação, ou seja, que enfoca as lutas de classe dentro de uma sociedade e não a questão da homogeneidade nacional.

Assim, ao suprimir os escravos e as classes de mando, Almeida anula as relações de trabalho e os aspectos sócio-economicos. Destarte, por mais que

como o núcleo luso escravocrata e o núcleo de negros de africanos escravizados, complementa o tripé do povo brasileiro.

Memórias revele certos traços da sociedade carioca

e brasileira numa determinada época, também os restringe, de certa maneira, ao momento proposto pelo autor. Caberia destacar que, apesar de certas características vigorarem na personalidade do povo brasileiro, a construção dessa ideia de nação, ou o ethos

do povo brasileiro, não deve ser tratado como algo permanente e hegemônico, ou como um aspecto que não sofresse transformação através das relações sociais, econômicas e culturais no desenvolvimento histórico de uma dada sociedade.

4. Origem, nascimento e batismo

Para Candido (1993), em Memórias de um sargento de milícias, o princípio estrutural da narrativa é o que se

refere à dialética da construção do caráter brasileiro, a sua identificação: a malandragem.

No livro O processo civilizador (1990), Nobert

Elias constrói seu argumento nos dizendo que a ideia de caráter nacional pode ser um tema particularmente revelador para alguns países e, ao mesmo tempo, praticamente insignificante para outros.

Para Marilena Chaui (2007) o caráter nacional possui um viés de objetividade – algo independente da própria consciência dos agentes do processo, ou seja, dos próprios brasileiros. Assim, caracteriza-se como caráter nacional o comportamento característico de um povo, ou seja, uma compilação de traços coerentes e frequentes que identifique o brasileiro (CHAUI, 2007).

Em Gilberto Freyre (2006) vemos o caráter brasileiro personificado na malandragem como estratégia de sobrevivência, driblando as diversidades e os preconceitos existentes, para, de certa maneira, alcançar uma ascensão social por meio do “jeitinho”.

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mais recentes procura dar ênfase para a investigação do caráter nacional como chave para compreender o modo peculiar do brasileiro em se livrar de problemas, falsificando-os, constituindo, assim, o sujeito malandro, o famoso jeitinho brasileiro.

Para Oliveira (2012) a malandragem é um atributo das classes dominantes brasileiras absorvida pelas classes dominadas. A malandragem seria uma espécie de burla por parte das elites brasileiras, que com seu capitalismo tardio, serviria como uma solução incompleta para a coesão social. A sociedade brasileira teria passado pela transformação das forças produtivas com a introdução da lógica capitalista, mas não chegou a concretizar as vicissitudes dos valores modernos do Iluminismo, ou seja, das ideias da civilidade. Assim, a origem da malandragem pode ser explicada pela incompletude das relações mercantis capitalistas, onde as pessoas parecem estar “sobrando”, como que resquícios das relações não mercantis, não cabendo dentro do universo da civilidade (OLIVEIRA, 2012).

As classes dominantes então “se viram”, dão um jeitinho para garantir a coesão de um sistema troncho de exploração, pois, para as classes dominantes do Brasil, ao contrário dos países do centro, a industrialização não era importante, ou seja, não era necessária a criação de um sistema de industrialização baseado no trabalho, já que ela era a detentora da renda (poder de compra) através da manutenção da escravidão e da exportação de produtos alimentícios e manufaturados. Adotando o estilo de vida dos países do centro, as classes dominantes reproduziam os padrões de vida Europeu, ao mesmo tempo em que desenvolvia uma subjetividade que relacionava a escravidão ao trabalho, ou seja, trabalhar não era visto com bons olhos. Assim, desenvolveu-se em nossa sociedade um processo do qual temos a lógica do sistema capitalista, com seus padrões de consumo,

mas sem o mercado de trabalho, onde a ética do trabalho foi substituída pela ética do consumo – mas apenas para aqueles que possuem renda.

Deste modo, a malandragem faz parte da estrutura das relações sociais e econômicas do Brasil, do micro ao macro. Para Oliveira (2012) a malandragem já estaria presente

(...) na irresolução que Portugal dá às questões de administração e governo da jovem – e enorme – colônia. Não dispondo nem de homens nem de recursos capazes da façanha de fazer a minúscula cobra engolir o enorme elefante, Portugal opta pela solução capenga das capitanias hereditárias. Na mesma época, tendo criado um novo caminho para o Oriente com Vasco da Gama, dom Manuel, o Venturoso, emprega até o fim os modestos recursos portugueses na conquista da Índia, e só consegue estabelecer relações comerciais em pontos isolados do sul do continente (OLIVEIRA, 2012).

Essa característica se desenvolveu com o decorrer do período imperial, se transferindo para as camadas intermediárias da sociedade, onde um contingente de trabalhadores não conseguiu ser incorporado no sistema de consumo, transformando, assim, a informalidade em algo formal. A malandragem para essas classes intermediárias se converteria no rigor mais severo, se personificando no apelo à arbitrariedade e em exibições de crueldade, como no exemplo usado por Oliveira (2012), onde o mesmo senhor de engenho que se deita com a mucama era o que a castigava no tronco quando alguma falta, suposta ou verdadeira, lhe ofendia a propriedade. A malandragem, como uma característica das classes dominantes, absorvidas pelas classes dominadas, acaba assumindo o lugar da afetividade, tornando, assim, as relações de classes suportáveis na sociedade brasileira.

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Conclusão

Como tentamos demonstrar no decorrer do presente artigo, Almeida buscou compreender (mesmo que indiretamente) em sua obra as características mais corriqueiras do brasileiro, no período joanino, retratando o mais fielmente possível o estado, o ethos

da sociedade brasileira de seu tempo. A originalidade da obra almeidiana consiste, portanto, na versatilidade e autenticidade dos fatos, dos costumes, do retrato da sociedade carioca e da clareza e naturalidade da escrita.

Almeida nos revela certos traços da sociedade carioca e brasileira numa determinada época, que nos permite discutir a construção da ideia de nação ou identidade do povo brasileiro. Porém, Almeida não trata da estrutura de classes, mais especificamente da relação de trabalho, o que para nós seria o ponto fraco da obra, pois como vimos em Leite (2002), os aspectos sócio-econômicos acabam por interferir nos traços psicológicos e culturais de um povo.

Vimos ainda que, a dialética da ordem e desordem (CANDIDO, 1993), constituída na estrutura de Memórias, nos possibilita a noção da intencionalidade

do caráter informal na relação de trabalho, em que as personagens na obra de Almeida vivem em uma condição socialmente arbitrária, e o descumprimento da lei como sobrevivência social não é visto como uma ação transgressora. A malandragem, por sua vez, seria uma consequência desta combinação arbitrária. Portanto, a malandragem em Memórias não é carregada

de julgamentos morais, fica apenas no campo das relações pessoais e de afeto.

A concepção do malandro, dentro da obra de Almeida, se dá apenas dentro de uma camada especifica da sociedade carioca, que aqui denominamos como classe intermediária. A relação de trabalho - a

representação dos escravocratas, dos negros escravos ou até os povos indígenas - são totalmente excluídas da narrativa de Memórias. Não havendo conflitos de classe

em Memórias, entendemos que o conceito de caráter

nacional contida na obra almeidiana fica enfraquecido, já que a malandragem seria um atributo das classes dominantes brasileiras absorvidas pelas classes dominadas (OLIVEIRA, 2012). Assim, no nosso entender, o conceito de malandragem contido na obra de Almeida se dá como qualidade essencial e gratuita, edificada na própria gênese subjetiva das personagens.

Almeida não nos apresenta a estratificação social como componente de oposição, não nos revela as relações de trabalho e mando, ficando apenas na subjetividade e nas relações de afeto de uma determinada classe. Desta forma, não compreendemos que Memórias

possa carregar a ideia de caráter nacional, pois, como já buscamos demonstrar anteriormente, a estrutura social da obra se apresenta de forma espontânea, não se dá como fruto das adversidades entre as classes, e, assim, dilui-se os choques de poder.

Destarte, a interpretação do Brasil e de sua gente em Memórias é uma invenção artística de Almeida,

que, por definição, não se obriga a uma articulação direta com fatos históricos e explicações científicas. Essa liberdade artística provisória da qual se depreende o autor gerou uma interpretação intuitiva do “espírito do povo”, uma peculiaridade de um certo Brasil e seu modo de comportar-se diante das leis e do Estado, bem como na esfera das relações público-privado. Almeida nos apresenta uma sociedade cujos modos de socialização dentro desse quadro de costumes e tradições se constroem de maneira desordenada, fluida, sem posição fixa, se alternando a partir da contradição da ordem e desordem.

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Referências bibliográficas

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Editora Ática, 1979.

ANDRADE, Mário de. Introdução à edição das

Memórias de um sargento de milícias. In: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: Editora crítica de Cecília de Lara, 1978.

CANDIDO, Antônio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.

ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, v I. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala:

formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Unesp, 2002.

OLIVEIRA, Francisco. Jeitinho e jeitão: uma

tentativa de interpretação do caráter brasileiro. In: <http://blogdaboitempo.com.br/. 2012> Acesso em: 02 maio 2016.

Referências

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