Casa da Moeda, na certeza de que os seus autores prestaram um enorme serviço à cultura portuguesa.
José Vicente Bañuls Oller & Patricia Crespo Alcalá, Antígona(s):
mito y personaje. Un recorrido desde los orígenes, Bari, Levante
Editori, 2008, 662 pp.
CARLA SOFIA OLIVEIRA SILVA, Centro de Línguas e Culturas,
Universidade de Aveiro4
Antígona é uma figura reconhecidamente profícua, verda‐ deiramente dotada de grandeza moral, assim como o mito em que se insere e as personagens que, contracenando com ela, confi‐ guram a trágica saga Labdácida. Conhecida pela atitude obstinada com que enfrentou Creonte, esta jovem resoluta encarnou ao longo dos tempos diversos significados políticos e socais, novos a cada contexto em que emergiu, o que explica o seu uso recorrente em todas as literaturas de todas as épocas e de variadíssimas latitudes. Conscientes dessa riqueza e apaixonados pelo trabalho que vinham desenvolvendo no GRATUV (Grupo de Recerca i Acció Teatral de la Universitat de València), José Vicente Bañuls Oller e Patricia Crespo Alcalà (professor e discípula, respectivamente) decidiram abraçar a colossal tarefa de reunir no livro que agora recenseamos o resultado de vários anos de sólido trabalho em redor da heroína, dos autores que a (re)criaram, dos conflitos em que lutou e da influência da sua acção ora através das encenações ora através do estudo das obras em que aparece, contemplando não só a dramaturgia, mas também a poesia e a narrativa, sem esquecer outras artes. Quase um quarto de século depois, esta dupla de investigadores vem, desta forma, dar continuidade ao estudo iniciado por George Steiner em Antígonas. La travesía de un mito universal por la historia de Occidente.
Este trabalho é, na verdade, um valiosíssimo tesouro para os estudiosos e interessados na temática da recepção literária das narrativas mitológicas clássicas, em geral, e do mito de Antígona, em particular, tal é a sua riqueza em referências a obras, datas, autores, reflexões e contextualizações. Os persistentes autores quiseram perseguir com rigor o seu objecto de estudo, a saga dos Labdácidas, até aos seus antecedentes na literatura grega, ainda antes de Sófocles lhe dar os contornos com que a conhecemos hoje na sua tragédia Antígona, obra dramática que sintomaticamente merece especial atenção neste volume por se tratar do primeiro tratamento conhecido do mito. Para além disso, analisaram diversas obras posteriores que contribuíram para consolidar a figura da jovem irmã de Polinices e o conflito que a opõe ao soberano Creonte, assim como outras composições greco‐latinas antigas que se serviram do assunto e cujo tratamento serve de chave para compreender o processo de consolidação, transmissão e recepção do mito ao longo dos tempos.
Ao todo, este aturado estudo analisa 258 recriações (drama‐ ticas, poéticas ou narrativas) da Antígona sofocliana (organizadas cronologicamente num oportuno índice, no fim da obra). Umas são nomeadas por claramente recuperarem elementos da tradição, outras porque assentam em divergências oriundas do sincretismo com outras figuras ou da inovação dos autores, mas onde o referente literário de Sófocles é identificável por relação com as circunstâncias concretas da sociedade em que se produzem as novas obras. O notável Prólogo da autoria de Carmen Morenilla é um excelente guia para a compreensão da forma como os autores decidiram organizar o extenso fruto do seu trabalho.
Devido ao seu ambicioso alcance cronológico, este livro está organizado em dois grandes blocos metodologicamente distintos: um primeiro, dedicado à Antiguidade; e um segundo, que inclui o extenso período da Idade Média até à actualidade. Assim, na primeira parte (subdividida nos capítulos “Grécia” e “Roma”),
baseados em investigações anteriores, os autores, pretendendo verificar até que ponto e a partir de que fontes os diferentes compositores seguiram este mito, apresentam um estudo aprofun‐ dado das fontes gregas e latinas (Píndaro, Corina, Baquílides e Sófocles, para citarmos alguns) onde se pode resgatar a génese do mito e, especialmente, a configuração de Antígona como heroína trágica, para seguirem o tratamento que a personagem recebeu na restante literatura grega (em Eurípides e Astidamante II, entre outros) e latina (com Séneca, Ovídio ou Higino, por exemplo), mostrando relações de dependência e de divergência, consoante a obra, sem obliterarem as limitações de análise que as perdas textuais impõem a um estudo deste género. Em qualquer dos casos, a tónica permaneceu sempre no conteúdo ético e sócio‐ político de cada obra concreta, revelando a chave para a sua compreensão e denotando uma coerência merecedora de nota.
Devido à sua amplitude cronológica e geográfica, a metodo‐ logia da segunda parte do trabalho teve, forçosa e inteligente‐ mente, de ser distinta. Surgem, portanto, grandes divisões em períodos históricos, universalmente reconhecidos, cuja sociedade é brevemente caracterizada, a fim de melhor contextualizar as recriações (por composição ou representação) de Antígona, reite‐ radamente recuperada como personagem de elevado significado político. É no interior de cada um dos marcos previamente definidos que os autores estudam as adaptações deste mito, descrevendo resumidamente as linhas essenciais de cada argu‐ mento e caracterizando as personagens, de forma a estabelecerem pertinentes e sólidas relações com os clássicos, particularmente com a tragédia sofocliana. É notório, à medida que vamos avançando temporalmente no estudo, o aumento exponencial de obras que remetem para esta matriz mitológica, porém é de salientar a clareza e a perseverança que os autores mantêm diante de tantos dados recolhidos.
Precisamente por contarem com um vastíssimo corpus textual (os autores salientam que, por diversas razões alheias à sua vontade, não é possível conhecer todas as obras que abordam esta temática), que inclui não só a presença de Antígona mas também a de Creonte, figura essencial à configuração contrastiva do mito, é de elogiar o facto de praticamente todas as obras citadas terem sido lidas e estudadas, ainda que não se possa esperar um tratamento igualmente aprofundado de todas elas. De qualquer das maneiras, torna‐se fácil distinguir aquelas que mereceram de José Oller e de Patricia Crespo uma atenção especial, ou porque foram alvo de ampla repercussão ou reiteradas vezes encenadas ou influenciadoras de criações posteriores, como são os casos de Antigone, de Jean Anouilh, Antigonemodell 48, de Bertolt Brecht, ou La tumba de Antígona, de María Zambrano. Outras obras mais demoradamente analisadas no livro assumiram‐se como o expoente de um tipo específico de literatura, representando movimentos culturais concretos, como Antígona Vélez (Leopoldo Marechal), The Island (Athol Fugard) e Antígona… ¡Cerda! (Luis de Riaza).
Sem querermos alongar‐nos muito, é imperioso que forne‐ çamos uma panorâmica desta segunda parte do livro, esclare‐ cedoramente intitulada “As adaptações. Creonte e Antígona depois da Antiguidade”. Numa primeira fase deste momento, são estudadas as recriações surgidas desde a Idade Média até meados do século XVIII. Assim, sem esquecer o importantíssimo trabalho de permanência e transmissão dos copistas da época bizantina, é dada atenção à Idade Média Latina, quando o referente literário sofocliano se perde em favor da versão mitológica de Estácio, e onde se destacam os trabalhos de Dante Alighieri (Divina Comedia) ou de Boccaccio (De claris mulieribus). As épocas renascentista (mais fiel a Sófocles) e barroca (mais afastada deste modelo) foram bastante produtivas. De Inglaterra a Itália, entre muitas outras, os autores do livro analisaram Antigone,
de Giovanni Paulo Trapolini, a obra Antigone ou le piété, do francês Robert Garnier, amplamente traduzida e adaptada, ou The fatal legacy, da escritora britânica de inícios do século XVIII Jane Robe.
A segunda etapa desta parte do estudo intitula‐se genericamente “Da Revolução Francesa à contemporaneidade” e oferece‐nos uma visão bastante metódica da presença do mito nas literaturas mundiais. O início do século XIX trouxe consigo o Romantismo e projectou a figura de Antígona sobre dois eixos: um de carácter mais político, outro mais literário e filosófico. Os autores destacam, nesta fase, entre outros, os trabalhos de tradução e adaptação dos mestres alemães Hegel, Hölderlin, Goethe e Schelling. Depois destes e até à I Guerra Mundial, as recriações desta narrativa multiplicaram‐se em várias línguas e em diversos géneros. Por entre os muitos títulos referenciados, encontramos Antígona y Hemón, uma primeira adaptação ibérica do mito da autoria de Pedro Montengón y Paret, uma peça de Edward Fitzball não publicada, mas que conquistou bastante êxito, Antigone or the theban sister, e um ensaio do dinamarquês Kierkegaard. Durante a Guerra Mundial, a produção literária foi compreensivelmente menor, mas merece dos investigadores nota a novela Au‐dessus de la mêlée do Prémio Nobel Romain Rolland. Entre as grandes guerras, Jean Cocteau (com Antígona) e Marguerite Yourcenar (com Feux), por exemplo, redescobriram os clássicos, revitalizando‐os, e este livro dá‐nos conta desse aspecto. Curiosamente, José Oller e a sua discípula consideraram importante dedicar um capítulo à realidade da recepção literária deste mito em Portugal, e esse é mais um aspecto de interesse e pertinência neste livro. Com efeito, o contexto ditatorial favoreceu o aparecimento dos trabalhos do exilado António Sérgio, de Júlio Dantas ou de António Pedro em torno da figura revolucionária da jovem. A II Guerra e o seu rescaldo deixaram‐nos a herança brechtiana já destacada e um mundo dividido em dois blocos, uma dicotomia que se reviu facilmente na oposição Antígona/Creonte,
como o provam os trabalhos de Bach na ópera, da eslovena Dominik Smolé ou dos americanos Malina e Beck.
A permeabilidade desta narrativa mitológica às mais diversas circunstâncias sociais e políticas e o rigor do trabalho dos autores deste estudo levaram‐nos até à literatura africana, onde encontraram Tegonni: An african Antigone, de Femi Osofisan, ou ao centro do conflito de Ulster, onde Seamus Heaney preparou The burial of Thebes. A version of Sophocles Antigone. Longamente estudada neste volume é a pervivência do mito em Espanha, particularmente na transição para a democracia, época durante a qual as Antígonas espanholas falaram essencialmente da guerra civil, da ditadura e do pós‐guerra, da democracia e da sua consoli‐ dação. Para além de alguns nomes já citados, tornou‐se inevitável encontrarmos neste livro ibéricos como Miguel de Unamuno, Carlos de la Rica, Maria Xosé Queizán, entre muitos outros. Lutadora por definição desde Sófocles, a jovem filha de Édipo emprestou também a sua força a todo um leque de autores ibero‐ americanos, que reviram na sua actuação o carácter revolucionário que desejavam para as suas letras e os seus povos. São assim apresentadas, num interessante capítulo, recriações de Antígona, em diferentes géneros, oriundas do Haiti, da Colômbia, do Brasil, do México, do Peru e da Argentina, uma das mais produtivas nações do sul da América neste domínio. O último marco desta viagem sem dúvida cronológica mas também amplamente geo‐ gráfica situa‐se junto ao muro de Berlim e no momento da sua queda, facto que teve conhecidas repercussões mundiais, dando lugar às adaptações mais ou menos livres de Wendy Greenhill (Antigone Project), de Victor Loew, da Holanda (Antigone), da portuguesa Hélia Correia (Perdição. Exercício sobre Antígona), do influente Henry Bauchau (novela Antigone) e dos autores deste livro, em colaboração com Carmen Morenilla (Antígona o la tragédia de Creonte), entre várias outras estudadas. Esta segunda parte é completada com um apontamento relativo a algumas encenações
da Antígona sofocliana, merecedoras de especial menção pela sua singularidade cénica, pela invulgaridade da tradução ou pela inegável actualidade.
Se o que vem sendo dito, por si só, já é catalisador do excepcional valor de que este estudo se reveste, a terceira parte complementa fortemente o seu carácter inovador e abrangente, uma vez que disponibiliza uma aproximação panorâmica às restantes adaptações artísticas do mito de Antígona, na ópera e na música, na dança (onde a narrativa serviu a elegância do ballet mas também a versatilidade da dança contemporânea), nas artes plásticas (área em que este mito se impôs a partir do neoclassicismo francês), ou no cinema e na televisão (arte em que se destaca a interpretação de Irene Papas no filme Antígona, de 1961).
Para além de todos os argumentos já longamente expostos, há, sem dúvida, mais alguns aspectos paralelos ao estudo principal que nos fazem dirigir rasgados elogios a este livro e que facilmente obscurecem pequeníssimas gralhas tipográficas pontualmente detectadas. Os primeiro e segundo, e que já foram referidos neste texto, são o magnífico Prólogo e o laborioso Índice de Adaptações; o terceiro é o facto de os nomes dos autores e das obras estudadas, à medida que vão sendo introduzidos no texto, surgirem a negrito. Parece um mero preciosismo gráfico, mas revela‐se bastante útil, quando estamos diante de um livro tão volumoso e de um corpus textual tão extenso. O quarto, mas não menos importante, diz respeito às oportuníssimas e valiosas notas de rodapé, por vezes ocupando quase toda uma página, mas que se revelam uma ajuda preciosa para o acompanhamento do estudo. O quinto prende‐se com a extensa e completa Bibliografia, organizada em dois grandes domínios, de acordo com a própria grande divisão do livro — obras de e sobre a Antiguidade Clássica e os autores greco‐latinos, e adaptações e estudos sobre as mesmas. Por fim, o leitor tem ainda à sua disposição um sempre útil Índice Remissivo.
Resta‐nos, portanto, dar os parabéns aos autores deste ines‐ timável estudo, que, apesar da enorme quantidade de textos anali‐ sados, nunca se afastaram do tema central do trabalho; ao GRATUV, berço desta equipa e desta ideia; e à Levante Editori, que assegurou a publicação, colocando à disposição dos interessados, em geral, e dos investigadores, em particular, um trabalho, digno de admiração e pautado por grande erudição, que nos revela obras não publicadas e nos sugere pistas para estudos parcelares em torno do mito de Antígona.
Rose Duroux et Stéphanie Urdician (coord.), Les Antigones
Contemporaines (de 1945 à nos jours), Clermont‐Ferrand, Presses
Universitaires Blaise Pascal, 2010, 474 pp. [ISBN 978‐2‐84516‐407‐ 9]
CARLA SOFIA OLIVEIRA SILVA, Centro de Línguas e Culturas,
Universidade de Aveiro5
A figura da jovem Antígona tem exercido um enorme fascínio sobre os criadores de todos os tempos, nunca tendo aban‐ donado o imaginário literário universal. Sófocles rendera‐se ao poder desta personagem mitológica muito antes de os escritores contemporâneos terem descoberto a sua plasticidade. São diversas e incontáveis as versões deste mito, que resultam do carácter simbólico actualizável, reinterpretável e adaptável da actuação da jovem filha de Édipo perante a decisão arbitrária de Creonte. Os retratos de Antígona são, assim, tão múltiplos quanto as perso‐ nalidades e as ideologias dos autores que revisitaram a narrativa mítica e tão diversas quanto os tempos da escrita.
Se, por um lado, esta personagem singular representa valores individuais dotados de elevado poder dramático — a resistência individual ao poder arbitrário do Estado —, por outro simboliza ideais e conceitos sociais intemporais, como a revolta,