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O Dispositivo Analítico como Produção Artística

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Academic year: 2020

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O DISPOSITIVO ANALÍTICO

COMO PRODUÇÃO

ARTÍSTICA*

VEIGMA LACERDA E SILVA**, DENIZYE ALEKSANDRA

ZACHARIAS***

É preciso ao analista “portar-se como um artista que compra tin-tas com o dinheiro da despesa da casa e queima seus móveis para aquecer a modelo.

(Carta de 05 de Junho de 1910; Freud e Pfister, 1998)

N

a procura do tratamento analítico o indivíduo, de início ao menos, procura fornecer sua demanda consciente para que esta seja correspondida. Demanda de aliviar suas angústias, de alcançar o autoconhecimento, de cura, de obter saída para seus principais conflitos, adquirir formas mais saudáveis de lidar com seus problemas senão eliminá-los. No entanto, o que se vê é que em todo seu discurso, o analisando está demandando amor. Um amor não correspondido em algum momento de sua vida.

Nem sempre o que leva a pessoa à análise é o amor dirigido à figura do analista, mas imprescindivelmente, um significante qualquer que comparece em meio à sua escolha, como,

Resumo: o presente estudo tem como objetivo a tentativa de cotejar as produções artísticas à

arte interpretativa da Psicanálise, bem como a posição do analista e analisante no enlace da transferência com o fazer do artista via sublimação. Trata-se de discutir sobre os propósitos da experiência analítica que possibilita ao sujeito aprender algo dos efeitos desta produção artística singular. Isto será possibilitado através de teorias freudianas e de fragmentos de atendimentos clínicos realizados no CEPSI. Apesar das dificuldades concernentes à elaboração do trabalho de natureza psicanalítica, acredita-se na possibilidade de lograr êxito quanto ao desejo de dizer sobre arte e Psicanálise.

Palavras-chave: Transferência. Analista. Artista. Arte. Sublimação.

* Recebido em: 18.01.2015. Aprovado em: 20.02.2015.

** Mestranda em Psicologia pela PUC Goiás. Graduada em Psicologia pela PUC Goiás. Bailarina da Cia de Dança Noah da Coordenação de Arte e Cultura da Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil da PUC Goiás. *** Professora-orientadora do artigo. Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás. Graduada em

Psicologia pela Universidade Católica de Goiás. Coordenadora da Área de Desenvolvimento e Escolar do Departamento de Psicologia e Supervisora de Estágio Clínico em Psicanálise

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por exemplo, o nome do analista ou o que já lhe disseram sobre o mesmo. Contudo, o amor será convocado a emergir no dispositivo analítico, pois é neste âmbito que a libido terá espaço para se fazer presente; a transferência torna-se porta de entrada para o inconsciente, já que “pode aparecer como uma apaixonada exigência de amor” (FREUD, 1917/2006, p. 443).

O indivíduo, então, leva seus problemas para a análise na busca de solução para os mesmos, contudo no decorrer do tratamento “o paciente, que deveria não desejar outra coisa senão encontrar uma saída para seus penosos conflitos, desenvolve especial interesse pela pes-soa do médico” (FREUD, 1917/2006, p. 441). No entanto, este interesse não é atual, deriva de experiências infantis vivenciadas como suas imagos paterno e/ou materno.

E como a experiência analítica propícia o aparecimento da libido – pois aqui ela é convocada a comparecer – esta entra num curso regressivo, recordando materiais passados e revivendo imagos infantis (FREUD, 1912a/2006), assim como ocorre na produção artística, onde o artista, na confecção de sua obra, expressa as mais variadas experiências vividas em um passado remoto.

Segundo Freud (1914b/2006), a transferência é um fragmento da repetição. Pois o paciente utiliza-se disto para desviar da cena principal que havia trazido para a análise: seu sintoma. Agora seu inconsciente a partir do mecanismo de repetição, usufrui da transferência como meio de abandonar furtivamente aquilo que lhe angustia, que são lembranças de fases primevas de sua vida.

Como um artista em busca de expressar seus desejos a um expectador atencioso, o analisante repete na tentativa de lograr seu sofrimento, compartilhando com seu analista suas experiências calculando o quão isso possa despertar seu interesse compreensivo e ser capaz de evocar e satisfazer os mesmos impulsos inconscientes repletos de desejos também nele (FREUD, 1925/2006), tentando conquistar sua atenção amorosa.

Contudo, sob esta repetição em forma reeditada há sempre uma alteração da experi-ência original porque a libido não se vincula diretamente à pessoa do analista, mas à figura que o mesmo representa no dispositivo analítico. Então, o amor que emana neste âmbito não se liga ao analista: é, no entanto, fruto de um deslocamento dos sentimentos vivenciados na infância para a figura do mesmo. “Quando as coisas atingem esta etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi substituída por outra nova, pela ‘neurose de transferência’” (FREUD, 1921/2006, p. 29).

Assim, a transferência no ensejo do tratamento analítico comparece como a “arma mais forte da resistência” (FREUD, 1912a/2006, p. 115). Até porque este mecanismo atua como resistência quando está se chegando ao desejo, então para não tomar consciência este analisando resiste em recordar. Entende-se que a libido que deveria comparecer como recor-dação fazendo-se consciente se faz presente ligando-se a protótipos do indivíduo atuando como repetição das experiências vividas na infância.

Contudo, é economicamente viável para o indivíduo desviar suas energias para o amor que direciona à figura do analista ao invés de recordar-se de algo que lhe foi traumático. Desta forma, assim como um escritor, cria uma espécie de incerteza não permitindo saber, inconscientemente de propósito, se se conduz pelo mundo real ou por um mundo de sua própria criação (FREUD, 1919a/2006).

Então, a resistência que comparece em análise para que o indivíduo não se recorde de suas lembranças encontra o amor ao analista “pronto, à mão, faz uso dele e agrava suas manifestações [...] o amor consiste em novas adições de antigas características e repete reações infantis” (FREUD, 1912a/2006, p. 185).

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Contudo, sabe-se que estes sentimentos despertos no dispositivo analítico é algo próprio da “invenção” entre analista e analisante, onde, por meio da transferência, este é con-vidado a por em jogo sua responsabilidade criadora e o comprometimento de sua fantasia, se implicando com seu desejo. Atuando como artista, o analisante encontra neste dispositivo a liberdade para criar e produzir de acordo com sua subjetividade, pois não é conduzido por meio de técnicas. O analista apenas atenta-se a recomendações, pois cada sujeito em análise produz sua própria invenção, não havendo um saber imposto.

Uma das recomendações a serem colocadas em práticas nesta conjuntura atuando como principal interesse para o analista reside nas resistências do paciente. “A arte consistia então em descobri-las tão rapidamente quanto possível, apontando-as ao paciente e indu-zindo-o, pela influência humana [...] a abandonar suas resistências” (FREUD, 1921/2006), p. 29). Cabe ao analista, com todo seu conhecimento realizar o manejo da transferência e aproveitar este momento para amparar esta libido e “transformar a repetição em lembrança” (FREUD, 1917/2006, p. 445). Pois, é recordando que o sujeito está vivendo de alguma forma sua fantasia. Pois do lado do neurótico, do sintoma, encontra-se a repetição; no lado criativo, o artista torna claro que se pode engendrar algo novo na significação de seu desejo.

O analista pode conduzir para que estas fantasias do sujeito transmudem-se em novas produções de saber, subtraindo-se à neurose e reatando as ligações com a realidade (FREUD, 1910/2006) semelhante ao que faz um artista. Isto é permitido pelo manejo da transferência ensejada na análise, possibilitando que o analista alcance seus principais esfor-ços de “tornar consciente o que é inconsciente, remover as repressões e preencher as lacunas da memória” (FREUD, 1917/2006, p. 437). É levar o analisante “a confirmar a construção teórica do analista com a sua própria memória” (FREUD, 1921/2006, p. 29). Desta forma, este procedimento torna-se um forte aliado para o tratamento.

“A transferência cria, assim, uma região intermediária entre a doença e a vida real” (FREUD, 1914b/2006, p. 170). Tratado sob estas recomendações, esse amor transferencial pode fornecer espaço para o desvelar de novos saberes a partir da revivência de experiências passadas. Quando, então, o sujeito desvela seus desejos produz seu próprio saber e constrói em análise a elaboração de sua sexualidade infantil, diminuindo possivelmente suas resistên-cias em recordar.

“O artista, como o neurótico, se afastara de uma realidade insatisfatória” (FREUD, 1925/2006, p. 67). Este mesmo autor afirma que a arte propicia uma reconciliação entre o princípio do prazer e o de realidade, de maneira única (1911/2006). E, próximo às constru-ções realizadas em análise, esta pode ser também uma das maneiras onde ambos os princípios do acontecer psíquico possam pôr-se de acordo entre si.

Vê-se então que o único contexto onde deveria haver reconciliação entre os con-flitos psíquicos e se fazer arte é no dispositivo analítico, pois pela associação livre e a escuta no enlace da transferência permitem produzir algo, tornando arte aquilo que seria penoso de outra forma.

“É perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha parcialmente insatisfeita, uma catexia que se acha pronta por antecipação, dirija-se também para a figura do médico” (FREUD, 1912a/2006, p. 112). O analista não deve entender, então, o amor direcionado a si como produto de suas atribuições pessoais e valer-se disto em análise, mas antes de tudo sondar o âmbito analítico e tirar proveito da transferência para auxiliar o analisando no reconhecimento de novos saberes.

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Vê-se assim a importância do papel do analista, onde ele deve se destituir de sua posição de sujeito e pôr-se como objeto causa de desejo do analisante e saber conduzir o tra-tamento através do manejo da transferência por meio da política do desejo: não deve desejar outra coisa senão que haja análise. E esta postura do analista envolve sua criação de analista enquanto tal, não como analista ideal, porque “o ideal é a glória da forma” (Miller, 2010, p. 2) e no dispositivo analítico o disforme e o estranho têm lugar fundamental.

Desta forma, permite-se assim a análise funcionar como potência criadora de pro-duções artísticas onde analisante e analista se comprometem, respectivamente, a levar a cabo a regra fundamental da psicanálise e a ser objeto causa de desejo de cada subjetividade no dispositivo analítico. O trabalho em análise parte do analisante e o analista nada mais faz a ter que exercer a paciência, permitindo que as coisas aconteçam de acordo com o curso de elaboração de cada sujeito, sem retê-las ou antecipá-las (FREUD, 1914b/2006).

O trabalho da interpretação e também do manejo da transferência via política do desejo “traz a luz, por assim dizer, a matéria-prima, que deve, no mais das vezes, ser descrita como sexual no mais amplo sentido, mas que encontrou as mais variadas aplicações em adap-tações posteriores” (FREUD, 1933/2006, p. 242).

E uma destas vias para a satisfação do desejo é o da sublimação, mas que em si tem sua finalidade modificada, não sendo sexual. Freud (1905) afirma que a origem da sublima-ção reside dos desvios sofridos pela pulsão sexual em funsublima-ção dos obstáculos encontrados para a obtenção da satisfação; “a curiosidade sexual [...] pode ser desviada (“sublimada”) pela arte, caso se consiga afastar o interesse dos genitais e voltá-la para a forma do corpo como um todo” (p. 147). Por isso poder dizer que o alvo da sublimação não é sexual, há um desvio quanto à sua meta: seu objetivo é distante da satisfação sexual.

Sublimação é o processo de tornar algo sublime atingindo altíssimo grau na escala dos valores morais (Bueno, 1996). É, pois conseguir elevar seu desejo à satisfação por via da confecção de uma obra artística que conquista uma aceitação social. Em análise, próximo a esta contigência, o analisante pode falar sobre suas questões e produzir algo de forma social-mente aceitável. O analisante como o artista acede a um gozo por um viés que não implica o recalque, diferente do neurótico que dissimula para si mesmo as condições de acesso ao que lhe satisfaz.

A psicanálise, então, deve ser entendida não só como ciência, mas acima de tudo como uma arte interpretativa (FREUD, 1921/2006). Pois, através dos efeitos da transferência o analista auxilia o analisante a produzir sua arte. Segundo Freud (1913a/2006, p. 188-9), “as for-ças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam outras pessoas à neurose e incentivam a sociedade a construir instituições”; como em outras entidades como a filosofia e a religião tem suas forças motivadoras próximas aos delírios paranoicos e à neurose-obsessiva.

Esta ciência, então, não tem sua aplicação voltada somente ao campo dos distúr-bios psicológicos, mas estende-se “à solução de problemas da arte, filosofia e da religião” (FREUD, 1919c/2006, p. 188). De acordo com este mesmo autor (1913a/2006) a atividade artística está destinada a apaziguar desejos não satisfeitos do artista. Semelhante, ocorre em análise quando o sujeito nomeia e endereça seu desejo ao Outro, fazendo enunciação de suas fantasias e inventando novos saberes extraindo da doença a riqueza que ela traz, mas sempre baseados em vivências passadas.

Em seus estudos, Freud também dirigiu parcela de sua atenção às análises de produ-ções artísticas com outras finalidades fora de âmbito terapêutico, como de análises de sonhos

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de imaginação realizados por alguns artistas que levaram, por fim, em suas próprias análises (FREUD, 1914a/2006). De certa forma, cada produção social tem em si conteúdos de suas experiências pessoais, mesmo que desconhecidas conscientemente pelo próprio sujeito ou por seus expectadores.

Os estudos que abrangem estas outras áreas de saber têm seu interesse por parte da psicanálise não só por ser em si ricas de conteúdos que se relacionem com a história do pensamento humano, mas por muito dizerem sobre as estruturas psíqui-cas estudadas por esta ciência. Freud realiza uma analogia entre estas e as três institui-ções sociais: a arte, a religião e a filosofia; a histeria sendo a caricatura de uma obra de arte, a neurose obsessiva a de uma religião e o delírio paranoico como sistema filosófico (FREUD, 1913b/2006).

Em uma de suas obras, Freud (1919b/2006, p. 280) afirma que

os histéricos são indubitavelmente artistas imaginativos mesmo que, de um modo geral, expressem as suas fantasias mimeticamente e sem considerar a sua inteligibilidade para as outras pessoas; os cerimoniais e proibições dos neuróticos obsessivos levam-nos a supor que eles criaram uma religião própria, particular; e os delírios dos paranoicos têm uma desagradável similaridade externa e um parentesco interno com os sistemas dos nossos filósofos.

Estes sujeitos, quanto à produção de novos saberes em análise, trazem consigo algo que muito tem a dizer sobre a própria história da humanidade, assim como o artista em sua obra, pela via da sublimação, diz sobre seus desejos e fantasias em si mesmos não revelados. Pois, o caminho da fantasia à realidade só é possível pela via da arte.

Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência de pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico produza efeitos emocionais – graças à ilusão artística – como se fossem reais” (FREUD, 1913b/2006, p. 100). E estes efeitos também se assemelham aos produzidos no dispositivo analítico, des-de o nascedouro da transferência.

Assim como uma obra de arte as próprias construções realizadas em análise jamais poderão ser expressas por palavras. Mesmo em sua fiel exposição, um caso jamais terá uma representação única; terá, entretanto, infinitas formações de sentido, a começar pelo criado no enlace transferencial entre analista e analisante.

Dessa forma, o presente estudo tem como objetivo suscitar, a partir de fragmentos de casos atendidos no CEPSI junto às teorias freudianas, as produções artísticas que puderam ser criadas a partir do enlace transferencial e do saber produzido na experiência analítica. Po-dendo assim, discutir sobre os propósitos desta experiência que possibilita ao sujeito aprender alguma coisa dos efeitos desta produção artística singular.

MÉTODO PSICANALÍTICO

• Participante: foi participante do presente estudo um paciente em análise entre os que pro-curaram atendimento psicológico no Centro de Estudos, Pesquisas e Práticas Psicológicas (CEPSI), sexo masculino, à época do estudo com 23 anos de idade. Os atendimentos ocorreram durante o período de um semestre compreendido no ano de 2011.

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Guilherme procurou atendimento psicológico por estar sofrendo muito com o pre-conceito devido ele mancar de uma perna, consequência de um acidente de carro. Vale ressal-tar que o nome do analisante, que aqui está sendo citado, é fictício para que se preserve sua identidade.

• Instrumentos: para a realização dos atendimentos clínicos utilizou-se de um consultório disponibilizado pelo CEPSI (Centro de Estudos, Pesquisa e Práticas Psicológicas) situado na área V do Campus I da PUC de Goiás na cidade de Goiânia, localizada no setor Universitário, rua 232, número 128, no segundo andar. Nesta sala contém um divã, duas poltronas, travesseiros, uma mesa de canto, uma mesa de centro, três cadeiras, condicionador de ar, janelas, um relógio de mesa, uma luminária e um quadro contendo uma pintura artística.

Utilizou-se também de caneta e caderno para a anotação das sessões após o en-cerramento das mesmas; bem como de Prontuários nos qual foram registradas observações referentes ao paciente para controle do CEPSI, como dados de identificação, frequência e ficha de evolução da análise. Como os atendimentos tiveram por base a técnica psicanalítica sistematizada por Sigmund Freud, dos instrumentos utilizados pela analista-praticante, o de maior valia foi a técnica da associação livre, regra fundamental para que haja análise.

• Procedimento: após a autorização fornecida pela professora-supervisora, a analista-praticante selecionou algumas fichas de triagem, prontuários de psicodiagnóstico e de atendimentos pendentes fornecidos pelo CEPSI de acordo com horários disponíveis pela mesma, pelos pacientes e pela agenda de consultas. Foi feito o contato telefônico com cada paciente. Aos que interessavam o atendimento psicológico no CEPSI foram marcados os dias, horários e consultórios para o início das sessões.

Com cada paciente foi informado os critérios e política de funcionamento clínico estabelecidos pelo campo de estágio em questão: frequência mínima; aviso prévio concernente a faltas e atrasos; o aceite do Termo de Compromisso acerca do sigilo, da discussão dos casos em supervisão e dos dados para pesquisa; a duração de, em média, 50 minutos cada sessão; atendimentos, por no mínimo, duas vezes semanais e pagamento simbólico realizado ao CEPSI. Na primeira sessão, com cada paciente, já foi acordado entre analista-praticante e analisante que este deveria seguir somente a única e fundamental regra da Psicanálise: a asso-ciação livre, onde poderia dizer tudo o que lhe viesse à mente, sem alguma restrição, não im-portando o conteúdo da fala, independente de qualquer conexão e/ou julgamento (FREUD, 1910/2006).

É na fala que o analisante traz à luz o material com que trabalha o analista, a saber, o inconsciente. E para receber os conteúdos presentes na fala de cada paciente, a analista-pra-ticante serviu-se da atenção flutuante, onde a mesma permanece em atenção uniformemente suspensa em face do que se escuta. O analista deve deixar fluir livremente a fala e ações do paciente (FREUD, 1914b/2006).

Iniciaram-se então as entrevistas preliminares com cada paciente, tendo em vista, a sondagem inicial para compreensão de suas queixas (sintomas, inibições ou angústia) e demandas. Este primeiro momento da avaliação clínica tem função diagnóstica, pois precede a entrada em análise permitindo saber sobre a estrutura psíquica do sujeito que se apresenta para a posterior condução do tratamento (MILLER, 1997).

Para haver a entrada em análise, propriamente dita, ressalta-se a importância da transferência para compreensão dos conteúdos presentes ou não na fala de cada paciente.

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Sem que se tenha estabelecido o enlace transferencial entre analista e paciente, a análise não acontece. Portando, durante o tratamento de cada paciente foram discutidas em supervisão as principais observações e pontuações concernentes a esta forte arma do dispositivo analítico. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise em muito se assemelha a uma produção de ordem artística no que con-cerne a seus efeitos. Se a arte oferece a sublimação, podendo nomear aquilo que não foi dito, produzindo uma obra na tentativa de poder satisfazer um desejo, a Psicanálise enquanto ci-ência propõe a enunciação da fantasia repousando-se na transferci-ência, fazendo arte retirando do sintoma a riqueza que ele traz.

Para, então, discorrer sobre este tema foram selecionadas algumas sessões realizadas com Guilherme, ressaltando as de maior interesse para o caso e para a experiência da analista-praticante diante da prática teorizada da Psicanálise. O caso deste paciente foi selecionado para tal es-tudo, devido à possibilidade de poder discutir sobre a transferência e efeitos das construções realizadas em análise próximas às produções artísticas.

Guilherme se alistou no exército durante três anos por escolha própria para poder sair de sua cidade natal. E durante esse tempo ele sofreu um acidente de carro que acarretou em um coma de oito dias, a paralisia temporária de seu dos membros direitos e como sequela, uma diminuição na perna direita resultando no ato de mancar.

• Fragmento 1: na primeira sessão chegou dizendo à analista-praticante que ele se achava um cara muito galanteador e educado. E, após falar detalhadamente sobre o acidente, disse: “Não gosto de mulher burra, gostosa. De mulher inteligente sim”. A analista-praticante perguntou, então: “O que é uma mulher burra?”; respondeu-lhe: “Ah, mulher que não fala é burra, mulher que fica calada assim” (apontou a mão para a analista). Foi-lhe pontuado: “Hum!”.

Na sessão seguinte ele aparece três vezes no CEPSI procurando pela analista--praticante dizendo que havia se esquecido do horário da sessão. E quando lhe foi falado sobre a questão do pagamento ele perguntou: Pra onde vai esse dinheiro? É pra você ou o que?”. A analista-praticante respondeu que o dinheiro é destinado ao CEPSI. Respondeu-lhe então: “Neste caso eu pago só R$1,00, porque se fosse pra você eu pagaria até mais”.

Nota-se a entrada na transferência, comparecendo um significante no dispositivo analítico de “mulher burra” referente à posição silenciosa da analista-praticante, o esqueci-mento concernente ao horário da sessão e a questão do pagaesqueci-mento. Diante desta situação pode-se lembrar de Freud (1912a/2006, p. 12) quando afirma que a libido, em sua capacida-de capacida-de vincular-se a outros objetos que têm a ver com o capacida-desejo em questão, “incluirá o médico numa das séries psíquicas que o paciente já formou”, onde mulher calada, em posição passiva, é sinônimo de burrice.

• Fragmento 2: durante a sessão o telefone de Guilherme tocou e ele atendeu: “Oi amor da minha vida, meu tudo (...)”. Desligou o telefone e disse: “Tá vendo como eu sou com as mulheres?! Eu sou um cara muito bonito, mas eu não consigo acreditar nisso não, minha namorada vive falando pra mim, mas não acredito. Eu tenho que malhar pra ficar do jeito que ela quer”. A analista-praticante perguntou: “E você? O que acha de você mesmo?”

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durante algumas sessões ele falava sobre os que os outros achavam de si e sua preocupação com estas pessoas. Neste momento, então, Guilherme foi convidado a por em jogo sua res-ponsabilidade criadora e o comprometimento de sua fantasia, para se implicar com seu desejo. Diante deste convite, Guilherme esbravejou-se e respondeu gaguejando: “Eu, eu estou bem”. Pegou sua agenda dentro da mochila e marcou a próxima sessão levantando-se da poltrona para ir embora e disse: “É... ou você enlouquece ou eu”. A transferência, desta forma, irrompeu algo demasiadamente desprazeroso para o analisante, pois nela os conflitos se despertam e se atualizam (FREUD, 1912a/2006).

• Fragmento 3: após falar sobre o tempo de exército e o acidente, Guilherme diz: “Me preocupo com acidentes porque os paraplégicos ficam preocupados com sua função genital”. A analista-praticante pontuou: “E isso te preocupa”. Respondeu: “É, preocupa”. Em seguida fala sobre um aluno da universidade que estava esvaziando os extintores: “É, ele tava me lesando, mesmo que eu nem tenha nada a ver com isso. O cara pegava os extintores e ficava tirando os pinos e penetrava os pinos de novo assim...” (gestos com as mãos).

Imediatamente olhou para o quadro do consultório e se levantou perguntando: “Você sabe como se pinta quadros?” A analista-praticante respondeu que não. Ele apontou para um “defeito” que segundo ele existia no quadro: “Esta folha está torta e a pétala deveria estar mais dobrada e o pedúnculo mais em cima, ele tá meio caidão e o pintor centralizou a cena, a gente sabe que as pinturas mais sinistras não têm isso de centralizar”.

Disse em seguida: “Depois do meu acidente eu fico bastante preocupado com as coisas, você sabe né?!”. A analista-praticante respondeu: “Não, não sei não”. Ele, então: “As preocupações que todo homem no meu estado fica, com o ... (gesto com a mão), não fica do mesmo jeito né?! Sabe, tô precisando desenhar, me sinto bem, aprendi a fazer isso sozinho”.

Guilherme fala sobre o pedúnculo da flor presente na pintura. Pedúnculo é “o pé da flor ou fruto; suporte de qualquer órgão animal” (Bueno, 1996, p. 492). Dirigindo-se à obra de arte presente no dispositivo analítico ele consegue dizer sobre algo que lhe angustia.

Na sessão seguinte, ele diz: “Minha namorada é meio ninfomaníaca. Acho legal, mas tem hora que é meio punk, mas tô até dando conta do recado”. Pode-se perceber que mesmo que não ultrapasse o nível da fantasia, ele consegue produzir um novo discurso refe-rente à sua dificuldade sexual que foi mencionada em outras sessões. O analisante em questão pôde tirar partido da fantasia através de uma obra artística produzindo uma análise única desta obra que vem no lugar daquilo que lhe é oculto conscientemente.

Não se pode dizer se ele fez arte, mas foi artista. Pois, “não existe realmente o que se possa dar o nome de arte. Existem somente os artistas” (GOMBRICH, 1999, p. 15). Ser artista é uma tentativa de lidar com a falta, reconhecendo a castração. Ou seja, o artista tenta produzir, inventar uma forma interessante de lidar com algo que poderia ser penoso de se dizer. Artista não é a pessoa, mas alcança este status em seu momento de produção.

A escuta desta tentativa que o analisante faz de articular sua angústia de algo que ain-da não tem nome à tentativa de nomeá-la só foi possível, pois, repousa sobre ela a transferência. No caso em questão, Guilherme, atuando como artista encontrou no dispositivo a liberdade para criar e tentar produzir um novo discurso, a partir do vislumbre de uma obra artística.

Na arte, sua essência “é a de estetizar o dejeto, de idealizá-lo, ou como dizemos em psicanálise, de sublimá-lo” (MILLER, 1910, p. 2). No entanto, os efeitos produzidos no dispositivo analítico vão para além da idealização do objeto; permite não só a entrada nas fantasias inconscientes, mas o atravessamento da mesma.

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Devido à escassez relativa à quantidade de atendimentos de Guilherme, não se pode afirmar o quão sua fala proporcionou algo da mudança subjetiva do mesmo frente à sua an-gústia. Apenas pode-se apreender um efeito aprazível desta cena para este analisante. Apesar disto, Freud (1912b/2006, p. 132) não indica tal procedimento a todas as situações analíticas: “Opino [...] que empenhar regularmente o tratamento analítico na sublimação das pulsões é algo muito louvável, mas de modo algum se pode recomendá-lo para todos os casos”.

O lugar ocupado pela analista-praticante frente ao sujeito do inconsciente que se manifestou no dispositivo analítico também confere tênue importância nesta cena. Pois, Gui-lherme só se colocou na posição de artista em busca de expressar seus desejos e angústias por-que contou com a presença de uma expectadora atenciosa, por-que dispôs do amor transferencial na tentativa de fornecer espaço para o desvelar de novos saberes.

E este lugar é de intricada significação não permitindo definições cerradas. A única coisa que se tem convicção é que esta posição ocupada pelos psicanalistas só será possível se eles tiverem “tido êxito em sublimar o suficiente sua degradação para elevá-la à dignidade de uma prática, ou seja, de um objeto de troca. Eles se fazem pagar, tudo está aí. Eles vendem o que eles chamam às vezes sua arte” (MILLER, 2010, p. 4). E para, então, poder um dia dizer sobre este lugar é necessário desmedido percurso de prática e análise da analista-praticante. THE ANALYTICAL DEVICE AS ARTISTIC PRODUCTION

Abstract: this study aims to attempt to collate artistic productions to the interpretative art of

psychoanalysis , and the position of the analyst and analysand in the transfer link with the make of the artist via sublimation. It is to discuss the purposes of the analytic experience that enables the subject to learn something of the effects of this singular artistic production. This will be enabled by Freudian theories and clinical care fragments made in CEPSI . Despite the difficulties concerning the preparation of the psychoanalytical work , it is believed in the possibility of achieving success on the desire to say about art and psychoanalysis.

Keywords: Transfer. Analyst. Artist. Art . Sublimation. Referências

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Referências

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