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Peteĩ po kyrĩgue mboraei: análise musical de cinco cantos guarani Mbya

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Academic year: 2021

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FRAGOSO, Daisy. Peteĩ po kyrĩgue mboraei: análise musical de cinco cantos guarani Mbya. Opus, v. 25, n. 2,

p. 38-69, maio/ago. 2019. http://dx.doi.org/10.20504/opus2019b2503 Submetido em 15/01/2019, aprovado em 01/05/2019.

Peteĩ po kyrĩgue mboraei: análise musical de cinco cantos guarani Mbya

Daisy Fragoso

(Universidade de São Paulo, São Paulo-SP)

Resumo: No presente artigo, busca-se apontar as reincidências e particularidades encontradas nas

melodias de cinco cantos dos Guarani Mbya. Estes cantos, ou mboraei, fazem parte dos kyrĩgue mboraei,

modalidade do repertório musical dos Guarani Mbya da aldeia Tenonde Porã, localizada no extremo sul da cidade de São Paulo, SP, e foram aprendidos entre os anos de 2013 e 2015, durante pesquisa de mestrado. Partindo de reflexões breves sobre a transcrição de músicas compartilhadas durante trabalho etnomusicólogico e sobre o processo de composição entre os Guarani Mbya, este artigo segue para a análise de cada um dos mboraei escolhidos, valendo-se da teoria dos conjuntos como ferramenta analítica.

Palavras-chave: Kyrĩgue mboraei. Música Guarani Mbya. Etnomusicologia. Análise musical.

Peteĩ po kyrĩgue mboraei: Musical Analysis of Five Mbya-Guarani Chants

Abstract: This article aims to identify the patterns and particularities found in five indigenous

Mbya-Guarani chants. These chants, mboraei, are part of the mborai kyrĩgue, a modality of the music repertoire of the Mbya-Guarani people from the Tenonde Porã village, located in the south of São Paulo, SP, Brazil. The author learned these chants between the years 2013 and 2015 during a master’s research project. This article analyzes each one of the selected mboraei through pitch-set class theory, starting with a brief consideration about the transcription of the songs shared during the ethnomusicological work and about the Mbya-Guarani compositional processes.

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m 1974, Schaden (1974: 151) já relatava uma relação bastante próxima dos Guarani1 com a

música. Este assunto, aliás, tem sido tema de trabalho de algumas pesquisadoras, tais como Montardo (2002, 2009), Stein (2009), Macedo (2009, 2011a, 2012) e Arnt (2010), dentre muitos outros.

Entre os anos 2013 e 2015, foi desenvolvida uma pesquisa de mestrado2 (FRAGOSO,

2015b) que, dentre outros resultados, registrou alguns cantos e brincadeiras cantadas aprendidas com os Guarani Mbya da aldeia Tenonde Porã (São Paulo-SP). O processo de ensino-aprendizagem desses cantos e brincadeiras permitiu que fossem verificados os modos como os Guarani concebem processos outros. Ou seja, durante a pesquisa foram feitas reflexões acerca do modo como os Guarani ensinam e aprendem, mas também como apreendem saberes, dentre os quais os musicais; foram vivenciadas conversas sobre o processo de composição de cantos, e tanto conversas quanto cantos foram registrados no trabalho de pesquisa em questão3.

Para este texto, porém, dá-se um passo em direção à análise musical de alguns dos cantos aprendidos, tentando encontrar reincidências e particularidades nas melodias dos mboraei (cantos) escolhidos para comporem este artigo, já que a pesquisa que reuniu estes cantos se dedicou a outras tarefas que não as de análise musical. Os critérios de escolha, discriminados em momento oportuno, bem como as análises propriamente ditas, são precedidos por ressalvas que tratam de duas questões: a problemática acerca da transcrição musical, já exaustivamente debatida pela etnomusicologia, como em Menezes Bastos (1978), Seeger (1987), Oliveira Pinto (2001) e Mello (2005) e outros; e a interferência direta de uma das divindades celestes dos Guarani, o demiurgo Nhanderu, sobre as composições da modalidade musical aqui contemplada (os kyrĩgue mboraei). Primeira ressalva: a questão da transcrição

Os cantos analisados neste trabalho foram reunidos a partir de trabalho etnomusicológico realizado entre os Guarani Mbya da aldeia Tenonde Porã, conforme mencionado. Em se tratando de trabalho com músicas que compõem o campo de pesquisa da etnomusicologia, considerou-se fazer algumas ressalvas sobre a transcrição musical destes materiais, pois julga-se aqui que tal processo – o da transcrição – interfere nos caminhos tomados durante a análise dessas músicas.

Parte-se aqui da questão levantada por Menezes Bastos:

As técnicas de transcrição correntes em Etnomusicologia […] são uma adaptação – de pequena monta inclusive – da notação mensurada, implantada e desenvolvida na Europa Ocidental, a partir do século XIII. […] Prejudicadas, assim, as técnicas da transcrição, já de início as de análise vão lhe fazer companhia, isto porque o

1 Os Guarani são divididos, de forma geral, em três subgrupos: os Kaiowá, os Nhandeva e os Mbya. Este artigo

trata de alguns dos cantos dos Guarani Mbya, de modo que as menções aos Guarani feitas aqui devem ser subentendidas como “Guarani Mbya”. Em se tratando especificamente da observação feita por Schaden sobre a proximidade dos Guarani com a música (SCHADEN, 1974), é aos três subgrupos guarani que o autor se refere.

2 Pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de São Paulo,

orientada pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Salles, sob o título Entre a opy e a sala de aula: arranjos entre crianças guarani

Mbya e crianças não indígenas (FRAGOSO, 2015b).

3 Questões sobre a maneira como se deram o ensino e a aprendizagem destes cantos, sobre o modo como os

dados que tratam destes mboraei foram construídos, sobre as relações e experiências que geraram dados sobre tradução, exegese e cosmologia relacionadas a estes cantos, bem como quem são interlocutores guarani e os espaços sociais que ocupam em seu contexto foram descritos na dissertação de mestrado em questão (FRAGOSO, 2015b).

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analisável é somente o que é documento. […] Como se vê, a falta de adequação inicial, atuante no campo do registro, atinge também o nível analítico, constrangendo-o” (MENEZES BASTOS, 1978: 38-39).

Este e outros problemas fundamentais da transcrição musical vista como fonte de estudo e análise também foram apontados por Oliveira Pinto (2001), dentre os quais destacamos os seguintes: (1) tendo sido pensada para responder às necessidades da música ocidental, a escrita musical é intrínseca à história desse recorte musical; (2) a transcrição reduz ao papel o acontecimento musical, que, efetivando-se em um espaço-tempo, envolve a performance como um todo, com danças, com ritos, falas etc. (OLIVEIRA PINTO, 2001: 257); e (3) “a transcrição musical não representa um documento da cultura a ser utilizado como base objetiva para uma análise, pois ela passou pela interpretação daquele que faz a transcrição em pauta” (OLIVEIRA PINTO, 2001: 258, grifo nosso), gerando, assim, vieses.

O que se chama aqui de vieses são as referências sociais, culturais e musicais do pesquisador que o influenciam na maneira como o material reunido será descrito/transcrito – e depois analisado. Mello, por exemplo, enfatiza “o método da transcrição musical como um processo eminentemente cultural” (MELLO, 2005: 224). Para esta autora, a música consiste em um sistema simbólico que tanto codifica a cultura quanto a transforma, de modo a entender, então, a transcrição musical como uma forma de tradução musical (MELLO, 2005: 226).

Wagner (2012), por sua vez, confere ao pesquisador que se dedica à representação de outra cultura a qualidade de inventor, por cuja ação se conectam a simbolização remetida pela cultura em questão e a intenção do pesquisador de representar seu objeto, em vez de, meramente, descrevê-lo (WAGNER, 2012: 58). A conclusão a que o autor chega é de que “[…] o que o pesquisador de campo inventa, portanto, é seu próprio entendimento: as analogias que ele cria são extensões das suas próprias noções e daquelas de sua cultura, transformadas por suas experiências da situação de campo” (WAGNER, 2012: 59).

A implicação disso no trabalho do etnomusicólogo é a (re)invenção de uma música que, ao ser transcrita, acaba reunindo elementos das experiências musicais e culturais do pesquisador àquilo que se escuta. Isto é, por meio da transcrição, que é feita a partir da cultura própria de quem descreve/transcreve/escreve a música ouvida, (re)inventam-se tanto a música compartilhada quanto a própria cultura musical do local. Assim, ao se pretender analisar certa obra a partir de uma transcrição musical gerada em campo, dentro de um contexto cultural alheio ao pesquisador, é necessário que se considere – e releve, talvez – que o material transcrito está sempre permeado pela cultura musical de quem o transcreve.

Além disso, Wagner indica ainda mais um fator que acarreta a reinvenção da cultura por parte do pesquisador, que é elaboração de imagens plausíveis da cultura estudada para aqueles com quem se dialoga no campo. Nas palavras do autor, o antropólogo (que, neste caso, pode-se ler etnomusicólogo), quando estuda a cultura,

ele a “inventa” generalizando suas impressões, experiências e outras vivências como se estas fossem produzidas por alguma “coisa” externa. Desse modo, sua invenção é uma objetificação, ou reificação, daquela “coisa”. Mas, para que a cultura que ele inventa faça sentido para seus colegas antropólogos [ou etnomusicólogos, neste caso], bem como para outros compatriotas, é necessário

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que haja um controle adicional sobre sua invenção. Ela precisa ser plausível e plena de sentido nos termos de sua própria imagem de “cultura” [ou de música] (WAGNER, 2012: 89).

Considerando, então, que essa descrição musical, materializada (parcialmente) na transcrição musical, tanto acaba por pretender se fazer entender entre pessoas do mesmo campo, de mesma cultura, quanto é influenciada pelas experiências musicais e culturais às quais o pesquisador foi exposto, é preciso ainda acrescentar mais um ponto a essa discussão: de que experiências e quais os interlocutores de campo com os quais se pretendia comunicar quando os cantos que compõem este artigo foram transcritos. O esclarecimento dessas questões é relevante para entender sob quais vieses os kyrĩgue mboraei que se pretende analisar neste trabalho foram transcritos e analisados.

Harrop-Allin (2005), em trabalho de análise de alguns livros que reúnem, pelo método etnográfico, músicas sul-africanas, aponta alguns itens dificultadores destes materiais quando utilizados na educação musical. Dentre esses, o que é pertinente aqui diz respeito à necessidade de mediação especializada para que os educadores sejam capazes de utilizar tais materiais no ambiente escolar, por estes não serem destinados especificamente para a implementação em sala de aula (HARROP-ALLIN, 2005: 123). Isso quer dizer que tais materiais, que tratam das músicas compartilhadas pelos interlocutores das diversas pesquisas etnomusicólogicas, precisam ser plausíveis aos educadores musicais que trabalharão este repertório em sala de aula com crianças, por exemplo4.

Isso é dito aqui porque foi sob estas circunstâncias que os kyrĩgue mboraei analisados foram reunidos e transcritos. Os cinco cantos analisados neste trabalho (assim como os outros que compuseram a dissertação de mestrado já mencionada) foram compartilhados comigo pelos Guarani Mbya para que, com seu consentimento, pudessem fazer parte dos trabalhados realizados em sala de aula, em um contexto escolar não indígena, de educação musical. Além disso, esses cantos foram transcritos, sob tutoria dos Guarani5, pelas lentes e ouvidos de uma educadora

musical não guarani influenciada tanto pela necessidade de dialogar com outros educadores musicais, meus “compatriotas de campo” (conforme denomina Wagner no excerto extraído acima), quanto pelas minhas experiências nessa área, que é a educação musical.

Segunda ressalva: o processo composicional entre os Guarani Mbya

A ressalva seguinte feita aqui tem a ver com o processo de composição dos Guarani, que varia a depender do tipo de música e dos usos e funções que os Guarani dão a essas músicas6. Os

kyrĩgue mboraei, cuja tradução literal seria “cantos das crianças” (em que kyrĩgue é “criança”, e mboraei é “canto”), que são as músicas analisadas aqui, de acordo com meus interlocutores, não são criados, compostos; são, antes, revelados, de modo que àquele que recebe a revelação cabe ouvi-la. Estas revelações são feitas, principalmente, por meio de sonhos, momento em que, conforme descreve Montardo (2009), se vai até o lugar

4 Sobre o trabalho com músicas de diferentes culturas na educação musical e as implicações disso neste

contexto, sugere-se consultar Campbell (2003, 2000), Higgins e Campbell (2015), Queiroz (2010) e Fragoso (2018, 2015a, 2015b).

5 A maneira como aconteciam essas tutorias e supervisões estão descritas em Fragoso (2015b e 2017).

6 Recomenda-se aqui o trabalho de Arnt (2010), que tratou das mediações musicais e direitos autorais entre

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onde estão presentes os elementos considerados pertencentes à cultura Guarani: comidas, objetos, adornos. O conteúdo do sonho é considerado conhecimento, e a composição das canções se dá a partir da escuta onírica. […] Tratar da composição na música Guarani aponta diretamente para a dialogia, pois os Guarani não se consideram donos dos cantos. Mesmo os cantos individuais, recebidos especialmente por cada um em sonhos, são obtidos por merecimento, como um presente, não são compostos pela pessoa. Esta apenas escuta a música, como se já tivesse sido concebida, existindo em outro lugar (MONTARDO, 2009: 48-49).

Outra forma de ter os mboraei revelados é por meio da reza, momento em que se conecta com Nhanderu, divindade responsável pela revelação. Oliveira (2012), por exemplo, relata uma conversa com um de seus interlocutores em que foi dito à pesquisadora: “Os cantos do coral7

foram recebidos por mim em reza e depois meu filho anotou as letras e melhorou com o violão. Mais tarde ele mesmo passou a ‘recebê-los’ em sonho e até mesmo durante o dia. Nhanderu lhe falou o que ele devia cantar” (OLIVEIRA, 2012: 103). Neste trecho, pode-se perceber que a revelação dos cantos pode acontecer oniricamente, em reza ou mesmo durante o dia. Sobre esta última possibilidade, foi-me relatado algo semelhante pelas crianças guarani, meus principais interlocutores:

– Quem é que inventa as músicas que vocês cantam? – pergunto. – Ninguém inventa – uma das crianças guarani responde.

– Não? E como é que as músicas existem? – Eu não sei explicar...

– É Nhanderu que...

Outra criança me interrompe: – É Nhanderu que diz.

– Como ele diz? No sonho?

– É no sonho. Mas também às vezes é assim [a criança fecha o olho com a mão para ilustrar]: Nhanderu fala a música para você e daí você sabe a música.

Outra criança exemplifica:

– O Vera8 já fez assim. Ele ouvia a música que Nhanderu falava e ia assim,

escrevendo... E eu vi (FRAGOSO, 2015b: 27).

Vale dizer que as revelações são feitas a homens, mulheres, adultos e crianças. Schaden (1974), por exemplo, relata que todo Guarani recebe um canto, e isso pode acontecer ainda na infância. Essas revelações podem ser esquecidas durante um tempo e depois lembradas, como dizem acontecer mais frequentemente com as crianças, cuja revelação é, às vezes, feita na infância, esquecida por um tempo e lembrada na adultez. O trecho extraído de uma conversa com um de meus interlocutores, adulto, relata algo semelhante:

– Você já compôs alguma música? – pergunto a Ueliton, ao que ele me responde: – Não é a gente quem compõe. Nhanderu nos mostra nos sonhos.

7 Os cantos do coral são os kyrĩgue mboraei, conforme será discutido mais adiante.

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– Nhanderu já te mostrou alguma música? – Já, mas eu nunca lembro.

– Nhanderu revela suas músicas a todo mundo? Às mulheres também ou só aos homens?

– Às mulheres também. Depende da fé.

– Eu posso sonhar com alguma música? – questiono. – Não sei. Não sei da sua fé.

– E às crianças? Nhanderu mostra canções a elas?

– Sim. Mas elas ainda não percebem (FRAGOSO, 2015b: 27-28).

Ainda que o conteúdo principal da conversa acima sejam os receptores dos cantos, Ueliton levanta uma questão relevante: a fé como condição para receber as revelações dos cantos. Montardo (2009: 49), por exemplo, observa que o número de canções recebidas depende do cumprimento de algumas restrições alimentares ou mesmo da maneira como vivem, isto é, se estão em consonância com o nhandereko guarani, o modo de viver e ser guarani. A construção da pessoa guarani (e, em consequência, a sua situação no cosmos) está fortemente associada ao seu nhe’ẽ (MACEDO, 2012). Definido como “alma-palavra”, o nhe’ẽ é a força que vincula os homens aos habitantes imortais dos domínios celestes, e este vínculo do indivíduo guarani, ou melhor, o vínculo do corpo ao seu nhe’ẽ e deste ao corpo pode ser fortalecido pela própria pessoa guarani por meio de práticas como o canto, a dança e o fumo do petỹgua (MACEDO; SZTUTMAN, 2014: 294), o que confere, portanto, ao indivíduo responsabilidade nesse processo. O mesmo também é observado por Melo:

A noção de pessoa Guarani traduz-se em cuidados com o corpo físico e espiritual, por isso a importância dos cuidados corporais desde antes do nascimento; da nominação da criança, que será enviada pelos deuses; das danças e do entoar dos cantos, para tornar o corpo “leve”; das preces; de fumar o petynguá, para se comunicar com Nhanderu; do silêncio, para a percepção (MELO, 2012: 134-135).

Diante do exposto, especulo aqui que a fé referida por Ueliton seja o exercício – ativo – de fortalecimento do vínculo com o respectivo nhe’ẽ, o que corresponderia, por sua vez, ao modo de ser guarani (o que me impossibilitaria, portanto, de receber essas revelações, por exemplo), oferecendo condições favoráveis para que os cantos fossem revelados ao indivíduo guarani. Ou seja, o fazer-se pessoa guarani é traduzido e efetivado no exercício dos aspectos fundantes desse processo de individuação, fazendo uso do termo de Macedo e Sztutman (2014). E é justamente esse exercício que favorece a comunicação com Nhanderu e a escuta de suas revelações, dentre as quais estão os cantos.

Estes cantos revelados são os kyrĩgue mboraei e os mboraei tarova, em que os primeiros formam o repertório dos corais guarani. Além disso, são estes mboraei que são apresentados aos jurua (como são chamados os não indígenas pelos Guarani), dentro ou fora da aldeia. Estes coros, apesar de chamados de corais infantis pelos Guarani, não são formados exclusivamente por crianças. O mesmo acontece com este repertório: apesar de serem chamado de kyrĩgue mboraei, adultos e crianças cantam esses cantos juntos. Já os mboraei tarova, termo traduzido por Macedo (2012) como cantos-rezas, são executados no momento da reza, em momentos de cura xamânica,

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e podem ser liderados unicamente pela pessoa a quem se revelou o canto. Enquanto nestes predominam as vocalizações, precedidas ou intercaladas por evocações às divindades (MACEDO, 2012: 372), os primeiros, isto é, os kyrĩgue mboraei, são providos de letra, e a voz é acompanhada pelo mbaraka (violão guarani), pelo mbaraka mirĩ (maracá) e, na maior parte das vezes, pela rave’i (rabeca). Além disso, “[…] todos que compartilham o nhe’ẽ podem cantar [os kyrĩgue mboraei], em qualquer idade ou contexto” (MACEDO, 2012: 372). A temática mais recorrente dessa modalidade, ainda que as letras sofram variação de aldeia para aldeia, são as caminhadas e travessias do oceano rumo à morada dos imortais e as metarreferências ao canto e à dança como momentos de celebração, alegria e fortalecimento (MACEDO, 2012: 372-373).

Outros tipos de músicas fazem parte da musicalidade Mbya. Há, entre esse grupo, formações de rap9, sertanejo, forró, com letras e melodias compostas pelos próprios Guarani.

Também já presenciei um momento em que os professores da Escola de Educação Indígena Gwyra Pepo, escola de ensino fundamental e médio que fica dentro da aldeia Tenonde Porã e atende às crianças dessa aldeia e de outras que ficam na mesma Terra Indígena (TI), compunham canções de caráter pedagógico para serem utilizadas em sala de aula, como canções de alfabetização em língua guarani, por exemplo. Sobre esta última, a composição foi feita coletivamente pelos educadores da escola, sem a intervenção, pelo menos direta, de divindades.

Conhecer o processo de composição entre os Guarani Mbya é fundamental para o trabalho de análise de seus cantos. No caso dos cantos considerados neste artigo, este processo inclui a revelação aos Guarani de seus mboraei. Ou seja, estas canções não passam por um processo de criação da pessoa guarani, porque elas já existem em outro plano ou domínio, faltando a ela, apenas, a sua revelação.

Análise musical de cinco kyrĩgue mboraei

Ensinadas a mim pelos Guarani durante trabalho de pesquisa de mestrado, os cinco (peteĩ po) kyrĩgue mboraei analisados aqui compõem uma parte específica do repertório musical dos Guarani Mbya da aldeia Tenonde Porã. Ainda que, como dito, instrumentos musicais e danças acompanhem as vozes na execução dos kyrĩgue mboraei, neste artigo serão feitas as análises apenas da linha melódica cantada pelo coro. A intenção dessa escolha é levantar algumas reincidências e algumas especificidades encontradas neste recorte para os cinco cantos analisados.

Antes da análise, porém, é pertinente acrescentar que a pesquisa se valeu do método qualitativo e etnográfico, de modo que os cantos foram ensinados a mim pelos Guarani Mbya em momentos diversos ao longo dos quase três anos de trabalho de campo. Estes momentos, inclusive, eram alguns partilhados com os adultos guarani, mas, principalmente, com as crianças da tekoa, da aldeia. As crianças escolhiam os cantos de que mais gostavam e gravavam para mim. Considerando a maneira como os Guarani concebem o ensino e a aprendizagem, a mim cabia aprender ouvindo as gravações ou junto com eles, enquanto cantavam. Isto é, a maneira como os Guarani me ensinavam (mesmo as crianças) e o modo como eu deveria aprender (e como, de fato, aprendi) estavam orientados pelo modo como eles entendem esses processos, os quais estão baseados na experiência, no próprio fazer e no sentimento de necessidade do aprendiz10.

9 Alguns exemplos de rappers guarani são o Kunumi MC, o grupo Oz Guarani e o grupo kaiowá Brô MC’s.

10 Estes momentos e as relações entre a maneira como os Guarani concebem o ensino e a aprendizagem e o

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Foram registradas 11 músicas no trabalho de mestrado (FRAGOSO, 2015b): seis kyrĩgue mboraei, dois brinquedos cantados, uma cantiga de ninar e uma composição feita pelas crianças guarani. Neste artigo, porém, foram selecionados os kyrĩgue mboraei em cuja gravação constam a formação instrumental completa (as restantes foram gravadas a capella ou com jurua cantando junto), resultando em uma quantidade de quatro cantos, das cinco apresentadas aqui. Como já dito, essas gravações foram feitas pelas crianças guarani a partir do que elas achavam que eu deveria aprender, e os cantos que compõem este artigo foram gravados dentro da opy, em uma tarde de um domingo de julho. Estes cantos eram cantados pelas crianças, que também tocavam o mbaraka mirĩ, eram acompanhados pelo Ueliton no mbaraka e assistidos por parte da família do xeramoĩ11

Elias, da qual essas crianças faziam parte, e por mim. O motivo por que estavam reunidos ali não se justificava na gravação dos cantos, mas, como é de costume nesse período do ano, para se proteger do frio e para proteger os nhe’ẽ kuéry12, que ficam mais vulneráveis no ara yma, isto é, no

“tempo velho”, período próximo ao outono e ao inverno (MACEDO, 2017: 528). Ao que pareceu, as crianças e Ueliton aproveitaram minha presença e o fato de todos estarem ali para me mostrar (e ensinar) alguns cantos de que gostavam e que achavam pertinente que eu aprendesse. Um dos cantos acrescentados a este trabalho (o quarto canto listado adiante) não fez parte do trabalho de mestrado original, mas fez parte desse dia de gravação, por isso sua inclusão neste trabalho.

Sobre a afinação dos cantos, seu eixo ou centro sonoro (nota de convergência e sobre a qual a escala se forma) varia entre Fá, Fá

ou alguma afinação entre Mi e Fá (pouco abaixo do Fá contido no sistema temperado). O que se chama aqui de eixo ou centro sonoro pode ser entendido como o que Stein (2009), Montardo (2009) e Piedade (2004), adotando a proposição de Menezes Bastos (1990), chamam de “centro tonal”. Esse centro, no entanto, não estaria relacionado a uma ideia de tonalidade, mas à percepção de um eixo principal em torno do qual outras notas “orbitariam”. Piedade (2004), por exemplo, discorre sobre o caráter tonal da música dos Wauja, não porque há uma relação entre dominante e tônica, mas, justamente, porque “[…] estão organizados segundo uma lógica hierárquica que envolve um eixo principal, chamado centro tonal, e as tensões que giram em torno deste” (PIEDADE, 2004: 211). Por isso, a ideia de centro tonal, igualmente, não contemplaria as relações tonais, nos moldes dominante-tônica, mas remeteria a um centro invocado por determinada altura, sendo “calculado de acordo com a hierarquia dos tons utilizados, que para eles convergem” (MONTARDO, 2002: 73).

Nesse sentido, ainda que Montardo (2009) e Stein (2009) tenham preferido a adoção do termo “centro tonal” também para a musicológica guarani, optou-se aqui pelo termo (e pela ideia de) eixo principal ou de centro sonoro, somente. Esta opção se justifica na tentativa de se afastar da possibilidade, mínima que seja, de que se remeta às propriedades fundantes do tonalismo, dos quais estes cantos registrados se distanciam, ainda que surjam algumas semelhanças. A ideia de eixo, neste caso, indica exatamente a altura em direção à qual se retorna, para a qual converge, ou a qual se busca, mas sem a ideia de tensão provocada pelo afastamento, como costuma acontecer no tonalismo.

Havendo a impossibilidade de registrar as alturas não temperadas dos mboraei reunidos aqui, optou-se por transcrevê-los na altura imediatamente superior encontrada no sistema temperado. Assim, nos casos em que esta é a afinação, precisa-se considerar que, se foi transcrita a

11 A tradução literal da palavra xeramoĩ é “meu avô”, mas também é usada para designar os xamãs (MACEDO,

2013: 190).

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nota Fá3, por exemplo, a afinação real está entre Mi3 e Fá3; se consta na transcrição a nota Si

3, a afinação real está entre Lá3 e Si

3; e assim por diante. Os cantos cuja afinação está em Fá

também foram transcritos em Fá para que, seguindo um padrão de transcrição, facilitassem a análise e as comparações entre elas. A afinação correspondente de cada mboraei pode ser verificada na Tab. 1, ao final do trabalho.

A ferramenta analítica usada nos cantos é a teoria dos conjuntos, da maneira como esquematizada por Joseph Straus em seu livro Introdução à teoria pós-tonal (2013). Esta ferramenta possibilitou, como será visto, que (1) aspectos da musicológica guarani já levantados em trabalhos feitos por etnomusicólogos fossem corroborados; e (2) fossem indicadas tanto reincidências quanto particularidades entre os mboraei analisados.

Primeiro mboraei. O primeiro ponto a se ressaltar sobre este canto é a temática que trata da caminhada dos Guarani explicitada na frase “jaguata tape rupi”, traduzida livremente como “nós andamos pelo caminho” (FRAGOSO, 2015b: 58 e 59). Além disso, a palavra -vy’a (“alegria”), contida em javy’a aguã (“para que sejamos felizes”), é, de acordo com Pissolato (2007 apud MACEDO, 2013: 186), frequentemente enunciada pelos Guarani Mbya “[…] como justificativa para estar e continuar em um lugar e/ou em um coletivo. Do mesmo modo, a ausência de alegria, ndovy’ai, é motivo para partir dali ou separar-se do grupo” (MACEDO, 2013: 186). Assim, os cantos que acompanhariam a jornada guiada por Nhanderu rumo à outra yvy (terra), a yvy marã e’y (Terra sem Mal, como traduzido pelos Guarani aos jurua, ou, literalmente, “a terra que não perece”), teriam a função de alegrá-los, justificando o caminhar. A letra e a tradução livre constam a seguir:

“Jaguata tape rupi mboraei reve javy’a aguã”

(Nós andamos pelo caminho acompanhado de cantos para que sejamos felizes)

Na Fig. 1 está a transcrição deste canto. Assim como feito por Montardo (2009), as linhas pontilhadas indicam os motivos que conduzirão a análise. Dessa forma, o canto foi dividido em seis células motívicas, cujos pares 1 e 2, 3 e 4 e 5 e 6 formam frases. Com exceção da primeira célula, todas as outras (2 a 6) possuem igualmente seis tempos. Tomou-se a semínima como unidade de tempo13.

Fig. 1: Transcrição do primeiro canto.

13 A unidade de tempo considerada aqui teve como referência a marcação de tempo feita pelo mbaraka (violão

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Ainda sobre o ritmo, pode-se observar também que todas as células terminam com três tempos, seja com nota longa, seja com pausas. Em geral, como se verá nos outros cantos apresentados, a variação entre nota longa e curta aos finais de cada célula está relacionada a aspectos da língua guarani, isto é, à prosódia guarani. A sílaba “guã” da palavra “aguã”, por exemplo, é curta na fala, dando a impressão de que a sílaba tônica desta palavra é a sílaba “a”, o que faz com que a duração da última sílaba (“guã”) tenha sua duração reduzida14.

Fig. 2: Detalhe para os tempos finais de cada grupo.

Sobre as alturas da melodia, a extensão compreendida vai do Ré3 ao Si

3. No entanto, talvez pudesse ser dito que este canto está baseado no hexacorde de Fá, com a omissão do V grau desse hexacorde, que, neste caso, é o Dó4 (Fig. 3). Faz-se essa suposição porque os outros cantos analisados aqui são formados ou pelo hexacorde (completo) de Fá, ou pelo pentacorde de Fá, ou pela pentatônica de Fá, como será visto ao longo do texto.

Fig. 3: Forma normal e suposto hexacorde de Fá.

Pode-se dizer também que o canto se constrói sobre dois motivos melódicos que aparecem em todas células, com exceção da primeira: (1) movimento ascendente da primeira para a segunda nota; e (2) movimento descendente da segunda nota para a terceira, e repetição dessa nota no quarto tempo (Fig. 4). Além disso, as transições entre as células são todas feitas a partir de um movimento descendente formado pelos intervalos ordenados [-4, -4, -2, -2 e -3], respectivamente (Fig. 5). A análise dos intervalos ordenados também indica uma série de três conjuntos de intervalos ordenados, nos quais se repete o seguinte movimento no contorno: ascendente, descendente, descendente [ + - - ] (Fig. 5). Além disso, nota-se um estreitamento nos intervalos que iniciam as células 2, 3, 4 e 5: na célula 2, o primeiro intervalo é formado por uma quarta (+5); nas células 3 e 4, os primeiros intervalos são formados por uma terça (+4); nas células 4 e 5, por segundas (+3). Além disso, nota-se um eixo que se converge na nota Fá, em que, com exceção da primeira célula, vê-se partir dessa nota e/ou nela chegar.

14 As palavras em língua guarani que não recebem acento agudo são todas oxítonas. As que recebem têm

como tônica a sílaba acentuada. No caso de “aguã”, portanto, a sílaba tônica é “guã”, ainda que ela soe curta na fala – e na música –, em alguns momentos.

(11)

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Além dos motivos melódicos, há um motivo rítmico sobre o qual se farão variações. Este motivo é composto por três notas curtas e uma longa, e suas variações são compostas por alterações (que se justificam na prosódia) nestes três primeiros tempos e pela substituição dos tempos da nota longa por pausas (Fig. 6). A primeira célula, por sua vez, pode ser considerada uma variação da frase seguinte, porque, apesar de anteceder a segunda, considerada como motivo, é a única com cinco tempos.

Fig. 4: Motivos melódicos.

Fig. 5: Sequências repetidas de intervalos ordenados, indicando repetições de movimento no contorno

melódico.

Fig. 6: Motivo rítmico e variação do motivo rítmico.

Por último, as figuras longas (ou figuras sucedidas por pausas) formam pares entre si, de modo que a nota longa da primeira célula se repete, no mesmo lugar, na segunda célula; a nota longa da terceira célula se repete, no mesmo lugar, na quarta; e, por fim, a nota sucedida por pausas da célula 5 se repete, da mesma forma, na célula 6. Estas notas, isoladas, ainda formam entre si um movimento descendente por grau conjunto Lá3, Sol3, encerrando-se em Fá3, como indica a Fig. 7.

(12)

OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 49 Fig. 7: Pares formados entre frases e movimento descendente, por grau conjunto, formado pelas notas

finais desses pares.

Segundo mboraei

Fig. 8: Transcrição da primeira estrofe do segundo canto.

Neste trabalho, apresenta-se a análise somente da primeira estrofe deste segundo canto, cujas letra e tradução são apresentadas adiante. A segunda estrofe traz algumas alterações em pequenas partes da melodia e do ritmo por conta do texto (como repetição de alturas, ou figuras de valor com tempo reduzido pela metade), mas o contorno permanece o mesmo. Sobre o texto, meus interlocutores, quando me ensinaram este canto, disseram-me que esta era a “música do peixinho” (pira’i), de modo que, questionados sobre o que dizia o canto, deram-me a seguinte explicação: “Nós ficamos felizes quando vemos o sol. O peixe não fica feliz quando tem água, quando chove? Então! A gente fica feliz quando vê o sol” (FRAGOSO, 2015b: 66).

Ainda assim, pode-se notar a aproximação da temática deste canto com aquela mais recorrente dos cantos guarani sobre a qual se discorreu acima, em que o texto traz referências ao mar e à caminhada. Outra recorrência temática entre este canto e o anterior é o uso do termo -vy’a em jaro-vy’a (“nós nos alegramos”), conforme é possível observar adiante:

“Yvate gui ou oky oxyry ojapo y guaxu / Oo mombyry”

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“Nhande minha kuaray ma ramo / jarovy’a aa rami pira’i ovy’a okaru’i aguã”

(Nós somos como o sol nascendo / nós nos alegramos indo, assim como o peixinho que é feliz quando tem o que comer)

O canto se estrutura em sete frases (Fig. 8), todas construídas a partir do mesmo motivo rítmico (Fig. 9), com variações na última figura. Essas variações, no entanto, são poucas: 1) enquanto a última figura das frases 1 a 5 é uma mínima, nas frases 6 e 7, estes dois tempos são substituídos por uma semína seguida de pausa de semínima; e 2) enquanto nas frases 1 e 3, o primeiro tempo é formado por duas colcheias, nas restantes, este mesmo tempo forma-se em uma semínima. Esta última variação, porém, justifica-se na prosódia do canto, pois palavras com três sílabas (com a última tônica) são construídas pela sequência de duas colcheias e de uma mínima (ou semínima com pausa); palavras com duas sílabas (com a última tônica) são traduzidas ritmicamente por uma semínima seguida de uma mínima (ou semínima com pausa). Por esta razão, a decisão tomada aqui foi a de considerar como motivo rímico a sequência de uma semínima, uma mínima, duas colcheias e uma mínima, já que este se origina na palavra mais curta, ou seja, na palavra de duas sílabas, em vez de três. As frases que se diferenciam disso foram entendidas como variações desse motivo rítmico (Fig. 9). Além disso, como será visto adiante, este é o único canto cujas frases têm a mesma quantidade de tempos.

Fig. 9: Motivo rítmico e variações do motivo rítmico.

Pode-se dizer que o canto se fundamenta no hexacorde de Fá (Fá, Sol, Lá, Si

, Dó e Ré) ou tem como forma normal do conjunto de classes de notas as mesmas notas compreendidas por esse hexacorde. A extensão das alturas utilizada não excede este o intervalo contemplado pela forma normal (Fig. 10).

Fig. 10: Forma normal do conjunto de classes de notas.

É possível ainda dividir este canto de duas formas. A primeira considera quatro grupos, indicados pelas cores vermelha (frases 1 e 2), azul (frases 3 e 4), laranja (frase 5) e verde (frases 6 e 7) na Fig. 11. Como se pode notar, cada grupo possui um par correspondente, com exceção do grupo destacado em laranja. Os pares indicados em vermelho e verde são idênticos (a seu correspondente de cor) quanto à melodia (entendendo que a variação rítmica tem origem prosódica, como dito anteriormente), e o azul apresenta uma variação na primeira nota (a frase 3 inicia-se com Lá, e, na quatro, com Fá). Quanto a isso, o que se destaca aqui é a reincidência dos pares já observada no canto primeiro, com a diferença de que o canto anterior não apresentava uma frase sem par, como é o caso deste segundo canto.

(14)

OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 51 Fig. 11: Pares formados pelas frases.

Ainda que o trecho destacado em laranja represente uma frase sem um par correspondente, pode-se ainda entender a estrutura deste canto de outra forma, como indicado na Fig. 12. Sob esta nova perspectiva, o trecho que antes estava destacado em laranja desaparece e surge como elemento principal, do qual os seguintes sofrerão variação, mantendo-se, então, três grandes grupos: frases 1 e 2, nas quais a última é uma variação rítmica da primeira; frases 3 e 4, nas quais a última é uma variação melódica da anterior; e frases 5, 6 e 7, nas quais a sexta frase é uma variação da anterior, e a sétima é uma repetição da que a precede.

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Quanto ao contorno, indicado pela linha em vermelho na Fig. 13, todos as frases começam com um movimento ascendente, como se pode ver nos trechos circulados em laranja. Além disso, as três primeiras frases possuem todas uma sequência de dois movimentos ascendentes e dois descendentes [ + + - - ]. Nestas mesmas frases, a quantidade de movimentos também é igual, ou seja, nota-se que todas as notas se movimentam quatro vezes, com quatro intervalos em cada uma delas. A partir da frase 5, há uma quebra nesse padrão com as frases 6 e 7 movimentando-se bem pouco e com a quinta se movimentando mais se comparada às outras.

Já a linha azul explicita que este canto é formado quase que exclusivamente por intervalos de segundas e terças maiores e menores (indicados pelos intervalos não ordenados 1, 2, 3 e 4). O único momento em que aparece um intervalo distinto desse grupo é na frase 4 (circulado em verde).

Fig. 13: Análise intervalar (intervalos ordenados e não ordenados entre notas).

Comparando-se este canto com o anterior, observa-se que todas as transições entre as frases, em ambos os cantos, foram feitas com intervalos -2, -3, ou -4, ou seja, todos segundas ou terças descendentes (Fig. 14). Outra reincidência entre esses dois cantos é o movimento descendente de segunda maior nas últimas notas, configurados ambos pelas notas Sol e Fá, respectivamente (Fig. 15). Também verifica-se o padrão formado por notas curtas seguidas de nota longa.

Outra observação a ser destacada é o movimento descendente por grau conjunto formado pelas notas longas, assim como no mboraei anterior. Nas três primeiras frases, tem-se o movimento descendente na sequência Dó4, Si

3 e Lá3, e nas seguintes uma pequena escala formada pela sequência Si

, Lá, Sol, Fá (Fig. 16).

(16)

OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 53 Fig. 14: Reincidências durante as transições entre frases dos cantos primeiro e segundo.

Fig. 15: Reincidências aos términos dos cantos primeiro e segundo.

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OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 54 Terceiro mboraei. Em contraste com a temática dos cantos anteriores, este não trata da jornada em direção à yvy marã e’y, como se pode ver adiante. Antes, o texto apresenta o domínio celeste como lugar de pertencimento ou de habitação do nhe’ẽ, reforçando o papel que a alma-palavra tem de vincular os Guarani aos habitantes celestes. Vale destacar a importância dada aos instrumentos musicais ao serem mencionados no canto, o que era esperado, considerando a discussão na seção anterior sobre o fortalecimento do nhe’ẽ ter o canto e a dança como um de seus meios efetivadores. Nesse sentido, a letra do canto contempla a relação com a música, por meio do cantar e do dançar, gestos viabilizados pelo uso dos instrumentos. Portanto, se o canto e a dança fortalecem o vínculo com o nhe’ẽ, espera-se que os instrumentos musicais sejam bem cuidados para a realização destas tarefas.

Cabe, também, uma observação sobre a palavra amba, traduzida aqui como “céu”. O sentido empregado no mboraei é o do céu como lugar onde habitam os seres sobrenaturais. Além disso, tal palavra também é usada para designar o “altar”, que é o local, na opy (casa de rezas), onde se colocam os objetos rituais (MACEDO, 2012: 189).

“Ore nhe’ẽ amba pygua / roguereko mba’epu”

(Nossa alma-palavra habita o (pertence ao) céu / nós cuidamos dos instrumentos) musicais) “Xondaro’i15 ojerojy / xondaria’i oporaei / ore nhe’ẽ amba”

(Os pequenos guerreiros marcham em fila (dançam) / As pequenas guerreiras cantam / Nossa alma-palavra é do céu)

Fig. 17: Transcrição do canto terceiro.

Construído sobre um hexacorde de Fá (Fig. 18), este canto, assim como os anteriores, também é formado por pares. No entanto, estes pares são idênticos, sem trechos de exceção, ou seja, a segunda frase é uma repetição exata da anterior (Fig. 19).

15 De acordo com Dooley (1998), xondaro pode ser traduzido por “soldado”. No entanto, esta palavra foi

traduzida a mim pelos meus interlocutores como “guardião” e “guerreiro”. Sobre o termo, recomendam-se os trabalhos de Santos (2016) e Macedo (2011b).

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OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 55 Fig. 18: Forma normal do conjunto de classes de notas.

Fig. 19: Pares formados entre frases.

Igualmente aos anteriores, as frases são construídas a partir de motivos rítmicos, e, neste caso, observa-se somente uma variação deste motivo (Fig. 20). Nota-se um motivo formado por uma mínima precedida de uma semínima curta, e sua variação se constitui na substituição da mínima por uma semínima e sua respectiva pausa. Nos três cantos, portanto, as notas longas são precedidas por notas curtas ou pela substituição por pausa em alguns destes tempos de nota longa.

Fig. 20: Motivo rítmico e variação do motivo rítmico.

Acompanhando a Fig. 21, pode-se notar, na primeira frase, uma escala descendente formada pelas notas longas (destacadas em verde). Na terceira frase, o que se observa é o contorno que se forma em arco, chegando-se na mesma nota de que se partiu (destacado em azul). Há também, aqui, algumas reincidências se compararmos este canto com os anteriores: todo o canto é formado por intervalos de segundas ou terças (neste caso, sem exceção), e suas últimas notas formam uma segunda maior descendente, formadas, novamente, pelas notas Sol e Fá (circuladas em vermelho). Outra reincidência consiste no intervalo de terça maior (ou in4) formado na transição entre as frases 1 e 2. A diferença, neste aspecto, quando comparamos este canto com os anteriores, é que este intervalo, ao contrário dos outros, é ascendente.

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OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 56 Fig. 21: Movimento descendente, por grau conjunto, formado pelas notas longas.

Quarto mboraei. Ainda que não trate da travessia do oceano, este mboraei fala do “mar” (ou “muita água”, literalmente) em seu texto como o lugar onde se veem os trovões por meio dos quais as divindades se manifestam. Em seguida, traça-se um paralelo entre esta manifestação e a dos Guarani kuéry (partícula coletivizadora) que são assistidos enquanto cantam na casa de reza por Nhanderu e Nhandexy kuéry16. A letra do canto e sua tradução constam a seguir. Ainda assim,

é pertinente acrescentar aqui a exegese de uma de minhass interlocutoras, professora e liderança da Tenonde Porã, acerca do texto deste canto:

[…] a música fala sobre as nossas divindades, quando eles se manifestam através do raio, ou quando fica trovejando lá longe depois do oceano ou do mar. Nós também vamos nos manifestar através do canto da reza pedindo para que eles olhem por nós e que possam nos proteger (Interlocutora guarani sobre este mboraei).

“Y guaxu rovai ojepovera yapu yvyty”

(Do outro lado do mar [onde tem muita água] vêm junto relâmpagos, trovões e ventos) “Jaje’oi katu opy’i re / jaiko mbovai”

(Vamos livres na casa de reza / Nós vivemos cantando) “Nhanderu oexa / Nhandexy oexa aguã”

(Nhanderu vê / Para Nhandexy ver)

16 De acordo com Macedo (2011a: 381), Nhanderu e Nhandexy kuéry, traduzidos como “nossos pais” e “nossas

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OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 57 Fig. 22: Transcrição do quarto canto.

A forma normal do conjunto de classes de notas deste canto compreende as notas Dó, Ré, Fá, Sol e Lá. No entanto, pode-se rearranjar esta sequência de modo a se chegar na escala pentatônica de Fá (Fig. 23). Nota-se aqui que os primeiros cantos apresentados neste trabalho variam conforme a maneira como o conjunto de notas se agrupa, entre o pentacorde de Fá, o hexacorde de Fá e a escala pentatônica de Fá. Além disso, os intervalos que compõem a melodia são, novamente, em sua maioria, compostos por segundas e terças (maiores ou menores). No caso deste canto, há uma única exceção (in7) na transição da frase 2 para a 3. Este intervalo, como pode ser observado, consiste no retorno à primeira frase, só que de forma variada (Fig. 24).

Fig. 23: Forma normal do conjunto de classes de notas e escala pentatônica sobre a qual o canto está

estruturado.

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Observa-se também um grande motivo rítmico formado pela frase 1 em sua totalidade, de modo que as frases seguintes (2, 3, 4 e 5) seriam suas variações. Essas variações seguem a estrutura de motivos rítmicos formada por uma sequência de figuras curtas, uma figura mais longa, outra sequência de figuras curtas e outra longa (ou com seus tempos preenchidos por pausas). Este motivo, então, estaria dividido em duas partes, conforme indicado pela linha verde na Fig. 25. A última frase, por sua vez, aparece como uma dissolução do motivo, ou em sua redução, ainda que a sensação gerada pela escuta seja de que os tempos se vão estendendo, como se estivessem sendo esticados.

Todos os cincos cantos deste artigo foram finalizados com um rallentando. Os tempos que se estendem, somados a essa variação de andamento, acentuam a sensação de expansão. No segundo canto, por exemplo, essa sensação tem origem na combinação do rallentando com as repetições, ao final, da frase “oo mombyry”.

Fig. 25: Motivo rítmico e variações do motivo rítmico.

Outro ponto a ser destacado sobre este canto são os pares formados entre as frases 1 e 3, e 2 e 4 (Fig. 26), de modo que a primeira frase tem 1 tempo a menos que seu correspondente (destacado em vermelho), e a frase 2 tem 1 tempo a mais que seu correspondente (indicado em azul). Se somarmos, porém, os tempos das frases 1 e 2, estas terão a mesma quantidade de tempos que as frases 3 e 4 (19 tempos). A frase não responde a este padrão métrico (com 13 tempos) e, novamente, não forma par com nenhuma outra frase do canto.

Este agrupamento em pares já foi destacado nos cantos anteriores, e, assim como no canto segundo, pôde ser identificada aqui uma frase que não se agrupa com nenhuma outra. Neste canto, particularmente, pode-se, então, propor uma divisão em três grupos, seja quando se

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formam os pares (frases 1 e 3, frases 2 e 4 e frase 5), seja quando se agrupam de acordo com seus tempos (frases 1 e 2, frases 3 e 4 e frase 5). Em ambos os casos, neste canto, nota-se 1) que a frase 5 não se agrupa com outra frase; e 2) a combinação, a depender do critério, entre as frases 1, 2, 3 e 4.

Fig. 26: Pares formados entre as frases.

Ao contrário dos outros, este canto não termina com intervalo de segunda maior descendente (Sol-Fá), mas com intervalo de terça menor ascendente (Ré-Fá), reafirmando a nota central Fá que se insinua como centro desde a primeira frase e se firma a partir da metade da frase 4 (Fig. 27). Ou seja, observa-se a existência de um centro em Fá, para o qual as frases 1 a 3 se dirigem, e no qual a frase 5 se mantém. Em torno deste eixo estariam “girando outros satélites” (fazendo uma apropriação do termo de Menezes Bastos (1990)), os quais são identificados aqui como Dó4 e Lá3.

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OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 60 Quinto mboraei

Fig. 28: Transcrição do quinto canto. “Kyrĩgue’i peju katu / nhamonhendu mborai”

(Venham, crianças, livremente / nós faremos com que ouçam os cantos) “Jajeroy jajeroky / Nhanderu Nhandexy ete oexa aguã”

(Vamos marchar em fila, vamos dançar / para Nhanderu e Nhandexy verdadeiros ouvirem) “Jajeroy nhanhembo’e’i”

(Vamos dançar, vamos rezar)

Este é o único canto dentre os selecionados para este trabalho que faz menção às crianças (kyrĩgue), convidando-as à dança, ao canto e à reza. Também chamam a atenção a palavra katu, cuja tradução literal é “desobstruído”, “desimpedido”, que aparece também no canto anterior, em “Jaje’oi katu opy’i re / jaiko mbovai” (“Vamos livres na casa de reza / nós vivemos cantando”), e as menções à Nhanderu e Nhandexy, divindades guarani, nos mesmos cantos. Em ambos os casos, o uso da palavra katu está associado ao cantar e à reza, e, nos dois mboraei, a finalidade da performance é enunciada: para que Nhanderu e Nhandexy vejam.

Quanto à estrutura melódica do canto, sua forma normal do conjunto de classes de notas compreende as notas Fá, Sol, Lá, Si

, Dó e Ré, ou hexacorde de Fá (Fig. 29). Mas, divergindo de todos os cantos anteriores, este é o único canto cuja extensão abrange a distância de uma oitava entre a nota mais aguda e a mais grave (Ré3 a Ré4) (Fig. 30).

Fig. 29: Forma normal do conjunto de classes de notas.

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Em consonância com os cantos anteriores, pode-se encontrar a presença de um motivo rítmico e de suas variações (Fig. 31). A novidade neste aspecto, porém, é que, ao contrário dos outros cantos formados integralmente por variações de um mesmo motivo rítmico, este surge de forma parcial, isto é, em alguns trechos do canto.

Fig. 31: Motivo rítmico e variações do motivo rítmico.

Além do motivo rítmico, nota-se um motivo melódico [-2, -3, +3] com variações ao longo do mboraei. Essas variações seguem, em sua maioria, o contorno [ - - + ]. A variação 2 do motivo melódico é a única com contorno [ - - - ], mas, se comparados seus intervalos não ordenados com aqueles do motivo melódico, pode-se observar uma inversão entre eles: enquanto o motivo melódico possui a sequência in2, in3, in3, a variação 2 desse motivo possui a sequência in3, in2, in2.

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Sobre a estrutura intervalar, observa-se, novamente, a predominância de intervalos de segundas maiores e terças maiores e menores, com apenas três ocorrências de intervalos distintos a esses (in7 e in5 circulados em rosa na Fig. 33). Também se destacam trechos em que há uma sequência razoavelmente extensa de dois intervalos ascendentes seguidos por dois descentes; uma sequência, um pouco menos extensa, contendo um movimento descendente seguido por outro ascendente; e outra sequência menor que as anteriores, contrária a esta última: um intervalo descendente seguido de outro ascendente. Entre a primeira e a segunda sequência, nota-se um trecho que segue estas sequências de contorno (Fig. 33).

Fig. 33: Análise intervalar indicando as sequências e intervalos.

Reduzindo, ainda, esses grupos sequenciais, o que se verifica é outro padrão: o de movimentos alternados (circulados em verde na Fig. 34). Ou seja, se o movimento anterior ascendeu, o seguinte descende; se o anterior foi um movimento descendente, o seguinte é ascendente. Em rosa destacam-se os movimentos que quebram estas sequências.

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OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 63 Fig. 34: Nota Fá como centro sonoro da terceira frase e sequência de movimentos.

Além disso, observa-se uma convergência em direção à nota Fá, fazendo com que esta soe como o centro sonoro deste canto (destacadas em vermelho na Fig. 35). Pode-se dizer, ainda, que, no trecho 1 (correspondente às frases 1 e 2, conforme indicado adiante), as notas Dó4 e Lá3, circuladas em azul, são, assim como no canto anterior, os satélites desse eixo em Fá, em torno do qual estão girando, até que a ele se chegue, ao final do trecho (com uma bordadura em Sol). Na terceira frase, inicia-se um novo trecho – trecho 2 – marcado por um movimento que parte de Fá e que a ele retorna, a cada movimento feito. Outro movimento observado nesse trecho é formado pelas notas longas (circuladas em roxo), em que, por grau conjunto, parte-se do Si

3 até chegar ao centro sonoro em Fá. No terceiro trecho (correspondente ao final da terceira frase, assinalado em verde), reafirma-se esse eixo, em um movimento que sai de Fá, vai para Ré e volta para Fá, e se repete: sai de Fá, vai para Ré e volta para Fá.

Fig. 35: Canto dividido em trechos, indicando as notas-satélite, o movimento descendente formado entre

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Outro fator a ser destacado é o prolongamento dos tempos na finalização do canto: na frase 3, a última sílaba de cada palavra ou de cada duas palavras é longa. Enquanto aqui a expansão se dá pelas notas longas, vimos que, no segundo canto, ela se configurava nas repetições das últimas palavras, e, no terceiro canto, na dissolução dos tempos da última frase musical.

Reincidências e particularidades entre os cantos analisados

Ainda que já apontadas, resumem-se aqui as reincidências e particularidades entre os cantos escolhidos para comporem este artigo, reunidas na Tab. 1. Quanto à temática, menções ao cantar (mboraei = canto, oporaei = eles cantam, mbovai = canto) aparecem em quatro dos cinco cantos: no primeiro, no terceiro, no quarto e no quinto. Menções à caminhada (ou à ideia desta) aparecem nos dois primeiros cantos. As palavras mar (y guaxu ou yguaxu, dependendo do modo como meu interlocutor escreveu), alegria (-vy’a), dança (-jeroky, -jerojy), livres/livremente (katu), bem como a menção a Nhanderu e Nhandexy foram notadas em dois dos cinco cantos selecionados. Por sua vez, as palavras nhe’ẽ (alma-palavra), xondaro/xondaria (guerreiros/guerreiras) e kyrĩgue’i (pequenas crianças) não são comuns a estes cantos, aparecendo uma única vez em seu respectivo mboraei. Com este levantamento, confirma-se o apontado por Macedo (2012) quando percebida uma temática recorrente nos kyrĩgue mboraei: observaram-se aqui temas que tratam da jornada, da travessia do mar, e o uso de palavras que implicam música de alguma forma, em um discurso metamusical (chamadas por Macedo de metarreferências), como cantar, dançar e mesmo menções aos instrumentos musicais.

Os andamentos registrados dos cinco cantos são dois: 150 ou 160 pulsos por minuto, sendo que o quarto canto é o único com 150. A afinação dos cantos gira em torno de Fá, ora sendo Fá

, ora Fá, ora um pouco mais abaixo de Fá, como se pode ver na Tab. 1. Extraindo-se a

forma normal do conjunto de classes de notas, tem-se que as escalas nas quais estes mboraei se sustentam são o hexacorde, pentacorde e pentatônica de Fá, e que, simultaneamente, correspondem à extensão das alturas utilizadas, com exceção do último canto, em que a região de alturas compreende uma oitava, excedendo, portanto, a região compreendida pela sua forma normal.

Ainda que todos os cantos sejam finalizados na nota Fá, somente nos dois últimos são percebidos, de forma mais explícita, movimentos convergentes em direção a este centro sonoro durante todo o canto, e não somente ao final, como é o caso dos três primeiros cantos. Ainda assim, destacam-se os intervalos de segunda maior descendente ao final dos três primeiros cantos e a terça menor ascendente nos dois últimos, movimentos reincidentes, portanto.

Os cantos selecionados aqui são estruturados, em sua totalidade, por motivos rítmicos. Estes, por sua vez, formam-se todos por uma figura curta (ou sequência de figuras curtas) seguida por uma figura longa. Como já mencionado, em quatro deles os motivos rítmicos e suas variações compõem (quase que) integralmente o mboraei; e, no último deles, em partes do canto. Além disso, neles predomina o padrão formado por nota(s) curta(s) seguida de nota longa.

Em relação aos intervalos, observou-se a predominância de intervalos de segunda maior e de terças maiores ou menores (in2, in3 e in4), coincidindo, inclusive, com o já observado por

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Montardo (2009: 155) nas músicas dos Guarani Kaiowá. Intervalos de segundas menores foram verificados somente no segundo e no terceiro mboraei, e os intervalos 5 e 7 (in5 e in7) aparecem uma ou, no máximo, três vezes, em alguns dos cantos. As transições entre as frases identificadas também apontam a predominância de intervalos in2, in3 e in4, sendo que só o quarto canto tem uma transição in5.

A quantidade total de frases em cada mboraei selecionado para este artigo é variada, sem reincidências. No entanto, foram encontradas frases com seis ou 12 tempos em quase todos os cantos. Levando em conta, contudo, que o número 12 é múltiplo de seis, podem ser levantadas aproximações entre essas frases. Até a frase com 24 tempos contida no quinto canto pode ser incluída nessa aproximação, se seguirmos esse raciocínio. Os cantos quarto e quinto, nessa mesma lógica, também podem ser aproximados entre si, pois a frase com 22 tempos (quinto canto) é múltipla daquela com 11 (quarto canto). São comuns também as frases com tamanhos variados, como é o caso dos dois últimos cantos. Outro ponto observado é a formação de pares, conforme indicado no decorrer do texto, entre algumas frases na maioria dos mboraei, sendo que o último é a única exceção desse padrão.

Há também algumas reincidências quanto ao movimento descendente por grau conjunto formado pelas notas longas. Também se observa no contorno geral dos cantos um movimento descendente em direção ao final de cada mboraei. A explicação para isso, escreve Macedo, é que, “assim como a pessoa que sonha precisa ter seu nhe’ẽ de volta antes de despertar (se não sucumbirá à doença e morte), […] os cantos retiram e recuperam o nhe’ẽ, encerrando com um movimento melódico descendente”17 (MACEDO, 2011a: 392, tradução minha). Macedo (2011a)

ainda acrescenta que o mesmo foi dito à Stein por um de seus interlocutores: “[…] a maioria dos cantos Mbyá18 acaba ‘pra baixo’, como um lugar de finalização do som para onde todos os

cantos voltam” (STEIN, 2009: 281, grifo no original). Para esta pesquisadora, este movimento melódico descendente é orientado pelo centro tonal do canto (STEIN, 2009: 281).

O quarto mboraei é o único em que não se observou este movimento. Ainda assim, suas respectivas notas satélites formam uma tríade a partir de Fá e para esta nota convergem. Os cantos primeiro, segundo e quinto possuem também a sequência [ + - - ] em seu contorno, isto é, possuem pequenas células melódicas em quantidade expressiva com a sequência de um movimento ascendente, seguido por dois descendentes.

Por último, todos os cantos são finalizados com um rallentando, já observado por Montardo (2009: 158). As variações nas finalizações consistem na repetição de palavras no canto segundo, na dissolução dos tempos da última frase do quarto canto e, por fim, nas notas longas recorrentes na última frase do quinto canto.

17 “Just as the person who dreams must have his or her nhe’e back before awakening (or else succumb to

illness and death), […] the chants take and bring back the nhe’ẽ, finishing with a melodic descending

movement” (MACEDO, 2011a: 392).

(29)

OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 66

Primeiro mboraei Segundo mboraei Terceiro mboraei mboraei Quarto Quinto mboraei

Temática Caminhada, canto, alegria Mar, caminhada, alegria nhe’ẽ, guerreiros Canto, dança,

Mar, canto, divindades,

livres

Crianças, canto, dança, divindades, livres

Andamento 160 160 160 150 160

Afinação Fá♯ Fá ( )19 Fá ( ) Fá ( ) Fá/Fá♯ (dependendo da gravação)

Escala Hexacorde de Fá (sem o Dó) Hexacorde de Fá Pentacorde de Fá Pentatônica de Fá Hexacorde de Fá

Eixo principal/ centro sonoro --- --- --- Fá Fá Motivo

rítmico Sim Sim Sim Sim Sim

Motivo

melódico Sim Sim Não Não Sim

Intervalos 2, 3 e 4, predominantemente; dois intervalos 5 1, 2, 3 e 4, predominantemente; um intervalo 5 1, 2, 3 e 4, somente 2, 3 e 4, predominant emente; um intervalo 7 2, 3 e 4, predominantemente; um intervalo 5 e um intervalo 7 Intervalos nas transições entre frases/ células 2, 3 e 4 3 e 4 4 5 e 2 3 Quantidade

de frases 3 (sendo 6 células) 7 4 5 3

Tempos por frases/ células

1 célula com 5; 5

células com 6 6 2 frases com 12; 2 frases com 9.

7, 12, 8, 11 e 13, respectivame

nte

22, 10, 24

Pares Sim, 3. Sim, 3. Com uma frase sozinha. Sim, 2.

Sim, 3. Com uma frase

sozinha.

Não

Intervalo

final -2 (Sol e Fá) -2 (Sol e Fá) -2 (Sol e Fá) +3 (Ré e Fá) +3 (Ré e Fá)

Finalização Rallentando Rallentando, repetições de células Rallentando

Rallentando, expansão dos tempos Rallentando, expansão dos tempos Outros Movimento descendente entre notas longas, retardos, sequência [+ - -] Movimento descendente entre notas longas, bordaduras, sequência [+ + - -] Movimento descendente entre notas longas, frase em arco Notas satélites Notas satélites, movimento descendente entre notas longas, sequência

[+ + - -]

Tab. 1: Tabela comparativa contendo as reincidências e particularidades encontradas

nos mboraei analisados.

(30)

OPUS v.25, n.2, maio/ago. 2019 . . . 67 Considerações finais

Os kyrĩgue mboraei compõem parte importante do repertório musical dos Guarani Mbya. Sendo extensos em quantidade, procurou-se analisar a melodia de alguns poucos dos aprendidos na tekoa Tenonde Porã, com as crianças guarani entre os anos de 2013 e 2015. Confirmando o que já era percebido pelo que eu ouvia na aldeia, na opy e nas gravações feitas, há, entre esses mboraei, muitas reincidências e certas particularidades. Essas características foram analisadas a partir das seguintes dimensões musicais: intervalos, motivos, células rítmicas, métricas, frases e temas contidos nas melodias desses cantos.

Destacam-se neste espaço a predominância de intervalos de segundas e terças; os pares formados entre frases; o movimento descendente formado entre as notas longas; os finais das últimas frases que ora são formados por uma segunda maior descendente formada (Sol-Fá, nessa ordem), ora são formados por uma terça menor que se define em Fá (Ré-Fá, nessa ordem); o padrão no contorno melódico; o rallentando e expansões nas finalizações dos cantos.

A amostra considerada aqui, contudo, é pequena. Por isso, são necessários trabalhos que considerem maior número de mboraei da Tenonde Porã, para que tais reincidências e particularidades sejam confirmadas ou mesmo contestadas.

Referências

ARNT, Monica de Andrade. Mediações musicais e direitos autorais entre grupos Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

CAMPBELL, Patricia Shehan. How Musical we are: John Blacking on Music, Education, and Culture Understanding. Journal of Research in Music Education, v. 48, n. 4, p. 336-359, 2000.

______. Ethnomusicology and Music Education: Crossroads for Knowing Music, Education, and Culture. Research Studies in Music Education, v. 21, n. 1, p. 16-30, 2003.

DOOLEY, Robert A. (Organização, compilação e assistência linguística). Léxico Guarani, dialeto mbya: versão para fins acadêmicos. Porto Velho: Sociedade Internacional de Linguística, revisão de novembro de 1998.

FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade – uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais... São Carlos: UFSCar, 2015a. p. 48-58.

______. Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas. Dissertação (Mestrado). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015b.

______. A infância e o processo de ensino-aprendizagem entre os Guarani Mbya: jogo, música e educação. Orfeu, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 31-44, dez. 2017. Disponível em:

<http://www.revistas.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/1059652525530402022017031/7416>. Acesso em: 30 dez. 2018

______. Interlocuções entre a Etnomusicologia e a Educação Musical. Revista Música – Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, v. 18, n. 1, 2018. Disponível em:

Imagem

Fig. 1: Transcrição do primeiro canto.
Fig. 2: Detalhe para os tempos finais de cada grupo.
Fig. 4: Motivos melódicos.
Fig. 8: Transcrição da primeira estrofe do segundo canto.
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