• Nenhum resultado encontrado

Net-Ativismo e Ações Colaborativas nas Redes Sociais Digitais

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "Net-Ativismo e Ações Colaborativas nas Redes Sociais Digitais"

Copied!
360
0
0

Texto

(1)

1

Net

-

Ativismo e Ações Colaborativas nas Redes Sociais Digitais

Marina Magalhães de Morais

Tese de doutoramento em Ciências da Comunicação

(2)

1 Nª de aluno: 35532

Net

-

Ativismo e Ações Colaborativas nas Redes Sociais Digitais

Marina Magalhães de Morais

Tese de doutoramento em Ciências da Comunicação

Orientador: Professor Doutor José Augusto Bragança de Miranda

Coorientador: Professor Doutor Massimo Di Felice

(3)

1 Tese apresentada para o cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Comunicação (Especialidade: Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias), realizada sob a orientação científica do Professor Doutor José Augusto Bragança de Miranda e sob a coorientação do Professor Doutor Massimo Di Felice.

(4)

1

[DECLARAÇÕES

]

Declaro que esta Tese de Doutoramento é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O seu conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.

O candidato,

Lisboa, 15 de janeiro de 2018.

Declaro que esta Tese de Doutoramento se encontra em condições de ser apreciada pelo júri a designar.

O orientador,

O coorientador,

_________________________

Lisboa, 15 de janeiro de 2018.

(5)

2

A Luther Blissett e Hakim Bey. Aos índios da Selva Lancadona. Às flores do norte da África e do Médio Oriente. Aos indignados de uma

geração à rasca. Aos net-artistas e

(6)

1

“Pelos alto-falantes do universo

Vou louvar-vos aqui na minha loa

Um trabalho que fiz noutro planeta Onde nave flutua e disco voa: Fiz meu marco no solo marciano Num deserto vermelho sem garoa

Este marco que eu fiz é fortaleza Elevando ao quadrado Gibraltar Torreão, levadiça, raio-laser

E um sistema internet de radar: Não tem sonda nem nave tripulada Que consiga descer nem decolar

Construí o meu marco na certeza Que ninguém, cibernético ou humano Poderia romper as minhas guardas Nem achar qualquer falha no meu plano Ficam todos em Fobos ou em Deimos Contemplando o meu marco marciano

O meu marco tem rosto de pessoa Tem ruínas de ruas e cidades Tem muralhas, pirâmides e restos De culturas, demônios, divindades: A história de Marte soterrada Pelo efêmero pó das tempestades

Construí o meu marco gigantesco Num planalto cercado por montanhas Precipícios gelados e falésias

Projetando no ar formas estranhas Como os muros Ciclópicos de Tebas E as fatais cordilheiras da Espanha

Bem na praça central, um monumento Embeleza meu marco marciano: Um granito em enigma recortado Pelos rudes martelos de Vulcano: Uma esfinge em perfil contra o poente Guardiã imortal do meu Arcano”

(7)

1

AGRADECIMENTOS

Ao meu pai, Nino Pinto, que tinha a essência net-ativista mesmo sem saber: partiu na reta final deste estudo, como um bom pirata, para desbravar outras ilhas, em novas dimensões, não sem antes espalhar as suas palavras andantes na minha embarcação.

À minha mãe, Helena, professora por excelência, e à minha avó, Darcy Magalhães, mãe duas vezes, orientadoras fundamentais de toda a minha existência. À minha irmã, Luísa, e a Edison Melo, outro pai que encontrei pelo caminho, também partes do meu porto seguro do lado de lá do Atlântico.

Aos professores, orientadores e amigos, José Augusto Bragança de Miranda e Massimo Di Felice, por estimularem a minha essência pirata, o meu navegar livre por rotas pouco conhecidas em mares digitais, com a segurança de contar com companheiros de tripulação anárquicos e atópicos – certamente por isso tão instigantes.

Ao professor, editor e tio Henrique Magalhães, pela genética da inquietação, indubitavelmente a herança mais rica. Pelo incentivo às publicações, pela revisão incansável desta tese e pelos demais apoios nos maremotos em águas estrangeiras, toda a minha gratidão.

Aos professores e também amigos Cláudio Cardoso de Paiva, Nadja Carvalho e Wellington Pereira, da Universidade Federal da Paraíba, por terem, ainda na Graduação, plantado a semente da pesquisa, regando-a no Mestrado e ao longo dos inúmeros e provocativos diálogos que se estenderam desde então.

Ao Centro de Pesquisa Atopos, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), e ao Centro de Investigação em Comunicação, Informação e Cultura Digital (CIC Digital) da Universidade Nova de Lisboa. Mais que instituições de acolhimento desta investigação, ambas configuram redes fomentadoras de uma inteligência coletiva essencial para a ampliação dos nossos horizontes – genuínas expressões das ações colaborativas sobre as quais tratamos no decorrer deste estudo.

À Fundação para a Ciência e a Tecnologia, instituição financiadora da presente pesquisa, responsável por levar o nosso olhar do Tejo (Portugal) ao Mar Mediterrâneo (Itália), do Mediterrâneo aos mares do Atlântico (Brasil), com um cruzamento de informações além -mar capaz de ampliar a visão do investigador para a pesquisa e para o mundo – inclusive para perceber como esses universos nunca deveriam estar dissociados.

À Universidade Lusófona do Porto, por possibilitar as minhas primeiras experiências de docência em terras portuguesas, pelas oportunidades de colaboração com eventos e publicações sobre o Net-Ativismo. Agradeço a confiança, o respeito e a generosidade com os quais fui agraciada por toda a equipe.

(8)

2

NET-ATIVISMO E AÇÕES COLABORATIVAS NAS REDES SOCIAIS DIGITAIS

MARINA MAGALHÃES DE MORAIS

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE: net-ativismo; redes sociais digitais; internet.

Esta tese pretende contribuir para uma proposta investigativa sobre o habitar na época das redes sociais digitais, a partir da perspetiva que uma pesquisa sobre a qualidade das ações colaborativas pode nos apresentar. Tal escolha justifica-se não somente pelo espalhar-se no

mundo de formas de protestos, conflitos e participação surgidas e veiculadas a partir dos social networks, mas pelas caraterísticas específicas dessas ações, que se apresentam não mais como desenvolvidas exclusivamente pelos ditos atores sociais. Hoje, assumem a forma de um agir reticular, integrando atores de naturezas diversas, através da colaboração de dados, dispositivos móveis de conectividade, circuitos informativos etc.

Desse modo, a investigação estrutura-se em três níveis entrecruzados, uma vez que o

pesquisar sobre as redes nos leva a uma diluição das fronteiras entre teorias, métodos e análises. Primeiramente, apresentamos uma revisão de literatura em torno da crise da política na contemporaneidade – que despontava antes mesmo do surgimento da Internet, no debate sobre o fim da modernidade – no intuito de compreendermos os seus novos significados e as formas de conflitualidades emergentes na cultura das redes.

No segundo nível investigamos os significados da ação em rede através de três eixos teóricos distintos. As leituras iniciais os dimensionam nos quadros de um agir político: a primeira trata o net-ativismo como uma nova esfera pública digital, enquanto a segunda propõe um olhar

crítico sobre as teorias da ação em rede – em seu sentido não somente digital – como algo restrito aos humanos, reconhecendo a participação dos não humanos nas ações e reivindicando a sua inclusão no debate sobre uma cosmopolítica. O terceiro eixo interpreta tais mobilizações como o advento de um novo tipo de ação, de uma rutura no paradigma do agir, não mais visto como essencialmente social e político, mas como um processo de transdução e transubstanciação na relação entre o homem, a natureza e a tecnologia.

Por fim, na terceira parte, propomos um recorte temporal sobe a evolução das redes sociais digitais e a transformação destas novas formas de ação. Partimos dos conceitos relacionados ao ativismo em rede e seguimos rumo à construção de um panorama que transpassa desde as experiências pioneiras, em contextos mundiais distintos, até o mapeamento das ações colaborativas mais recentes, nas redes portuguesas, ressaltando os principais marcos. Como orientação teórico-metodológica, adotamos a tríade proposta por José Bragança de Miranda,

que sugere três tipos de net-ativismo desenvolvidos pelos ditos utilizadores, os de natureza

(9)

3 mapeamento nacional, trabalhamos com a interpretação das formas do net-ativismo,

inspirados na tipologia das dinâmicas ecológicas de interação nas redes, elaborada por Massimo Di Felice. Os casos, apresentados inicialmente segundo a predominância de seus conteúdos, passam então a ser observados quanto às formas de interação, de modo a investigarmos a aplicabilidade da combinação das tipologias e das suas respetivas categorizações, colocando-nos como desafio teórico a construção de um caminho que nos

(10)

4

NET-ACTIVISM AND COLLABORATIVE ACTIONS ON DIGITAL SOCIAL NETWORKS

MARINA MAGALHÃES DE MORAIS

ABSTRACT

KEY WORDS: net-activism; digital social networks; Internet.

This thesis intends to contribute to an investigative proposal about living in the era of digital social networks, from the perspective that a research on the quality of collaborative actions can present us. This choice is justified not only by the spread of forms of protests, conflicts and participation arising and transmitted from social networks, but by the specific characteristics of these actions, which present themselves no longer as exclusively developed by those so-called

social actors. Nowadays, they take the form of a reticular action, integrating actors of diverse natures, through data collaboration, mobile devices with connectivity, information systems, etc.

Thus, this research is structured in three interlocking levels, since research on networks leads to a dissolution of boundaries between theories, methods and analyzes. First, we present a literature review on the crisis of contemporary politics - which emerged even before the

emergence of the Internet, in the debate about the end of modernity - in order to understand

its new meanings and forms of emerging conflicts in the culture of networks.

In the second level, we investigate the meanings of the network action through three different theoretical currents. The first readings measure them in the framework of a political action: the first adresses net-activism as a new digital public sphere, while the second proposes a critical

look at network action theories - not only digital sense - as something restricted to humans,

recognizing the participation of non-humans in the actions and claiming their inclusion in the

debate on a cosmopolitics. The third current interprets such mobilizations as the advent of a new type of action, i.e. a rupture in the paradigm of action, no longer seen as essentially social and political, but as a process of transduction and transubstantiation in the relation between man, nature and technology.

Finally, in the third part, we propose a temporal frame in the evolution of digital social networks and the transformation of these new forms of action. We start from the concepts related to network activism and proceed towards the construction of a panorama that involves from the pioneering experiences, in different world contexts, to the mapping of the most recent collaborative actions in Portuguese networks, highlighting the main landmarks. As a theoretical-methodological orientation, we adopt the triad proposed by José Bragança de

Miranda, that suggests three types of net-activism developed by the so-called users, those of a

(11)

5 and Me Myself and I. From the experiences found in the national mapping, we work with the interpretation of the net-activism forms, inspired by the ecological dynamics typology of

(12)

6

ÍNDICE

DEDICATÓRIA………

AGRADECIMENTOS……….

RESUMO………….………..………

INTRODUÇÃO……….……….. 1

PARTE I DA CRISE DA POLÍTICA NA CONTEMPORANEIDADE……… 9

Capítulo 1. Modernidade e crise da História no Ocidente……….. 15

1.1. A crise da conceção unitária da história………. 15

1.2. A crise da metanarrativa………. 21

1.3. A crise da dialética frente às novas ligações……… 26

Capítulo 2. Significados da crise da política no Ocidente………..…. 33

2.1. A crise do sentido da política……… 33

2.2. A crise da democracia representativa………. 40

2.3. A transfiguração do político………..… 46

Capítulo 3. Novos significados e novas formas de conflitualidades………….. 62

3.1. Invisibilidade e formas mediáticas de conflito……….……. 63

3.2. Multidões e biopolíticas…..……….. 70

PARTE II DA QUALIDADE DA AÇÃO EM REDE……….………. 81

Capítulo 4. A política na época do Big Data……….... 85

4.1. Networked: as redes como novo sistema operativo social……….... 90

4.2. Massas e microssegmentações da cultura conectada………... 100

4.3. As redes e a política sem partido……….……… 112

4.3.1. O ativismo em rede e a participação sem partido………. 120

Capítulo 5. O social além do humano……….……… 127

5.1. A crise sociológica do social em rede……….……….………. 129

5.1.1. A confusão entre sociedade e corpo político……….……….………. 139

5.2. A cosmopolítica como reagregação do social……….…….………….. 149

Capítulo 6. Transdução e transubstanciação das redes………. 160

6.1. Transdução do ativismo em rede……….……… 164

6.2. Transubstanciação nas ecologias comunicativas……….… 170

(13)

7 PARTE III

DO NET-ATIVISMO………. 179

Capítulo 7. Da cibercultura ao net-ativismo……….……… 184

7.1. Digressão pelas teorias das redes e do net-ativismo………….……….………. 184

7.1.1. O net-ativismo………... 189

7.2. Marcos e fases do net-ativismo mundial na cultura das redes………. 194

7.2.1. Potencialidades das redes e fases do net-ativismo……… 196

7.2.1.1. Fase preparatória: entre as redes de redes e o Tactical Media……… 198

7.2.1.2. As influências punk e pirata no universo cyber: Hakim Bey e Luther Blisset.... 204

Hakim Bey………. 206

Luther Blissett……… 214

7.2.2. Fase da experimentação de um novo tipo de conflitualidade……….. 224

7.2.2.1 O Movimento Zapatista……… 225

A internacionalização do movimento……… 229

A estética zapatista……… 235

Capítulo 8. Fase web 2.0 e socialnetworks……….………. 243

8.1. Das redes do IRC ao MSN Messenger….……….……… 243

8.2. Do Orkut ao Facebook……….………... 245

8.3 Dos movimentos globais em época de social networks……….………. 250

8.3.1. Anonymous……….………. 251

8.3.2. MoVimento 5 Estrelas……….. 258

8.3.3. Primavera Árabe……… 263

8.3.4. Movimento 15M (Indignados)……… 266

8.3.4.1. Acampadas……….. 268

8.3.5. Occupy Wall Street………. 271

8.3.6. Jornadas de Junho de 2013 no Brasil……….……… 274

Capítulo 9. Net-ativismo em Portugal………..………. 281

9.1. Procedimentos metodológicos do estudo……….……….…. 284

9.1.1. Tipologia temática para mapeamento dos casos: técnico, político, estético.…… 287

9.1.2. Por uma tipologia das dinâmicas ecológicas de interação em rede………. 290

9.2 Net-ativismo técnico: LulzSec Portugal……….……… 294

9.3. Net-ativismo político: Geração à Rasca………..……… 300

9.4. Net-ativismo estético: Me Myself and I………. 309

CONCLUSÃO……….……… 317

(14)

8

VI

Navegam sem o mapa que faziam

(Atrás deixando conluios e conversas Intrigas surdas de bordéis e paços)

Os homens sábios tinham concluído Que só podia haver o já sabido: Para a frente era só o inavegável Sob o clamor de um sol inabitável

Indecifrada escrita de outros astros No silêncio das zonas nebulosas Trémula a bússola tacteava espaços

Depois surgiram as costas luminosas Silêncios e palmares frescor ardente E o brilho do visível frente a frente

(15)

1

Introdução

Escrever é navegar tateando, disse certa vez1 a poetisa Sophia de Mello Breyner.

Tal pensamento sobre a essência da sua escrita, poética, aproxima-se da natureza do nosso pesquisar, científico: um navegar sem mapas pré-desenhados; um abrir mão das conclusões dos homens sábios de que só pode haver aquilo o que é já sabido. Pesquisar as redes sociais digitais, especificamente, é como navegar em mar aberto. Leva-nos a uma diluição das fronteiras entre o que é terra e o que é mar2, teorias, métodos e análises; desordena as divisas entre pesquisador observador e pesquisador participante, entre sujeito e objeto, entre homem, natureza e tecnologia, entre tantas separações questionadas ao longo das próximas páginas.

Movidos por uma consciência de que em longas expedições, além de desfazer as amarras, levantar âncoras e içar velas, quase sempre é preciso ajustar estas últimas e arriscar novas rotas, a odisseia teórica desta investigação adota como bússola uma visão ecológica e, portanto, pós-humanista da relação entre o homem e a técnica num cotidiano cada vez mais digitalizado, no qual “o vértice da técnica se abriu na nossa experiência, liquefazendo a solidez da Terra e a própria distinção milenar que a garantia contra o mar” (Bragança de Miranda, 1998, p. 24). Mais do que isto, compreender a

1 Em entrevista concedida a Eduardo Prado Coelho e Miguel Serras Pereira, publicada no site da

Biblioteca Nacional de Portugal.

Cf. Breyner, S. M. in E. P. Coelho P. & M. S. Pereira. “Sophia de Mello Breyner Andresen: anos 80”. Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em http://purl.pt/19841/1/1980/1980.html. Consultado em 9 fev. 2017.

2 Fazemos aqui menção a uma metáfora apresentada em Naufrágio com Espectador (1986), de Hans

Blumenberg. Neste livro, o filósofo alemão sugere o naufrágio como uma metáfora existencial, tal como abordada em Rerum Natura, proêmio do livro de Lucrécio, ao argumentar que a oposição terra-mar –

referente à posição segura, em terra firme, de onde o espectador observava a cena do naufrágio dos heroicos navegadores, que violavam as fronteiras para se exporem aos perigos dos mares – determina todo um conjunto de outras oposições vigoradas até a modernidade.

Bragança de Miranda (1998) sublinha a importância do tema: “Dessa oposição derivam algumas não menos essenciais, como a de segurança/perigo, de empenhado/indiferente, de espectador/agente, de passividade/atividade, etc. Em suma, a reflexão sobre a posição tem profundas implicações políticas. A modernidade constitui um ponto de viragem neste paradigma que desagrega numa miríade de ‘imagens’ concorrentes (…) tudo posições que estão determinadas pelo fenómeno crucial do nihilismo moderno, marcado pela tensão entre lugares fixos e sujeitos em permanente mobilidade” (p. 20)

(16)

2 complexidade de um (não) objeto como o net-ativismo3, a partir de um recorte temporal de um fenómeno emergido no contexto da inicialmente chamada

cibercultura (Lévy, 2007)4 exige

-nos uma perceção mais ecológica desses processos na dimensão da comunicação, no sentido de deslocar, antes de tudo, a posição do homem como medida de todas as coisas, como sujeito senhor da ação, para observá-lo enquanto um dos elementos dessa perspetiva reticular.

Para o pós-humanismo5, somos parte de uma ecologia composta por técnicas, seres orgânicos, seres inorgânicos e por territorialidades (Di Felice & Pireddu, 2010), de modo que nenhum desses elementos deve ser estudado como se estivesse num patamar superior aos demais. Esta linha de pensamento vem ao encontro do que propomos observar no decorrer do presente estudo, precisamente por superar a tradicional visão da supremacia humana em relação à técnica e à natureza propagada pelos teóricos modernos – o que não mais atende ao frescor de uma contemporaneidade permeada pelo digital. Assim, aproximamo-nos de uma perspetiva mais ecológica dos dinamismos existentes numa cultura em que ação se desenvolve

em rede e nas redes.

Uma vez que a tecnologia, os seres humanos, os demais seres vivos e os seres não vivos fazem parte de uma mesma lógica ecossistêmica, e que o nosso problema investigativo consiste na qualidade ação em rede6, ampliamos essa aproximação entre

3

Fala-se de não-objeto no sentido em que se trata de um “objeto dinâmico”, formado por inúmeros atos

e interações, exigindo uma epistemologia diferente da clássica, que separa sujeito e objeto, agora definíveis pela própria ação. Uma discussão conceitual acerca do fenómeno é proposta na Parte III desta investigação.

4 Cf. Lévy, P. *1997+(2007). Cibercultura. São Paulo: Editora 34.

5 Para Massimo Di Felice e Mario Pireddu (2010) o pós-humanismo é uma galáxia complexa, um universo

de referência que compreende internamente abordagens diferentes e posições frequentemente divergentes, quando não antitéticas. “Provavelmente, entre as demais – trans-humano, além do humano, ciborgue etc, o ‘pós-humano’ é uma definição infeliz, que deve ser superada, mas que, por enquanto, nos é útil como categoria semântica, como instrumento heurístico, para definir um conceito tão simples que se aproxima da banalidade: pós-humano como pós-humanismo, isto é, como a crise do pensamento humanocêntrico” (pp. 29-30).

Cf. Di Felice, M. & Pireddu, M. (2010). Além do solipsismo: as naturezas não humanas do humano. In M. Di Felice & M. Pireddu (Orgs.). Pós-humanismo: as relações entre o humano e a técnica na época das redes (pp. 26-32). São Paulo: Editora Difusão.

6 A qualidade da ação em rede, no contexto das redes sociais digitais, é abordada de forma distinta por

(17)

3 a ciência e a natureza – incluindo nesta, o homem – a fim de sinalizar alguns desafios encontrados em nosso percurso teórico-metodológico no campo das redes sociais digitais. Lançamos, desse modo, um olhar sobre o tema através das lentes da familiar metáfora do mar, utilizada por diversos teóricos e investigadores da cultura das redes quando tratam do dilúvio informacional espalhado nesta nova ambiência digital (Bragança de Miranda, 1998; Lévy, 2007; Di Felice & Pireddu, 2010; Loureiro, 2011; entre outros). Metáfora também amplamente explorada pelo universo da publicidade e da propaganda em torno da Internet e das redes sociais digitais enquanto produtos, no apelo mercadológico que transita do “navegar na internet” ao “surfar as ondas digitais”.

O mar – e na nossa metáfora7 cabem os oceanos e a infinidade de espaços

fluidos que se inscrevem no planeta em que habitamos –, quando colocado em perspetiva como interesse de investigação académica em campos de saber diversos, entra em processo de constante mutação. Aparte todo o misticismo e a religiosidade que o envolvem no imaginário coletivo, o mar transmuta-se com a sociedade ao seu redor, no compasso das demais transformações naturais resultantes da atuação humana e da sua cultura do consumo – que apenas nas últimas décadas começou a voltar as atenções para uma lógica de desenvolvimento sustentável.

A partir da metáfora do mar podemos refletir sobre o nosso (não) objeto de investigação em estado de eterno devir, uma vez que não nos confrontamos com uma realidade externa a nós ou com uma arquitetura estruturada entre sujeito-objeto comum nas pesquisas desenvolvidas num contexto analógico. Em seu lugar, deparamo -nos cada vez mais com um fenómeno que, na medida em que -nos conectamos a este, entramos em processo mútuo e reticular de transformação.

Assim, se a metáfora aqui proposta traz consigo o seu carácter transdisciplinar, obriga-nos, por essa razão, a uma alteração do nosso próprio olhar. Sobretudo quando este se depara com as dificuldades de analisar, de forma concreta e definitiva, as

dedicada à discussão conceitual do fenómeno, porque o termo net-ativismo parece-nos mais adequado

para traduzir as ações colaborativas nas redes sociais digitais.

7

(18)

4 implicações sociais e culturais de seus entornos – uma vez que a Internet, assim como o mar, também segue num terreno de pouca estabilidade, que ainda é interesse de estudo tanto de disciplinas Exatas quanto das áreas de Ciências Sociais, Humanas e até Biológicas.

Como questiona Lévy (2007), o que podemos encontrar de comum entre os artefactos informáticos dos anos 1950 – que chegavam a ocupar andares inteiros de prédios, fabricados a custos altos, sem telas nem teclados – e as máquinas pessoais dos anos 1980? E se atualizarmos, então, tal comparação dos primeiros grandes computadores aos smartphones mais recentes, aos dispositivos mediáticos em formato de óculos e relógios ou aos lançamentos que estão por vir, após o final desta investigação, na era da comunicação das coisas? (Lemos, 2013)8.

Os computadores criados em 1950 foram desenhados para cálculos científicos e estatísticos; as máquinas da década de 1980, por sua vez, foram pensadas com a finalidade de auxiliar o utilizador9 em atividades como escrita e desenho, para tocar

músicas e planear orçamentos, enquanto os computadores mais recentes atravessam praticamente todas as instâncias da vida cotidiana. Com aplicativos10 que indicam

caminhos mapeados digitalmente; auxiliam nas dietas ao contar e compartilhar, em rede, as calorias perdidas a cada passo dado; possibilitam videoconferências entre utilizadores situados em pontos distantes do globo; digitalizam processos e dinâmicas de trabalho, e até impulsionam as relações afetivo-sexuais entre membros de uma rede (como aqueles voltados para encontros, responsáveis por rastrear possíveis parceiros a determinado raio de distância), podemos constatar como as novas tecnologias passaram por um acelerado processo de transformação desde aquele

8 Cf. Lemos, A. (2013). A comunicação das coisas: Teoria Ator-Rede e cibercultura. São Paulo: Annablume. 9 Embora o termo seja empregado ao longo desta investigação, preferimos membros ao tradicional

utilizadores, amplamente adotado em Portugal, por remeter, como dito anteriormente, a uma ideia pós

-humanista sobre a relação do homem com a tecnologia, em especial com a Internet, que busca superar o seu entendimento como apenas uma ferramenta utilizada pelo homem. Seja na Teoria Ator-Rede (Latour, 2012) ou nas ecologias da ação em rede (Di Felice, 2017a) os não humanos são pensados também como participantes da ação. Em suma, somos membros, de naturezas distintas, em constante processo de associação ou de conexão, ideia que nos leva a empregar também as expressões participantes e colaboradores em outros momentos deste estudo.

10 Tais afirmações são fundamentadas em diversos programas e aplicativos disponíveis nas redes, tais

(19)

5 primeiro computador pessoal de interação basicamente técnica, com volume e custos inacessíveis para a maior parte da população.

Tais mudanças estão intrinsecamente relacionadas aos utilizadores e às teorias que analisam e aperfeiçoam esses processos de interação mediados pela Internet, como também trata Pierre Lévy em Cibercultura (2007, p. 27):

Se nos interessarmos, sobretudo, por seus significados para os homens, parece que (...) o digital, o fluido, em constante mutação, seja desprovido de qualquer essência estável. Mas, justamente, a velocidade de transformação é em si mesma uma constante – paradoxal – da cibercultura.

Inicialmente, os estudos de computação estavam ligados à problemática da interação homem-computador11; porém, boa parte das transformações ocorridas deve -se ao fato da ligação dos próprios computadores entre si. Aquilo que parecia um simples conceito correspondeu a uma mutação decisiva, que levou a uma tecnologia das redes e ao desenvolvimento de uma cultura das redes num contexto em que as conexões, antes restritas aos computadores, passaram a estar cada vez mais estendidas a outras ditas ferramentas do nosso cotidiano. Na era do Big Data, este fenómeno de dimensão planetária entremeia-se não somente nos processos de comunicação como também nas tomadas de decisão, nos planeamentos públicos e empresariais, nas formas de aprendizagem etc.

Para comprovar tamanha velocidade de transformação da cultura das redes, torna-se válido lembrarmos de um dos últimos trabalhos publicados pela pesquisadora desta investigação, intitulado Jornalistas no Cotidiano das Redes Digitais: um estudo sobre a tribo dos jornalistas paraibanos no Orkut (Magalhães, 2013)12. A dissertação de

Mestrado versava sobre a representação do jornalismo cultural no Estado da Paraíba, no Brasil, numa “comunidade virtual” denominada Jornalismo Cultural – PB, no âmbito de uma rede social digital que se popularizou de forma voraz naquele país. Após dez

11 Tratamos aqui da abordagem mais centrada nas interfaces entre o humano e as redes digitais. Cf. Dix,

H.; Finlay, J.; Abowd, G. D. & Beale, R. (2004). Human-Computer Interaction. 3ª ed. England: Pearson Edition.

12 Cf. Magalhães, M. (2013). Jornalistas no Cotidiano das Redes Digitais. João Pessoa: Editora Marca de

(20)

6 anos de existência e o alcance de 29 milhões de utilizadores brasileiros13, o Orkut

sofreu uma evasão vertiginosa de membros para outras redes, como o Twitter e o Facebook, sendo finalmente extinto em 30 de Setembro de 2014.

Embora as reflexões sobre a comunicação fundamentadas em autores clássicos e nas leituras mais contemporâneas sobre a relação entre o homem e a tecnologia permaneçam válidas, bem como as análises discursivas da comunidade mencionada ofereçam os seus contributos para a compreensão dos movimentos de ativismo em rede mais recentes, precisamos reconhecer que o surgimento das novas redes sociais e dos novos aplicativos digitais inaugura formas distintas de comunicação e interação percetíveis até mesmo a não especialistas da área.

Se adentrarmos a seara do tema estudado na presente investigação, as ações net-ativistas exercidas nos últimos anos não são exatamente iguais àquelas percebidas na emergência do fenómeno; contudo, carregam traços anárquicos, glocais, anónimos e apartidários percebidos desde as experiências pioneiras14. Por esta razão, explicamos

que neste estudo os traços empíricos entrecruzam-se aos teóricos ao longo de todas as suas etapas, as quais dividimos em três partes, de modo a facilitar a compreensão da pesquisa.

A primeira delas, intitulada “Da crise da política na contemporaneidade”, propõe no Capítulo 1 uma abordagem da temática a partir de outras crises relacionadas à política no interior do debate sobre o fim da modernidade no Ocidente:

a crise da conceção unitária de História (Vattimo, 1992), a crise da metanarrativa

(Lyotard, 1988) e a crise da dialética frente às novas ligações (Bragança de Miranda, 1998). No Capítulo 2, a revisão de literatura busca tratar da crise do sentido original da política (Arendt, 2002) ao longo das civilizações, com destaque para a crescente crise da democracia representativa (Santos, 2001), entre os regimes que marcaram o

13

Dados de 2011, divulgados pelo Instituto de Pesquisa Ibope. G1 – Tecnologias e Games (2011). “Facebook ultrapassa Orkut em usuários únicos no Brasil, diz Ibope”. Disponível em http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/09/facebook-ultrapassa-orkut-em-usuarios-unicos-no

-brasil-diz-ibope.html. Consultado em 12 jan. 2013.

14 Como veremos de forma mais detalhada na Parte III da nossa investigação, a primeira cibercultura era

(21)

7 processo de transfiguração do político (Maffesoli, 2005). O Capítulo 3 procura aproximar as teorias apresentadas do empirismo de movimentos de ativismo em rede emergidos nas primeiras fases da Internet: Hakim Bey (Bey, 2001), Luther Blissett (Blissett, 2000) e o Zapatismo (1998). Estas novas formas de conflitualidades contribuíram teoricamente a pensar a crise da política fora dos moldes institucionais, como expressões criativas da constituição do comum para além dos domínios do que é público ou privado (Negri, 2005) ou de novas formas biopolíticas (Esposito, 2004; 2006).

“Da qualidade da ação em rede”, segunda parte deste estudo, investiga no Capítulo 4 como a política é situada na época do Big Data – ou seja, leituras sobre as redes sociais digitais enquanto novo sistema operativo social (Rainie & Wellman, 2012); como espaços de uma cultura que conecta massas e microssegmentações (Terranova, 2004), fomentando novos experimentos de participação como redes de indignação e

esperança (Castells, 2013). Entretanto, na medida em que nos aproximamos de uma

interpretação da qualidade da ação em rede não mais resumida à esfera política, no Capítulo 5 apresentamos novas lentes para observar o social em rede digital, a partir das perspetivas que a Teoria Ator-Rede (Latour, 2004, 2012) e que uma abordagem

cosmpolítica (Stengers, 2004, 2014) podem nos indicar. Uma vez compreendido o social para além dos humanos, investigamos no Capítulo 6 a qualidade da ação em rede como lógicas de transdução (Bragança de Miranda, 2010) e transubstanciação (Di Felice, 2017a, 2017b), capaz de alterar as próprias substâncias dos atores, actantes e das territorialidades que compõem as redes dos nossos dias.

(22)

8 colaborativas nas redes portuguesas, selecionados a partir da tríade temática de net -ativismo técnico, político e estético (Bragança de Miranda, 2010) – LulzSec Portugal, Geração à Rasca e Me Myself and I, respetivamente – e analisados segundo as tipologias das dinâmicas de interação em rede (Di Felice, 2017a).

Nesse sentido, se voltarmos à metáfora do mar, ainda que como este as redes se encontrem em constante mutação, não podemos deixar de estudá-las, investigá-las e delimitá-las de acordo com a dimensão que pretendemos nos deter, a partir de uma posição cada vez mais distante daquela do espectador em terra firme mencionada por Blumenberg (1986).

Eis a razão pela qual o caminho seguido nesta pesquisa sobre o net-ativismo não trilha a pretensão de contemplar a sua imensidão; ao contrário, toma decisões teóricas e metodológicas que auxiliam na interpretação de uma parte relevante deste fenómeno no contexto das redes sociais digitais contemporâneas. Outrossim, uma vez que é comum perder-se em mar aberto, na ausência de um norte também é possível naufragar quem se largar à deriva pela imensidão da aldeia global (McLuhan, 2007) digitalmente conectada – em meio a qual reconhecemos, in primo loco, a nossa posição de imersão15.

15 As traduções apresentadas ao longo deste estudo são da minha inteira responsabilidade, a não ser

(23)

9

PARTE I

(24)

10 Manifestações em busca da democracia em países do Norte da África e do Médio Oriente, conjunto de mobilizações heterogéneas conhecido como Primavera Árabe, lideraram o noticiário internacional desde o fim de 2010. Em 17 de Dezembro daquele ano, o vendedor ambulante tunisino Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo como forma de protesto, atraindo os holofotes mediáticos e as atenções das redes sociais digitais, que passaram a repercutir as ações articuladas não apenas na Tunísia, como aquelas que se seguiram, de forma mais enfática após tal estopim16, em

pelo menos duas dezenas de localidades árabes17.

Em outro ponto do planisfério, em latitudes completamente ocidentais, mobilizações contra a construção da central hidroelétrica de Belo Monte, no Brasil, romperam as fronteiras dos ambientalistas e levaram artistas e cidadãos comuns a se integrarem em outra forma de manifestação, através do Movimento Gota D’água. O grupo formado na ambiência digital, surgido em 2011 com a proposta de “transformar indignação em ação” e envolver a sociedade brasileira na discussão de grandes causas que impactavam o país, levou o protesto contra o plano de obras do então Governo Federal que ameaçava parte da Floresta Amazônica, os índios e as comunidades ribeirinhas à agenda do Congresso Nacional e da Presidência da República.

As reivindicações brasileiras acerca das causas ambientais foram seguidas por outros movimentos pontuais de naturezas diversas, com destaque para os protestos contra o aumento das tarifas de transportes públicos, conhecido como Movimento Passe Livre, que após sofrer forte repressão policial ganhou massivo apoio popular. Em 2013, com o envolvimento de milhares de brasileiros que viviam no Brasil e no exterior, logo o Passe Livre ampliou o seu leque de reivindicações, dividindo-se ou servindo de estímulo à origem de outros movimentos de naturezas distintas que ultrapassaram as questões estudantis e de mobilidade urbana, denominados pelos media e analistas

16 O caso do jovem tunisino é tratado como estopim da Primavera Árabe por diversos autores, dentre os

quais destacamos Manuel Castells (2013), em Redes de Indignação e Esperança: os movimentos sociais na era da Internet (Fundação Calouste Gulbenkian).

17 Tunísia, Argélia, Jordânia, Omã, Egito, Iêmen, Djibouti, Somália, Sudão, Iraque, Bahrain, Líbia, Kwait,

(25)

11 académicos como Protestos de Junho, Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho de 201318. Tais protestos passaram a focalizar, sobretudo, denúncias contra os gastos

governamentais com a Copa das Confederações daquele ano e com o Mundial de Futebol que ocorreria em 2014, sobretudo em relação à qualidade dos serviços prestados à população – que exigia Educação, Saúde e Segurança nos “padrões FIFA”, em alusão aos gastos com os eventos promovidos pela Federação Internacional de Futebol –, além de manifestações contra a dita corrupção generalizada na classe política brasileira.

Simultaneamente aos movimentos ocorridos no Médio Oriente, no norte da África e nas Américas, deste lado do Atlântico vivenciou-se, de modo intensificado nos últimos seis anos, uma série de fenómenos emergidos nas redes sociais digitais europeias, como o MoVimento 5 Stelle, na Itália, e o Movimento 15-M, também conhecido como os Indignados da Espanha, ambos voltados para as questões sociais e em busca de uma mudança profunda na forma de fazer política naqueles países.

Na Itália, em torno da figura do comediante Beppe Grillo, surgiu em 2009 um movimento que se autoproclamava um não partido político, com a proposta de substituir os políticos tradicionais no poder pelos cidadãos comuns, estabelecendo uma espécie de democracia direta através das redes sociais digitais. A partir de 2013, o autointitulado “pseudo-partido” conseguiu eleger, entre aqueles antes destinados à condição de meros eleitores, inúmeros prefeitos e parlamentares a nível municipal e regional, como as recentes conquistas das prefeituras de Roma e Turim – antes ocupadas por políticos vinculados ao Partido Democrático (PD), o mesmo do primeiro -ministro em exercício, Matteo Renzi – nas eleições de 2016.

Os indignados espanhóis, por sua vez, catalisaram protestos que irrompiam isoladamente nos anos anteriores numa mobilização de projeção internacional, em 15 de Maio de 2011 – data que denomina o movimento, 15M –, uma semana antes das eleições municipais, com o apoio de centenas de pequenas associações e a convocação de mais de 150 localidades do país. Os acampamentos e protestos espalhados pela

18

(26)

12 Espanha denunciavam o crescente desemprego, sobretudo entre os jovens, o desrespeito aos direitos básicos de cada cidadão, a corrupção política e um modelo considerado obsoleto de democracia, resumido ao revezamento de poder entre os seus principais partidos.

Particularmente em Portugal, entre as ações que causaram maior repercussão desde o princípio desta investigação estão os protestos da Geração à Rasca, cuja primeira mobilização, em 12 de Março de 2011, reuniu cerca de 500 mil jovens19,

organizados via redes sociais digitais, que foram às ruas de dezenas de localidades portuguesas e do estrangeiro protestar por melhores condições de trabalho e de vida. Neste mesmo período, também alcançaram projeção mediática entre os canais tradicionais de informação e as próprias redes – a exemplo de blogues jornalísticos – as invasões realizadas por hackers, como os net-ativistas do grupo LulzSec, a sistemas de informação considerados “seguros” de empresas e de instituições governamentais portuguesas. Por meio da quebra de sigilos informacionais, os ditos hacktivistas divulgaram dados pessoais e bancários de servidores públicos, incluindo policiais da Guarda Nacional Republicana, como forma de lutar contra a hierarquia de poder e os sistemas de controlo que persistem em existir em tempos digitais.

Ainda que seus participantes, conectados em pontos espalhados por diversos países, demonstrem ações em rede motivadas por razões distintas, os casos aqui destacados em diferentes contextos culturais, sociais e económicos ressaltam uma ligação fundamental entre si: a importância das redes sociais digitais como elemento participante numa nova forma de fazer ativismo. Também nos servem para ilustrar como as antigas formas de organização social criadas com a finalidade de reivindicar questões de interesse comum ganharam imediatismo e alcance global com o advento

19

Número divulgado pelo próprio movimento em textos diversos publicados em sua página oficial, Disponível em https://geracaoenrascada.wordpress.com/. Consultado em 11 jun. 2013.

(27)

13 das redes sociais digitais contemporâneas, transformando a própria ideia de agir colaborativo20.

Tecidas pelo fio condutor das novas tecnologias, as possibilidades recentes de reagrupamento social favorecem, inclusive, que movimentos nascidos em pontos geográficos distantes e motivados por causas adversas inspirem-se uns nos outros, sobretudo no que diz respeito às formas de agregação de seus participantes e de compartilhamento de informações, conforme demonstraremos mais adiante com base nos discursos dos próprios membros dos grupos analisados.

Neste sentido, diante das experiências atuais do ativismo em rede, que diluem as barreiras entre o real e o virtual ao impulsionarem, na maior parte das vezes para as ruas, mobilizações emergidas num contexto digital – a exemplo das mudanças de regimes governamentais reivindicados pela Primavera Árabe ou através da apreensão de membros do LulzSec Portugal, capturados por invadirem informações secretas das instituições governamentais –, somos provocados a refletir sobre a qualidade destas ações em rede.

Tais movimentos de ação direta fomentados pelas redes telemáticas, descritos de forma mais detalhada no final da nossa pesquisa21, configuram práticas sociais e

comunicativas específicas que não têm sido ignoradas pelos pesquisadores do campo da Comunicação. Ora definidos como uma amplificação do agir político, ora vistos como uma negação da própria esfera pública, ou ainda analisados dentro de uma perspetiva mais complexa, que busca superar uma leitura meramente política e social desta ação22, as correntes distintas acerca da sua interpretação encontram

-se num ponto crucial: o paradigma da política na era da informação não é mais aquele dos tempos anteriores ao advento da comunicação digital.

Por esta razão, a apresentação introdutória dos movimentos em rede ao longo das páginas anteriores nos indica que, antes de avançarmos rumo às reflexões sobre a

20

Não seria demasiado ousado afirmar que o fenómeno dos atuais populismos, a exemplo da eleição do presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, a crise do Brexit, na Inglaterra, ou a inclinação populista de países como Holanda e França equivalem ao movimento inverso dos fenómenos transnacionais do net-ativismo, correspondendo a uma crise da visão clássica da soberania e da política.

21 Mais precisamente na Parte III (Do Net-ativismo) deste estudo.

(28)

14 qualidade da ação reticular nos tempos do Big Data – e às leituras que a relacionam ou não a uma dimensão política – convém recuarmos historicamente a fim de compreender – ainda que de forma sucinta, uma vez que a presente investigação situa -se no campo da Comunicação e não naquele das Ciências Políticas – o percurso da política em direção à tal crise.

(29)

15

Capítulo 1.

Modernidade e crise da História no Ocidente

1.1. A crise da conceção unitária da História

A política, a religião e a História seguem um percurso de encontros, entrelaçamentos, negações e distanciamentos ao longo das civilizações. Para a filósofa alemã Hannah Arendt (2002)23, que nos conduz à origem grega da política, a busca do

sentido de existência do homem – com caminhos oferecidos por essas três dimensões – deriva da conceção monoteísta de Deus, segundo a qual o homem é criado à imagem divina. Assim, diante da impossibilidade do enquadramento da política no interior do mito ocidental de criação, a solução encontrada pelo pensamento deste lado do mundo consiste na transformação ou substituição da política pela História. Fundamentada na ideia de uma história mundial, a pluralidade dos homens é dissolvida num indivíduo-homem, também chamado de humanidade24.

Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do mito judaico-cristão, isto significaria: ao homem, criado à imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à imagem da criação divina. Provavelmente um absurdo – mas seria a única demonstração e justificativa possível à ideia da Lei da Natureza. Na diversidade absoluta de todos os homens entre si – maior que a diversidade relativa de povos, nações ou raças – a criação do homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a política nada tem a ver com isso. A política organiza, de antemão, as diversidades

absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças

relativas (Arendt, 2002, p. 8).

Observaremos mais adiante como, em tempos modernos, a ideia original de liberdade foi cortada nas formas de Estado totalitárias e nas suas ideologias, apoiadas no pressuposto que a liberdade do homem precisava ser sacrificada para o desenvolvimento histórico. Aqui, entretanto, cabe-nos sublinhar como o conceito

23 Cf. Arendt, H. *1993+(2002). O que é política? Fragmentos das Obras Póstumas compilados por Ursula

Ludz. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil (versão online).

24

(30)

16 moderno de História veio a substituir o conceito de política: qualquer que seja a sua natureza, acontecimentos e agir políticos são diluídos no acontecer histórico, sendo a história então compreendida, no sentido mais textual, no correr do seu fluxo.

A diferença entre esse difundido pensamento ideológico e as formas totalitárias de estado é que estas descobriram o meio político para encaixar os homens no fluxo da história de tal maneira a ele ser compreendido, em relação à “liberdade” e ao fluxo “livre” dela, exclusivamente como não podendo obstruir esse fluxo, ao contrário, tornando-se um momento de sua aceleração (Arendt, 2002, p. 19).

O problema deste fluxo da história é, contudo, a imposição da sua unicidade a partir de uma visão europeia de humanidade, que tem levado à negação de um mundo plural. Em Inumano: considerações sobre o tempo (1997), de Jean-François Lyotard25, a questão do absolutismo discursivo caraterístico dos tempos modernos também é colocada em causa, alertando para o fato de que a projeção de valores únicos poderia representar uma fonte de violência26.

Neste sentido, Gianni Vattimo (1992)27contribui para o debate sobre a crise da

política na contemporaneidade ao tratar, antes de tudo, daquilo que denomina como a

crise da conceção unitária da história. Esta última estaria relacionada a um dos sinais mais fortes do que interpreta como pós-modernidade: a emergência de uma cultura de massa capaz de proporcionar uma multiplicação de visões de mundo completamente distintas daquela moderna – fundamentada num discurso do ideal de autotransparência, de uma história universal responsável pelo caminho unitário, trilhado na busca incessante pelo progresso como fator responsável pela emancipação dos homens.

Embora o conceito de pós-moderno seja considerado por diversos teóricos uma moda passageira – devido, entre outros fatores, ao uso indiscriminado que teria

25 Cf. Lyotard, J. *1983+(1997). O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Editorial Stampa.

26 No livro O inumano: considerações sobre o tempo (1997), Lyotard critica o humanismo por fazer do

homem um valor único e inquestionável, sugerindo um debate que inclua também o inumano, no caso, primordialmente representado pela logotécnica.

(31)

17 reforçado o seu desgaste –, este filósofo italiano, expoente do pós-modernismo28 europeu, justifica o seu sentido no fato de vivermos numa sociedade dos mass media

responsável pela descentralização dos pontos de vistas, não apenas para além das fronteiras da Europa, como também distintos dos limites da modernidade.

No livro A Sociedade Transparente (1992), na medida em que convida os pensadores a abandonarem os gabinetes das teorias – numa direção próxima ao que o sociólogo francês Michel Maffesoli (2001)29 vai propor –, Gianni Vattimo interpreta a

crise intelectual como característica de uma sociedade de comunicação generalizada. Naquilo que acredita ser o fim da modernidade, ou seja, da época em que se havia tornado determinante o fato de ser moderno em relação aos “valores do passado, à tradição, a formas de pensamento superadas”, o autor enfatiza a crítica da visão unitária da história no ponto em que esta entrelaça-se à ideia de progresso:

(…) aquilo de que fala a história são as vicissitudes da gente que conta, dos nobres, dos soberanos, ou da burguesia quando se torna classe de poder: mas os pobres, ou os aspectos da vida que são considerados “baixos”, não “fazem história”. (…) não há história única, há imagens do passado propostas por pontos de vista diversos, e é ilusório pensar que existe um ponto de vista supremo, global, capaz de unificar todos os outros (como seria a ‘história’, que engloba a história da arte, da literatura, das guerras, da sexualidade, etc.) (Vattimo, 1992, p. 9).

Se para o filósofo italiano a modernidade acreditava dirigir o curso dos acontecimentos para um certo ideal de homem, a ideia do progresso estava também relacionada à forma deste homem – conforme adiantamos, aquela do europeu moderno – desconsiderando os povos tidos como “primitivos”, colonizados por tais europeus em nome da civilização “superior”, que se rebelaram contra estes problematizando a ideia de uma história centralizada:

28

Para Gianni Vattimo (1992, p. 9) falar de pós-moderno é reconhecer que, em alguns dos seus aspetos

essenciais, a modernidade acabou, acima de tudo por não ser mais possível tratar da história dentro de um curso unitário.

29

Quando convida o leitor a olhar para a nova intensidade do instante, o eterno presente, como algo que explode em diversas direções: dos videoclipes aos jogos informáticos, das manifestações desportivas às festas techno, passando pela ecologia e pela astrologia, dentre um universo de rituais, de prazeres e de imaginários partilhados nessa lógica de reencantamento do mundo.

(32)

18 “O ideal europeu de humanidade revelou-se como um ideal entre outros, não necessariamente pior, mas que não pode, sem violência, pretender valer como verdadeira essência do homem, de qualquer homem” (Vattimo, 1992, p. 10).

Como fio condutor do fim do colonialismo e do imperialismo, os meios de comunicação de massa tiveram um papel fundamental para a dissolução da ideia centralizada da história e daquilo que o autor considera como o fim da modernidade. Além de contribuir para a desconstrução dos pontos de vistas centrais – como aqueles filosóficos abordados na crise da metanarrativa por Jean-François Lyotard (1988)30, que veremos a seguir –, o advento dos jornais, do rádio, da televisão e das redes telemáticas está diretamente associado ao nascimento de uma sociedade pós -moderna: mais complexa e caótica, na qual residiriam as nossas esperanças de emancipação, seja esta cultural ou política.

Para Gianni Vattimo, tal efeito dos mass media veio revelar o contrário do que pensava Theodor Adorno no contexto da Segunda Guerra Mundial, cujos textos como

A Dialéctica do Iluminismo (1969)31 e Minima Moralia (2001)32 previam que o rádio (e,

posteriormente, a televisão) produziria uma geral homologação da sociedade, favorecendo a formação de ditaduras e governos totalitários capazes de exercer um controlo minucioso sobre os cidadãos, “através de uma distribuição de slogans, propaganda (comercial como política), visões do mundo estereotipadas” (Vattimo, 1992, p.5). Mesmo diante de todos os esforços de monopólios e das grandes centrais capitalistas, os jornais, o rádio e a televisão teriam sido responsáveis por uma grande explosão e multiplicação de visões de mundo.

Nos Estados Unidos das últimas décadas tomaram a palavra minorias de todo o gênero, apresentaram-se na ribalta da opinião pública culturas e subculturas de toda a espécie.

Podem certamente objetar-se que a esta tomada de palavra não correspondeu a uma

verdadeira emancipação política – o poder económico ainda está nas mãos do grande capital. (…) porém, o facto é que a própria lógica do “mercado” da informação exige uma contínua dilatação deste mercado, e exige consequentemente que “tudo”, de qualquer maneira, se torne objecto de comunicação (Vattimo, 1992, pp. 11-12).

30 Cf. Lyotard, J. *1974+(1988). O pós-moderno. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 31

Cf. Adorno, T. & Horkheimer, M. *1947+(1969) Dialéctica do esclarecimento: Fragmentos filosóficos (versão online). Disponível em https://nupese.fe.ufg.br/up/208/o/fil_dialetica_esclarec.pdf.

(33)

19 De acordo com esta visão, a tomada crescente da palavra por parte das minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais e estéticas, mais que pluralizar as visões de mundo para além do eurocentrismo, teria desmentido o ideal de uma sociedade mais transparente ou iluminada, tornando cada vez menos concebível uma ideia unificada de realidade – dando lugar, aqui, ao cruzamento de múltiplas imagens, interpretações, reconstruções diversas, não mais centralizadas pelos poderes, mas distribuídas pelos canais mediáticos.

Logo, a emancipação consistiria no desgaste do próprio princípio de realidade em troca desta pluralidade, no compasso em que o mundo dos objetos medidos e manipulados pela ciência técnica torna-se o mundo das mercadorias, das imagens ou o mundo fantasmagórico dos mass media: desenraizado, liberto das diferenças, dos elementos locais, enfim globalizado.

O sentido emancipador da libertação das diferenças e dos “dialectos” consiste mais no efeito global de enraizamento que acompanha o primeiro efeito de identificação. Se falo o meu dialecto, finalmente, num mundo de dialectos entre outros, se professo os meus valores – religiosos, estéticos, políticos, étnicos – neste mundo de culturas plurais, terei também uma consciência intensa da historicidade, contingência, limitação, de todos estes sistemas, a começar pelo meu (Vattimo, 1992, p. 15).

Ao tratar das Ciências Humanas no contexto desta sociedade caracterizada pela intensificação das trocas comunicativas, o filósofo sustenta que no âmbito da Sociologia, nomeadamente, uma descrição da sociedade que ultrapasse a catalogação e comparação de regimes políticos não seria possível, no quadro da transformação social moderna, longe da constituição de uma ideia de sociedade distinta do Estado e das formas de organização política de poder. Inspirado nos estudos da opinião pública de Jürgen Habermas33, o pensador italiano afirma que mesmo no devir da sociedade

civil, com âmbito diferenciado em relação ao Estado, a ideia geral de uma esfera pública – e, consequentemente de uma opinião pública – está certamente ligada aos mecanismos de informação e da comunicação social. Nesta conceção, as ciências humanas representariam, simultaneamente, efeito e meio de ulterior desenvolvimento da sociedade da comunicação generalizada.

33 Cf. Habermas, J. *1962+(1991). The Structural Transformation of the Public Sphere: an Inquiry into a

(34)

20 Desse modo, para Gianni Vattimo, um dos equívocos da sociologia crítica, sobretudo daquela adorniana, tem origem no fato de não se ter distinguido as condições de alienação próprias das sociedades de organização total daqueles novos elementos implícitos nas sociedades tardomodernas – ou, como prefere o autor, pós -modernas. A visão de perversidade da massificação e da organização total emergiria desse equívoco, condenada aos valores humanistas modernos inspirados na metafísica. Como sentido oposto, o filósofo italiano nega que os elementos de superficialidade e precariedade apontados na experiência estética da sociedade dos media representem necessariamente sinais de alienação, tampouco que constituam algo relacionado aos aspetos desumanizantes da massificação.

Ao contrário do que acreditava a teoria crítica sobre o advento dos media de massa – a massificação niveladora, a manipulação do consenso, os erros do totalitarismo –, o incremento de uma cultura permeada pelos meios de comunicação que se inaugura naquele contexto viria a contribuir para uma acentuada mobilidade e superficialidade da experiência. Em outras palavras, à luz de Vattimo, em contraste com as tendências para a generalização do domínio enfraquece-se não somente a noção unitária de realidade, como também toda a coação nesta implícita.

A “sociedade do espetáculo” de que falaram os situacionistas não é apenas a sociedade das aparências manipuladas pelo poder; é também a sociedade em que a realidade se apresenta com características mais brandas e fluidas, em que a experiência pode adquirir os aspetos da oscilação, do desenraizamento, do jogo (Vattimo, 1992, p. 65).

(35)

21 Vistas bem as coisas, a perspetiva de Gianni Vattimo mostra uma crise dos sistemas clássicos, centrada nas estruturas mediáticas, que vem de encontro às análises de Jean François-Lyotard, no que se refere ao incremento das redes e da telemática, conforme abordaremos no tópico seguinte. De algum modo, o net -ativismo, enquanto ação colaborativa em rede, vai operar – nas décadas seguintes -uma ligação entre estes dois aspetos, criando algo de novo, ao forjar um novo espaço político, estético e técnico.

1.2. A crise da metanarrativa

A crise da política tratada por Hannah Arendt (2002) nos tempos modernos tem afinidade com as teses de diversos autores, a partir de perspetivas distintas, mormente na discussão do fim da modernidade, no denominado debate sobre a pós -modernidade34. Interessam-nos, particularmente, as teses de Jean-François Lyotard, na

referida obra O pós-moderno (1988). A análise do filósofo francês vai incidir sobre os efeitos do conjunto de transformações ocorridas nas sociedades da era pós-industrial europeia, no final dos anos 1950, com o incremento de inovações tecnológicas capazes de afetar as regras do jogo não apenas da política, como da ciência, da literatura e das artes, sobretudo em relação à crise das narrativas.

Se ao longo da modernidade as diversas ciências estavam voltadas para a sua própria legitimação, como fins em si mesmas, no caso mais específico da filosofia – com a sua herança iluminista, circulando narrativas em torno da “dialética do espírito”, da “hermenêutica do sentido”, da “emancipação do sujeito” etc. –, a pós-modernidade

34 Com o qual colaboram diversos autores, a exemplo de Fredric Jameson (Pós-Modernismo. A Lógica

Cultural do Capitalismo Tardio, 1997, Editora Ática), que relaciona as mudanças culturais a uma terceira fase do capitalismo; David Harvey (A condição pós-moderna, 2001, Editora Loyola), que realça a compressão do espaço e do tempo na pós-modernidade; e Zygmunt Bauman (Modernidade Líquida,

2001, Editora Zahar), que após interpretar a pós-modernidade como uma forma póstuma da

(36)

22 passa a vivenciar uma incredulidade em relação às metanarrativas ou grandes narrativas35. O autor privilegia as transformações ocorridas no saber científico e

técnico, que tende a esbater as diferenças e a natureza estática modernas. Através de uma visão inclinada a uma eliminação das diferenças epistemológicas entre os procedimentos científicos e os procedimentos políticos, sublinha a modificação da natureza da ciência – e, portanto, da Universidade – pelo impacto das transformações tecnológicas sobre o saber, agora imbuída da missão de organizar, estocar e distribuir informações36.

Neste sentido, a crítica de Jean-François Lyotard direciona-se aos quadros teóricos dos filósofos modernos, que mais preocupados com a problemática do conhecimento que com as questões ontológicas se teriam tornado ineficazes com a incidência das informações tecnológicas sobre a pesquisa e a transmissão de conhecimentos. “É razoável pensar que a multiplicação de máquinas informacionais afeta e afetará a circulação dos conhecimentos, do mesmo modo que o desenvolvimento de circulação dos homens (transportes), dos sons e, em seguida das imagens (media) o fez” (Lyotard, 1988, p. 4)37.

Num cenário descrito como essencialmente cibernético-informático e informacional, a crise do discurso auto-referenciado da ciência, aquele sem finalidade pré-estabelecida, passa a exigir que o conhecimento possa ser traduzido em quantidade de informações. Na opinião do autor, com a mudança profunda que se

35 Para Lyotard (1988) estas seriam as formas narrativas contidas dentro da própria narrativa,

referenciadas em si mesmas, como os discursos do Iluminismo, Marxismo e do Idealismo.

36

Sobre a técnica, ver ainda o texto deste autor intitulado “Logos e tekhnê ou a telegrafia” in O Inumano (1997, pp. 55-64): “A tecnologia actual, este modo específico de tele-grafia, escrita de longe,

afasta os contextos próximos onde culturas enraizadas são elaboradas. Assim, pela sua forma própria de inscrição, é de facto produtora de um género de memorização liberta das condições ditas imediatas do tempo e do espaço. A questão a seguir aqui seria: o que é um corpo (corpo próprio, corpo social) na cultura tele-gráfica? Refere-se (…) a um tipo de acesso que vem complicar, contrariar, neutralizar e extenuar os acessos comunitários anteriores (…). A questão de uma cultura hegemónica à escala planetária já se coloca” (p. 58).

37 Sobre os efeitos na cultura e nas artes desta transformação, deve-se a Jean François-Lyotard uma

importante exposição, intitulada Les Immatériaux, sobre a qual recomendamos as seguintes leituras: Cf. Blistène, B. (1985). “Les Imatériaux: A conversation with Jean François-Lyotard. With Bernard

Blistène”. In Flash Art Journal (Nº 121, março, pp. 32-39). Disponível em http://www.art

-agenda.com/reviews/les-immateriaux-a-conversation-with-jean-francois-lyotard-and-bernard-blistene. Consultado em 14 mai. 2015.

(37)

23 delineia em uma Europa reconstruída, a própria relação entre fornecedores, usuários de conhecimento e o próprio conhecimento vem a ser afetada, assumindo formas de valores próximas àquelas dos produtores, consumidores e das mercadorias, o que acabaria por acentuar diretamente a crise da política.

Sob a forma de mercadoria internacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será o desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder. Do mesmo modo que os Estados-nações se bateram para dominar territórios, e

com isto dominar o acesso e a exploração das matérias-primas e da mão-de-obra

barata, é concebível que eles se batam no futuro para dominar as informações. Assim encontra-se aberto um novo campo para as estratégias industriais e comerciais e para

as estratégias militares e políticas (Lyotard, 1988, p. 4).

Sobre este último aspeto em especial, que nos interessa no tocante à mudança do sentido da política na pós-modernidade, o filósofo atenta para a complexidade da mercantilização do saber como uma ameaça aos privilégios que os Estados-nação modernos até então detinham no âmbito da produção e da difusão de conhecimento. Dito de outro modo, a ideia moderna de que estes dependiam do “cérebro” ou do “espírito” da sociedade, representada pelo Estado, seria suplantada à medida que fosse reforçado o princípio inverso: “a sociedade não existe e não progride a não ser que as mensagens que nela circulam sejam ricas em informação e fáceis de decodificar” (Lyotard, 1988, p. 6).

O pensamento de Jean-François Lyotard antecipa, portanto, um problema que seria enfrentado pelas estratégias políticas dali em diante, no compasso da informatização do cotidiano, nomeadamente no que diz respeito ao acesso cada vez mais livre à informação. Para o autor, o Estado apareceria progressivamente como um fator de opacidade e de ruído para uma ideologia da transparência comunicacional, relacionada ao processo de comercialização de saberes facilitado pelas tecnologias.

Referências

Documentos relacionados

No primeiro livro, o público infantojuvenil é rapidamente cativado pela história de um jovem brux- inho que teve seus pais terrivelmente executados pelo personagem antagonista,

Costa (2001) aduz que o Balanced Scorecard pode ser sumariado como um relatório único, contendo medidas de desempenho financeiro e não- financeiro nas quatro perspectivas de

Se, eventualmente, estiverem fora dos padrões exigidos por lei, são tomadas as medidas cabíveis, além das reuniões periódicas da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes

segunda guerra, que ficou marcada pela exigência de um posicionamento político e social diante de dois contextos: a permanência de regimes totalitários, no mundo, e o

Conforme mencionado no final da introdução, este trabalho compreende o estudo de duas alternativas de naturezas diferentes para o aproveitamento de resíduos de esmaltação. Deste

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem