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MULTIPARENTALIDADE

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Academic year: 2020

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MULTIPARENTALIDADE: A EXISTÊNCIA DE DIFERENTES TIPOS DE FILIAÇÃO PERANTE O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

MULTI-PARENTALITY: THE EXISTENCE OF DIFFERENT TYPES OF MEMBERSHIP UNDER BRAZILIAN LEGAL ORDERING

Bruno Briguelli1; Ana Cristina Rafful2 RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, à luz do ordenamento jurídico pátrio, que, apesar da falta de regulamentação expressa acerca da afetividade, ela está presente na realidade das famílias brasileiras, gerando efeitos não só no âmbito pessoal como também se entendendo para a esfera civil, no que diz respeito à filiação. Desta forma, analisando-se as diversas formas de filiação e o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como diversos outros preceitos previstos constitucionalmente, visa-se dar respaldo aos questionamentos e proporcionar a reflexão acerca da possibilidade do reconhecimento e da manifestação de efeitos simultâneos em relação a todas as formas de filiação, ou seja, acerca da aplicação da teoria tridimensional do direito de família ao reconhecimento de filho.

Palavras-chaves: Multiparentalidade. Direito de família. Filiações afetivas. ABSTRACT

This paper aims to demonstrate, in the light of the national legal system, that, despite the lack of express regulation on affectivity, it is present in the reality of Brazilian families, generating effects not only in the personal context but also in understanding each other. the civil sphere as regards affiliation. Thus, by analyzing the various forms of affiliation and the principle of the dignity of the human person, as well as several other constitutionally prescribed precepts, we aim to support the questions and provide reflection on the possibility of recognition and manifestation of simultaneous effects. in relation to all forms of affiliation, that is, about the application of the three-dimensional theory of family law to the recognition of children.

Keywords: Multiparenting. Family law. Affective affiliations

1 INTRODUÇÃO

O instituto da multiparentalidade ainda é muito recente perante o ordenamento jurídico, de modo em que não há, sequer, dispositivo legal regulando o assunto. Deste modo, as novas situações fáticas obrigam o judiciário a recepcionar os novos conceitos de família.

É difícil encontrar uma definição de família de forma a dimensionar o que, no contexto dos dias de hoje, se insere nesse conceito. É certo que quando se pensa em família,

1 Bacharel em Direito pela Universidade de Mogi das Cruzes. E-mail:

2 Professor Orientador. Graduada em Direito pela PUC-SP, Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutora

em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Oficial de Registro no estado de Minas Gerais e docente no curso de Direito da Universidade de Mogi das Cruzes.

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vem à mente o conceito de família patriarcal: o homem como figura central, tendo a esposa ao lado, rodeado de filhos, com genros, noras e netos.

Outrossim, sabe-se que a evolução do conceito familiar evoluiu com o passar dos tempos, devendo se destacar que a lei em momento algum se preocupou em definir a família, limitando-a somente como “casamento”, o que acabava por excluir do âmbito jurídico aquelas relações que tinham por vínculo a origem afetiva.

Assim, diante da necessidade de estudo e proteção acerca do tema, a presente pesquisa tem o objetivo de analisar o instituto da multiparentalidade, que se apresenta como a possibilidade de haver a coexistência de filiação biológica e afetiva na vida de uma pessoa.

2 EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA

O Direito de Família encontra-se em constante mutação, de modo em que deve acompanhar as mudanças sociais, possuindo como termo inicial, no Brasil, a Constituição Federal de 1916.

Inicialmente o Direito de Família seguia o modelo patriarcal, sendo que o patriarca da família detinha o total controle da mesma, sem permitir a intervenção da mulher, mesmo sobre os bens da entidade. Desta forma, referida instituição familiar era a única prevista, sendo que somente poderia se dar por meio de matrimônio, assim, qualquer entidade que fosse diferente desta não obtinha nenhum amparo, jurídico ou geral, mesmo que se desse por afeto.

O Código Civil de 1916 (Lei 3.071 de 1º de Janeiro de 1916), projeto de Clóvis Beviláqua, fora moldado a sua época, ou seja, sobre os princípios de sociedade daquele tempo. Sua principal característica era a valorização do patrimônio em detrimento do indivíduo, tornando-se, assim, uma lei demasiada favorável aos grandes proprietários.

Aliado ao fato de que àquela época poucas pessoas tinham ciência acerca da legislação, sendo que havia um número ainda menor de pessoas que sabiam que podiam invocar seus direitos.

O artigo 233 daquele código, de forma expressa, fixava o marido como chefe familiar, sendo que a mulher detinha apenas o dever de colaborar com os encargos familiares (art. 240 do Código). Já quanto a filiação, havia cristalina distinção entre filhos, de modo em que todos tinham em sua certidão de nascimento a origem de tal filiação, fosse legítima, ilegítima, adotiva ou natural.

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Quando da separação, havia sempre conflito acerca da culpa pelo término do relacionamento, de modo em que a guarda de eventual filho do casal era atribuído àquele que detinha a culpa, como forma de punição, não sendo, em momento algum, observado o interesse do menor. Tal fato contraria alguns dos princípios previstos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, atualmente vigente em nosso ordenamento jurídico.

A lei nº 883, que entrou em vigência por volta de 1949, começou a considerar o direito do filho ilegítimo, deixando para trás a mentalidade preconceituosa aplicada anteriormente, de modo em que era também permitida a instauração do processo de investigação de paternidade, desde que corresse em segredo de justiça, fazendo com que, assim, o direito daquele filho ilegítimo fosse respeitado no tocante à filiação. Destaca-se que referida lei também vetou o registro de sua ilegitimidade na Certidão de Nascimento.

Em momento posterior, entrou em vigor o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121 de 27 de agosto de 1962), revogando vários dispositivos até então vigente no Código Civil de 1916, dando à mulher o direito de exercer também o poder familiar, ainda que se casasse mais uma vez. Outrossim, caso houvesse divergência entre os genitores quando do poder familiar, a decisão que prevalecia era a do pai, com a ressalva à mãe o direito de recorrer ao juízo para resolver este litígio (art. 380).

Mesmo com as ressalvas acima destacadas, este foi considerado um grande passo para que fosse reconhecido o direito da mulher na sociedade, que a partir daquele momento poderia interferir na administração de seu próprio lar.

Quando da vigência da Constituição Federal de 1967, no ano de 1977 fora promulgada a Lei 6.515 e a Emenda nº 09, sendo que esta segunda proporcionou o divórcio após a separação judicial. Já a primeira discorreu sobre a ação direta de divórcio, no entanto, para tal ato deveria ter se passado obrigatoriamente 05 anos da separação de fato do, até então, casal. Referida norma ainda fixou como regime legal brasileiro o da Comunhão Parcial de Bens, facultando também a utilização do sobrenome do marido pela esposa, além de possibilitar a dissolução dos vínculos familiares pelo divórcio.

Em 1988, com a entrada em vigor da nossa atual Constituição Federal, um novo conceito de família fora instituído, sendo que a partir deste momento a visão do legislador fora alterada em relação a instituição familiar, uma vez que deu-se ênfase em princípios sociais, transformando, assim, o modelo de família tradicional anteriormente instituído em uma forma de núcleo familiar fundado no afeto e igualdade entre seus entes, tudo conforme seu art. 266.

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Com a vinda da Constituição de 1988 o legislador teve de mudar seu foco, passando a priorizar a proteção à família e aos filhos de forma igualitária, agora em detrimento àquela proteção intensa ao casamento e somente aos filhos legítimos.

Em 1989 foi instaurada a Convenção da ONU acerca dos direitos da criança e do adolescente, que fora confirmada pelo Brasil através do Decreto 99.710/89. Um ano depois surgiu a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que se fez necessário para resguardar os direitos daqueles que eram marginalizados e descriminados.

Este ordenamento prevê todos os direitos inerentes à criança e ao adolescente, inclusive o direito de reconhecimento do estado de filiação, que passou a ser direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.

A Lei nº 8.560/92 trouxe inovações vitais para o procedimento de investigação de paternidade dos filhos extraconjugais. Esta lei conferiu legitimidade para o Ministério Publico ingressar com ação no caso de ausência de nome de filiação paterna no registro do menor. Assim, viabilizou-se o direito da criança de ter um pai, uma mãe e impor-lhes o dever de cria-la.

Por fim, O Código Civil, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2002 tem uma estrutura basilar atrasada em relação a nossa sociedade atual, tendo em vista que da sua apresentação até a apreciação no Senado passaram-se mais de 20 anos, desta forma, foram realizadas várias reformas durante o tempo de apreciação. Este Código, assim, por não tratar de temas relevantes para a atual sociedade, poderia ser considerado obsoleto, desgastado.

O legislador omitiu-se quando não incluiu, devido ao tempo de tramitação para sua aprovação, o casamento das pessoas do mesmo sexo, mesmo no tocante a celebração solene do casamento, fazendo-o, assim, inexistente. No mesmo sentido, omitiu-se com relação à família monoparental e suas normas regulamentadoras. Cristalino que a norma não está em total consonância com o estado de fato da sociedade.

Ressalte-se que o Direito de Família deve estar em constante atualização, acompanhando, desta forma, a situação fática da sociedade.

Destaca-se, no entanto, que o Código Civil alterou a isonomia entre cônjuges dentro do casamento, tornando homem e mulher iguais, responsável e solidariamente pelos encargos da família, devendo um ao outro fidelidade, mútua assistência e o sustento, assim como guarda e educação dos filhos, guiados pelo respeito e consideração recíproca.

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Filiação, em consonância com o art. 1.596 do Código Civil: A relação de parentesco em linha reta de primeiro grau que se estabelece entre pais e filhos, seja essa relação decorrente de vínculo sanguíneo ou de outra origem legal, como no caso da adoção ou reprodução assistida como utilização de material genético de outra pessoa estranha ao casal.

Ou seja, sabe-se que a filiação é reconhecida como uma relação autônoma em relação ao vínculo genético, como descrevem Maluf e Maluf (2014, p. 129): [...] filiação é a relação existente entre os genitores e sua prole, independente de vínculo biológico.

O Código Civil, em seu art. 1.593 determina que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, conforme será exposto nos tópicos subsequentes.

3.1 FILIAÇÃO BIOLÓGICA

O arranjo familiar sofreu várias mudanças com o passar do tempo, sendo que atualmente os seus princípios basilares são, por muitas vezes, diferentes daqueles usados antigamente, haja vista a reestruturação da estrutura familiar, não mais admitindo-se apenas um único modelo, formado por mãe e pai, através do casamento com a prole em comum.

Assim, a paternidade biológica pode ser compreendida como “uma verdade biológica, comprovável por meio de exame laboratorial que permite afirmar, com certeza praticamente absoluta, a existência de um liame biológico entre duas pessoas” (DIAS. 2009 p.330).

É consenso para a consagrada doutrina civilista brasileira que a filiação biológica, ou natural é fundada no sangue dos pais, em sua carga genética que é transferida ao seu filho através da conjunção carnal.

Segundo Dias: nunca foi tão fácil descobrir a verdade biológica, mas essa verdade tem pouca valia frente à verdade afetiva. Tanto é assim que se estabeleceu a diferença entre pai e genitor. Pai é o que cria e dá amor, e genitor é somente o que gera. Se durante muito tempo por presunção legal ou por falta e conhecimentos científicos confundiam-se essas duas figuras, hoje é possível identifica-las em pessoas distintas (DIAS, 2009, p.135).

Leite corrobora com tal entendimento, senão vejamos: Priorizando o biológico, fazendo depender a “paternidade” de um mero exame de DNA, o legislador confundiu e nivelou duas noções, a de genitor e de pai que não são, necessariamente, concludentes, mas que podem se apresentar distintas, porque genitor, qualquer homem potente pode ser [..] (LEITE, 2002, p. 77, apud VENCESLAU, 2004, p.113).

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Apesar da referência de filiação para muitas pessoas continuar a ser a verdade genética, este não deve ser o único quesito a ser analisado. Através da ciência, que vem obtendo avanços diários, temos hoje formas antigamente inimagináveis de conceber um filho, como por exemplo seus métodos artificiais e a cessão temporária de útero. Ghilardi (2013, p. 69) compartilha de tal opinião, vejamos: Os lugares definidos na estrutura do parentesco também não mais se sustentam, uma vez que os vínculos meramente biológicos passaram a disputar espaço com os vínculos afetivos. Novas técnicas de reprodução artificial, caso da inseminação heteróloga, possibilitadora de utilização de material genético de terceiro, estranho ao casal; da barriga de substituição, da qual outra mulher empresta seu útero para conceber o filho da mãe genética; e a possibilidade de adoção homoafetiva, são apenas alguns exemplos de como o parentesco pode ficar incerto ou, pelo menos, fugir dos moldes previamente determinados.

Algumas mudanças sociais podem ser contempladas através de alguns códigos e leis que direcionam o conjunto social em questão. Muito embora ainda atrasado em relação a nossa sociedade atual, sabe-se que o Código Civil diverge consideravelmente que o Código de 1916, uma vez que este somente legitimava os entes familiares através do casamento e, atualmente, à luz do Código de 2002, os elementos mais importantes são a igualdade e afeto.

Portanto, muito mais significativa que a realidade biológica, em termos de parentalidade, é a função paterna/materna que o indivíduo exerce, independendo da verdade genética. Rodrigo da Cunha Pereira analisa exta função: como sendo “função paterna exercida por um pai que é determinante e estruturante dos sujeitos. Portanto, o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção, enfim, aquele que exerce a função de pai”.

No artigo 1.593 do Código Civil, ao disciplinar que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, a parentalidade socioafetiva foi elevada ao nível de parentesco civil: O referido dispositivo, através da cláusula geral e aberta, prevê a existência de outra modalidade de parentesco, o socioafetivo, através do qual a existência de laços de afetividade possa dar origem ao vínculo parental, com todos os efeitos dele decorrentes, ampliando o alcance da norma contida sob a égide dos arts. 330 e 336 do Código Civil de 1916 que restringia o vínculo parental às relações consanguíneas e adotivas. (MALUF, 2014, p. 127).

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Desse modo, ao referir-se “outra origem”, o artigo 1.593 recepciona as diversas famílias que vivem afetivamente como parentes. Assim, reconhece-se o vínculo parental advindo da socioafetividade (ALVES, 2014, p. 15). Admitindo assim a importância da filiação socioafetiva.

Nessa perspectiva, o critério socioafetivo vem se tornando um dos elementos de maior significância ao se analisar a filiação paterna ou materna (FACHIN, 2012, p. 10). A Constituição de 1988 alterou significativamente o direito das famílias, agora sustentado por inúmeros ideais como a solidariedade, a paternidade responsável, a igualdade e o afeto, fazendo surgir uma nova concepção do direito das famílias baseada na filiação socioafetiva (GHILARDI, 2013, p. 69).

Welter (2003, p. 148) afirma que a filiação socioafetiva é gênero do qual fazem parte: a) o comprovado estado de filho afetivo (posse de estado de filho); b) o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade/maternidade; c) os filhos de criação (adoção de fato); d) a adoção judicial; e e) a “adoção à brasileira”.

Ainda para Welter, a nomenclatura “posse de estado de filiação” é inadequada, uma vez que o vínculo entre pai e filho não é de posse e de domínio. Após a Constituição Federal de 1988, o termo correto a ser usado deveria ser “estado de filho afetivo”, tendo em vista que o vínculo entre as partes deve ser de amor e de afeto.

A doutrina fixa três elementos para que esteja configurado o estado de filho afetivo: nome, a fama e o trato. O nome diz respeito ao sobrenome da mãe ou do pai; já a fama é o reconhecimento do filho como tal perante a sociedade; o trato, por sua vez, referência o tratamento e a educação como filho.

Boeira (1999, p. 63) assevera que na “prática forense tem-se dispensado o uso do sobrenome pelo filho socioafetivo, bastando a comprovação do tratamento e da reputação”. Entre esses últimos, o tratamento é o requisito de maior destaque, uma vez que diz respeito à efetiva convivência familiar.

Dentre as formas de vínculo socioafetivo, temos em destaque, neste momento, a adoção judicial, que se resume na manifestação de vontade por meio de um ato jurídico estritamente válido e, constituído por meio de sentença judicial, passar a ter eficácia, tendo assim um vínculo parental fictício, produzindo-se os mesmos efeitos no que diz respeito aos direitos e obrigações decorrentes da filiação biológica. A adoção é modalidade artificial de filiação que busca imitar a filiação natural. Daí ser também conhecida também como filiação civil, pois não resulta de uma relação biológica, mas de manifestação de vontade [...]. A filiação natural ou biológica repousa sobre o vínculo de sangue, genético ou biológico; a

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adoção é uma filiação exclusivamente jurídica que se sustenta sobre a pressuposição de uma relação não biológica, mas afetiva. A adoção contemporânea é, portanto, um ato ou negócio jurídico que cria relações de paternidade e de filiação entre duas pessoas. O ato da adoção faz com que uma pessoa passe a gozar do estado de filho de outra pessoa, independentemente do vínculo biológico. (VENOSA, 2011, p. 273).

A Constituição Federal de 1988, contemplando a proteção integral da criança e do adolescente, igualou todos os direitos de filiação, de modo em que os filhos adotivos devem ser vistos como sujeitos de direitos, sem qualquer distinção em relação à origem da filiação, e a valorização do vínculo de afetividade foi exteriorizada por intermédio da garantia de irrevogabilidade da adoção.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), considerado uma das leis mais avançadas do mundo em relação à infância, manteve-se no mesmo direcionamento da Constituição Federal, de modo em que hoje a adoção é um procedimento legal que constitui o vínculo de parentesco paralelo ao biológico e que desfaz definitivamente o poder familiar decorrente da família natural originária, ressalvado o tocante aos impedimentos matrimoniais.

No final do ano de 2009 passou a vigorar a Lei nº 12.010, que trouxe inovações com o cunho de ampliar e facilitar a adoção, diminuindo o número de crianças sem um lar. Abriu-se espaço para que adotantes solteiros e até mesmo casais homoafetivos, mesmo sabendo que referida hipótese seja objeto de tema controvertido em alguns julgados, tendo em vista a inexistência de expressa precisão legal neste sentido.

A Lei n. 12.010/2009 criou cadastros nacionais e estaduais e dá preferência à adoção por parentes mais próximos da criança e do adolescente com os quais convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade (família extensa ou ampliada). A adoção internacional, por sua vez, somente será deferida em caso de inexistência de casais habilitados interessados com residência no Brasil. Referida lei também limitou o tempo de permanência de menores em abrigos, o qual não pode exceder dois anos.

Outra medida que a Lei 12.010/2009 implantou é a execução de um período de estágio de convivência anterior à adoção, com o objetivo de avaliar a adaptação do menor à sua possível nova família. A autoridade judiciária deverá fixar o tempo mínimo de estágio de convivência nos casos de adoção nacional, podendo ser dispensado tal período no caso de prévia convivência familiar em decorrência de guarda ou tutela. Já nos casos de adoção internacional, o período mínimo a ser fixado pelo juízo deverá ser de 30 dias.

Por fim, tem-se três espécies de adoção: civil, estatutária e a simulada, esta última também conhecida como adoção à brasileira.

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A adoção civil, prevista no próprio código civil e regulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, se refere a adotados que já atingiram a maioridade civil, sendo, portanto, mais rara. A adoção estatutária, tem seu procedimento regulado inteiramente pelo Estatuto, que institui a adoção de dos menores de 18 anos na data do período de adoção, assim como aqueles maiores de 18 anos que já estejam sob a guarda ou tutela dos adotantes.

A adoção simulada (adoção à brasileira), diz respeito à antiga prát5ica de casais que registram filhos de terceiro como se seu fosse, com o intuito de conferir-lhe um lar, em acordo com a mãe biológica. Muito embora tal ato esteja tipificado no art. 242 do Código Penal, os Tribunais têm entendido pela prevalência da filiação socioafetiva e dos vínculos de afeto criados entre adotantes e adotado, mesmo em face do ilícito cometido, senão vejamos:

DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. A chamada "adoção à brasileira", muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico vulgar sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva consistente no término do relacionamento com a genitora.

2. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva.

3. No caso, ficou claro que o autor reconheceu a paternidade do recorrido voluntariamente, mesmo sabendo que não era seu filho biológico, e desse reconhecimento estabeleceu-se vínculo afetivo que só cessou com o término da relação com a genitora da criança reconhecida. De tudo que consta nas decisões anteriormente proferidas, dessume-se que o autor, imbuído de propósito manifestamente nobre na origem, por ocasião do registro de nascimento, pretende negá-lo agora, por razões patrimoniais declaradas.

4. Com efeito, tal providência ofende, na letra e no espírito, o art. 1.604 do Código Civil, segundo o qual não se pode "vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro", do que efetivamente não se cuida no caso em apreço. Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro.

5. A a manutenção do registro de nascimento não retira da criança o direito de buscar sua identidade biológica e de ter, em seus assentos civis, o nome do verdadeiro pai. É sempre possível o desfazimento da adoção à brasileira mesmo nos casos de vínculo socioafetivo, se assim decidir o menor por ocasião da maioridade; assim como não decai seu direito de buscar a identidade biológica em qualquer caso, mesmo na hipótese de adoção regular. Precedentes.

6. Recurso especial não provido. (REsp 1352529/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/02/2015, DJe 13/04/2015).

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Tais fatos só corroboram com a tese de que o aspecto socioafetivo é cada vez mais predominante na adoção, cabendo unicamente ao juízo competente avaliar, caso a caso, a satisfação do melhor interesse e das melhores possibilidades sociais voltadas à criança e ao adolescente.

O reconhecimento voluntário ou mesmo judicial da parentalidade socioafetiva tem por consequência a filiação registral, que terá seus plenos efeitos com a comprovação de que não há vícios em tal processo, como erro ou coação.

Conclui-se que “a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das relações que unem pais e filhos, independente da origem biológico-genética” (LEITE, 1994, p.121, apud Gonçalves, 2015, p.313)

3.3 IRREVOGABILIDADE DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Como passar do tempo a filiação socioafetiva está sendo considerada irrevogável pela doutrina e jurisprudência, com destaque para a irrevogabilidade da filiação mais conhecida, a adoção, que já era regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 48. Em decorrência da alteração dada pela Lei 12.010/2009, tal irrevogabilidade agora consta em seu art. 39, § 1º do ECA: ECA, art. 39. A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei. §1o A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei (BRASIL, 1990).

Welter (2003) prossegue afirmando que os tribunais possuem o mesmo entendimento, ou seja, considera irrevogável a filiação socioafetiva. Sendo necessário para a jurisprudência, a filiação socioafetiva estar devidamente comprovada por meio da posse de estado de filho.

Outrossim, possível a desconstituição da filiação socioafetiva somente em casos excepcionais, onde configuram-se dolo, erro, coação, simulação ou fraude, sendo essas as únicas hipóteses de invalidação do reconhecimento de vínculo voluntariamente realizado. Deste modo, uma vez que ciente de seus atos, a parte que registrou a filiação não pode alegar a própria torpeza em benefício próprio.

O Ministro Fachin, no mesmo sentido, reconhece a irrevogabilidade da filiação socioafetiva, entendendo que após fixada a posse do estado de filho não se mostra suficiente a invocação da autonomia da vontade:

O conteúdo da relação entre pais e filhos, no pertinente à sua dimensão jurídica, não é sujeito aos moldes clássicos da autonomia da vontade, por ter relação direta com a dignidade

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da pessoa humana. Vale dizer: concretizada a posse de estado de filho, não basta a simples vontade para operar a desconstituição dos vínculos ali construídos. (FACHIN, 2012, p. 12).

4 MULTIPARENTALIDADE

Após a conceituação de filiação biológica e socioafetiva, é possível ingressar no campo da multiparentalidade propriamente dito.

Com a evolução da sociedade, contatam-se a mutação dos modelos de família, que estão se tornando cada vez mais plurais. Diante de tal fato, o direito deve buscar tutelar estas situações, reconhecendo a múltipla filiação que já se encontre configurada. Sustenta a doutrinadora Dias (2013, p. 385) que o avanço da medicina possibilitou concepções geneticamente assistidas, não se podendo mais admitir apenas a biparentalidade da filiação, devendo-se acolher a multiparentalidade e a biparentalidade.

Assim, a multiparentalidade pode ser compreendida como uma tentativa do ordenamento jurídico tutelar o fenômeno da liberdade de desconstituição familiar e formação de famílias reconstituídas (PAREIRA, 2003). Verifica-se então que, após o rompimento dos vínculos biológicos ou afetivos, a criança ou adolescente terá mecanismos que irão garantir seus direitos fundamentais para a manutenção de seu pleno desenvolvimento, gerando os mesmos efeitos do parentesco biológico.

Deste modo, uma vez que a verdadeira paternidade/maternidade tem como fundamento a afetividade, não se pode negar o vínculo nos casos em que ligações afetivas são suficientes a caracterizar a filiação socioafetiva. Ressalta-se que “a exteriorização da maternidade é mais importante que a verdade biológica, pois compões o verdadeiro amor que se origina com o nascimento e se aperfeiçoa durante a vida.” (ALMEIDA, 2001, p. 159).

Note-se que a multiparentalidade é fruto de uma ampliação dos conceitos modernos de família, de parentalidade. O que surgiu diante do contexto da contemporaneidade e do surgimento de novos valores: “a questão da multiparentalidade é um fenômeno típico da contemporaneidade, construída com base em valores plurais, que exigem o reconhecimento de todas as formas de afeto possíveis e não mais aquelas emolduradas no passado.” (GHILARDI. 2013, p. 63).

A multiparentalidade, em seu instituto, deve ser aplicada com o fim de permitir que o menor tenha o registro com o nome dos pais biológicos quanto dos pais socioafetivos, cabendo a eles partilhar dos direitos e deveres com relação ao menor, prestando, se necessário, pensão alimentícia.

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Destaca-se que a definição de parentesco é uma construção cultural e social que fora construída em conformidade com as regras de comportamento, não se relacionando com o vínculo biológico, resultando também no vínculo de afeto que surge a partir dos cuidados da criança. Assim, o pai verdadeiro é aquele que assumiu tal função (TEIXEIRA, 2010, p. 203).

A multiparentalidade se caracteriza pela coexistência de filiação socioafetiva e filiação biológica em no mínimo três filiações. Assim, a multiparentalidade, também denominada de pluriparentalidade, pressupõe a existência de mais de dois pais, ou seja, no mínimo três linhas ascendentes: um pai e duas mães, uma mãe e dois pais, três mães, três pais, quatro mães e assim por diante.

Este instituto se sustenta primordialmente por meio da possibilidade de filiação socioafetiva. Como já exposto, tal filiação está amparada pela posse do estado de filho, ou estado de filho afetivo, como defendido por Belmiro Welter, assim como pela autoridade parental.

A multiparentalidade, assim, viabilizou a adoção aditiva, sendo que, por meio deste instituto, padrastos ou madrastas não necessitarão recorrer estritamente a adoção unilateral. Mediante o presente instituto é possível, de forma judicial, registrar a criança ou adolescente sem a efetiva exclusão do pai ou mãe biológicos de seu registro, garantindo-lhes todos os direitos derivados da filiação. É o que leciona Ana Carolina brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues (2010. p. 97/98):

A multiparentalidade é um fato jurídico contemporâneo, facilmente perceptível no âmbito de muitas famílias reconstituídas, nas quais tanto o pai/mãe biológico quanto o padrasto/madrasta – que acabam por funcionar como pais socioafetivos na vida dos enteados – exercem a autoridade parental, gerando a cumulação de papéis de pai/mãe, não de modo excludente, mas inclusivo e até mesmo complementar.

Quanto a legislação, a multiparentalidade ainda não possui previsão expressa, outrossim, sabe-se que as novas concepções de família exigem do Estado a tutela e devida proteção. Ana Carolina brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues (2009, p. 38) acreditam que “não tutelar a multiparentalidade vai de encontro com os direitos das crianças, caracterizando uma agressão ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ao afastá-los da convivência com seus pais socioafetivo ou biológico.”

De acordo com Maurício Cavallazzi Póvoas (2012, p. 79), a tutela da multiparentalidade é, além de um direito, uma obrigação constitucional:

No que tange a possibilidade da coexistência de vínculos parentais afetivos e biológicos, essa se mostra perfeitamente viável e, mais do que apenas um direito, é uma

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obrigação constitucional na medida em que preserva direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo, as já debatidas dignidade e afetividade da pessoa humana.

Em decisão, até então inédita, no ano de 2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo deferiu pedido para acrescentar na certidão de nascimento de jovem de 19 anos o nome da mãe socioafetiva, sem ser retirado o nome da mãe biológica, que morreu três dias após o parto, assim, quando o filho tinha dois anos o pai se casou com outra mulher, postulante da ação em conjunto com o enteado.

O jovem sempre viveu harmoniosamente com o pai, a madrasta, a quem sempre chamou de mãe, bem como com a família de sua mãe biológica, que em momento algum caiu em esquecimento. O filho que sempre manteve o convívio com as três famílias tem agora um pai, duas mães e seis avós registrais (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012).

Para maior compreensão, colaciona-se o recorte jurisprudencial da ementa do acórdão:

EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2012).

A decisão confirma a possibilidade prevista na Constituição Federal de 1988 pelo vínculo da família socioafetiva, que passou a ter tanta relevância jurídica quanto aquela cujo vínculo se dá da forma biológica, não havendo sobreposição de uma sobre outra.

O desembargador Alcides Leopoldo e Silva Junior, do TJSP, quando do julgamento do presente caso, refere que: Não se evidencia qualquer tipo de reprovação social, ao contrário, pelo caminho da legalidade (diversamente da via comumente chamada de “adoção à brasileira”), vem-se consolidar situação de fato há muito tempo consolidada, pela afeição, satisfazendo anseio legítimo dos requerentes e de suas famílias, sem risco à ordem jurídica (TRIBUNAL DE JUSTIÇA SÃO PAULO, 2012, p. 5).

O artigo 1.593 do Código Civil preconiza que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. (BRASIL, 2002). No ponto de vista hermenêutico, o dispositivo apresenta a concepção de que os laços afetivos são tão relevantes quanto os laços consanguíneos. Dessa forma, a multiparentalidade é plenamente aceitável juridicamente, pois promove a família e vem ao encontro do melhor interesse da criança e do adolescente.

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O referido artigo 1.593 do Código Civil guarda íntima relação com o artigo 227, parágrafo 6º da Constituição Federal, que determina que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 2002)

Assim, Lôbo, leciona que “a filiação não é um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem”. (LÔBO, 2011).

Ao se reconhecer a multiparentalidade, essa passa a trazer efeitos imediatos, não só no cotidiano da vida da família, que se sente realizada e completa, pois conseguiu tornar existente na área jurídica o que já existia na realidade fática, mas também acarreta em efeitos jurídicos.

Entende-se que a multiparentalidade é uma forma de se reconhecer a paternidade e a maternidade de um filho que é amado pelos pais, sem que para isso necessite a exclusão de um ou de outro. A exclusão pode existir tanto ao se substituir o nome de um pai ou uma mãe do registro de nascimento, quando este por motivos legítimos não o quer, quanto na permanência do registro na forma em que sempre esteve, sem considerar a sua falácia no mundo fático, uma vez que aquele filho tem mais de uma mãe ou de um pai em sua vida.

5

O

RECONHECIMENTO

DO

INSTITUTO

DA

MULTIPARENTALIDADE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal aprovou uma importante tese sobre direito de família, que delineou alguns contornos da parentalidade no atual cenário jurídico brasileiro, esta manifestação acabou por contribuir para a tradução atual das categorias de filiação de parentesco.

O tema de Repercussão Geral 622 envolvia a análise de uma eventual “prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica”. Ao deliberar sobre o mérito da questão, o Supremo Tribunal Federal não afirmou nenhuma prevalência entre as modalidades de vínculo parental, apontando tão somente para a possibilidade de coexistência de ambas as paternidades.

Os conflitos familiares apontam alguns dos principais desafios que as relações interpessoais apresentam aos juristas. No atual cenário, a possibilidade de múltiplos vínculos parentais é uma prática que exige uma acomodação jurídica. O plenário, quando da apreciação

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da temática, em sua maioria, aprovou uma diretriz que irá servir de parâmetro para casos semelhantes.

A tese aprovada tem o seguinte teor: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

O texto foi proposto pelo ministro Luiz Fux, relator, tendo sido aprovado por ampla maioria, restando vencidos apenas os ministros Dias Toffoli e Marco Aurélio, que discordavam parcialmente da redação final sugerida. A tese, explícita, confirma a possibilidade de cumulação da paternidade biológica com uma socioafetiva, mantendo, assim, ambas no caso concreto, admitindo de tal forma a possibilidade jurídica do registro de dois pais.

Ao deliberar sobre a possibilidade jurídica da pluralidade de vínculos familiares, O STF consagra um importante avanço sobre o reconhecimento da multiparentalidade, sendo um novo e importante tema no ramo do direito de família.

Os principais reflexos da decisão supramencionada do Supremo é, em primeiro lugar, o reconhecimento jurídico da afetividade. Resta consagrada a leitura jurídica da afetividade, tendo ela perfilado de forma expressa na manifestação de diversos Ministros. No julgamento da repercussão geral 622 houve ampla aceitação do reconhecimento jurídico da afetividade pelo colegiado, o que resta patente pela paternidade socioafetiva referendada na tese final aprovada. A afetividade inclusive foi citada expressamente como princípio na manifestação do Ministro Celso de Mello, na esteira do que defende ampla doutrina do direito de família. Não houve objeção alguma ao reconhecimento da socioafetividade pelos ministros, o que indica a sua tranquila assimilação naquele tribunal.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA. PARADIGMA DO CASAMENTO. SUPERAÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. EIXO CENTRAL DO DIREITO DE FAMÍLIA: DESLOCAMENTO PARA O PLANO CONSTITUCIONAL. SOBREPRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CRFB). SUPERAÇÃO DE ÓBICES LEGAIS AO PLENO DESENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS. DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO. INDIVÍDUO COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO-POLÍTICO. IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A MODELOS PRÉ-CONCEBIDOS. ATIPICIDADE CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE ENTIDADES FAMILIARES. UNIÃO ESTÁVEL (ART. 226, § 3º, CRFB) E FAMÍLIA MONOPARENTAL (ART. 226, § 4º, CRFB). VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO ENTRE ESPÉCIES DE FILIAÇÃO (ART. 227, § 6º, CRFB). PARENTALIDADE PRESUNTIVA, BIOLÓGICA OU AFETIVA. NECESSIDADE DE TUTELA JURÍDICA AMPLA. MULTIPLICIDADE DE VÍNCULOS PARENTAIS. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. PLURIPARENTALIDADE. PRINCÍPIO DA PATERNIDADE

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RESPONSÁVEL (ART. 226, § 7º, CRFB). RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. FIXAÇÃO DE TESE PARA APLICAÇÃO A CASOS SEMELHANTES. (RE 898060 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 15/03/2016, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-051 DIVULG 17/03/2016 PUBLIC 18/03/2016).

Denota-se do julgado supracitado que a multiparentalidade além de ser considerada solução intermediária que visa preservar o melhor interesse do menor, também é considerada uma consequência da igualdade entre a filiação socioafetiva e biológica, visto que uma não pode preponderar sobre a outra, sendo inevitável que coexistam.

Desta forma, cristalino o acatamento da multiparentalidade em nosso ordenamento jurídico, agora com a confirmação pelo Supremo Tribunal Federal, valendo destacar que o reconhecimento da multiparentalidade acarreta também o reconhecimento de todos os demais jurídicos (legais e patrimoniais), preservando assim o melhor interesse da criança e do adolescente, respeitando também a realidade fática das famílias plurais de nossa sociedade.

CONCLUSÃO

A família contemporânea tornou-se plural, fundamentada essencialmente na unidade de vida e afeto que deve existir entre seus membros, sendo intragável concebê-la apenas nos padrões da tradicional família nuclear, formada pelo pai, pela mãe e pelos filhos.

Essa nova concepção de família reflete-se na doutrina e na jurisprudência, gerando o entendimento de que o Código Civil (BRASIL, 2002) elevou a parentalidade socioafetiva ao nível de parentesco civil. A partir desse reconhecimento, surgem então mais duas hipóteses de filiação: a socioafetiva e a biológica, que em alguns casos coexistem, originando a possibilidade de multiparentalidade.

Assim, a múltipla filiação acaba por preservar os laços criados pela criança, adolescente ou mesmo pelo adulto, de modo em que se apresenta como uma possibilidade à adoção unilateral. Permite uma adoção aditiva, inserindo o novo vínculo parental, sem a necessidade de alterar as paternidades registradas anteriormente.

A multiparentalidade não deve ser confundida com a dupla parentalidade, já que prevê uma filiação tripla ou superior. O instituto da multiparentalidade vai além do mero reconhecimento da filiação, uma vez que garante a efetivação de todos os direitos-deveres inerentes à filiação.

Dentre os direitos advindos da multiparentalidade, tem-se o registro, capaz de concretizar uma importante dimensão da dignidade da pessoa humana. Temos também o direito de visitas, com a finalidade de garantir da convivência entre todos aqueles presentes no

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polo multiparental. Gera também a possibilidade de requerer alimentos e de ter garantido o direito de herança de todos os vínculos parentais.

Apesar de não haver concomitância fática das filiações nos casos relacionados à proteção da memória de genitor, observa-se garantido o direito sucessório de todos os vínculos, restando evidente outros efeitos jurídicos advindos da filiação socioafetiva e a possibilidade de plurihereditariedade no ordenamento.

Em relação ao Supremo Tribunal Federal, verifica-se que já encontra amparo através da Repercussão Geral 622, o tema da prevalência de uma modalidade de filiação. A partir dessa análise, uma vez que o Supremo Tribunal adentrou no tema da multiparentalidade e decidiu a sua aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro, possibilitando o reconhecimento de diversas famílias e, finalmente, as legitimou em esfera federal.

Desse modo, verifica-se possível a aplicação do instituto da multiparentalidade em nosso ordenamento, sendo apenas necessário realizar uma avaliação cuidadosa a fim de verificar a sua efetiva configuração. Isso porque, a concessão da multiparentalidade envolve uma decisão irrevogável e prevê direitos e deveres para todas as partes.

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Referências

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