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Literatura, História e crítica contemporânea

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Academic year: 2020

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Alcir PÉCORA1

RESUMO: Aula magna proferida para os alunos do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários.

PALAVRAS-CHAVE: Cartas Chilenas; historiografia; hermenêutica; retórica; literatu-ra e história.

Antes de tudo, agradeço ao Centro Acadêmico de Letras desta Universidade, e especialmente a Prunella Moraes, pelo convite muito prestigioso que me fez para dar a aula inaugural deste curso de Pós-Graduação em Literatura. De acordo com o sugerido pelos alunos, nossa conversa de hoje deveria tratar de questões contemporâneas da crítica literária. Assim, para desenvolver o tema, sem maiores riscos de ser genérico demais, pediria licença para partir de um texto modesto, porém muito útil ao caso, pela esquematização da história literária que apresenta, que é a dissertação de mestrado, defendida na USP, por Joaci Pereira Furtado, que se chamava

Uma república de leitores (1997). Por meio dela, penso que poderíamos traçar, com

facilidade, o quadro básico das posições em jogo a propósito de um assunto realmente quente, hoje: o das possibilidades de leitura dos textos literários como documentação histórica, entendidos, pois, nessa conjunção, como “fontes” historiográficas.

A dissertação estuda de maneira inteligente a recepção crítica das Cartas Chilenas no período compreendido entre 1845, ano de sua primeira edição, e 1989, quando se comemorou o bicentenário da Inconfidência Mineira. Como se sabe, as Cartas apresentam-se como sendo escritas por “Critilo”, de Santiago do Chile, a “Doroteu”, na Espanha, a propósito do mau governo de um déspota local, o “Fanfarrão Minésio”. Contudo, facilmente se fica sabendo que elas comentam sucessos passados em Vila Rica, sede da Capitania de Minas Gerais, durante os anos 1783-88, quando Luís da Cunha Pacheco e Meneses estava à frente do governo.

Em termos bem gerais, como mostra a dissertação, as Cartas, ao longo do tempo, são estudadas através de duas referências fundamentais: de um lado, a biografia de seu presumido autor; de outro, os acontecimentos que levaram à Conjuração mineira. Essa fortuna crítica poderia ainda, segundo o estudo, ser distribuída em três períodos básicos. O primeiro iria de 1845 a 1880 e faria parte de uma crítica romântica, em que o escopo básico das leituras seria a afirmação da nacionalidade e, portanto, o rastreamento do papel das Cartas na gestação da conjura ou da consciência nacional

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em oposição à Metrópole lusitana. Um segundo período seria delimitado entre 1880 e 1950, em que predominam leituras positivistas, cuja preocupação dominante é determinar o conjunto objetivo de acontecimentos da história nacional que seriam traduzidos pelas Cartas, tomadas, agora, como um reflexo preciso do real; nesta fase, o nome fundamental a ser considerado é o de Silvio Romero. Um terceiro período se configuraria de 1950 aos dias de hoje, tendo como características básicas: a) a admissão da especificidade do texto poético; b) as restrições à isenção de “Critilo”, que falaria do lugar particular ocupado por sua classe no universo colonial; c) as diferenças de suas idéias em relação às do Iluminismo francês, caracterizadas agora, as primeiras, de maneira mais conservadora, assim como todo o processo da Inconfidência, que passa a revelar-se menos revolucionário do que pretenderia a Historiografia brasileira tradicional.

Entre os dois primeiros períodos da fortuna crítica, o estudo tende a acentuar a permanência de alguns elementos fundamentais, sendo o mais importante deles o propósito de empreender a leitura das Cartas com o estatuto de “fonte documental”, vale dizer, de registro de fatos realmente ocorridos na Vila Rica da época. A maneira engenhosa como nomeia os capítulos dedicados a um e outro bloco aponta exatamente para esta semelhança essencial que reconhece neles: “Retrato”, o primeiro – que é, de fato, emblematicamente realizado na pintura de Gonzaga executada por João Maximiano Mafra, em 1843 –, e “Espelho”, o segundo, metáfora própria para uma época historiográfica que se pretendia neutramente científica. Em qualquer dos casos, o texto é interpretado como reprodução fiel de acontecimentos que se supõem ter sido testemunhados pelo seu autor. Desse aspecto comum decisivo, Joaci Furtado faz decorrer ainda outros que aproximam os dois primeiros períodos da crítica das Cartas, como é o caso de, primeiro, a interpretação restrita delas em termos de denúncia de irregularidades do governo de Meneses; segundo, o da suposição de que o que nelas se escreve corresponde à fala do conjunto homogêneo da sociedade mineira da época; terceiro, o de que o conteúdo das Cartas equivale à semente nacional inscrita no sentimento comum dos moradores de Vila Rica. Esta semelhança de perspectiva proposta entre “retrato romântico” e “espelho positivista”, entre o “gênio” postulado pelo primeiro e a “natureza” descoberta pelo segundo, desdobra-se também em outra similaridade, a quarta das que seleciono aqui: em ambos os períodos, crê-se estar diante de um texto essencialmente subversivo, seja como detonador da reação anti-lusitana, seja como sinal da autenticidade brasílica, doravante inconfundível, manifestando-se nos sucessos da Inconfidência.

A cada um desses aspectos comuns, Joaci Furtado faz corresponder determinadas rupturas anunciadas na melhor crítica posterior aos anos 50. Assim, em primeiro lugar, à compreensão do texto como simples registro, contrapõe, a partir de uma sugestão de Antônio Cândido, a afirmação de uma “função pedagógica” existente no libelo. Se fosse pensá-la à maneira dos que, como eu, gostam de ler manuais de

retórica, tal função seria perfeitamente ajustada às prescrições das retóricas neoclássicas, em que, nos seus próprios termos, o “deleite” subordina-se ao “mover” e ao “ensinar”. Em segundo lugar, à leitura das Cartas restrita exclusivamente aos atos desabonadores da gestão de Cunha Meneses opõe a idéia de que elas trazem reflexões gerais sobre os conceitos de “justiça” e de “bom governo”, que não se esgotam naquelas circunstâncias. Em terceiro lugar, quanto à interpretação das Cartas como protesto do conjunto da sociedade mineira contra o “despotismo luso”, a boa crítica posterior a 50 vai opor a idéia de que o autor delas apenas pode falar por uma “classe específica” no interior da hierarquia colonial, a dos senhores locais, que não se julga adequadamente distinguida nos gestos do capitão-general, cujo governo militarista e voluntarioso, ostentava simpatia por negros, mulatos, e ainda mais por mulatinhas, mas apenas desdém pelos grandes do lugar. E, enfim, em quarto lugar, quanto à percepção tradicional das Cartas como texto subversivo segue-se, na crítica mais recente, a sua caracterização, no melhor dos casos, como exemplo de crítica reformista do Estado absolutista, que no entanto fornece irreversivelmente o seu horizonte principal. Desse ponto de vista, trata-se, no libelo, de promover a defesa das leis do reino, sem qualquer alteração do sistema de subordinação à metrópole, o que se traduz pela reivindicação de uma aplicação justa de tributos; de exigência de equilíbrio nos gastos públicos, sem abandono da assistência social; de esforço de conciliação entre a origem familiar e o mérito próprio ao exercício dos cargos públicos etc. Assim, longe de possuir um propósito revolucionário, as Cartas formulariam queixas assentadas no desarranjo da composição política do governo da Capitania com a elite local. Esta, por sua vez, passa a ser identificada menos pela adesão progressista às Luzes, do que pelo apego aos pressupostos teológicos ainda vigentes na crítica ao governo do Fanfarrão Minésio. No limite desta posição da crítica mais recente, postula-se que a ligação das Cartas com a Inconfidência é superficial, senão arbitrária, e produzida a posteriori tanto pela crítica e historiografia romântica, quanto pela positivista, em busca de caracteres heróicos ou patronos cívicos para a nação – empresa posteriormente requentada, segundo seus próprios modelos úteis de virtude, pelo Estado Novo, pela Ditadura militar e até, por um viés muito mais simpático, de certo socialismo nacionalista de raiz mineira.

A hermenêutica da “fonte”

Todos estes pontos estão especificados no exame da recepção das Cartas, mas prefiro aqui concentrar-me na discussão hermenêutica suscitada pelo trajeto analítico que Joaci Furtado detecta nela. Parece-me pertinente deixá-la vir livremente à tona aqui, na medida em que pode constituir-se como preocupação de qualquer intelectual contemporâneo, não particularmente excêntrico ou espírito de porco, que, entretanto,

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desconfie das categorias historiográficas que entendem a “realidade” como dotação de uma segura “exterioridade”, e em que “fatos” e “valores” constituam uma “dualidade” intransponível.

Resumidamente, pois, a questão põe-se da seguinte forma: a crítica tradicional das Cartas postula como fundamental o seu estatuto de fonte documental, isto é, supõe nos versos um espelhamento não problemático de seu contexto e tende a anular assim a sua especificidade enquanto texto poético. O avanço captado por Joaci Furtado na crítica dos anos 50 para cá consistiria em perceber que as Cartas produzem uma “transfiguração do real” e não uma reprodução objetiva dele. “Reprodução objetiva” que, no caso da crítica e da historiografia romântica e positivista significava encontrar nos versos os documentos de sua identificação com a personalidade de seu autor (exemplarmente, com o seu “caráter heróico” ou a sua “índole revolucionária”) e com as circunstâncias históricas deles (em especial, as relativas à chamada Conjuração mineira). Juntados os dois aspectos, as Cartas terminavam por ser entendidas como uma espécie de “estopim” do movimento inconfidente ou “prenúncio da nacionalidade em formação”– como aliás, bem depois dos anos 50, Affonso Ávila, por exemplo, ainda persiste em afirmar. Tal visão do poema não está muito distante da de Sud Mennucci que, em 1942, reconhecia uma “estranha, singular e edificante coincidência” entre os sucessos nele relatados e os depoimentos de Tiradentes, estendendo assim ao autor – Gonzaga ou quem for – uma heroicidade que oficialmente se construía para o Tiradentes, “mártir da Inconfidência”. No mesmo calvário pátrio orou também Oswald de Andrade que, em 1945, identificava as Cartas com uma “revolta política” em que a “nacionalidade exige a sua independência”, e com uma “primeira consciência autonomista” lançada pelos “mártires de Minas Gerais”. É verdade que o lugar de “primeira consciência” é difícil e muito disputado, ainda hoje: alguns a querem para Cláudio ou Basílio, outros a fazem recuar para Gregório, outros ainda para Anchieta e mesmo para Caminha, num instante, enamorado do que viu, bem alto e saradinho. Já na perspectiva mais recente, adepta da idéia enunciada como “transfiguração do real”, as Cartas são despojadas de sua verdade estritamente objetiva, para tornar-se visão particular de mundo. A dimensão pessoal antes resolvida com o apelo ao caráter heróico do autor da sátira deve agora medir-se pela consistência psicológica subjacente a dados biográficos nem sempre objetivos. Esse autor vai ganhar atributo de “ressentido” e de “gênio forte”, “bastante suscetível e cônscio de seu valor” (como vai julgá-lo Antônio Cândido, por exemplo), ou de “justo indignado” (como vão concluir as “aproximações psicológicas” tentadas pelo crítico português, João de Castro Osório).

Quanto à dimensão histórica implicada nas Cartas, a crítica posterior aos anos 50 passa a reconhecer nelas um posicionamento estamental conservador na associação antes suposta como contestatória. Assim, vai-se tocar em seu aspecto de “ressentimento de classe” (como escreve Sérgio Buarque) e também de indignação, sim, mas nascida

agora do zelo das prerrogativas da nobreza letrada, muito contrafeita com as ascensões plebéias promovidas pelo capitão-general.

Em suma, as Cartas sofrem um duplo crivo relativista, de natureza tanto subjetivista quanto classista, que faz com que elas ganhem um aspecto mais acentuado de programa partidário-pedagógico, em detrimento de sua caracterização como documento revolucionário-nativista. Tal mudança é vista genericamente, por Joaci Furtado, como índice de um grande progresso intelectual na intelecção das Cartas, e, ainda mais, quando se especifica a decorrência que mais lhe interessa e, por isso, parece fundamental: nos novos estudos, admite-se a menor subordinação dos versos aos supostos fatos, e, desse modo, a maior liberdade significativa dos seus signos poéticos. Nesse caso, o mau governante “Minésio” ou os desconcertos do reino do “Chile” entendem-se como alegorias ou figuras verbais não necessariamente restritas apenas à denotação de Meneses e Vila Rica.

Assim balizado o problema, gostaria de propor aqui algumas indagações que, em boa medida, jogariam água fria no otimismo deixado pelo livro, enquanto manifestação de confiança na idéia de “progresso intelectual”, supostamente obtido na passagem das posições mais antigas para as mais modernas. E a primeira dessas indagações é a seguinte: o que significa considerar o estatuto irrevogável do texto literário face a outras fontes historiográficas? A resposta que poderia dar a melhor fortuna crítica reordenada por Joaci, de acordo com o seu gosto, é: ao menos, impedir que seja lido como documento estritamente objetivo e produzir a consciência de que se constitui como uma visão particular, perspectivada segundo a profundidade subjetiva e o lugar de classe ocupado pelo autor. Muito bem. Mas ocorre que isto ainda está longe de significar uma descrição forte do âmbito poético dos versos, que ele quer valorizar: eles psicologizam-se e ideologizam-se, é verdade, mas não parece evidente que a capacidade de incorporação desses novos conteúdos às Cartas, ofereçam vantagem extraordinária ou, até, menos anacronismo do que o antigo entusiasmo pela nacionalidade, no que toca, por exemplo, à descrição dos efeitos argumentativos dos versos. Talvez a passagem de uma leitura romântica para uma mais científica não seja, afinal, a passagem radical de uma leitura ingênua para uma crítica, mas a passagem de leituras adequadas a diferentes momentos históricos, que, por sua vez, avaliada à distância, por um momento histórico ainda mais recente, começa a ganhar ares de semelhança em família (assim como Joaci faz parecer com sucesso muito semelhante o retrato romântico e o espelho positivista). Em todo caso, o que quero dizer é que esses blocos históricos da recepção procuraram responder cada um, a cada vez, a projetos críticos diferentes, o que impede a avaliação muito direta do “progresso intelectual” obtido, a não ser que se entenda por progresso algo muito mais modesto do que o nome dá a entender, isto é, o simples reconhecimento de mudanças mais lentas ou mais rápidas de blocos de significados interessantes no tempo.

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Está bem claro, em todo caso, que à concepção positivista da linguagem como veículo neutro de representação factual, a crítica dos últimos 50 anos responde com a evidência de sua mescla de condicionalismos subjetivos e materiais. Neste caso, contudo, entre esses condicionalismos, se o caso é por em evidência certa opacidade da fonte literária, não seria bem questão de considerar-se os condicionalismos da própria tradição letrada variada em que se insere o texto produzido? Ou seja, penso que seja legítimo supor que os sentidos dos versos das Cartas peçam o exame dos procedimentos discursivos previstos pela estrita prática convencional-prescritiva que os produz: procedimentos que são próprios de seu “gênero” retórico-poético, nas várias formas mistas admitidas historicamente por ele. Assim, nessa perspectiva, sentidos básicos dos textos literários são, afinal, descrições de procedimentos poéticos tradicionais e não necessariamente, para todo tempo e lugar, descoberta do valor agregado a eles por conteúdos psicológicos ou sociológicos complexos.

Reconhecer que as Cartas têm este estatuto irreversível de signo, figura ou convenção, que, acaso, pode não sentir falta da referência a uma subjetividade particular ou a um modo de produção, localiza-as num domínio que depende agora dos meios de persuasão dispostos pelo próprio texto, que são mais ou menos eficazes segundo diferentes circunstâncias de pessoa, tempo, modo, lugar, etc. Aqui, radicalizar a dimensão “literária” significa, pois, sobretudo, não admitir chaves de interpretação que dispensem o exame do emprego convincente das tradições de convenção, das prescrições que balizam a criação dos versos. Em termos mais claros: considerar o domínio poético das Cartas, e não o exclusivo registro documental, passa, por exemplo, por descobrir a sua dimensão retórica, vale dizer, aquilo que elas significam enquanto operação de recursos de gênero historicamente disponíveis.

Se for aplicado este raciocínio aos estudos referidos anteriormente, deve-se admitir que a crítica está ainda num ponto ainda bastante aquém de uma ruptura mais aguda com a perspectiva romântico-positivista de exame das Cartas. Para isso, seria preciso que os novos trabalhos, mesmo os produzidos no âmbito da historiografia, deixassem de agregar conteúdos a uma “fonte”, entendida como representação, e, por exemplo, buscassem uma compreensão básica da estrutura poética como ajuste de convenções a efeitos de sentido e convicção particulares. A primeira exigência interpretativa a fazer-se aqui seria a de estudar-se a tradição do gênero epistolar satírico ou herói-cômico posto em jogo nas Cartas Chilenas. E ocorre que, na longa recepção delas, apenas um ou outro estudo detém-se um pouco mais na relação particular entre os efeitos persuasivos e os recursos genéricos da sátira –, como é o caso de um estudo, de 1980, realizado pelo português João de Oliveira Lopes, que descreve certos estratagemas discursivos mobilizados nas Cartas, como o uso da primeira pessoa de modo a obter efeitos de “depoimento”; o recurso da interpelação do interlocutor, que possibilita diferentes qualidades afetivas no tratamento das personagens ou na dramaticidade da narração; ou ainda o emprego do tempo presente

como meio de ultrapassar o âmbito de Vila Rica ou da diatribe pessoal, e constituir um comentário jurídico e moral mais amplo.

Observações desse tipo, que procuram descrever a aplicação de recursos retóricos disponibilizados pelos gêneros, suas tópicas e lugares, são fundamentais para a radicalização da ruptura com o documentalismo cru da fonte, que Joaci Furtado estava interessado em valorizar na crítica das Cartas. Ou seja, uma ruptura em que o texto literário não apenas resiste a ser uma estrita representação de um real suposto, e não remete a uma realidade objetiva, única e total, mas tampouco quer ser a tradução ou a expressão de uma parte subjetiva ou ideológica dela. Pois, neste ponto de nossa discussão, falar em realidade ou objetividade significa admitir que ela apenas aparece para o crítico embaralhada em efeitos de realidade, mais ou menos eficazes junto a certos auditórios, em determinados momentos. A “verdade objetiva” é aquela que emerge como resultado de um enunciado persuasivo sobre o qual se está de acordo e já não se vê motivo para levantar mais um argumento em contrário. Vale dizer: o real de que se pode falar, face às Cartas, é, também, em larga medida, a ilusão compartilhada dos efeitos dos seus versos. Pode-se pretender mais certeza ou substância do que isto, mas, desgraçadamente, nada garante que se consiga algo mais do que ser iludido a sós.

Neste ponto, ainda vale a pena dar um segundo passo. Se o primeiro movimento assinalado até agora, que mostra a relevância da consideração hermenêutica e analítica do gênero retórico tradicional, procurou retirar o texto poético do estatuto de fonte estritamente documental, um segundo movimento, igualmente decisivo, deve retirar o documento não-literário de seu estatuto não criativo ou não convencional, que aqui significa o mesmo que antes: recusar a “exterioridade” do “fato”.

E se a literatura traduz bem, e com certa facilidade (ao menos, mais do que a concepção tradicional de uma disciplina histórica, por exemplo), a idéia de um sistema convencional e de uma invenção radical, de um “fictício”, o caso é que, de modo algum, o documento não literário está incólume à suspeita de criação ou fábrica de fictício. Sabemos muito bem disso, nós, que lidamos com atas. Se o sentido do real, em literatura, mescla-se ao efeito de sentido de realidade que ela cria – este é o bloco sujo ou impuro que podemos ter diante de nós –, o passo seguinte a dar é reconhecer que mesmo o documento não literário não refere uma verdade objetiva, no sentido de indiferente ou estranha àquela permeada por seus efeitos de sentido, sempre obtidos mediante a aplicação adequada das convenções práticas e datadas que o rege. Um documento não literário, assim, deverá ser considerado como peça de um outro gênero de mobilização retórica em busca de acordos sobre o que se propõe como real. Uma ata da Câmara ou um despacho real, nesse caso, não têm em relação ao texto “literário” senão uma diferença de gênero – claro, com toda a distância qualitativa que isto implique, isto é, com consciência da grandeza muito diversa de seus recursos de

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linguagem, suas matrizes letradas, suas estratégias de avaliação de mérito, seus âmbitos de vigência ou condições de performance.

Desse ponto de vista, é um tanto absurdo crer que sejam mais reais ou historicamente mais fiéis – vale dizer, mais capazes de determinar um tempo preciso – um documento de chancelaria ou um decreto institucional do que um sermão ou uma sátira. Uns e outros são completamente diferentes na variedade dos recursos, nas tópicas da invenção, nas figuras da elocução, nas partes necessárias da disposição, enfim, nas execuções de suas formas consagradas pela tradição movente, mas não no seu estatuto de invenção ajustada ou cristalizada no seu tempo. Isto é, apenas não são diferentes em seu estatuto de constructo, de

artifício regulado por tradições de leis, prescrições, práticas letradas. Aqui, não

há história a conhecer livre de uma história de artifícios e metáforas. Como disse, não porque não haja realidade objetiva, que mais do que depressa quero reconhecer, mas porque o que quer que ela seja apenas se dá como fenômeno cognoscível embrulhado no artifício e na metáfora (ou talvez seja melhor dizer, misturado, melado, pois não há como “desembrulhá-lo” deles).

O texto poético e o documento histórico, dessa perspectiva, estão irreversivelmente ligados: estão condenados à invenção de efeitos que não são “o real”, mas que podem significar “o real que estamos dispostos ou obrigados a admitir neste tempo” porque pareceram verossímeis, válidos ou indiscutíveis para nós. Em termos práticos, o que quero dizer é que, se o texto literário não é puro reflexo do real, tampouco o texto não literário o é: a “realidade” aqui é, em larga medida, e em medida largamente desconhecida, um dos nomes eloqüentes ou persuasivos que temos para os efeitos complexos, mas de validade datada, do conjunto dessas invenções. Sejam textos poéticos ou supostas fontes históricas, não há porque contar com uma aproximação milagrosa, através deles, de um Ser Que é: Deus, a natureza, a mente, o eu profundo e interior, a luta de classes, o inconsciente ou qualquer outro conceito-chave que se tenha para uma realidade hiper-determinada, seja no fundo último de nós, seja na imperturbabilidade objetiva fora de nós. A “realidade” de que se pode falar, freqüentemente, é apenas a que se compõe junto com o movimento de fala, como verossímil, mais durável ou perecível, a cada vez, segundo o conjunto de provas historicamente disponível e divulgado com mais ou menos consistência argumentativa, a distintos auditórios.

Pois bem, mas se o primeiro passo além do positivismo historiográfico promove a irredutibilidade do texto ao contexto e o segundo passo refere a irredutibilidade do próprio contexto a algo exclusivamente externo aos textos ou aos constructos históricos, há ainda um terceiro passo hermenêutico a apontar-se aqui, se se quiser que à idéia de texto ou de constructo não corresponda uma indeterminação radical, que seja menos uma criação humana do que a emanação de uma divindade absolutamente livre, sem compromisso com o tempo ou a morte. Se, para se melhorar a leitura historiográfica

da “literatura”, exigimos que se conhecesse o poder de invenção de seus procedimentos genéricos; e se, para diminuir a onipotência objetiva do documento, exigimos que este mesmo fosse reconhecido como texto, como rede de relações significativas, e, portanto, como um gênero de “literatura”; – a questão, agora, é que o projeto de ruptura com o positivismo não se completará com o isolamento ou a retirada da literatura dos seus termos históricos. Ao assumido nominalismo dos dois primeiros passos especificados até agora, será preciso acrescer um bom e firme historicismo, pois tais termos são tão imprescindíveis à literatura quanto seus gêneros, seus conjuntos tradicionais – logo, historicamente demarcados –, de produção de efeitos de convicção.

Assim, ler bem os efeitos propiciados por determinado gênero letrado implica apreender as marcas temporais desses efeitos, que não são permanentes ou de mesma qualidade sempre. Para dizê-lo de outro modo: os verossímeis textuais são sempre particularidades ou produtos temporais, cuja rede de recursos significativos ou cuja amplitude virtual de adesão, por maior que seja, não alcança jamais transcendência. Ou seja, em qualquer caso, as críticas românticas e positivistas produzem verossímeis adequados a seu próprio tempo, e se os achamos repreensíveis ou insuficientes agora, em boa parte será, não porque nos aproximamos mais da essência de um ser fora da história, mas porque vivemos a experiência de uma história que já não é a mesma. Nada parece garantir que tenhamos tido algum progresso intelectual ou crítico, senão o reconhecimento cabal de que os conceitos ou categorias, o vocabulário de que dispomos, está mergulhado na mesma história que pretende descrever. Não subimos um milímetro além ou acima da nossa posição, que é, contudo, diferente, à medida que mudam-se os tempos, as vontades, os costumes.

Assim, o que quero dizer é que a crítica mais radical da literatura como meio, veículo, reflexo ou representação deve avançar até a crítica penosa à idéia de uma finalidade última dela na história, e, portanto, deve ousar tomar a forma de uma crítica da teleologia. Cabe talvez reconhecer que não nos aproximamos, agora, de algo mais profundo ou preciso das Cartas ou dos textos em geral, não descobrimos um método melhor, mais seguro ou necessário. Apenas podemos responder mais eficazmente a uma situação muito diversa historicamente, que já não está disposta a considerar crível que a linguagem seja a representação de etapas sucessivas, historicamente mais completas e plenas, como análogo de um Espírito que progressivamente se torna mais capaz de reconhecer a si mesmo.

Desse ponto de vista, feitas as três passagens aqui discutidas, se é adequado dizer que não se pode ler literatura convenientemente como documentação direta da realidade, também não convém tomá-la como não histórica ou não datável. O que tem de convenção e artifício é exatamente o mesmo que tem de produto histórico; o que significa enquanto ato de criação implica em objeto ou efeito criado, de tal modo que seu aspecto mais formal é ainda designação da história.

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As Cartas Chilenas, assim, são perfeitamente fidedignas em relação ao período histórico que constituem, enquanto forem, ao mesmo tempo, recriações, reinvenções verossímeis para o período contemporâneo de sua recepção. Nesse sentido preciso, não vejo mal em que lhe seja atribuído o predicado de “documento histórico”. Isto, claro, bem esclarecido que o termo “documento”, após o nosso tour hermenêutico, já não nomeia os mesmos processos históricos, nem sustenta as mesmas premissas de verdade: sejam as do idealismo romântico-positivista, sejam as do realismo psicológico ou sociológico, e já nem mesmo, espero, as do “realismo maravilhoso” (quando não infanto-juvenil) da história cultural, do cotidiano e da mentalidade. Trata-se aqui sobretudo de ressaltar a importância da tradição do gênero de produção do “documento”, cujos enunciados persuasivos ou cujas condições persuasivas de enunciação geram esses efeitos de “presença” eterna, a-histórica, universal, e, mesmo, não textual.

Um cenário alternativo de crítica contemporânea

Redefinida a fonte literária como artificial e datada ao mesmo tempo, parece-me importante, por fim, responder à questão de qual crítica seria suscitada ou demandada por objetos desse tipo.

O cenário que oferece, hoje, a meu ver, as alternativas mais interessantes para o exercício da crítica literária tem um pressuposto que não arreda pé: a recusa de uma idéia homogênea daquilo que se chama “a crítica” ou “o crítico”. Pressupõe, portanto, para citar um intelectual que admiro, Richard Rorty, a rejeição de que haja qualquer “razão para querer que todas as pessoas que escrevam livros ou críticas devam ter os mesmos objetivos ou ser medidas pelos mesmos padrões”. Isto também quer dizer que não acho que as diversas práticas em crítica literária precisem levar muito a sério questões como “o objetivo do escritor”, pois elas usualmente acabam por afundar no poço sem fundo de “a natureza humana”, topar com o sociologismo autoritário de “a realidade histórica” ou, enfim, compor o corpo místico de “a identidade nacional”. Com isto, gostava de afirmar aqui, como correlata de minha idéia básica de prática crítica, a crença num pluralismo irredutível de valores e numa idéia primitiva de liberdade, como a de Isaiah Berlin, por exemplo, que entende o seu exercício sobretudo como efeito de uma escolha, seja ela racional ou não, mas nunca como simples execução de prescrições impostas por outros. Isto posto, resumiria minha hipótese particular de crítica animada como um movimento inventivo de ajuste ao objeto, sem pretender que haja nisso qualquer espécie de ato cientificamente neutro.

Mais especificamente, gosto de críticas que fazem para si uma exigência de ajuste ao objeto em questão, que poderia ser nomeada também como uma exigência de “propriedade”. Heuristicamente, penso que essa propriedade pode ser desdobrada

em dois ajustes articulados, a saber: a) um “ajuste histórico”, que procura levantar, a partir da documentação existente, as diversas circunstâncias da produção do objeto em foco, bem como a rede complexa de práticas ou hábitos nas quais ele se realiza; b) um “ajuste de convenção”, no qual o principal empenho é o de domínio de um vocabulário familiar ou afim do objeto, que se traduz, por exemplo, pelo estudo de teorias de prestígio à época de sua constituição, pelo estudo das prescrições técnicas que regulam a sua composição e também pelo estudo das regularidades e variedades na tradição do gênero retórico-poético no qual se inscreve.

Neste último caso, quando vem para o primeiro plano a relação do objeto com o gênero da tradição na qual se constitui, os estudos que me parecem mais profícuos procuram quase sempre encontrar o leque das opções em jogo para a sua conveniência e eficácia persuasiva. Isto implica, usualmente: a) a delimitação argumentativa dos seus temas mais correntes; b) o arranjo das partes discursivas em que se costuma apresentar; c) o repertório dos ornatos aplicados ao texto; d) as técnicas de memorização e de ação eventualmente supostas em sua performance.

Além da exigência de propriedade histórico-convencional, a alternativa de crítica que mais me sinto capaz de propor e valorizar dá ainda um segundo passo, um pouco a contrapelo de si mesma, que é o de historizar a própria metáfora crítica que propõe, isto é, o de descrever, simultaneamente com a aproximação do objeto, a historicidade de sua intervenção nele. O pressuposto dessa “historicidade da intervenção” da crítica é o de que as categorias de análise empregadas por ela, ainda que utilizadas de maneira “própria” (de acordo com o primeiro ajuste apresentado), não produzem “originais” dos objetos, não descobrem seu “verdadeiro” ou “primeiro” sentido, mas apenas “verossímeis” deles. Ou seja, produzem descrições alternativas e contingentes que, no melhor dos casos, estabelecem uma boa relação de adequação entre os vestígios de época existentes do objeto e os argumentos mais convincentes para o âmbito contemporâneo do debate. Tal relação, por sua vez, implica uma equação irresolvida, mas suportável, entre certas referências empíricas admitidas sem contestação e certos lugares teóricos prestigiosos entre os debatedores da matéria.

Decorre daí a “lei” voluntariamente mais severa do tipo de crítica para a qual gostaria de contribuir: a de que não é admissível que ela interprete como categoria universal ou atemporal a própria intervenção que gera, pois uma nova leitura é também uma nova amarração, mais ou menos consistente, de desejos, crenças e interesses presentes na situação em que ela se formula. Vale dizer, os conceitos ou critérios em jogo nesta alternativa de trabalho crítico estão impossibilitados de reclamar para si qualquer capacidade de interpretação “natural” do objeto histórico, pois apenas podem produzir interferências igualmente históricas a respeito dele.

Assim, a releitura de um objeto por novas metáforas críticas, em analogia com um vocabulário novo ou alternativo, não encontra a essência de uma coisa que as

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leituras anteriores apenas tocavam superficialmente, pois nem se supõe haver tal essência nas práticas históricas, nem a tal releitura pode ser entendida como uma técnica de aplicação de um critério neutro ou racionalmente superior às que lhe eram anteriores no tempo, ou diferentes nas manifestações. Tudo o que ela pode fazer, para dizê-lo à maneira de Wittgenstein, é “dissolver” o antigo objeto e seus problemas e produzir um outro, tão novo quanto admitirem os dados aceitos como objetivos, as diferentes formas de apego à tradição e, no sentido oposto, o máximo de novidade que interesse aos novos críticos ou às novas gerações, cujas experiências tornaram-se tão diversas das anteriores que já não sintam qualquer apreço ou consideração pelas antigas descrições.

A renovação ou invenção de certo vocabulário crítico também produz, como propõe Perelman, interferências na própria constituição do seu “auditório”, isto é, rearranjos nos limites do diálogo crítico que se está disposto a manter. Alguns argumentos, para certas oposições, não podem (e mesmo não devem) ser encontrados, sob pena de se perder o mais interessante da crítica imaginada aqui: a admissão pura e simples de que estamos diante de escolhas que bem podem ser radicalmente inconciliáveis. Não temos de estar de acordo a respeito das descrições críticas, como não temos de ter uma mesma natureza, identidade ou partido político. Claro que isto também quer dizer que os novos cenários críticos vão redesenhando diferentes redes de relações afetivas entre a comunidade profissional implicada na discussão da matéria e mesmo certa flutuação na imagem do desejo de cada pesquisador. Quanto a isso, para que a coisa não desande em razão mesquinha, o melhor é ter humor suficiente para aceitar que compor um novo vocabulário crítico vale como um discurso atual da experiência privada, da geracional, ou, enfim, da “forma de vida” adotada, com as suas opções políticas determinadas e datadas: querer dilatá-lo para muito além disso não é apenas pretensioso ou arrogante, é também um pouco mórbido. A esse respeito, nada tenho de mais claro a dizer do que repetir aqui uma frase de Max Planck (apud BOUDENOT, 2001, p. 189), o inventor da teoria física dos “quanta”: “Uma inovação científica importante raramente se impõe vencendo gradualmente e convertendo seus oponentes [...]. O que acontece é que seus oponentes gradualmente vão morrendo, e a geração seguinte se familiariza, desde o início de sua formação, com as novas idéias.” Assim, quando uma nova idéia vinga ou se instala, não temos direito de ser tão otimistas a ponto de supor que tenha havido ali alguma vitória da razão em prol do progresso intelectual, há apenas a vitória banal da morte. A boa crítica deve tomá-la como o princípio mais genérico de qualquer método.

PÉCORA, A. Literature, history and contemporary critique. Itinerários, Araraquara, n. 21, p. 13-25, 2003.

ABSTRACT: Lecture held to Graduate Students of Literature Studies at the

Universi-dade Estadual Paulista (UNESP).

KEYWORDS: ‘Chilean Letters’; historiography; hermeneutics; rhetoric; literature

and history.

Referências

BOUDENOT, J. C. Max Planck et les quanta. Paris: Ellipses Marketing, 2001. FURTADO, J. Uma república de leitores. São Paulo: Hucitec, 1997.

Referências

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