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Usos insubmissos da cidade: o espaço dos cartazes de amarração na arte urbana

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Academic year: 2021

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na arte urbana

Gustavo Henrique Bastian Pós-Graduando em Sociopsicologia na FESPSP

(ghbastian@gmail.com)

Resumo

A cidade é um espaço de intensa transformação sobre a qual os sujeitos agem constantemente para moldar suas realidades. Nesse cenário de concreto e caos, emergem diferentes práticas artísticas que dialogam com o meio urbano e refl etem o tempo presente. A partir da análise dos cartazes de amarração espalhados pela cidade de São Paulo, utilizo o suporte fotográfi co para criar uma série que identifi ca as práticas que dão unidade a esses cartazes e atestam um saber-fazer entendido. Meu objetivo é promover um novo olhar sobre o que poderia também ser considerado como arte urbana, ainda que não intencional, mas resultado das invenções presentes no cotidiano.

Palavras-chave

Cotidiano; Cidade; Arte Urbana; Amarração do Amor.

Abstract

The city is a space of intense transformation on which subjects constantly act to shape their realities. In this scenario of concrete and chaos, different artistic practices emerge that dialogue with the urban environment and refl ect the present time. From the analysis of the “bondage of love” posters spread throughout the city of Sao Paulo, I use photographic support to create a series that identifi es the practices that give unity to these posters and attest to a know-how understood. My goal is to promote a new look at what could be considered as urban art, although not intentional, but a result of the inventions presents in everyday life.

Palavras-chave

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1. Introdução

Figura 1:“Não falta amor falta amar”.

Fonte: Do autor.

Em 2009, a frase “mais amor por favor” foi escrita com tinta spray e letra cursiva em cabines de telefones públicos da cidade de São Paulo. Em pouco tempo, começaram a ser transpostas também para os muros da capital. As palavras simples, porém, com uma forte carga emocional, traziam um pedido urgente - e sempre necessário - por mais afeto em meio ao concreto e ao caos. O trabalho havia sido realizado pelo artista visual Ygor Marottat, e as imagens com seus dizeres correram a internet, iniciando um movimento que ganhou popularidade pelo Brasil e pelo mundo. Até hoje, é um dos símbolos mais populares entre as artes de rua da capital paulista.

Em 2011, o rapper paulistano Criolo lançou a música “Não existe amor em SP”. A letra, inspirada na frase de Marotta, mostra uma perspectiva da cidade solitária, como:“um labirinto místico, onde os grafi tes gritam” e, também, melancólica:“os bares estão cheios, de almas tão vazias, a ganância vibra, a vaidade excita”. A música ganhou prêmios e, até hoje, é um dos grandes sucessos do artistat. O que Criolo cantava era um alerta para o esvaziamento dos afetos em São

Paulo, mas que também serve de espelho aos dramas enfrentados em qualquer grande centro urbano.

Mas, se a frase de Marotta traz um pedido de urgência e a afi rmação de Criolo traz a denúncia e a negação, ambas nos fazem refl etir sobre como é difícil conciliar o desenvolvimento urbano com o desenvolvimento dos afetos. Nas grandes cidades,muitas pessoas ainda duvidam da possibilidade de encontrar amor. É importante lembrar, contudo, que toda generalização é um erro. São incontáveis os casos de pessoas que, em São Paulo, e outras grandes capitais, descobriram esse sentimento e conseguem cultivá-lo com uma ou mais pessoas.

Viver na capital paulista é também ser inundado pela arte de rua da cidade. Foi em 2015, em uma parede dessa grande metrópole, escrito com tinta spray, que me deparei com a seguinte frase: “não falta amor, falta amar” (Figura 1). A frase parecia uma provocação, algum tipo de resposta às frases anteriores que ganharam popularidade pelas ruas e rádios do país. Ficava claro que não bastava apenas reivindicar o amor, era preciso praticá-lo também.

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Mas havia, ainda,uma outra forma de apresentar o amor pelas ruas da cidade. Eram cartazes que prometiam “trazer o amor de volta” através de serviços religiosos e de “magias espirituais”. Em um olhar rápido, muitas vezes, acabavam se confundindo com os outros cartazes e intervenções presentes nesses mesmos espaços, mas suas características específi cas e promessas de “trazer o seu amor de volta”, “aos seus pés”, “em 7 dias” e “sem rivais” se destacavam por uma visão bastante peculiar sobre o amor. São popularmente chamados “cartazes de amarração” e se espalham por postes e muros de São Paulo, apresentando ofertas de serviços que garantem o tão desejado amor, entre outros trabalhos possíveis relacionados também à saúde, depressão, vícios, brigas familiares, negócios, sucesso etc.

A quantidade de cartazes espalhados pela cidade parecia se multiplicar, apesar da lei municipal que proíbe esse tipo de propaganda, a Lei Cidade Limpap. Curioso com a diversidade de promessas coladas por postes e paredes, iniciei um trabalho de documentação desses cartazes. Por suas características “ilegais” e efêmeras, o registro era sempre feito com o celular, em um momento de passagem, de deslocamento no espaço. Por isso, o suporte que me garante a observação, avaliação e construção dos conceitos propostos é elaborado a partir de fotografi as tiradas entre os anos de 2016 e 2017, majoritariamente entre os bairros da região central de São Paulo e Moema, percurso que faço para o trabalho.

Realizar a presença desses cartazes trouxe alguns questionamentos, a saber: Ygor Marotta, Criolo e todas as outras pessoas que falavam de amor estariam certos em suas avaliações? E, se com a tão propagada escassez de amor, abriu-se uma oportunidade para o mercado atender essa demanda, através dos serviços

de amarração. O amor virou mercadoria? Nesse sentido, as técnicas de comunicação desses serviços começaram a ganhar uma atenção especial em minhas análises, onde era possível destacar a escolha das palavras, as cores utilizadas, a diagramação das informações e sua disposição nos espaços. Ali, para mim, estava um novo exemplo de arte urbana, mas que, como trouxe Certeau (2014), fazia parte de um “saber não-sabido”, sobre os quais os sujeitos que o praticam não refl etem e que “fi ca circulando entre a inconsciência dos praticantes e a refl exão dos não praticantes” (p. 134).

Encontrar sentidos nas “artes de fazer” (CERTEAU, 2014) dos cartazes de amarração e considerar a legitimidade dos saberes que permeiam o campo das artes para tais práticas, promoveu um deslocamento das perspectivas que, até então, eu tinha sobre esses cartazes. Meu primeiro estudo sobre os cartazes iniciou-se durante o segundo semestre do período acadêmico na FESPSP, com uma análise dos discursos presentes nos cartazes a partir de uma perspectiva foucaultiana de relações de posse. No semestre seguinte, tendo Bourdieu e sua teoria sobre herança cultural e estratifi cação social como viés, analisei as percepções de diferentes sujeitos pertencentes a estratos sociais distintos sobre esses cartazes. Mas ainda faltava uma provocação maior.

Para esse artigo, meu objeto de estudo continua sendo os cartazes que oferecem serviços de amarração aplicados sobre os aparelhos arquitetônicos da cidade de São Paulo, porém, passo a inseri-los em um contexto próprio de arte e resistências, considerando suas estratégias e táticas para continuarem expostos pela cidade. Busco narrativas fora dos espaços tradicionais de discussão da arte para voltar minha atenção ao ordinário, ao perecível, à beleza que acredito encontrar

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no efêmero. Encontrar nessa impermanência meu objeto de estudo é lidar constantemente com a transformação e renovação das percepções afi m de construir uma base conceitual para este trabalho.

A partir dessas considerações, uso a primeira parte deste artigo para discorrer sobre os usos da cidade e as apropriações que as pessoas fazem sobre o cotidiano com o objetivo de criarem sentidos para suas próprias existências. Seguindo o conceito de cotidiano apresentado por Michel de Certeau (2014), apresento a cidade como espaço de fl uxos e construção de identidades, e livre para expressões, apesar das leis regulatórias que buscam controlar o ambiente urbano. Na segunda parte, faço uma análise voltada para as intervenções artísticas, práticas e saberes evocados por inscrições em paredes, muros e ruas, e por cartazes, que dão tons e traços diversos à paisagem urbana. Apresento essas intervenções como artes do efêmero que acontecem no desenrolar do cotidiano, na contestação e na fuga às normas, denunciando o tempo a que fazem sentido. Por fi m, apresento uma série de imagens de cartazes de amarração a partir de fotografi as documentais que realizei pelas ruas de São Paulo. Essa série serve de base para minha análise sobre as características dos cartazes de amarração e seus aspectos visuais, comerciais e religiosos. Meu objetivo é criar um entendimento sobre os modos e práticas que compõem esses objetos, afi m de prová-los, também, como capazes de adquirir um valor artístico, ainda que não voltados às artes formais, mas resultantes das artes do fazer cotidiano.

2. Inventando o cotidiano

Deslocar o pensamento antropológico para o contemporâneo, para aquilo que acontece durante o agora, aproxima o pesquisador e o objeto de pesquisa. O meu olhar sobre São Paulo nasce de um entendimento da cidade como espaço para apreender comportamentos relacionados ao cotidiano, o que me torna também participante desse processo de observação e compreensão dos espaços em sociedade. O espaço por excelência para estudo e observação das práticas do cotidiano são as cidades: espaços de fl uxos, orquestrados em ruas e passagens que ditam a forma como construímos nossas relações e entendemos o contexto em que vivemos. Ao realizar nossos deslocamentos diários, criamos uma relação com esses espaços que, ao mesmo tempo em que podem se tornar invisíveis ao nosso olhar, se confi guram igualmente como espaços de apropriação e intervenção. Segundo Reis (2013), baseado em Certeau:

Podemos entender o espaço como a prática do lugar, ou seja, como os sujeitos o transformam a partir das suas ocupações, apropriações e vivências. Os sujeitos, em seus itinerários cotidianos, simbolizam o lugar a partir das interferências, tanto corporais quanto cognitivas, nessas confi gurações físicas (p. 140).

Essa percepção de lugar faz um contraponto interessante ao não-lugar, conceito traçado pelo antropólogo francês Marc Augé (2012), e que se baseou, também, nos estudos de Michel de Certeau, para o seu livro. Segundo o autor, os não-lugares são frutos da supermodernidade: espaços construídos que são incapazes de dar forma a qualquer identidade (individual e de grupo) e onde todos estão sempre

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de passagem. Podem ser considerados como não-lugares: as rodoviárias, os aeroportos, os shopping-centers e os hipermercados. Em oposição, há o lugar antropológico que Augé (2012) defi ne como: “a possibilidade dos percursos que nele se efetuam, dos discursos que nele se pronunciam e da linguagem que o caracteriza.” (p. 77). Pois é nesse lugar antropológico que fi xo meu olhar, no espaço das ruas da cidade de São Paulo, onde os sujeitos possuem uma maior liberdade de atuação, os percursos são carregados de sentido social e tudo se justifi ca.

As cidades, portanto, como espaços de vivências múltiplas e complexas,são,da mesma forma, espaços de interação com o entorno através das apropriações que, aqueles que por ali passam ou vivem, usam para signifi car suas histórias. Mas essas dinâmicas não acontecem de forma simplifi cada, pois, para garantir o controle da sociedade, alguns dispositivos são usados como forma de organização social e econômica. Os espaços de fl uxos são planejados e geridos para obedecerem à uma ordem simulada para que tudo funcione equilibradamente. O poder não é exercido de forma centralizada pelo Estado, mas, distribuído em rede através de instituições que buscam docilizar os indivíduos, em uma sujeição constante de suas forças, impondo um modelo de comportamento através da disciplina. (FOUCAULT, 2002, p. 118). Nesse sentido, Certeau (2014) dialoga com Foucault, ao abordar as relações entre os discursos e os “procedimentos de vigilância”. Os dispositivos antes usados em instituições sociais, como escolas, hospitais, penitenciárias, etc., agora não estão mais restritos a essas “instituições localizáveis”, mas, atuam como uma rede de micropoderes que controlam as operações dos corpos através de uma “vigilância generalizada”. Certeau (2014) busca os “procedimentos populares

que jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela e não ser para alterá-las” (p. 40). É o que chama de “maneiras de fazer”, as práticas pelas quais os indivíduos se (re)apropriam do espaço organizado.

Assim sendo, os sujeitos encontram formas de subverter a ordem estabelecida e elaborar novas circunstâncias conforme a ocasião, apesar da constante ação dos agentes reguladores que confi guram a vida em sociedade. Cria-se a “rede de uma antidisciplina”, formada por indivíduos e grupos que encontram meios para serem criativos, com outros modos de proceder da criatividade cotidiana (FORT et al., 2015, p. 3). Ainda que tentem lhes atribuir um lugar, um papel e produtos a consumir, essas pessoas usam das astúcias anônimas das artes de fazer para inverter a forma de interpretar as práticas culturais contemporâneas. De conformidade com Duran (2007):

Certeau nos mostra que “o homem ordinário” inventa o cotidiano com mil maneiras de “caçanão autorizada”, escapando silenciosamente a essa conformação. Essa invenção do cotidiano se dá  graças ao que Certeau chama de “artes de fazer”, “astucias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. (p. 119).

Em suma, Certeau (2014) afi rma que é sob a “arte de fazer” que está fundado o cotidiano. Mas não uma arte vinculada à uma técnica, mas através da reinvenção ou recriação, que não se propõe a ser contemplativa, mas constituída a partir das práticas diárias de resistência e sobrevivência (VENTURA, 2015, p. 4). Porém, o valor gerado na mesmice, naquilo que se repete, é tradicionalmente recusado por estar fora dos espaços formais e elitizados de criação de valor cultural. É preciso reconhecer o valor das ações presentes no cotidiano.

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2.1 São Paulo e as leis na cidade

Os cartazes de amarração constituem mais um elemento do espaço urbano, daquilo que acontece diariamente e é comum a todo dia. Estão sujeitos à ação de controle e limpeza dos órgãos públicos e da ação do clima que, entre sol e chuva, acaba danificando as peças. São, portanto, objetos com propriedades efêmeras e sem valor percebido. Ainda que inseridos em rotas de passagem de carros e pessoas, compõem um cotidiano que não privilegia a observação sobre a cidade. No fluxo da vida moderna, não há espaço para a contemplação, andamos apressados e distraídos ao que nos rodeia, num típico comportamento blasé, conforme descrito por Simmel (2005), ao definir a postura de sujeitos quese tornam indiferentes ao cotidiano. Conforme o autor, o blasé é a renúncia à reação, uma incapacidade de reagir a novos estímulos com uma energia adequada. Não no sentido de que as coisas não são percebidas, mas que os sujeitos não sentem o significado e valor de tais coisas, são nulos. E esse fenômeno, Simmel (2005), considera ser incondicional à cidade: “Talvez não haja nenhum fenômeno anímico que seja reservado de modo tão incondicional à cidade grande como o caráter blasé.”(p. 581).

São Paulo lidera o ranking de cidade mais populosa do país, ultrapassando os 12 milhões de habitantese. Sua população foi crescendo a partir de intensos fl uxos migratórios que constituíram a cidade, desde a primeira metade do século XX, e a transformaram em uma potência econômica no país. Mas, foi a partir dos anos 80, que enfrentou um acentuado processo de urbanização que até hoje continua moldando drasticamente o espaço

da cidade. Essas intensas mudanças e constantes migrações fazem com que a cidade esteja sempre se renovando, agregando novos elementos em sua identidade, tornando-se esse “caldeirão cultural” de existências e histórias que provém de todos os lugares do globo. E nesse território abundante de expressão e disputas, onde o cotidiano acontece em máxima intensidade e tudo muda em velocidade superior ao que nossas percepções conseguem muitas vezes captar, muitos acontecimentos são normalizados pelo cotidiano e passam despercebidos, o que justifi caria esse caráter blasé apontado por Simmel. Como afi rma Campos(2010):

Circulamos pela cidade apressados, distraídos ao que nos rodeia, demasiado familiarizados com estímulos visuais e sonoros que entraram nas rotinas de nossos trajetos cotidianos. A familiaridade transmite-nos uma espécie de dormência, um resguardo natural à turbulência enunciativa (p. 210).

Com o processo de desenvolvimento da cidade, a presença de cartazes, outdoors, propagandas e demais elementos visuais intensifi cou-se nos prédios, ruas e avenidas de toda São Paulo. As pessoas já não apenas tornaram-se indiferentes ao cotidiano, como também esqueceram como era a cidade. No dia 1º de janeiro de 1997, durante a gestão do então prefeito, Gilberto Kassab, foi regulamentada a lei que passou a ordenar os elementos visuais que compõem a paisagem urbana da cidade de São Paulo. A Lei Cidade Limpa, cujo texto foi composto pela arquiteta e urbanista Regina Monteiro, apresentava uma série de diretrizes para padronizar informações básicas e limitar a presença de propagandas veiculadas em painéis, outdoors e fachadas de estabelecimentos públicos e privados.

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Até então, não existiam regras para o uso de material de divulgação e propagandas, o que promovia uma grande poluição visual. Conforme o texto de uma cartilhah distribuída na época, esses elementos feriam alguns direitos fundamentais de cidadania, como: “o direito de viver em uma cidade que respeita o espaço urbano, o patrimônio histórico e a integridade da arquitetura das edifi cações.” Com a Lei Cidade Limpa, passaram a ser consideradas irregulares as peças de propaganda em “ruas, parques, praças, postes, torres, viadutos, túneis, faixas acopladas à sinalização de trânsito, laterais de prédios sem janelas e topos de edifícios”.

Até hoje considerados uma grande inovação na forma de encarar os espaços públicos de uma cidade, os impactos da Lei Cidade Limpa foram reconhecidos pela população - ainda que não sem enfrentar algumas resistências durante o período de implementaçãoã. A lei é considerada um marco histórico para São Paulo e, desde o início, foi destaque em diversas discussões sobre humanização dos espaços urbanos, inclusive ganhando reconhecimento internacionala em premiações relacionadas ao urbanismo e cidades (LIMA, 2017).

Após dez anos da Cidade Limpa, muito se discute sobre a efi ciência dos órgãos administradores em controlar as propagandas em espaços públicos. No início de 2017, o prefeito em exercício, João Dória Jr., criou um novo programa que chamou de Cidade Linda. Segundo o texto do programam, o objetivo foi revitalizar a cidade e seus espaços públicos, contemplando serviços de limpeza, manutenção e conservação de praças e galerias, retirada de cartazes e faixas de postes e muros, além da limpeza de pichações. Porém, uma série de polêmicas envolveram o programa Cidade Linda desde o seu lançamento, que teve sua maior repercussão vinculada ao apagamento

e posterior pintura de painéis gigantes espalhados por São Paulo, com uma série de grafi tes feitos por artistas brasileiros e estrangeiros - projeto realizado pela gestão anterior. Os painéis, que formavam o maior mural de grafi te a céu aberto da América Latinan, foram cobertos com tinta cinza. A ação da prefeitura reacendeu uma discussão, sempre presente, sobre o que é a arte, para o que ela serve e onde ela merece ser exposta.

2.2 Arte de rua e intervenção

Percursos de uma cidade homogênea, cinza, são impossíveis de fi car na memória. Não geram ideias, questionamentos, imaginações. Não instigam as pessoas a pensar e desafi ar a sua imaginação. É, antes de tudo, uma forma de controle. Daí o aspecto de transgressão da arte de rua, pois é uma produção artística que acontece fora do espaço dos museus e que se insere nas dinâmicas do cotidiano, através de um diálogo com o meio. Escapa às defi nições, pois não se reduz a uma forma única, pelo contrário, é plural e aberta, nos convidando a participar de sua criação. Ela reinventa as formas dos espaços urbanos seguindo as características da paisagem, a altura dos prédios, os espaços das fachadas, as esquinas, as avenidas, etc., desafi ando as políticas urbanas para os espaços públicos nos cenários contemporâneos (ECKERT, 2016, p. 41).

As artes de rua são propostas que trazem o inusitado para o dia-a-dia e possuem, como característica marcante, a temporalidade. Não possuem um formato específi co, podendo incluir desde pinturas e colagens até instalações físicas, cujas propostas permeiam os campos da política, da crítica

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ou do entretenimento. Conforme Eckert (2016): “a arte de rua tem por propósito atuar sobre a alma dos habitantes das grandes cidades através de suas imagens e suas linguagens visuais, tornando seus territórios únicos, diferenciados.” (p. 41).

Uma forma comum de se referir à arte de rua são as intervenções urbanas. A origem do conceito de intervenções está ligada à segunda metade do século XX, momento em que a história da arte se amplia para incluir, também, formas de arte conceitual, como a performance, a instalação, o happening, entre outras atividades artísticas. Como apresenta Gonçalves (2010), esses novos conceitos se identifi cavam como uma arte de vanguarda, recusando as convenções tradicionais da arte, podendo ser poéticos, musicais, dramáticos, políticos, eróticos etc., mas que aconteciam num espaço de tempo e depois fi ndavam, ou seja, essencialmente efêmeros (p. 79).

Nesse contexto, intervenção pode ser entendida como elementos que produzem uma quebra de cotidiano, um corte da realidade com o inusitado que se oferece em um dado momento (BARBOSAet al., 2013, p. 50). As intervenções urbanas são formas que os sujeitos e grupos encontraram de interagir com os lugares, afi m de provocar estímulos ao receptor para uma refl exão sobre a cidade, seja pela indagação, surpresa ou admiração. Deve ser considerada como uma dimensão social presente nos espaços públicos e que ajuda a descrever e interpretar as dinâmicas do momento atual. Segundo Eckert (2016), os artistas urbanos produzem uma forma de os habitantes das grandes cidades interagirem com as possibilidades de explorar a cidade. Diz a autora:

Da mesma maneira, a arte urbana age como provocação da atitude “blasée” que adotamos quando nos deslocamos anônima e impessoalmente pelos espaços

das metrópoles, sob os efeitos da pretensa unidade de suas formas. Em termos de experiência subjetiva, fluir no espaço público deixando-se afetar pelas artes de rua faz do ato de deslocar-se pela cidade uma experiência de fruição estética, provocando reações naquele que caminha, retirando-o de seu contato corriqueiro com as formas da cidade, obrigando-o a atribuir sentido a espaços que antes lhe seriam indiferentes (p. 43).

Essas manifestações artísticas surgem de forma orgânica, autônoma e sem previsibilidade. Como afi rma Certeau (2014, p. 161), isso acontece, pois, a cidade não é um campo de operações programadas ou que conseguem ser premeditadas. Sobre as cidades, atuam forças com poderes que subsistem sobre o sistema de controle, agindo nos subterrâneos do coletivo popular. Para o autor, seriam poderes sem identidade e impossíveis de gerir. A esses “desafi adores”, Certeau chama “autoridades locais”, fi guras que o sistema quer eliminar por comprometerem a sua norma. Poderiam ser interpretados como focos de resistência que aparecem em momentos de racha do sistema, possibilitando que uma nova camada semântica apareça e traga um novo sentido para o instante do cotidiano. Habitam esse espaço os aventureiros, os inconformados, os corajosos. E trazem muitas vezes a denúncia, o protesto, o afrontamento, não necessariamente através de desenhos ou palavras, mas pelo simples fato de serem praticados. Expressões estéticas de uma arte que usa o mobiliário urbano como suporte de expressão. Como diz Campos (2010), são gestos de marcação de uma cidade ocupada e imaginada pelos seus habitantes.

O uso do espaço público, do muro como suporte à vontade do cidadão urbano, contornando imperativos legais e morais, encontra diferentes exemplos, histórica

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e geografi camente distantes. O traço transgressor descende de uma vontade desobediente, de uma provocação lançada aos poderes institucionais e às convenções sociais, de uma experimentação dos limiares, de um ensaio dos prazeres presentes no desvio (p. 199).

2.3 Entre muros e cartazes

A fuga às normas e ao controle das leis da cidade não dá conta de conter as ações de sujeitos que buscam transformar as ruas da própria cidade em que vivem, dos próprios percursos que fazem e da própria vida que levam, uma maneira de mostrarem que também existem. Essa interação com o meio fi ca bastante evidente quando observamos o grafi te e o pixo, que, entre as intervenções observadas, são as que apresentam maior intensidade e frequência. Fundem-se aos muros, prédios, viadutos e monumentos, tornando-se marcas da cidade. Diz Freitas (2014):

A arquitetura da cidade se abre ao discurso de diferentes agentes, possibilitando um tipo de participação no espaçopúblico. Retira-se das empresas publicitárias e do próprio Estado o monopólio da comunicação urbana. (p. 41).

O grafi te é considerado uma expressão quase institucionalizada da cidade de São Paulo. Sua história com a cidade remonta aos anos 70, época da ditadura militar no Brasil, quando uma pintura feita com estêncili fi cou bastante popular pelas ruas da capital. O movimento foi crescendo com infl uências do hip-hop americano incorporando outras referências e técnicas mais elaboradas (MONASTERIOS, 2011). Atualmente, o grafi te brasileiro possui um estilo bastante valorizado na arte urbana mundial, com representantes que fazem bastante sucesso no Brasil e no exterior. Com suas imagens pictóricas e estilizadas,

alcançou relativa aceitação social e sua estética já foi assimilada pela propaganda e pela moda.

Já o pixox é uma manifestação estética nascida na periferia da cidade de São Paulo, cujas principais características são as grafi as estilizadas com traços retos e angulosos. Aqueles que participam do movimento de pixação são capazes de identifi car um grupo ou os indivíduos presentes na prática, seu bairro e zona de origem, apenas a partir dos códigos representados no pixo. Esse tipo de expressão busca se mostrar visível no topo de prédios e equipamentos urbanos, e quanto mais arriscado e perigoso for o lugar da pixação, mais prestígio e valor recebem aqueles que o realizaram. Ainda que acabem se comunicando com a cidade, esses indivíduos querem comunicar-se, sobretudo, entre si (PEREIRA, 2005). Portanto, ao invés da chave da delinquência, é possível analisá-los pela transgressão, pois “há uma valorização desta ideia e de certa postura marginal” (PEREIRA, 2010, p. 15). Nesse sentido, a pixação, como arte urbana, vai além da sua concepção estética, pois sua motivação está em realizar proezas e enfrentar os maiores desafi os para conseguir um maior reconhecimento entre os colegas.

Além dessas práticas mais conhecidas e fáceis de identifi car, as ruas também dão espaço para outras formas de expressão, como o estêncil, técnica de aplicação de um desenho sobre uma superfície; adesivos, geralmente em tamanhos menores e colados em placas de sinalização; e cartazes, em formatos e propósitos variados que vão desde grafi smos e poesias até divulgação de festas independentes, procura de animais perdidos, apartamentos à venda, compra e venda de ouro, vagas em pensões, etc. Mas, entre todas essas intervenções, destaco um estilo em especial nessa disputa por atenção na cidade de São Paulo: os cartazes de amarração do amor. Apoiado

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na perspectiva de Certeau (2014), que afi rma que “o enfoque da cultura começa quando o homem ordinário se torna o narrador, quando defi ne o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento” (p. 61), busco nessas práticas subversivas do cotidiano os caminhos para identifi car seu potencial artístico e como conseguem, através de suas características próprias, signifi car o tempo presente. Nesse sentido, encontrar valor nos cartazes de amarração parte de um processo de subversão do olhar para a mesmice, para capturar os elementos despercebidos e, assim, promover refl exões sobre arte, cultura e sociedade. Ao fazer um recorte dentro desse universo, busco mostrar com sua estética e práticas de repetição, argumentos do que também poderia ser considerado como arte urbana, ainda que não intencional, mas do cotidiano.

3. Os cartazes de amarração como artes

do fazer

É impossível determinar a temporalidade de um cartaz exposto nas ruas. Essa indefi nição se torna ainda maior para os cartazes de amarração que usam, muitas vezes, os postes em vias públicas para se fi xarem. Pelo caráter essencialmente efêmero desses objetos, a importância do registro imediato foi fundamental para que eu conseguisse reunir material sufi ciente para uma análise. Em um ambiente de intensa transformação, como são os meios urbanos, era preciso registrar o fato no instante em que ele acontecesse: tirar uma foto na hora em que eu me deparasse com um cartaz de amarração. Portanto, a série de fotos que montei faz parte de uma documentação imagética pelas ruas da cidade de São Paulo. Os registros foram feitos de forma não ordenada, em avenidas de grande circulação

de carros e pessoas, locais em que mais comumente encontrei essas peças, utilizando como equipamento o meu próprio celular.

Apesar de não possuir os cartazes analisados, uso as fotografi as como um documento que atesta visualmente esse fato do cotidiano. Como afi rma Mauad (2005), a fotografi a, entre outros sentidos, opera como o vestígio de um real e, por isso, é considerada como um testemunho, um atestado da existência de uma realidade. Através dessas fotos, foi possível ir além da análise fragmentada de um único exemplo, para criar uma série que reúne cartazes que compartilham similaridades entre si e que se encaixam dentro de uma prática específi ca de concepção. O conceito de série empresto de Ana Maria Mauad que, ao estudar as fotografi as de revistas ilustradas do Rio de Janeiro, chegou ao conceito de série ou coleção, para falar de uma produção que não fi ca limitada a um simples exemplar. Diz a autora:

A noção de exemplo foi superada pela dinâmica da série que estabelece contatos diferenciados com distintos suportes da cultura material. Assim, a ideia da série extensa e homogênea foi tornada complexa pela noção de coleção, que rompe com a homogeneidade, demandando ao pesquisador uma metodologia que considere seu caráter polifônico, resultante do circuito social de produção, circulação e consumo de imagens (2005, p. 153).

Sendo assim, as fotos a seguir integram a série de 15 cartazes, fotografados entre os dias 3 de novembro de 2016 e 11 de outubro de 2017, espalhados por muros e postes de São Paulo oferecendo serviços de amarração do amor.

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Fonte: Elaborado pelo autor.

Realizar a documentação desses cartazes permitiu uma refl exão sobre as técnicas utilizadas, que variavam da escolha dos estilos a elementos gráfi cos, uso de palavras, disposição das informações, menção a elementos religiosos e, obviamente, o caráter mercadológico de um serviço que promete o amor. A partir dessas características estéticas e práticas, busco argumentos que aproximem esses cartazes de discussões artísticas e culturais, para entendê-los também como arte urbana.

Para compreender esse processo de signifi cação, busco referências na semiótica, que conforme afi rma Santaella (1983, p. 13): “é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, examina os modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como o de produção de signifi cação e de sentido.” Dentro dessa ciência, é mais especifi camente a semiose que vai estudar os processos de produção de signifi cados. Baseado nisso, faço uma análise sobre

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como os cartazes geram no receptor um entendimento, uma ideia, percepções ou lembranças. Independente da sua intenção, os cartazes geram uma comunicação, a qual gera diferentes signifi cados. Visto isso, busco a produção de sentido que a série apresentada acima permite empreender.

3.1 Aspectos visuais

Os “cartazes de amarração” são assim conhecidos por oferecerem um serviço que busca unir duas pessoas, no caso, amarrar. Essa união é prometida a partir de procedimentos espirituais e esotéricos que visam construir relações intensas e estáveis. Essa é a principal mensagem de um cartaz de amarração. No geral, esse tipo de cartaz se caracteriza pela simplicidade na impressão e no uso de materiais. Feitos geralmente em papel ou plástico, usam poucas cores, sendo sempre o branco combinado com outra cor primária. Para diferenciar as informações, usam letras grandes, todas maiúsculas, com pequenas variações entre os seus tamanhos. As palavras formam blocos de conteúdo que são complementados com elementos gráfi cos, como: corações, uma variedade de números de telefone com os logotipos das suas respectivas operadoras e, algumas vezes, até o valor de uma primeira consulta.

Buscando um conceito estético que possa se relacionar com esse tipo de cartaz feito a partir das ações do cotidiano, encontrei na poesia concreta algumas relações que aproximam esses estilos. A poesia concreta nasceu no Brasil na década de 50, período que marca um intenso processo de industrialização do país. Os concretistas questionavam a forma tradicional da poesia e usaram de um extenso experimentalismo

aliado à questão estética: romperam com o verso e substituíram por novas estruturas baseadas na disposição espacial das palavras e alinhamentos geométricos. Conforme mostra Gonçalves (2011), a poesia virou imagem com traços icônicos do texto, marcada por uma preocupação com os espaços e a apresentação rápida e direta das palavras (p. 91). Segundo a autora:

A poesia concreta foi o resumo de tudo o que o modernismo havia ensinado até então: coloquialismo, experimentação, trabalho em conjunto, interdisciplinaridade, o fi m das certezas, a mudança total na noção do que é obra de arte - ou poesia - o uso de tecnologia, a arte próxima da vida e a vida próxima da arte, o deslocamento do suporte e o uso de outras ferramentas e materiais, o nonsense (ou perda da racionalidade da sintaxe), a desintegração das formas (abstração), a quebra das regras no não uso de pontuação, entre muitos outros (p. 89).

Ainda que a poesia concreta tenha uma relação mais direta com a arte, buscou na quebra das tradições formais seu formato de elaboração. A experimentação e a liberdade marcaram esse movimento que abusou do jogo de palavras. Da mesma forma, vejo nos cartazes de amarração uma proposta visual para, em poucas palavras, passar sua mensagem, de forma a provocar aqueles que os encontram pelas ruas. Ainda que com poucas variações, é possível perceber como se repetem as práticas de criação e elaboração entre os elementos analisados na série, construindo um conjunto estético capaz de provar uma tendência de construção narrativa e visual. Esses elementos semióticos constituem mais do que peças de comunicação visual para passar uma mensagem de maneira efi ciente, também buscam despertar sensações, emoções e sentimentos.

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E como suporte para essas práticas, utilizam a própria cidade como moldura para suas ações. São as semelhanças que guardam com o grafi te e o pixo, onde cada um,à sua maneira, e servindo ao seu propósito, utilizam como plataforma básica para sua interação os muros, paredes, placas e postes, instrumentos para organização prática do espaço público que são ressignifi cados com essas intervenções. É uma arte que também está “amarrada” à cidade, está subordinada a ela. Existe dentro de um contexto urbano de escassez dos afetos, num diálogo constante entre intervenção e uso do espaço público.

3.2 Aspectos religiosos

Ainda que minha discussão não se apegue à validade e efi ciência concreta dos serviços oferecidos, um aspecto de fundamental importância que perpassa o imaginário relacionado a esses “serviços mágicos” são as religiões de herança africana, a saber, o candomblé e a umbanda. Conforme Prandi (2004), ambas são religiões mágicas:

Ambas pressupõem o conhecimento e o uso de forças sobrenaturais para intervenção neste mundo, o que privilegia o rito e valoriza o segredo iniciático. Além do sacerdócio religioso, a magia é quase que uma atividade profi ssional paralela de pais e mães-de-santo, voltada para uma clientela sem compromisso religioso (PRANDI, 2004 apud PIERUCCI, 2001, p. 228).

A disseminação da umbanda e candomblé por todo o Brasil tornou conhecido seus serviços mágicos que acabaram por atrair uma grande clientela, pois ofereciam também aos nã o-devotos a possibilidade de encontrar soluç ões para problemas nã o resolvidos por outros meios, sem exigir envolvimento contínuo com

a religiã o. Assim, rapidamente se popularizou o jogo de búzios e os ebós do candomblé, além das consultas a caboclo e pretos-velhos da umbanda (PRANDI, 2004). Ainda citando Prandi (2004):

A umbanda e o candomblé, cada qual a seu modo, são bastante valorizados no mercado de serviços mágicos e sempre foi grande a sua clientela, mas ambos enfrentam hoje a concorrência de incontáveis agências de serviços mágicos e esotéricos de todo tipo e origem, sem falar de outras religiões, que inclusive se apropriam de suas técnicas, sobretudo as oraculares (p. 229).

Essas “agências de serviços mágicos e esotéricos” citadas por Prandi não estão, portanto, vinculadas diretamente a algum terreiro ou conhecimento religioso, mesmo usando nos cartazes os elementos que referenciam os “trabalhos e simpatias” relacionados ao candomblé e à umbanda. Como por exemplo, a alusão a pais e mães-de-santo. Ao citar a pessoa que representa esse trabalho, aquela que teria o conhecimento para exercer a amarração, usa-se, geralmente, nomes compostos, sendo o primeiro sempre uma referência a alguma posição de superioridade, aquela fi gura detentora de um saber. A autoridade dessa fi gura é como um atestado da sua importância no processo, sendo mais comumente encontradas: Mãe, Pai, Dona, Vidente, Feiticeira ou até mesmo Deusa. O nome de Oxum também é usado, orixá cultuado no candomblé e na umbanda. Sua fi gura é uma das mais conhecidas na cultura popular e reverenciada como a deusa do amor, do dinheiro e da prosperidade. Além disso, divulgam jogos de búzios, tarô e artes divinatórias, também relacionadas a essas religiões.

Tenho plena convicção que existe uma sabedoria potente nos orixás e suas respectivas práticas. E acredito que aqueles que possuem tal mediunidade e

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praticam a religião com toda sua sabedoria buscam outras formas de comunicarem seus serviços. O que é possível afi rmar, é a existência de um desconhecimento geral sobre as religiões da cultura afro-brasileira, seus rituais e saberes ancestraisi. O que inclusive se reforça em um crescente preconceito religiosos que toma conta do país.

3.3 Viés de mercado

A economia capitalista exige a escassez como condição para a demanda. Partindo do princípio de que a percepção do amor na cidade passa pela escassez, os cartazes que dizem oferecer soluções para o amor se aproveitam dessa sensação da falta de afetos para promoverem seus serviços. Como afi rma Simmel (1903), “as cidades sempre foram o lugar da economia monetária.” (p. 578). É nas cidades que se encontra o ambiente adequado para a troca econômica. Como São Paulo não foge à regra, percebe-se aqui esse fenômeno, onde para tudo se encontra uma forma de rentabilização. E como estamos falando de amor, ele também acaba por se inserir nessas dinâmicas do mercado.

Se, conforme Certeau (2014, p. 163), as práticas do espaço tecem, com efeito, as condições determinantes da vida social, os cartazes de amarração mostram que o amor também passa a atuar nas lógicas do mercado: é possível pagar por mais esse serviço que a cidade oferece. Inclusive, com algumas conveniências, como a urgência no processo para realizar o serviço em até sete dias e diferentes números de telefone, de acordo com sua operadora de preferência. “Sob o signo da economia do dinheiro, tudo é transformado, até mesmo os sentimentos, o amor e a forma de vivenciar

as relações afetivas.” (RUSSO, 2011, p. 122). O amor, assim, se torna mais uma mercadoria.

Como reforça Russo (2011, p. 122), o amor é tido como um valor fundamental na sociedade e pensado como o elemento que caracteriza o que seria humano nas relações sociais. A busca por amor, seria assim, uma tentativa de resgatar a humanidade que nos escapa em meio às cidades. Segue a autora:

O amor, por sua vez, emerge como a grande solução de que dispomos para enfrentar o isolamento, o racionalismo, o egoísmo, a competitividade e o individualismo exacerbado experimentado na era moderna. Ele se confi gura como uma espécie de saída, a única coisa digna pela qual se pode e deve lutar (RUSSO, 2011, p. 124).

Dentro do seu caráter sagrado, o amor diz respeito à possibilidade de “unir pessoas eternamente, cujo interesse seria apenas estar e continuar juntas” (RUSSO, 2011, p. 129). Porém, diz a autora, em uma sociedade onde predominam relações monetárias, o amor acaba por adquirir características próprias. Inserido no contexto societário, o amor está a serviço apenas do indivíduo: ama-se mais vezes e, como resultado de um ideal de amor sagrado e romântico, o amor baseia-se na posse sobre o outro.

As expressões encontradas nos cartazes de amarração para referenciar o amor e os relacionamentos são curtas e diretas: pare de sofrer, união de casais, amarração infalível e defi nitiva, aos seus pés e afasta rival, funcionando como iscas em busca dos fragilizados de amor. Essa repetição da forma de lidar com o amor é a signifi cação de um serviço de amarração. É mostrar que é possível ter o outro sob seu domínio, inclusive com a garantia de sigilo absoluto. Os discursos impressos nos cartazes analisados colocam a relação amorosa também como

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uma relação de poder. Os relacionamentos entram em campos de disputa, quando o amor se vincula à fi gura de uma pessoa específi ca e, sem a qual, o sentimento não se realiza. Importante acrescentar que, não só de amor sofrem as pessoas, a oferta de soluções para outros problemas do cotidiano também é disponibilizada. Ainda que sem o mesmo destaque das questões amorosas, a diversidade de serviços também inclui saúde, negócios, vícios, depressão, entre outros.

4. Considerações fi nais

Os espaços urbanos, construídos e imaginados, atuam sobre os deslocamentos e comportamentos na cidade. Agem como forças de controle que regulam as práticas dos sujeitos no dia-a-dia. Mas, o cotidiano é impossível de prever e, nas fi ssuras desse sistema, surgem micropráticas subversivas que atuam de volta sobre esses espaços, como em uma contra-ação. E, conforme Certeau (2014, p. 61), são nessas práticas de subversão da ordem estabelecida, construídas a partir de ações diárias, que a cultura popular acontece. Seus resultados constroem narrativas que representam o contexto atual de uma época, sendo atestados indissociáveis do tempo presente.

As intervenções artísticas no meio urbano, com maior intensidade, o grafi te e o pixo, são exemplos dessa subversão por servirem, também, como forma de contestação, provocação ou denúncia. São elementos característicos dos meios urbanos e fazem parte das práticas de apropriação do espaço público, usando os próprios suportes arquitetônicos da cidade para construção de suas narrativas. Porém, alguns desses fazeres não estão vinculados a um saber

artístico ou à alguma análise que vá além do senso comum. Encontrar valor nos cartazes de amarração é também, portanto, “uma prática desviacionista” (CERTEAU, 2014, p. 85).

Esses cartazes atuam de forma quase imperceptível, se misturando às outras informações pela cidade. Seu campo de ação é a rua, e ali se espalham por diferentes vias. Ao agrupá-los em série, foi possível identifi car nesse conjunto de práticas aparentemente difusas, pontos de contato com outros fazeres artísticos da vida moderna e, assim, encontrar as formas de incluí-los também em um contexto de arte urbana.

Apoiado na perspectiva de Certeau (2014, p. 137), relaciono essa “arte de fazer” à produção artística em dois pontos: sua capacidade de fazer um conjunto novo a partir de um acordo preexistente, e a possibilidade de manter uma relação formal malgrado a variação dos elementos. Nesse sentido, com a repetição de palavras, termos e modos de organização, apresenta-se um modo entendido de criação desses cartazes. A partir dos esquemas do cotidiano, que se estruturam em operações e manipulações técnicas, esses modos de criação organizam a prática no momento em que são identifi cados e passam a ser copiados e reproduzidos. Suas características visuais e de discurso se repetem, como em um movimento de resistência e sobrevivência diário. Uma arte do fazer concebida do cotidiano, que se estrutura na falta de intenção, na aparente falta de estratégia, mas construída na prática e capaz de criar uma infl uência. E ainda que restrita pelas leis da cidade, ao modo como fi zeram com alguns grafi tes, pixos e outras práticas artísticas, que passaram a ser consideradas também como transgressões, continuam se inventando pelas ruas.

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Despido de seu valor religioso, visto que não obrigatoriamente estão relacionados a algum seguidor da umbanda ou candomblé, e desvendado seu caráter mercadológico, fruto da modernidade que sempre encontra mecanismos de estabelecer domínio monetário sobre todos os aspectos da vida social, encontro espaço para reconhecer os cartazes de amarração por seu valor artístico. E encontrar nessa expressão do cotidiano também o refl exo da sociedade atual, de um tempo em que a individuação dos sujeitos levou à negação dos afetos e, agora, negocia esse sentimento para resgatar um mínimo de humanidade, o amor.

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Figura 1:“Não falta amor falta amar”.

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