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Olhar sempre em frente. Para uma Filosofia da Cultura em J. Cerqueira Gonçalves

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(1)

Florilégio

Medieval

Itinerários Filosóficos com

JOAQUIM CERQUEIRA GONÇALVES

ANO LXII IN.o 215/216

(2)

ITI

ERARIUM

Revista Quadrimestral de Cultura

publicada pelos Franciscanos de Portugal

(3)

Diretor Vice-diretor Conselho de Redação Direção Redação Administração Revisão Edição Propriedade Registo ERC PO ISSN Depósito legal Tiragem

Gonçalo José Gomes Figueiredo Isidro Pereira Lamelas

António de Sousa Araújo João Duarte Lourenço Manuel Pereira Gonçalves

Bernardo Monteiro Fernandes Corrêa di Almeida José Maria da Silva Rosa

Américo José Pinheira Pereira Largo da Luz, 11 1600-498 LISBOA Tel.: 217140 515 Email: itinerarium@ofm.org.pt Website: http://itinerarium.ofm.org.pt Vitorino Costa Editorial Franciscana

Província Portuguesa da Ordem Franciscana 102580

0021-3209 212222 -111-58 550 exemplares

Toda a correspondência - pedidos de permuta, revistas em regime de pennuta, obras para recensão e colaboração solicitada - deve ser dirigida à Direção. Encomendas de números avulsos

e pagamentos de assinaturas devem ser dirigidos à Administração. ASSINATURA 2016

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Por tramferência bancária para o Nffi: 0007 0000 05467100130 23, enviando posterionnente o respetivo comprovativo para o email: itinerarium@ofm.org.pt

ITINERARIUM

Revista Quadrimestral de Cultura

publicada pelos Franciscanos de Portugal

Ano LXTI - Número 215/216 - maio - dezembro de 2016

ÍNDICE

Joaquim Cerqueira Gouçalves entre Colegas e Amigos Laudato sie, mi' Signore_ ..

Aires A. Nascimento

A Proposta Ética de Joaquim Cerqueira Gonçalves

António Braz Teixeira

Do amor ao dizer

Manuel J. do Canno Ferreira

Saber e sentir

Isabel Matos Dias

Um conceito denso>de teologia positiva

Maria Leonor L.O. Xavier

Cerqueira Gonçalves - o Professor

António Pedro Mesquita

Joaquim Cerqueira Gonçalves e a revista Philosophica

Adriana Veríssimo Serrão

Itinerarium, LXII (2016) 273 -752 289-307 309-318 319-322 323-330 331-340 341-345 347-349

(4)

Filosofia, Literatura e Cultura

Filosofia, Literatura e Linguagem em Cerqueira Gonçalves

Fernanda Henriques

Ajilosojia é literatura - Aproximações a Joaquim Cerqueira

Gonçalves

Manuel Cândido Pimentel

Cerqueira Gonçalves e O Nome da Rosa de Umberto Eco

Carlos João Correia

Considerações acerca do problema do sentido e da metáfora

José Miranda Justo

«Estamos aqui para falar.» Filosofia e literatura na encruzilhada das hwnanidades

Tomás N. Castro

«Olhar sempre em frente.» Para wna Filosofia da Cultura

em 1. Cerqueira Gonçalves

José Maria Silva Rosa

O valor da Cultura numa ontologia da diferença

Renato Epifânio

Diálogos com a Tradição Filosófica

Visões do Tempo em Gregório de Nissa e Agostinho - Algumas Leituras

Maria Cândida Pacheco

Um concreto universalizante: Agostinho na obra de Joaquim Cerqueira Gonçalves

Ana Rita Ferreira

Imagem e Vestígio Filipa Afonso 353-359 361-371 373-380 381-387 389-401 403-416 417-420 423-434 435-442 443-450

Os estudos do professor Joaquim Cerqueira Gonçalves sobre São Boaventura: o tema do 'Homem e Mundo'

Maria Manuela Brito Martins

Força e limites da inteligência humana uma reflexão de São Tomás de Aquino

Inês Bolinhas

Ética e Metafísica: Duns Escoto e Joaquim Cerqueira Gonçalves

Rita Teles

Presenças franciscanas no Curso Aristotélico Jesuíta Conimbricense.

Para wna cartografia do escotismo português moderno

Mário Santiago de Carvalho

Francisco d'Ollanda: a Reinvenção da Ideia

António Moreira Teixeira

Revisitando o argumento ontológico com Cerqueira Gonçalves

Mafalda Blane

Pobreza radical e economia do espírito - A pretexto

de Beati pau peres spiritu de Mestre Eckhart, Glosa extremada

sobre o carisma franciscano

Carlos H. do C. Silva

Ética e Filosofia da Vida

Vida e Mundo na Ontologia Cerqueiriana

Irene Borges Duarte

A "ética do cuidado" numa sociedade em crise do "projecto humano"

Maria Pereira Coutinho

O mistério da saúde e a arte da Medicina

Sofia Pereira Coutinho Reimão

451-469 471-478 479-484 485-497 499-512 513-521 523-545 549-562 563-578 579-589

(5)

Laudato Si' - Algumas implicações filosóficas

Cassiano Reimão

Em louvor da criar c Jtividade ética

António Campelo Amaral

Pensamento Ecológico

Joaquim Cerqueira Gonçalves - Um olhar ecológico sobre o mundo e a vida

Maria Luísa Ribeiro Ferreira

o

acto como ontopoiese ecológica

Américo Pereira

Questões de Metafisica em Ecologia: Joaquim Cerqueira Gonçalves

Francisco Corboz

Pressuposto para uma Filosofia do Ambiente, em Cerqueira Gonçalves

M. Patrão Neves

Ecologia e Natureza no pensamento de Joaquim Cerqueira Gonçalves: uma introdução

Viriato Soromenho-Marques

o

tema da paz em Joaquim Cerqueira Gonçalves

Pedro Calafate

Filosofia e Pedagogia

Rizoma, o solo e o horizonte da educação ou os desafios do pensamento pedagógico de Joaquim Cerqueira Gonçalves

Maria Teresa Santos

591-610 611-622 625-633 635-640 641-645 647-661 663-671 673-682 685-694

A Filosofia e o Ensino da Filosofia em Joaquim Cerqueira Gonçalves

António Rocha Martins

o

pensamento antropagógico de Joaquim Cerqueira Gonçalves

Manuel Ferreira Patricio

Joaquim Cerqueira Gonçalves entre os Irmãos Franciscanos Um modo franciscano de pensar: Cerqueira Gonçalves

Gonçalo Figueiredo

Filosofia, Teologia ou Colégio Seráfico

Manuel Pereira Gonçalves

695-706

707-715

719-730

(6)

«Olhar sempre em frente.»

Para uma Filosofia da Cultura

em J. Cerqueira Gonçalves

por

José Maria Silva Rosa (Universidade da Beira Interior)

Joaquim Cerqueira Gonçalves, ou simplesmente o Pe. Cerqueira, fez e

continua a fazer parte do patrimonium intelectual e espiritual de grande parte

de nós, universitários, que um dia fomos seus alunos, seus colegas, seus ami-gos ou companheiros. Mas apesar de estarmos neste espaço, uma Biblioteca universitária, e de a Universidade ter sido um dos vetores decisivos da sua ação e do seu pensamento, o Pe. Cerqueira jamais se quis confinado aos mu-ros da Escola, a qual construtivamente e a partir de dentro sempre criticou. Gostaríamos, antes de mais, de assinalar as fontes principais desta nossa reflexão-testemunho: em primeiro lugar, o convívio assíduo e próximo com o Pe. Cerqueira, durante vários anos, na Universidade Católica, tanto na situação de seu aluno corno, depois, em diversos trabalhos conjuntos; em segundo lugar, a releitura - e nalguns (poucos) casos a leitura pela primeira

vez - dos textos que compõem a Primeira Secção do volume I de

Itinerân-cias de Escrita, páginas 1 a 548'. Temos, pois, a vida e os textos. Ou melhor:

temos o texto da Vida e a vida dos textos, qual pericorese hermenêutica que enforma na raiz o peculiar estilo de pensar e de agir próprio do Pe. Cerqueira no seu afã de «construir mais mundo».

Devemos outrossim confessar que é naquela vida e nestes textos que se

inspira o título que demos ao nosso modesto contributo: «Olhar sempre para

afrente.» Um dia, ali no Caminho da Palma de Cima, não sabemos bemjá em

meio de que conversa em «estilo convivial», o Pe. Cerqueira confessava que uma das experiências mais marcantes e decisivas da sua vida e da sua visão do mundo se devia, em primeiro lugar, ainda em menino, à ação e coneção do seu Pai José (a sua Mãe chamava-se Rosa). Como todas as crianças, o "menino Quim" quando estava na missa, em Gaifar, gostava de se virar para trás de vez em quando para ver o que se passava. Ora contra o traquinas

J Joaquim Cerqueira Gonçalves, ltinerâncias de Escrita, vol. 1- Cultura e Linguagem, Lisboa,

IN-CM, 20 11 (daqui em diante apenas ltinerâncias ... ).

(7)

JOSÉ MARIA SILVA ROSA

reagia o Pai, virando-lhe a cabeça para diante e dizendo-lhe com firmeza:

«Olhar sempre para afrente!» O Pai não o poderia adivinhar, mas estava a

configurar na raiz a forma mentis e aforma vitae que viria depois a encontrar

na mundividência franciscana - muito especiahnente em São Francisco e em São Boaventura - o espaço da sua mais plena respiração e manifestação tanto no pensamento como na ação.

Poderiamos ainda mencionar outras ocasiões em que foi marcante esta sua atitude sempre prospetiva, por exemplo, nas aulas de Mestrado, aquando do

estudo da obra L 'Action, de M. Blondel, onde a palavra de ordem para cortar

todas as aporias da leitura e da nossa interpretação titubeante era sempre:

«Em frente!» Há ainda um outro momento determinante que não queremos

deixar de testemunhar. Numa das encruzilhadas complicadas da nossa vida, em que era necessário tomar decisões dificeis, a palavra do Pe. Cerqueira, quando lhe pedimos conselho, foi meridianamente clara, curta e concisa:

«Vá em frente, porque o que há é muito e bom!» Nunca lhe agradeceremos

suficientemente estas palavras, até porque nos recordamos de uma vez o Pe. Cerqueira confessar algures que uma das suas maiores alegrias era quando um preso conseguia fugir da prisão.

Enfim, o Pe. Cerqueira pertence àquele tipo de homens que - íamos a

dizer por natureza, mas justamente não é por natureza, já que esta é uma das

formas subtis de hipostasiação do passado e ontologização do acontecimento,

sem atender que a ideia de natureza é também ela construída

historicamen-te' - pertence àquele género de homens livres, dizíamos, que, por opção e

circunstâncias biográficas generosamente aceites, são como prospetores e

profetas (pró

+

fêmi), ou seja daqueles que avançam e lançam para diante

as palavras e a ação, performativamente, sem jamais se deixarem anexar por aporias pensantes, analepses estéreis ou lógicas tribais, sejam elas quais

fo-rem, bem ao contrário de uma certa forma mentis muito portuguesa, sempre

vigilante, a olhar para trás e para o lado.

1. Em busca de uma topografia simbólica para o peusar

Cremos ser sustentável afirmar que há geografias pessoais e cartografia íntimas, muito próprias do pensamento de cada um de nós. Não falamos, naturalmente, de localizações cerebrais ou de mapas neuronais, embora isso

2 Cf.ltinerâncias O", p. 83.

«OLHAR SEMPRE EM FRENTE." PARA UMA FILOSOFIA DA CULTURA EM J. CERQUEIRA GONÇALVES

405

esteja hoje na ordem do dia por via das neurociências, mas antes ao nível das estruturações simbólicas, línguísticas, filosóficas e culturais que configuram

a possibilidade do pensar, na sua génese. As noções de zénite e nadir, ou

seja, do que está no alto e do que está em baixo, tal como o estar àfrente ou

ficar atrás, o estar à direita e à esquerda, surgem-nos simbolicamente nos

mais antigos mitos que conhecemos e nas religiões que os assimilaram3, mas

é seguro que tais noções mergulham no mundo da vida, no nosso raizame

corpóreo e na necessidade originária de orientação primeva no espaço e no tempo, que depois se desenvolveram em cartografias culturais mais comple-xas (céu, inferno, pontos cardeais, rosa-dos-ventos, etc.). Tais noções, como também viram e descreveram historiadores das religiões como M. Eliade e

outros, antes de serem noções pensadas foram como que agulhas existenciais,

dimensões espaciais vividas, e correspondiam às necessidades de sobrevivência do caçador nómada e do recolector pré-histórico. Foram-se então constituindo como dimensões qualitativas, afetivas e imaginais, desde na noite dos tempos,

à medida que o homo erectus se ia erguendo lentamente, olhando mais longe,

desertando da animalidade segundo o processo de hominização, e construindo o mundo humano enquanto tal: santuários, calendários e linguagem para

or-ganizar e marcar o espaço (e o tempo). Nesta perspetiva, é possível sustentar

a afirmação de que a topologia do próprio pensamento, ao atribuir qualidades diferentes e mesmo opostas à mão direita e à mão esquerda, ao alto e ao baixo, ao estar à frente ou ao estar a atrás (como nas narrativas da mulher de Lot, de Orfeu, do lavrador que põe a mão ao arado e olha para trás, e assim por diante), traduz o enraizamento concreto da consciência humana no mundo, a

situação do homem no cosmos, conforme o conhecido título de Max Scheler.

Particularizando, e a propósito do modo de ser português, afirmava Miguel

Torga, em 24 de setembro de 1956, no seu Diário, certeiramente, embora de

um modo algo exclusivo e determinista: «Povo de almocreves da terra e do mar, de andarilhos, o nosso génio é todo geográfico. Aqui, ali, além, acolá,

atrás, à frente, ao lado, abaixo, acima, no meio, são como pegadas físicas

duma peregrinação que se orienta. Concretizamos o espaço que os outros abstraem. A nossa própria língua é um astrolábio de localização.»4

Naturalmente, os conteúdos destas topografias foram historicamente mudando, secularizando-se, mas, apesar da erosão simbólica provocada pela

, Cf., V.g., Mt 25, 33; Le 14, 8-10; Me 10,40, etc ..

(8)

406 JOSÉ MARIA SILVA ROSA

modernidade, quase só preocupada com o tempo, o futuro e o progresso, a gramática actancial permaneceu essencialmente a mesma. A brutalidade da queda das Torres Gêmeas, no dia 11 de setembro de 200 I, entre outras coisas, teve o condão de nos acordar para invejas e fascínios antiquíssimos, outrora ligados a gigantescos zigurates que os deuses, igualmente receosos, destruíam para que os humanos não lhes conquistassem os céus. Não é aqui o espaço para entrar em detalhes aprofundados e auscultar a abundância de pormenores presentes nos mitos, lendas e narrativas do Oriente e do

Oci-dente a esse propósito, mas são bem conhecidos, V.g., desde A Katábase de

Isthar ao Inferno, os símbolos do cordão que liga o céu a terra e o mundo

inferior', e suas inúmeras metamorfoses como axis mundi, árvore cósmica,

monte, pirâmide, escada, torre, farol, fuso da necessidade, porta do céu, etc., etc., numa profusão sem fim. Se tal desejo 'religioso' de ligação com as al-turas está atestado em praticamente todas as culal-turas, ele nunca se declinou de forma mais decadente como talvez na disputa em torno da construção da torre ou edifício mais alto do mundo, 'concurso' que passou pela Torre Eiffel, o Empire State Building, WTC, a Shangai Tower, ou o mais recente Burj Khalifa, no Dubai, entre dezenas de outros que foram sucessivamente erigidos e destronados desse novo Olimpo, qual novo Ida de onde um Zeus de vasto olhar contemplava as batalhas entre troianos e os aqueus, às portas da santa Ílion. Deuses e 'lugares altos' apenas mudaram de nome. Quem puder compreender. ..

Paralelamente a esse afã de construção exterior, a teologia, a filosofia, a literatura e a espiritualidade evidenciam à saciedade o mesmo desejo de

elevação, ascensão, mas também de descida e aprofundamento por dentro (de

que aquela ereção exterior seria talvez o símbolo). Recordemos apenas, em

frugal percurso, os fragmentos de Heraclito de Éfeso: «Procurei-me a mim

mesmo», «Os limites da alma nunca os encontrarás, mesmo percorrendo to-dos os seus caminhos, tão profundo logos ela tem», «O caminbo que sob e o caminho que desce: um e o mesmo» (DK, frags. 101,45,60), e o aforismo da

Tábua Esmeralda de Hermes Trismegisto: «O que está em baixo igual ao que

está em cima.» Este aprontamento sapiencial e oracular é depois retomado,

5 Isthar / Inanna era a Senhora do Céu, mas (passando pelos domínios intermédios de sua hostil

irmã, Ereskhigal) teve de descer aos iufemos, reino dos Annunaki, pedir de volta à vida o seu belo amante morto, Tammuz, deus da vegetação, "drama cerealífero" inúmeras vezes repetido, milhares de anos depois, que não apenas no famoso resgate de Prosérpina por sua mãe Deméter ("se o grão de trigo não cair na terra e marrer. .. " 1012,24).

<<OLHAR SEMPRE EM FRENTE.» PARA UMA FILOSOFIA DA CULTURA EM J. CERQUEIRA GONÇALVES

407

por exemplo, por Platão, da República, na proporção do «fio de ouro» (VI),

na catáhase e anábase da Alegoria da Caverna (VII), nos mitos escatológicos (X), que aparecem igualmente em outros diálogos platónicos.

Mas em Platão, como é sabido, a simbólica espacial exprime sobretudo uma complexa topografia dos lugares da alma, no seu processo de esque-cimento e de reminiscência. Nesse sentido, a alegórica espacial é posta ao serviço de um processo essencialmente mnemónico e temporal, onde os lugares escatológicos exprimem simultaneamente uma protologia, como é

evidente no Fedro ou no Timeu, onde Platão nos revela ainda a observação

do sacerdote egípcio a Sólon, referindo-se aos gregos como essas crianças,

apontado assim para uma sabedoria mais antiga e mais profunda que a dos gregos (mito da Atlântida), presente igualmente no mito das raças (ouro,

prata, bronze e ferr06

). Este processo, aliás, no qual escatologia e protologia

se permutam é bem conhecido, como nota G. Steiner no primeiro capítulo

da obra No Castelo do Barba Azul, ou ainda Carlos Mesters, em relação à

Bíblia, na sua obra Paraíso Terrestre: saudade ou esperança?

Mas ao contrário da mundividência bíblica (ressalvando talvez o evangelho de João), o pensamento grego é todo feito de saudade e nostalgia das origens e do princípio. No fundo, e relembrando aqui Werner Jaeger e as lições do Pe. Manuel Antunes, a consciência grega foi toda moldada por Homero, através de Ulisses, pelas figuras da saída e do retorno dela Ítaca, e Hesíodo na demanda de uma idade áurea. E no entender do Pe. Cerqueira, tal orientação

para um passado ideal e arquetípico foi tão forte que afetou não SÓ a teoria

do conhecimento (caso mais notável é a teoria da reminiscência e a teoria das ideias de Platão), como também a fisica, a metafisica e a lógica gregas (salvando-se quiçá a poiética aristotélica).

Mas onde podemos encontrar em ação, de modo exemplar, toda uma topografia simbólica do pensar (e do imaginar) é em Santo Agostinho,

espe-cialmente em Confissões, no livro X, para sermos mais precisos. Embora por

formação retórica (Cícero) e por influências filosóficas (Platão e Plotino), Agostinho seja um homem da memória, virado para trás, para as origens

(os primeiros nove livros de Confissões procuram responder, entre os anos

397-400, à pergunta «Quem fui?»), por influência da Bíblia, cuja leitura na juventude tanto lhe repugnara, acaba por se virar sobretudo para o futuro

(9)

408 JOsÉ MARIA SILVA ROSA

ja-se O escopo de A Cidade de Deus), razão talvez por que é um dos autores

favoritos do Pe. Cerqueira.

Mas Agostinho não se volta do passado (memoria) para o futuro (exspectatio;

os livros XI-XIII procurarão responder à pergunta «Quem serei?» I «Quem

seremos?») sem atender à profundidade do presente (attentio, intentio; «Quem sou?»). E é precisamente isso que faz no livro X de Confissões, cruzando magistralmente, nos «vastos palàcios da memória» e em todos os degraus por

que vai subindo I descendo na interioridade, quer a simbólica espacial quer

a temporal. A [ma topografia psíquica, realizada por Agostinho com todo o rigor fenomenológico, marca decisivamente os rmnos da espiritualidade e da filosofia ocidental. E basta lembrar aqui o De Diligendo Deo de Bernardo de Claraval, Las Moradas de Teresa de Ávila, Descartes ou a palavra final da

Quinta Meditação Cartesiana de Husserl.

Mas se por influxo bíblico, o pensamento agostiniano e medieval, no dizer do Pe. Cerqueira, é todo virado para a frente, para aquilo que ainda não se conhece, a verdade é que, também na Idade Média, as receções do passado

(translatio studiorum) geraram movimentos desencontrados. Podia dizê-lo

já Boécio. Mas que o diga Umberto Eco, em O Nome da Rosa, frente à

Poé-tica de Aristóteles, mediante os personagens de Guilherme de Baskerville:

a novidade, a experiência, a fina observação do real, o riso, o bom humor, a mudança, a alegria face ao porvir - e de Jorge de Burgos (que bem pode antecipar um Torquemada de Ávila): a cegueira e fixidez num (pretenso) passado, a seriedade absoluta - sim, porque Cristo nunca se riu! -, a cupidez moralista, a inveja, a violência de um paradoxal fogo gnóstico ...

O Pe. Cerqueira, insigne medievalista, está hoje entre nós como o outrora noviço Adso que, depois do incêndio da Biblioteca, recolheu tudo o que pôde em dois sacos de viagem e, depois, no futuro, «estudou tudo com amor» e no-lo transmitiu'. Se acreditamos, como diz P. Ricoeur, que se entra na simbólica

quando se tem a velhice atrás de nós e a infância à nossa frente ~ «Nous

entrons dans la symbolique lorsque naus avons notre mort derriere nous et

notre enfance devant nous.»8 ~ então podemos voltar a reler com outros olhos,

por exemplo, o opúsculo Em louvor da Vida e da Morte, um dos mais argu-tos e interessantes do Pe. Cerqueira para uma Teoria da Cultura (diria talvez

7 Cf. ltinerâncias ... , p. 28.

8 Paul Ricoeur, «Lc conflit des herméneutiques: épistemologie des interprétations}), ln: Cahiers iniernationaux de symbo/isme, 1 (1962), p. 184.

"OLHAR SEMPRE EM FRENTE.» PARA UMA FILOSOFIA DA CULTURA

EM J. CERQUEIRA GONÇALVES 409

que éo seu Itinerarium mentis in Deum) e onde a sua ontologia e apologia da «bIOdiversidade», lato sensu, está bem presente (dira mesmo, a antecipar a encíclica Laudato Si, já que ambos os textos bebem em fontes comuns).

E porque é um Franciscano leitor da Bíblia, cultor da Aliança, das muitas alianças, dos pactos, simbioses e do Reino cujo fermento está entre nós, a sua orientação é toda para o futuro e não para qualquer regresso ao Paraíso (mau grado o seu apreço pelo poeta Maranus). Por isso o Pe. Cerqueira jamais concluiria diluindo-se no «Nada» quase-eckhartiano do noviço Adso (qual eco do Eco, talvez): «Fundir-me-ei na treva divina, num silêncio mudo e numa união inefável e, nessa fusão, ( ... ) serão esquecidas todas as diferenças, estarei no fundamento simples, no deserto silencioso onde nunca existiram diferenças.»9 Porque em Deus também existem diferenças.

2. «Olhar sempre em frente!»

Para lá das razões biografáveis, e que não são descartáveis como insistia Unamuno em Dei sentimiento trágico de la vida, creio que o mais importante é compreender algumas das razões que levaram e levam o Pe. Cerqueira a virar-se decididamente sempre para a frente tanto no espaço (basta tentar andar com ele a pé), mas sobretudo no tempo, e procurar acompanhá-lo nessa intencionalidade; se recuamos, pois, é sempre para avançar. Mas é apenas debuxo muito incompleto que aqui desenhamos.

É omuípresente nos textos do Pe. Cerqueira a crítica à persistência das

instâncias míticas no pensamento ocidental 10. Há nos mitos um fascínio pelo

in il/o tem pore que desabou depois sobre todo o exercício da cultura, o que

se vê ainda na filosofia e na ciência, enfeitiçadas pelas noções de princípio, fundamento, genealogia, explicação regressiva, lei, unidade, etc .. Isto é, nesse sentimento de ter de justificar e dar conta de tudo, sempre às arrecuas. Quer na multiplicidade dos símbolos a demandarem um analogado primeiro, seja no projeto da epistême em busca da relação retrocedente entre efeito e causa, seja ainda na gesta das narrativas e das muitas palavras ditas e tornadas, o «era uma vez ... » tem o singular condão de acordar em nós lonjuras que parecem vir do fundo do tempo. E não é por acaso, mas por íntima solidariedade, que o logos prolongou o mythos na sua demanda de um princípio - arkhê para a

9 Cf.ltinerândas ... , p. 29.

(10)

410 JOSÉ MARIA SILVA ROSA

realidade. A cremos em J.-P. Vernant, tal necessidade de se voltar para trás e para baixo a fim encontrar um e único principio da realidade (lembremos

en passant Xenófanes de Cólofon e Parménides de Élia) teria tido razões

essencialmente políticas: os modelos monárquicos buscam um princípio unificador das mudanças (jónios e eleatas); os modelos oligárquicos buscam vários princípios para justificar a pluralidade (pluralismo de Empédocles e Anaxágoras); e os modelos democráticos fazer de cada um / cada átomo um princípio (atomistas). E não esqueçamos, enfim, a palavra de ordem com que Aristóteles termina a Metafisica L, 1076 a, 3-4: «Não é bom o governo de vários: que haja apenas um!» (oúk agathón polykoiraníe: eis koíranos éstôl / Non bonum pluralitas principatuum. Unus ergo príncepsl).

No ciclo de praticamente todo o pensamento grego (neste sentido a Odisseia

de Homero é bem diferente da Eneida de Virgílio, na latinidade) há, pois, como já se disse, um desejo da Unidade imemorial e uma angústia com dispersão

/ diaspeirô na temporalidade, ideia que podemos cartografar desde os mitos

homéricos até ao neoplatonismo agostiniano, passando pelos pré-socráticos (mau grado o riso de Demócrito face ao suposto choro de Heraclito diante do «fio que corre»), por Platão e Aristóteles, já que supostamente a lógica das essências universais (ousiai), a metafisica da substância primeira e dos acidentes

(prôtê ousia kai sumbebekoi) ou a política do chefe (Hégemon), acabam por

replicar o mesmo esquema em diferentes domínios. Deste modo, na releitura do Pe. Cerqueira, a temporalidade, a cultura e a angústia deram-se as mãos no mundo ocidental li , cunhando-lhe uma feição marcadamente soteriológica

e nostálgica, sempre à rebours. Uma crítica atual da cultura será, pois, uma critica ao fundo mítico, gnóstico e maniqueu que a habita, desonerando-a da quínquilharia obsoleta, do peso do in illo tempore e do fadário do já realizado, e reorientando-a assim mais para a frente, para o possível ainda não feitol2•

De uma metafisica da processão devemos transitar para uma metafisica

da criação 13 De acordo com esta, «o mundo criado passa a ser entendido,

II Cf. ltinerâncias ... , p. 33.

12 Embora não encontre nestes textos do Pe. Cerqueira nenhuma referência explícita à Segunda

Consideração Intempestiva de Nietzsche, !lá neles a este respeito passagens de sabor muito

"nietzs-cheano", mutatis mutandis.

13 Cf. ltinerâncias ... , pp. 85-86. A obra de Claude Tresmontant, La métaphysique du

christianis-me et la naissance de la philosophie chrétienne. Probleme de la création et de l'anthropologie

des origines à saint Augustin, Paris, Seuil, 1961, roi a este respeito uma obra inspiradora do próprio pensamento do Pe. Cerqueira.

«OLHAR SEMPRE EM FRENTE.» PARA UMA FILOSOFIA DA CULTURA EM J. CERQUEIRA GONÇALVES

411

positivamente, como realidade aberta, histórica, rumo a um horizonte futuro infinito; a matéria e o corpo são realidades com características positivas; valorizam-se as diferenças, sem, contudo perderem a sua radical unidade, na origem, na relação fraterna entre elas e no termo da história ( ... ).»14. Tal supõe uma diferenciada e positiva interpretação da temporalidade, mais no horizonte da expectação, da esperança e da exuberância ontológica I', que no da queda, do conflito e da luta (esta erigida em categoria quase transcendental da história'6), da degradação e da desolação. E «a grande referência para uma visão diferente, positiva, do tempo é a Bíblia.»17 Neste sentido, a Cultura é entendida como atividade de manter o mundo sempre aberto a todas as

suas possibilidades, sempre em estado nascente, em processo de unificação,

diferenciação e universalização IS. A universalidade não é, pois, «um ponto

de partida, mas um projeto, uma tarefa, a efetuar historicamente.»19 Temos deste modo, para o Pe. Cerqueira, um critério claro para diferenciar aquilo que é cultura do que é incultura. Uma época, uma obra, qualquer que seja, que se feche sobre si mesma, como em torre de marfim, perfecta, que já não interpele, que não nos leia hic et nunc, que não abra mais mundo é ipso facto

uma obra ínculta no sentido daquele closing of the american mind de Allan Bloom. «Anacrónica é a obra que não interpela e anacrónicos são todos os tempos que não se deixam ínterpelar.»20 E inculto é todo aquele que se cristaliza num saber regional, traindo-o portanto, e não se deixa interpelar pelo saber do outro. Esta é, aliás, a crítica maior do Pe. Cerqueira à Escola e à cultura: ter-se fechado em modelos epistemológicos e disciplínares não comunicantes (mesmo quando alardeiam a todo o momento os pomposos nomes de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, etc.). E os culpados são os cultores míopes dessas áreas científicas. Quando no horizonte de cada disciplína se oclui a abertura ao infinito que a realidade e o espírito humano visam, o resultado é sempre o estio lamento. Talvez só o regresso às Artes possa salvar uma Escola que mimetizou e mantém o obsoleto modelo fabril e

14 cr. Itinerâncias ... , p. 95. 15 Cf. ltinerâncias ... , p. 35.

16 cr. 1. C. Gonçalves, Em Louvor da vida e da morte, Lisboa, Colibri, 1998, p. 25.

17 Itinerâncias ... , p. 78. 18 Cf. ltinerâncias ... , p. 36. 19 cr. ltinerâncias ... , p. 85. 20 Cf. ltinerâncias ... , p. 12.

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412 JOsÉ MARIA SILVA ROSA

indnstrial. Esta é uma intuição de um texto temporão (Fazer Filosofia. Como

e onde?), mas que o Pe. Cerqueira nunca mais abandonou, retomando-a e

aprofundando-a em artigos mais recentes.

Importa notar, ademais, que aquele juízo crítico sobre o peso excessivo do

mítico in illo tempore só encontra a sua mais completa justificação e explicitação

no quadro da ontologia perfilhada pelo Pe. Cerqueira. Seria estulto tentar aqui determiná-la de forma cabal, dadas as suas ramíficações. Mas tentemos ao menos apresentar algumas das linhas mestras. Diriamos para começar que, em relação velho dilema do Uno e do Múltiplo, a orientação do Pe. Cerqueira só pode pender para o primado dos dinamismos de diferenciação do múltiplo e para o frémito de expressão e exuberáncia do ser", em vez de ficar exta-ticamente absorto no Uno. Porque para este livre discípulo de Escoto o ser

é Infinito, antes de ens sem per, semel et simul, causa sui, eterno, imutável,

perfeito, impassível, motor imóvel, pensamento do pensamento da Teologia aristotélica, ou o Uno plotiniano para lá do ser e da essência, e outras noções afins. Nesse sentido, não é a processão das hipóstases, nem mesmo a criação

desta natureza naturada como tal, mas antes a pericorese trinitária ad intra

e a livre criação ad extra que melhor figura o processo de interpelação, de

diferenciação e de unificação sempre em aberto pelo qual ele propugna22

,

longe de quaisquer tentações antropocêntricas. A não-oclusão da riqueza do

Ser Infinito nas expressões de ipsum esse, ou no esse per se subsistens, etc.,

permite-lhe também rejeitar a odisseia metafisica da natureza como exitus e

reductio ad unum tão forte naquele neoplatonismo que seduziu Agostinho,

Proclo, Dionísio, Eriúgena, e tantos outros na sua esteira, com conhecidas consequências no plano político (e pensamos que o seu muito subtil texto

sobre a infalibilidade pontifícia ainda se pode colocar na esteira dessa mesma

ontologia crítica, encontrando a vera infalibilidade noutras instâncias que não a de numa súbita iluminação da hierarquia eclesiástica simbolizada na tiara papal; nesse sentido, com certeza que o Pe. Cerqueira só pôde alegrar-se

perante as palavras do papa Francisco: «Quem sou eu para julgar?»). Por

outro lado, a sua ontologia desvincula Deus da necessidade da Natureza, da

substância e das essências, nomes metafisicos das antigas moira e anankê

míticas a que até as Erínias se submetiam. Naturalmente, não pretendemos levar o Pe. Cerqueira até onde não quer ou não pode ir, muito menos forçar

21 Cf. ltinerâncias ... , p. 24.

22 Cf. Itinerâncias .. " p. 81.

«OUIAR SEMPRE EM FRENTE.» PARA UMA FILOSOFIA DA CULTURA EM J. CERQUEIRA GONÇALVES

413

os textos a dizerem o que não dizem, mas temos de reafirmar que, face à

valorização ontológica que faz do modo de ser possível face aos modos do

ser necessário e do ser real, consideramos que, de algum modo, numa certa

ordem de fundamentação, ele subscreve(ria) por inteiro o verso extremo que

Álvaro Campos escreveu, antes de Heidegger: «Ser possível haver ser é maior

que todos os Deuses.»

Tal orientação ontológica leva-o a questionar na raiz uma ideia de

natu-reza que, sendo ela mesma historicamente constituída, acabou por se erigir

em cânone e modelo do que deve ser feito (no direito, na ética, na moral, na

ciência, etc .... ), restringindo assim a novidade e a liberdade criadoras e em ação. «Não há que empreender um regresso à natureza, mas, sim, um acesso ao ser, não com intenções de refUgio, mas de manifestação e desenvolvimen-tO.»23 Note-se: na noção filosófica de natureza, não apenas está presente a

ideia de destino (physis, natura, nascor: nascer para ser tal, para ser assim

e não de outro modo, etc.) e de repetição, como, do ponto de vista cultural,

um determinado entendimento dela num momento histórico (v.g., no

greco--romano ou no séc. XIX) orientou especialmente para o passado e para um

fondamento todos os seus ulteriores aprofundamentos. Conhecer seria, pois,

ir à origem, assistir ao nascimento. A teoria do conhecimento onera e confisca

totalmente a ontologia. O que, no entender do Pe. Cerqueira, salvou a cultura

antiga do fascínio pelo passado, do artificialismo retórico e do mimetismo mental em que ameaçava ruir, foi precisamente a referência transcendente oriunda do mundo bíblico (v.g., os comentários sobre os seis dias da criação,

Hexaemeron), determinando o ser como opus infieri. Foi isto que Agostinho,

um dos mais tentados, aliás, realizou integrando os dois amores que fizeram

e fazem A Cidade de Deus numa história aberta ao futuro (muito para lá da

queda do Império), à cultura e à escatologia; mas sem se precipitar apressa-damente para o termo, queimando etapas, como na gnose, nos milenarismos e nos anarquismos místicos24.

Assim, um (entre muitos) elogio que Cerqueira Gonçalves tece à Idade Média, por comparação com perfeccionismo da época clássica, é que aquela

temporalizou o que esta considerava definitivo25, orientação, afmal, que o

humanismo renascentista do regressus às humanitates não compreendeu nem

23 ltinerâncias ... , p. 84.

24 Cf. ltinerâncias ... , p. 38. 25 Cf.ltinerâncias ... , p. 71.

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414 JOsÉ MARIA SILVA ROSA

integrou em razão dos seus pruridos filológicos", nada sensíveis, por exemplo, à imensa riqueza e às muitas virtualidades do latim macarrónico. Mas «inten-cionalidade da cultura alimenta-se desse movimento inesgotável»27 e dessa transgressão criadora. Não para trás e para baixo, portanto, mas sempre para

afrente e para cima, conforme o (mão andes lá por fora» (noZiforas ire) e o

«das coisas inferiores para as coisas superiores (ab inferioribus ad superiora) de Santo Agostinho. A topografia do porvir para diante e para cima enrique-ce-se, assim, em contacto com o «apelo medieval em prol da infinitude, da diferença na comunidade e na razão vertical, que não repete horizontalmente o mesmo, mas, pelo contrário, demanda novas manifestações da realidade.»28 Nesse mesma linha, «deve-se à vivência e à especulação medievais a deter-minação e o desenvolvimento dessas novas categorias que passaram a ser vetores laicizados da cultura ocidental: a dinamicidade do real - uma nova ontologia -, a instância da pessoa - uma nova antropologia - e o movimento histórico.»29 Deste modo, para se poder sair do imenso «labirinto da cultura»30, «o grande horizonte ( ... ) é a esperança, o termo apropriado para substituir a angústia, essa epidémica peçonha que tem atravessado gerações.»3! Pois «a recusa de estabilizar nesta ou naquela expressão cultural, neste ou naquele estado humano, imprimirá ao mundo uma dinâmica que obviará a alienação do humano na cultura.»32 Até porque não há uma cultura única, mas antes

sempre culturas diversas33

; uma cultura que se pensasse como a única, tal

como aconteceu durante muito tempo com a cultura europeia34, acaba por se

fossilizar e toma-se fatahnente hegemónica, prisioneira de aporias internas

e finalmente violenta, capaz das maiores barbaridades35

• Reconhece-se neste 16 Cf.ltinerâncias ... , p. 90. 27 Cf. Itinerâncias ... , pp. 40-48. 28 Cf. Itinerâncias ... , pp. 88-93. 29 Cf.ltinerâncias ... , p. 96. 30 Cf. ltinerâncias ... , p. 13. ,lI Cf. Itinerâncias ... , p. 43. 32 Cf.ltinerâncias ... , p. 49. 33 Cf. ltinerâncias ... , p. 52. 34 Cf. ltinerâncias ... , pp. 62 c S8.

3S Vide a este propósito G. Steiner, No Castelo do Barba Azul. Alguma Notas para a redejinição

da Cultura, Lisboa, Relógio d'Água, 1992.

«OLHAR SEMPRE EM FRENTE.» PARA UMA FILOSOFIA DA CULTURA EM J. CERQUEIRA GONÇALVES

415

julgamento, naturalmente, a marca-de-água do franciscanismo quer bonaven-turiano quer escotista perfilhado pelo Pe. Cerqueira.

É ademais no horizonte desta revisão crítica quanto ao peso que o mito

tem sobre a cultura (hoje global, mais que ocidental) e ao modo como a noção de natura naturata impende sobre a compreensão do Ser que sempre se diz

de infinitos modos que se engastam todas outras críticas nas quais é visível a

mesma prevalência do futuro sobre o passado36, na mesma dinâmica do

sem-pre para a frente e para cima - o que é evidente até no seu falar ao telefone ou no estilo de andar a pé; além disso ele gaba-se ainda et pour cause de ter introduzido na Ordem a filosofia do selfservice... Enfim, não sabemos se o Pe. Cerqueira também foi alguma vez ecónomo da Comunidade. Pensamos que não, e que sofreria muito se tivesse de ser contabilista sempre a acertar as contas comido passado e com o dinheiro já gasto. Não porque não saiba fazer contas, até porque em alguns lugares foi chamado para acertar as dívidas de outros. Muito menos cremos que tivesse tido vocação para médico-legista dedicado a autopsiar cadáveres ... A invés, estamos em crer que teria sido um muito excelente neonatologista e pediatra. Uma das coisas mais fascinantes para quem pôde conviver com o Pe. Cerqueira é que, sendo ele um homem da palavra, é também e acima de tudo um homem de palavra: assume sempre responsabilidades e tira consequências concretas daquilo que diz.

* *

*

Terminamos com uma circunstância de gáudio na vida pessoal do Pe. Cerqueira, e que ele às vezes relembrava quando via os meus filhos e as preocupações da minha esposa, Isabel, para que eles não se sujassem (v.g., no quintal da Silva Carvalho). Quando estava em férias com familiares, em Gaifar (no Minho, perto de Viana do Castelo), o Pe. Cerqueira deliciava-se em surdina ao ver os seus sobrinhos a chapinhar na lama ou nas poças de água, para desespero higiénico da mãe, a sua sobrinha. Não sei se ele algu-ma vez também confessou, ou não, o que vou dizer: algu-mas eu ialgu-magino ainda este enfant terribZe a olhá-los de esguelha, muito desejoso de fazer o mesmo (quando era criança, uma das coisas que mais prazer lhe dava era correr,

sal-J6 Note-se bem: 1. Cerqueira Gonçalves valoriza e tem em muita conta o passado, como é

eviden-te num medievalista, não como passado, mas antes nas suas virtualidades e possibilidades. Neste

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416 JOSÉ MARIA SILVA ROSA

tar, voar sobre as sebes de verdura sem cuidar do que estava do outro lado) e a incitar os cachopos à sorrelfa, para que continuassem a mexer na água e se embolar-se ainda mais na lama. Sempre em frente, catraias! Estamos em

Galfar! (proponho até que introduzamos um novo verbo na ontologia do Pe.

Cerqueira: galfar, saltar sebes, abrir clareiras, criar mais mundo, partilhar, mediar, possibilitar, concretizar, transgredir criativamente; em suma, realizar a unificação, a diversificação e universalização). Enfim, o nosso Pe. Cerquei-ra leu com olhos Cerquei-radicalmente antignósticos e antirnaniqueus a narCerquei-rativa do

Génesis, onde um deus-jardineiro, deus-oleiro, deus-costureiro, etc., jamais ocioso, não tem pejo de se sujar no barro e de meter as mãos na massa. Por-que, pese embora a um certo Agostiuho, esta não é jamais massa damnata

nem massa perditionis, já que a experiência cristã não é em primeiro lugar

uma religião de redenção, mas de potenciação e de tornar ainda melhor o

que desde sempre já era muito bom.

I

o

valor da Cultura numa ontologia

da diferença

por

Renato Epiflinio

(Universidade do Porto, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira)

Uma das marcas maiores do pensamento filosófico contemporãneo, em particular no Ocidente, tem sido a erosão do conceito de humanidade. Para algum pensamento dito "pós-moderno", isso chega mesmo a ser um expresso desiderato - fazendo, pois, do conceito de humanidade um alvo a abater.

No universo mais alargado do discurso mediático, se não chega a haver esse expresso desiderato, nota-se, pelo menos, essa erosão do conceito de huma-nidade, como se já ninguém sentisse a motivação necessária para o defender.

Razões para tal, há decerto muitas. De forma expressa ou tácita, o conceito de humanidade foi-se tornando cada vez mais responsável, ou co-responsável, por um modelo civilizacional que também cada vez menos gente defende - o dito modelo civilizacional europeu e ocidental, alegadamente responsável por todos os males no mundo, nos mais diversos planos: social, económico, político e ecológico.

No plano político, de resto, é particularmente significativa a emergência de partidos ditos animalistas, que, mais do que defenderem os "direitos dos animais", se caracterizam por um discurso assumidamente "anti-especista", leia-se, anti-espécie humana. Como se, de facto, não existisse, ou não devesse existir, a espécie humana, como se, de facto, não existisse, ou não devesse existir, o conceito de humanidade.

Nalguns casos, chega-se mesmo a suspirar por um mundo sem humanidade, como se o planeta Terra fosse reahnente o paraíso celeste antes da emergência do humano. Essa visão angelical da natureza - substantivamente falsa e grossei-ra - articula-se, amiúde, com uma rejeição, mais ou menos assumida, de tudo aquilo que caracteriza a emergência do humano: a linguagem, o pensamento, a própria cultura. Como se a cultura fosse algo de "contra-natura", algo que só se pode afirmar contra a natureza. Como se o conceito de humanidade fosse, por si só, algo de negativo, senão mesmo um sinónimo de destruição.

Referências

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