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A ÉTICA DA VIDA. José Pedro Rodrigues Gonçalves Introdução

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A ÉTICA DA VIDA

José Pedro Rodrigues Gonçalves

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Somente podemos ser éticos em relação a algo que possamos ver, sentir, entender, amar, ou ter fé de algum modo. Aldo Leopold.

1. Introdução

O pensar uma bioética deve ser seguido de uma reflexão sobre o seu papel na sociedade contemporânea, onde os processos sociais se vêm esgarçados e sendo descontruídas as relações entre grupos de qualquer natureza. É nesse contexto que pretendo focar o meu olhar para uma bioética que não seja contemplativa, muito menos normativa.

Seria possível isso?

A resposta é sim, pois somos seres dotados de capacidade intelectiva e reflexiva o suficiente para rompermos fronteiras dogmática propostas por pensadores de outrora e nelas muitos de nós ficaram enraizados. Assim, a bioética enquanto campo do conhecimento despiu-se de sua práxis e permaneceu na contemplação e na discussão circunscrita a grupos de iniciados que acabaram por se constituir em castelos onde poucos podem ter acesso. Algo como uma escola iniciática onde só os escolhidos e eleitos podem ter acesso, o que contraria a sua razão de existir como campo de conhecimento científico, até porque defendo a ciência como o espaço de construção de conhecimento que deve ser socializado e se tornar conhecimento comum.

Ciência não é seita, nem religião; ela só existe e persiste para tornar melhor a vida da sociedade, mas como esse

“melhorar” poderá ser realizado se esse conhecimento foi

1 Médico Cardiologista, Sanitarista, Especialista em Saúde e Ambiente.

Mestre em Sociologia Política e Doutor em Ciências Humanas. Membro Fundador da Rede Bioética Brasil.

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concentrado nos guetos das academias e lá permanece com restrições ao seu acesso?

Assim, a ciência Bioética vê-se compelida a círculos hermetizados, resultantes da mesma percepção ideológica contida nas academias, o que vem a ser a negação da própria essência do que é Bioética, a ética da vida, não pertence apenas a grupos de interesse, mas conforma todos os seres e o meio ambiente.

Este modo de perceber a Bioética reafirma a percepção clara de Fritz Jahr

2

, o seu verdadeiro criador e que, por contingências, permaneceu esquecido, até porque no final da década e 1920, em 1927 para ser exato, Jahr não contava com os meios de divulgação que permitiram a Potter tornar-se conhecido internacionalmente como o criador do termo.

Vejamos o que afirma Hans Martin Sass:

Fritz Jahr ha sido llamado con razón el “Padre de la Bioética”. Fue él quien acuñó el término BIOÉTICA en un editorial publicado en 1927 en la destacada revista alemana de ciencias naturales

“Kosmos” y quien desarrolló luego en publicaciones de menor circulación su visión de un Imperativo Bioético universal. Resulta llamativo que una revista prestigiosa y reconocida, sólo comparable con la reputación de las actuales

“Nature” y “Science”, aceptara un artículo de un ignoto pastor protestante, que nunca había publicado antes, por el solo mérito de haber introducido un concepto innovador que

2 Paul Max Fritz Jahr (Halle, 18 de janeiro de 1895 - Halle, 1 de outubro de 1953) foi um teólogo alemão responsável por empregar, pela primeira vez, o termo Bioética, no ano de 1927, em seu clássico artigo na revista Kosmos intitulado "Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas". Por esta razão, é considerado como o precursor da bioética mundial.

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reemplazaba al formal Imperativo Categórico de Kant3.

Em respeita a verdade histórica, penso ser absolutamente justo e necessário resgatar a paternidade real do termo bioética, daí a minha enfática defesa desta verdade. Cumpre aos cultores da bioética, garantir, não apenas a verdade de sua real origem, mas também a sua aplicação objetiva, prática e de alcance geral, a difusão de seus princípios e para muito além disso, tendo por escopo a sua inserção em todas as dimensões da sociedade, especialmente no Brasil.

Nos últimos anos temos assistido, principalmente no Brasil, a um fenômeno de verdadeiro esgarçamento dos processos sociais, decorrentes dos embates ideológicos que se tornaram tão evidentes que margeiam o confronto físico, com resultados deletérios para a convivência entre pessoas com diferenças de qualquer natureza.

Ser diferente, atualmente, é ser passível de hostilidades, as piores possíveis, muitas vezes sujeitas à intervenções de agentes públicos.

O conflito medievalesco resultante de um alinhamento ideológico perverso e maniqueísta entre uma tal esquerda e seu contraponto direita, foi abstraído de qualquer racionalidade minimamente ética, o que tem exigido, na minha percepção, um repensar a bioética como espaço de discussão para além da academia e dos circuitos restritos aos iniciados. Mas para isso, exige-se que os “iniciados” da bioética devam afastar de si o mesmo cálice que contém o perverso veneno desse maniqueísmo já referido.

Certamente muitos iniciados bioéticos levantarão objeções às minhas reflexões, por certo argumentando que a bioética não pode ser intervencionista. Não é essa a minha

3 Aesthethika - International Journal on Subjectivity, Politics and the Arts - Revista Internacional sobre Subjetividad, Política y Arts. Vol. 6, (2), abril 2011, 20-33

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intenção, a de propor algo com o qual jamais concordei. O que proponho é espalhar os saberes da bioética para além de nossas fronteiras acadêmicas, tornando-os conhecimento de senso comum.

Apesar de ter vivido e convivido em ambientes acadêmicos por muitos anos, a minha convivência plena se deu, e continua plena, em vivências onde habitam os não iniciados nas sociedades de restrição. É nesses espaços onde o natural e o cultural se entregam em constantes encontros de onde emerge a convivencialidade que, segundo Ivan Illich

4

, “é a liberdade individual, realizada dentro do processo de produção, no seio de uma sociedade equipada com ferramentas eficazes". Para ele, convivencialidade é o inverso de produtividade industrial, o que representa a substituição de um valor técnico por um valor ético, um valor material por um valor adquirido.

É a aquisição destes valores que devemos buscar nas convivências no interior das comunidades, em uma troca extremamente rica, pois foi para isto que nos preparamos, lendo, estudando, discutindo, debatendo, trocando ideias e ideais. O contrário disto, o saber enclausurado em bibliotecas mentais, as nossas ‘bibliomentes’, só pode trazer algum resultado para consumo próprio ou para o espaço de nossa sociedade bioética.

Somos portadores da arma mais poderosa do mundo, e ao mesmo tempo a mais perigosa, a nossa mente. Com ela os seres humanos construíram equipamentos, medicamentos, habitações cada vez mais confortáveis, vacinas e muitas das maravilhas do mundo moderno. Entretanto, com essa mesma mente armaram o mundo, fabricaram bombas, fizeram guerras, disseminaram o ódio e ameaçam nos destruir com o poder bélico atual.

E a bioética? Em silêncio assiste a isso tudo cultuando saberes que se apresentam inócuos para a grande maioria das sociedades humanas. Apresenta-se como elemento fundamental

4 llich, Ivan. A Convivencialidade, 4116/2148 edição, Lisboa: Publicações Europa-América, 1976

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para a solução de conflitos éticos em espaços que não comportam a maioria da sociedade, restringe-se para o uso burocrático de aprovação ou negação de pesquisas científicas, como uma instância para sua realização ou não.

Antecipo, aqui, mais uma objeção que certamente virá às minhas reflexões. Os caminhos traçados pela bioética no encaminhamento de questões ligadas aos cuidados paliativos.

Como contraponto, devo dizer que o que proponho ampliará exponencialmente o espaço de ação das reflexões bioéticas quando alcançar os capilares e os interstícios dos espaços sociais na dimensão comunitária.

Insisto em romper os muros acadêmicos e nos mergulharmos onde o conhecimento científico deveria estar desde sempre, mas permanece retido, confinado nos campi, onde as portas de entradas são mínimas, dificultando o acesso das comunidades. Atenção, não estou me referindo exclusivamente aos espaços onde a pobreza sempre prevaleceu e que ficou conhecido com esse nome, mas também às comunidades escolares nos vários níveis que compõe as instâncias do processos de formação escolar no Brasil. Os sindicatos, as corporações militares, e onde mais houver grupos reunidos em comunidades específicas.

Também não faz sentido falar em bioética sem considera a sua manifestação mais evidente e que realmente garante as melhores condições de vida para todas as suas formas - a sustentabilidade. É a sustentabilidade, não em algumas dimensões particulares, mas na sua totalidade multidimensional, que deve ser o foco principal de qualquer manifestação e/ou ação/atitude bioética. Para isso é fundamental a difusão dos conhecimentos à respeito de uma bioética integral, que contemple todas as suas vertentes e respeitando suas especificidades regionais e locais.

Se observarmos com atenção é possível perceber

claramente uma vinculação ou afinidade epistemológica entre os

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componentes que devem ser equilibrados para garantir a sustentabilidade. Então vejamos:

O ambiente (oikos) é apropriado pelo homem com fonte e objeto de conhecimento, como material de construção do Universo e como locus de vida ou habitat. Os cenários assim decompostos são, esquematicamente, o ambiente natural, o construído e o ocupado – obviamente, superpostos.

Por isso interagem, interpenetram-se. Para efeito de análise, entretanto, podem ser expostos como constituindo o meio ecológico, o modo econômico e o mundo ecumênico. Em resumo, o homem trabalha-os, trabalha com e trabalha nos três oikos:

oikoslogos, oikosnomos e oikosmene5.

Ecologia deriva do grego oykos (casa, lugar de morada, lugar onde se vive) e logos que pode significar: “palavra", "fala"

e "discurso"; economia – do grego oikonomia, “administração de uma casa”, de oykos, “casa”, mais nomein, “gerenciar, colocar em ordem”, que por sua vez deriva de nomos, “lei, ordem, regra”. Podemos acrescentar, ainda outra palavra que faz parte dessa tríade fundamental para a sustentabilidade, é ecomenia

6

, conforme Mendes (2006), que é relativo à área terrestre que é habitada pelo homem; de âmbito geral, universal.

5 MENDES, Armando Dias. Breve itinerário dos ecossistemas à ecopoesia:

Achegas para o seu traçado. In: BURSZTYN, Marcel (org.). Para pensar o Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Brasiliense, 1993.

6 Ecologia, Economia, Ecomenia — há trinta anos, ainda não cunhara este precioso neologismo e trabalhava no livro com a categoria Homem. Mas era o mesmo, ou seja, no conjunto uma construção assente nas colunas da natura e nas colunas da cultura: A casa e suas raízes. (MENDES, 2006, p. 18). In:

FERNANDES, Danilo Araújo et al. Reflexões sobre a formação do pensamento desenvolvimentista na Amazônia: uma análise da trajetória e produção intelectual de Armando Dias Mendes. CADERNOS do DESENVOLVIMENTO, Rio de Janeiro, v. 10, n. 16, pp.75-93, jan.-jun.

2015

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Assim, para que a casa seja bem administrada e que possa ser habitada pelos humanos e por todas as formas de vida, é necessário que essas relações sejam pautadas por diretivas bioéticas, sem as quais não haveria ordem e o lugar não teria uma habitabilidade suficiente para uma vida saudável em um ambiente sustentável. É fundamental reiterar que para que haja sustentabilidade nenhuma forma de vida pode ser deixada de lado, pois só haverá a homeostase fundamental se isso for levado seriamente em consideração. Cada elemento vivo, desde os fungos, vírus, bactérias, algas, musgos, todos os vegetais, até os chamados animais superiores fazem parte dessa Teia da Vida, na qual somos apenas um componente, mais um nó dessa Rede, nada mais do que isso. Entretanto, é fundamental que consigamos compreender que todas essas formas de vida estão permanentemente em interação dinâmica, em busca de um equilíbrio dinâmico, a homeostase fundamental. Tomo como exemplo, o mais evidente deles, a perpétua movimentação das águas do mar que, contendo miríades de formas de vida, jamais quebra na praia em um mesmo limite, assim, cada onda que quebra tem o seu limite próprio.

É nesse vai e vem, nessa efervescência infinita que acontecem os encontros, os acoplamentos entre elementos díspares para possibilitar as trocas, os processos adaptativos que o acaso e a necessidade garantem a evolução, sempre de forma teleonômica.

Essa percepção necessita ser difundida ad infinitum para tentar permitir a compreensão desse fenômenos chamados

“vida” e que, penso, ser um dever da bioética.

Acredito que quanto maior for a difusão dos

conhecimentos da bioética, especialmente as suas práticas, o que

significa comportamento cotidiano, que deve ser demonstrado

pelo exemplo e não somente pelas palavras, algo que temos

deixado muito a desejar, maior será a incorporação por essas

comunidades, todas elas. Utopia? Que seja, não avançamos no

processo civilizatório sem uma utopia. À ela, pois!

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Este é o meu desiderato, talvez uma provocação ou um desafio. Escolha o que achar mais adequado.

Reflexões sobre a ética da vida

Quando se reflete sobre a ética da vida, é necessário considerar dois caminhos para a reflexão: o primeiro diz respeitos aos aspectos filosóficos que envolvem e permeiam qualquer abordagem sobre ética enquanto ciência da conduta.

Em um texto de Wittgenstein, ‘Conferência sobre ética’, o filósofo afirma que ética é uma investigação geral sobre tudo aquilo que é bom, valioso, aquilo que importa e, principalmente, sobre o significado da vida. Percebemos aqui, que muito além da conceituação clássica de ética, há muito mais sobre ela que, na maioria das vezes, nem conseguimos intuir. E é bom lembrar aqui que para Wittgenstein toda palavra é prenhe de significados, ou seja, pode dizer mais coisas do que acreditamos, notadamente conforme o lugar na frase ou no texto e no contexto em que a palavra está posta.

Com nossa formação cartesiana, a nossa estrutura mental tende a imaginar e aceitar que cada palavra tem um significado único, além do que tendemos a definir as coisas de uma forma definitiva, por isso, a palavra definição é sempre utilizada em vez de se usar a palavra noção, que pode abrigar muitos significados ou expansões do sentido original, pensado por nós.

A ética é uma dessas palavras que sempre tentamos encaixotar em algum espaço de nossa mente, mas quando revemos o que afirmou Wittgenstein, que a ética é uma investigação sobre o significado da vida, somos forçados a rever os nossos conceitos e buscar um entendimento mais abrangente do que seja ética.

Daí que, o nosso primeiro caminho de reflexão sobre

ética, precisa transpor os escaninhos de nossa mente construída

para as certezas, o que já nos diz de suas limitações.

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Ultrapassando essas fronteiras, podemos mergulhar fundo no significado da vida conforme Wittgenstein.

A ciência clássica, ou como na nomeação de Kuhn, ciência normal, nos apresenta uma vida como o resultado do funcionamento de órgãos que compõem sistemas orgânicos múltiplos, ou seja, uma vida pensada em um biologicismo puro.

Thomas Kuhn foi um pesquisador da Filosofia da Ciência que defendeu, em seu livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”

a necessidade de privilegiar, também, os aspectos psicológicos, sociológicos e históricos como relevantes para a fundamentação e a evolução da ciência. Esta abordagem possibilita a mudança de paradigma, algo essencial para o desenvolvimento do pensamento científico. À ciência que não leva em consideração estes aspectos, Kuhn denomina de ‘ciência normal’.

Pelo meu lado, deixo claro a minha recusa em aceitar a minha existência apenas como um amontoado de órgãos, células e tecidos que me garantem uma vitalidade de laboratório. Há muito mais em qualquer ser humano do que apenas o mínimo que a ciência já conseguiu descobrir e aprender. E respeitar essa vida plena para além do limiar biológico deve ser responsabilidade da bioética, a ética da vida, pois é dela que estamos falando, razão pela qual devemos expandir as nossas cogitações para além dos limites disciplinares de uma bioética acadêmica, quase puritana, e tentar desencobrir os véus que turvam a nossa compreensão do sentido maior do viver em sociedade.

O segundo caminho proposto é de uma praxiologia que nos permita traçar rumos de nossa ação cotidiana de modo a garantir uma sociedade que tenha como norma a paz e o respeito às alteridades de modo a alcançar uma sociabilidade plena, onde a convivência e inclusão sejam manifestas.

Entretanto, para caminharmos nessa direção é necessário

e imprescindível que deixemos a nossa zona de conforto onde

nos acomodamos em papeis quase burocráticos atinentes a um

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estudo, perseverantes as vezes, mas quase rotineiro de buscar teorias que se repetem com poucas variações.

Reitero a necessária incursão em novos caminhos que nos levem, como na música, onde o povo está, pois se a ética é a investigação sobre o significado da vida, segundo Wittgenstein, devemos buscar esse significado no lugar onde ela prevalece com muito mais vigor, no seio da sociedade, da comunidade, pois é lá que o natural e o cultural, algo que fundamentam o viver convivencial, se entrelaçam para compor o ethos de um povo.

Acredito que uma ética deva ser pensada e a conduta moral dela decorrente devem estar ancoradas no solo mesmo onde ela emerge como resultado do conviver permanente entre segmentos dispares da qualquer sociedade, não no enquadramento teórico proposto algures. Assim, haverá uma identidade entre a teoria filosófica e a sua práxis. É bom não esquecer que práxis pressupõe uma intenção, ou seja uma vontade advinda de uma necessidade, a de tornar melhor a convivência social de nosso lugar.

Há uma necessidade de novos caminhos que, penso eu, não estão nos manuais clássicos das bibliotecas, embora eles devam compor o nosso repertório de bibliografias necessárias e de apoio, entretanto há mais do que isso para se descobrir e aprender. Será olhando, perscrutando o nosso espaço de viver, onde poderemos encontrar esses novos caminhos, que deverão ser tracejados com precisão, paciência e obstinação até que possamos aprofundar esses primeiros traços em rotas precisas de uma nova bioética consentânea com o que somos e com o lugar onde vivemos.

Utopia? Devaneio? Sonho?

Sem romper as barreiras da mesmice, a mudança não

existe!

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2. Achegas para uma Bioética Global

O termo Bioética Global foi cunhado pelo mesmo autor que assumiu a paternidade do termo bioética, mesmo não sendo o pioneiro, provavelmente por perceber que a ética da vida não poderia permanecer enclausurada em um único campo do conhecimento, o saber médico sobre saúde/doença.

Quando a proposta é falar/discutir bioética, devemos considerar, antes de qualquer reflexão, o fato inquestionável que a vida, tema desta discussão ética, não pode ser confinada apenas no debate sobre doença, suas consequências e nas relações entre os profissionais da saúde e seus pacientes, termo que pessoalmente não tenho prazer em o utilizar em minhas reflexões, por trazer em si mesmo o sentido etimológico de

“aguentar, sofrer”.

Sabe-se que a doença considerada pela medicina, não tem uma origem determinística, inexorável, como imaginam alguns. Há que se considerar que, dependendo de cada contingência, de cada situação específica, o adoecimento será possível ou não, ainda mais quando os saberes oriundos das ciências humanas dão conta da multiplicidade de fatores intervenientes nos processos de adoecer.

Desse modo, pensar uma bioética global exige um romper fronteiras disciplinares para estabelecer vínculos epistemológicos com saberes de outros campos disciplinares, não apenas pensando uma interdisciplinaridade, mas, indo além, romper o que chamo de quadratura do círculo e produzir a emergência de um outro/novo saber que possa conter as bases epistemológicas das disciplinas de origem. Entretanto, essa emergência deve trazer em seu conteúdo o conjunto organizado de um novo saber que especifique claramente uma nova racionalidade.

Tomo como exemplo a ecologia, que traz em sua

composição, um conjunto de saberes: da geografia, da

economia, da botânica, da zoologia, da sociologia, hidrologia,

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da geologia e por aí vai, até compor esse novo campo da ciência denominada de ecologia.

Penso que ainda existem, muitos bioeticistas que delimitam seu campo de ação em um confinamento territorial em função da construção mental da cultura científica ocidental, ancorada no cartesianismo positivista que me permitiu afirmar que os óculos de Descartes não enxergam o arco íris, porque separam, dividem, cindem as suas cores em separações planejadas. Como resultado perdem as cores verde, resultante da fusão do azul e amarelo, bem como o laranja, pois o vermelho foi separado do amarelo, também. Isso só para ficar em um único exemplo.

Juntar saberes disciplinares, e disciplinados, para construir um saber maior, uno, mas que consiga refletir o conjunto de elementos necessários à uma civilidade realmente humana deve ser o papel de uma bioética global.

Além desta forma de perceber o estudo da bioética na direção de uma globalidade bioética, acredito ser fundamental nos desvencilharmos de nossa individualidade ensimesmada e buscar um entrelaçar de mãos e de braços em um abraço construtivo de uma convivencialidade que nos una e, ao menos, tentemos pensar no que muitos filósofos já ensinaram - só existo porque existe o outro que me reconhece como tal. Por esta razão, os indígenas da amazônia peruana, os Ashanincas e os seus irmãos da amazônia meridional brasileira, não utilizam o número um em sua aritmética porque, na cultura deles, o número um não tem muita importância, já que um indivíduo isolado não existe. Na crença e na cultura dos Ashanincas o ser humano indígena só existe por causa do outro que o torna real.

Embora pareçam selvagens, e são assim que muitos os

reconhecem, possuem uma cultura muito mais evoluída do que

a nossa, em termos de comportamento.

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Também, Humberto Maturana

7

em seu livro “A árvore do Conhecimento”, configura como amor o fato de se reconhecer o outro como legítimo outro em uma convivência.

Ou seja, a convivência é o fator essencial para uma condição realmente humana do ponto de vista bioético, algo que deveria/poderia ser uma realidade desde que pudéssemos difundir essa visão de mundo por meio de uma bioética realmente global, no sentido de totalizar os sentimentos e percepções na direção de uma convivencialidade real, mas sem obedecer a geografia, mas levando em conta as afinidades epistemológicas.

Para reforçar essa ideia de uma convivência interativa entre pessoas, busquei na filosofia japonesa da Escola de Kioto, Japão, apresentada por Santos

8

, citando Nishitani:

´´Ética” em japonês traduz-se pela palavra rinri.

Quando desmembrada, rin quer dizer amizade, isto é, relações humanas que descrevem o relacionamento entre um ser humano e outro, pois um ser humano não é concebido de uma negatividade, um não, como alguém sozinho, mas estando em relacionamento com outrem (cf.

Nishitani, 2006, p. 114, apud Santos).

Santos explica que a partícula ri se refere a forma como uma relação humana deveria ser, ou seja, que um relacionamento humano deve se estabelecer como algo sagrado. Dessa forma, a ética na cultura japonesa, a partir de ri, transforma as relações humanas em algo sagrado, uma conexão na qual a relação entre pessoas são realmente genuínas. E Santos enfatiza que, para que isso realmente ocorra, é necessário que, ao mesmo tempo, em ri

7 MATURANA, Humberto e Varela, Francisco. A árvore do conhecimento.

Campinas – SP: Editorial Psy II, 1995.

8 SANTOS, Eder Soares. Em busca de uma ética do cuidado à luz de Heidegger, Nishitani e Winnicott. In: LOPARIC, Zeljko (org.). Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW Editorial, 2013. p. 101.

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deve haver esta mútua relação sagrada a fim de nós nos tornarmos seres humanos genuínos.

Tomando o fato de que as relações humanas devem ser consideradas sagradas, também considerando que somos seres racionais capazes de tomar decisões conscientes e resultantes de reflexões, devo fazer uma indagação: o que falta para considerarmos as nossas relações como conexões sagradas com o outro? Certamente somos capazes dessas decisões, então o que nos falta para isso? Quais são os elementos impeditivos de nossas atitudes para que elas sejam consideradas, quando menos, respeitosas?

Para Nishitani (citado por Santos, 2013, p. 106), tornarmos seres humanos genuínos não é um problema apenas de cada indivíduo; para que isto aconteça

é necessário criar ou construir/formar para além de nós mesmos um ser humano genuíno por meio de nossas próprias capacidades e por meio de nossas atividades diárias.

É interessante o que Nishitani fala sobre esse construir/realizar. Afirma ele que

[...] nós realizamos ser um ser humano, não é apenas o caso de nós mesmos nos tornarmos assim, mas que também nós possibilitamos outras pessoas de se tornarem verdadeiramente humanos.

(

Santos, 2013, p. 106).

Essa ideia de possibilitar que outras pessoas também se

realizem ser seres humanos destaca a necessidade de um

compartilhamento real, algo que resulta de uma convivência, o

que é dificultada/impedida pela visão de um individualismo

acendrado em nossa sociedade, ainda refém de conflitos

ideológicos, exacerbados nas últimas décadas, fazendo com que

um certo maniqueísmo se acentue e nos mantenha divididos.

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Creio que uma das ações a serem assumidas no campo do debate por uma bioética global é tentar romper essa dicotomia do falso conflito ideológico esquerda/direita, algo que permeia, muitas vezes sem ser percebido, os espaços de atuação das correntes da bioética em nosso meio.

Essa divisão não está ausente em nosso meio. Aqui e ali é possível perceber, com um olhar imparcial, um dualismo muitas vezes disfarçado, mas presente a uma observação mais acurada.

Se há uma pretensão de se fundar uma bioética global, e aqui é necessário entender o que deve ser uma bioética global, devemos, antes, romper as barreiras ideológicas que nos movem, muitas vezes de forma antagônicas apenas por (in)compreensões hermenêuticas.

Penso que uma bioética global não deve ser entendida como uma bioética que homogeneíze as condutas morais universalmente, mas uma bioética que incorpore todas as vertentes do pensamento e de atributos que possam e devam estar contidos nesse campo do conhecimento. Não apenas aquilo que sempre pautou as condutas médicas, uma bioética centrada na prática médica, que sempre foi mais uma ética do médico do que uma ética da medicina.

Daí a oportunidade de resgatar e fazer justiça ao verdadeiro pai da bioética, Fritz Jahr, formulador do imperativo bioético em 1927,quando escreveu: “respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-o, se possível, como tal”.

Ao incluir em seu texto a noção de “todo ser vivo”, Jahr produziu a primeira e real noção de uma bioética global ao incorporar na mesma percepção todos os espectros de vida no planeta. Ao enfatizar o “respeita

9

”, explicita uma relação que deve ser pautada, especialmente pelo ser humano, o único ser

9 Do Latim RESPECTUS, particípio passado de RESPICERE, “olhar outra vez”, de RE-, “de novo”, mais SPECERE, “olhar”. A ideia é de que algo que merece um segundo olhar em geral merece respeito.

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vivo dotado de uma racionalidade e que tem condições de discernir pelo juízo próprio o que é certo do errado, o que é bom do que não é. Quando passamos a entender que o termo

‘respeitar’ implícita ontologicamente no fato de ter o mesmo sentido de ‘refletir’, que é pensar sobre aquilo que já foi pensado, ou seja, olhar outra vez sobre o mesmo fato, então poderemos, enfim, desfazer as incertezas que porventura tenhamos e obter com mais clareza a realidade do fato humano, a existência real do outro que faz parte de nossa própria existência.

Eis o primado de uma conduta moral, já proposta por Kant, entretanto desfocando o individualismo pontuado por ele, ao colocar o indivíduo humano como o responsável pela própria conduta, não mais a coletividade enquanto espaço de convivência compartilhada. Algo que foi apresentado por Nishitani, não só buscar o caminho para se tornar um ser humano genuíno, como também incentivar e partilhar com o outro esta mesma possibilidade.

A interrelação interativa entre todas as formas de vida do Planeta, é algo possível desde que se abstraia a presença humana, pois é sabido que existe um equilíbrio, uma homeostasia real no mundo natural, sem o ser humano. Então, se realmente somos os únicos seres do Planeta a portar uma racionalidade crítica, uma compreensão judiciosa das coisas da vida, ao menos teoricamente, por que nos transformamos no que somos? Os únicos estranhos na convivencialidade do espaço natural?

Em 2011, aconteceu uma Conferência em Rijeka, na Croácia visando divulgar o Imperativo Bioético e a futura Bioética Integral, tomando como tema básico e denominação da Conferência “Fritz Jahr e as raízes europeias da Bioética:

estabelecendo uma rede internacional de acadêmicos (Grupo EuroBio – N – Ética)”.

Nessa Conferência ficou decidido que esse Grupo, com

o qual incorporo meu modo de pensar a bioética, deseja ressaltar

o seguinte:

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1. A Bioética contemporânea tem estado frequentemente limitada a assuntos de consentimento de informação e responsabilidade em ética médica, enquanto o impacto dos princípios na ética, em geral, têm sido mínimos. 2.

É necessário que a Bioética seja substancialmente ampliada e transformada em seus aspectos conceituais e metodológicos, de tal forma que, possa considerar diferentes perspectivas culturais, científicas, filosóficas e éticas (por meio de uma abordagem de múltipla perspectiva), integrando tais aspectos dentro de um conhecimento de ação prática (como aproximação integral). 3. Tal Bioética Integral terá que harmonizar, respeitar e aprender com a riqueza plural própria das perspectivas individuais e coletivas da comunidade global.10 (grifo meu).

Também, pensando nessa mesma linha, uma harmonização entre os múltiplos sujeitos de uma relação social, Sloterdijk

11

propõe que essa relação seja de intimidade própria do que ele chama de ‘microesfera’, o espaço de vida de qualquer grupo humano. Enfatiza ele que essa relação deve ter uma interressonância, além de uma interpenetração e inter simbiose:

“os sujeitos que habitam a bolha só são sujeitos na medida em que se insuflam mutuamente de uma cossubjetividade”, o que pode ser interpretado como o compartilhamento da subjetividade, algo próximo do pensamento de Nishitani e Maturana. E Pitta enfatiza que:

10 Roa-Castellanos, Ricardo Andrés et al. Declaração Internacional de Rijeka (2011) sobre o Futuro da Bioética. In: Revista BIOETHIKOS - Centro Universitário São Camilo - 2011;5(3):291-301

11 PITTA, Maurício Fernando. Resenha: Esferas I: bolhas, de Peter Sloterdijk. In: Revista Natureza Humana, São Paulo, v. 19, n. 1, pp. 149-158, jan./jul. 2017.

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A crença religiosa na fusão mística e no encantamento fisiológico dos casos descritos por Sloterdijk revelavam o caráter relacional dos corpos humanos, e foram anulados pelo

“individualismo anatômico” que começou a surgir com o avanço da dissecação de cadáveres nos séculos XVI e XVII, indicando certa mudança de pensamento que passou a abdicar do caráter relacional originário do humano e que, em favor da autonomia do corpo individual passaria a embasar posturas sociológicas que concebem a “sociedade”

como uma massa de indivíduos só posteriormente e acidentalmente integrados.

O que esses autores estão afirmando é o que está contido nas obras de Edgar Morim, a inseparabilidade entre todas as formas de vida e a interconexão que existe entre elas:

A Terra não é a soma de um planeta físico, de uma biosfera e da humanidade. A Terra é a totalidade complexa físico-biológica-antropológica, onde a vida é uma emergência da história da vida terrestre. A relação do homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista, nem de forma disjuntiva. A humanidade é uma entidade planetária e biosférica12.

Penso que esta percepção de Morin, que tem a mesma fundamentação teórica proposta por Jahr, deve ser a matriz epistemológica a nortear uma bioética global, não no sentido de incorporar todos os povos do mundo, mas de conter, isso sim, todas as nuances, perspectivas e elementos essenciais para uma bioética integral, como orientou a Declaração Internacional de Rijeka.

12 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

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É fundamental que se tenha em mente que a bioética enquanto campo do conhecimento, deve ser entendida como um conjunto de bioéticas particulares, mas sem jamais poder ser observada como um campo disjuntivo, mas uma unidade composta por epistemologias particulares que dão conta de fazer conhecer parcelas desse saber totalizador do campo das condutas morais, chamada bioética, ou para reforçar, Bioética Integral ou Global.

Chamo atenção para o pensamento de Francesc Torralba quando apresenta em um artigo publicado na Revista Iberoamericana de Bioética

13

que:

Muito além das denominações (ecoética, tecnoética, ética da biotecnologia. ética ambiental, geoética ...), qualquer debate ético que tenha como epicentro a vida em qualquer de suas formas, pode ser considerada, em sentido pleno, um debate de natureza bioética. (Grifo meu).

Partindo desta ideia tão ampla, que vincula o conceito de bioética com o significado que este termo adquiriu em sua origem, iremos apresentar, a seguir, alguns pontos temáticos, em forma de esquema, que inclui tanto aspectos globais como locais, assistenciais como ecológicos, porém todos eles tem o cuidado como foco de reflexão, a gestão e a administração da vida, em qualquer de suas formas, desde a unicelular até a complexidade inerente à vida humana. (Tradução minha).

Reiterando o que afirma Torralba, que o cuidado deve ter como foco de reflexão “a gestão e a administração da vida, em qualquer de suas formas, desde a unicelular até a complexidade

13 TORALBA, Francesc. GRANDES DESAFIOS DA BIOÉTICA. Cenários futuros. In Revista Iberoamericana de Bioética / nº 01 / 01-12 [2016] [ISSN 000-000] DOI: 10.14422/rib.i01.y2016.002. Disponível em:

http://www.redebioeticabrasil.com.br/artigos-cientificos/.

(20)

inerente à vida humana”, assertiva compatível com o pensamento de Jahr, o que deixa muito claro que ele deve ser resgatado como o verdadeiro criador da bioética enquanto campo de conhecimento em defesa da vida em sua plenitude.

Quando assumo o pensamento de Torralba, por afirmar que “muito além das denominações”, indico que o debate deve ter como epicentro a vida e chamo atenção para a necessidade de rever o pensamento de Morin

14

(2005, p. 25), especialmente sua afirmação sobre a pulverização do conhecimento:

Em todos os campos, o desenvolvimento das especializações e dos compartimentos burocráticos tendem a encerrar os indivíduos num domínio de competência parcial e fechado, de onde deriva a fragmentação da diluição da responsabilidade e da solidariedade ...

Se estamos na busca de uma bioética global, devemos, antes, ter com muita clareza que bioética é essa que estamos buscando.

3. Objeções à Bioética Global de Potter

15

Para Potter (2018, p. 161), a bioética pode ser

“compreendida como uma bioética global, que inclui não só a bioética médica, mas também a bioética ecológica, e tem como núcleo os conceitos gêmeos de “saúde pessoal” e a ética da terra de Leopold”. Então vejamos o que diz Leopold

16

sobre a ética da terra:

14 MORIN, Edgar. O Método 6. Ética. Porto Alegre: Sulina, 2005.

15 POTTER, Van Renssellaer. Bioética Global. São Paulo: Edições Loyola, 2018.

16 LEOPOLD, Aldo. Almanaque de um condado arenoso e alguns ensaios sobre outros lugares. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.

(21)

A evolução de uma ética da terra é um processo tanto intelectual como emocional. A conservação é pavimentada com boas intenções que provam ser fúteis, ou mesmo perigosas, porque são desprovidas da compreensão crítica, quer seja da terra, quer seja de seu uso econômico. Penso que seja uma verdade incontestável o ato de que, à medida que as fronteiras éticas avançar do indivíduo para a comunidade, seu conteúdo intelectual aumentará. (LEOPOLD, 2019, p. 246).

A ética da terra, para Leopold, tem como apoio a premissa de que o indivíduo é membro de uma comunidade com segmentos interdependentes, o que os leva a competir por um lugar nessa comunidade, mas, e enfatiza Leopold, “sua ética o leva também a cooperar”. (LEOPOLD, 2019, p. 226). Neste ponto, Leopold se aproxima de Fritz Jahr, ao explicitar que a ética da terra amplia as fronteiras da comunidade para incluir solos, água, plantas e animais ou, coletivamente, a terra.

Uma ética da terra, naturalmente, não pode evitar a alteração, o manejo e o uso desses “recursos”, mas certamente afirma o seu direito à existência contínua e, pelo menos em algumas áreas, a sua existência contínua em um estado natural.

(LEOPOLD, 2019, p. 226).

Leopold afirma que a percepção que a sociedade humana tem sobre a terra, é que ela é um “recurso” e que é de propriedade de alguém. Quase nunca é percebida, entendida, aceita, como uma dimensão do mundo natural da qual fazemos parte igualmente, sem prevalência desta ou daquela forma de vida, muito menos de uma espécie sobre as demais.

Ao que se percebe, não há uma semelhança entre o

conceito de saúde pessoal de Potter e a concepção de uma ética

da terra de Leopold, cuja proposta é o abandono do indivíduo

(22)

em direção a comunidade, logo, um direcionamento para o coletivo.

Quando Potter tenta decodificar o conceito de saúde, ele a entende como uma base para a bioética global, sendo “um fim admirável em si”. E completa que se “amplamente aceito, muitas outras decisões se seguirão com mais facilidade” (POTTER, 2018, p. 162).

Enfatiza que uma “’ética de saúde’ deve ser aceitável para todos os segmentos religiosos e que nenhuma nação [...]

jamais viu a desnutrição, as parasitoses ou qualquer outra doença como uma meta desejável”. O que deixa de ser novidade sob qualquer ótica.

Ao tentar promover uma junção entre a bioética médica e a proposta de Leopold de uma ética da terra, ele apenas está tentando resgatar, como sua, a proposta pioneira de Fritz Jahr, algo que o próprio imperativo bioético já trazia implícita a necessidade de uma ética que contemplasse todas as formas de vida, o que por si só já incorpora esta ética da terra de Leopold na medida em que o indivíduo é substituído pelo coletivo composto por todas as formas de vida, não apenas por uma pessoa.

Na página 163, Potter comenta uma proposta de

Engelhardt para o futuro da bioética médica sob a rubrica de

bioética, “mas exclui qualquer menção a existência de outro tipo

de bioética”. Pode ser que para Potter, existam tantas bioéticas

quanto for a capacidade de as criar. Esse fracionamento de

qualquer ciência e/ou disciplina é a continuação de

cartesianismo que tenta se perpetuar no ocidente, pois é sabido

que há uma necessidade evidente de um retorno à perceber as

coisas sob uma ótica que possa compreender o todo como todo

e não a partir de uma parcela dele. Por isso defendo a ideia de

uma bioética integral, em rede, onde cada um dos nós que

compõem essa rede, possa abordar a especificidade de uma

determinada epistemologia ou realidade, sem, entretanto, perder

a ligação primordial com a bioética integral, fonte de variações

(23)

possíveis e necessárias de acordo com a necessidade de cada lugar, tempo, cultura ou crenças.

O que Potter propõe é algo que vem sendo contestado por muitos pensadores, principalmente por Edgar Morin, quando critica a pulverização do conhecimento, dificultando e até mesmo impedindo a compreensão do fenômeno na sua totalidade.

Essa tem sido a, cada vez mais difundida, teoria da complexidade, o pensamento complexo, demonstrado por Morin

17

e seus seguidores. Além disso, a transdisciplinaridade, base epistemológica do pensamento complexo, busca trazer para a superfície aquilo que são emergências, isto é, o que resulta enquanto um novo saber, da fusão das várias disciplinas em um só conhecimento que traz implícito o que importa dessa fusão.

Em seu livro Manifesto da Transdisciplinaridade, Basarab Nicolescu

18

apresenta a ideia de transdisciplinaridade como um conceito utilizado pela educação, que percebe o conhecimento de um modo plural, contrapondo-se aos métodos disciplinares, o que possibilita uma abertura maior do pensamento.

Ao romper as fronteiras entre uma disciplina e outra, a transdisciplinaridade atravessa os limites entre elas para alcançar um conhecimento mais holístico, transversal, criando condições para sua contextualização.

Assim, ao estudar o corpo humano, por exemplo, a abordagem não será focado no biologicismo, mas incorporará outros campos do conhecimento, como a sociologia, antropologia, química etc. Para isso exige um pensamento organizador, que é o pensamento complexo, que é uma forma de pensar diferente e que rompe com o cartesianismo.

17 Ver: MORIN, Edgar. A Religação dos Saberes. O desafio do Século XXI.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

18 NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo:

TRIOM, 1999.

(24)

Por essa razão, fracionar a bioética em pequenos núcleos de bioética, de dimensões específicas, desconectados de seu núcleo matriz, não irá melhorar de modo algum a compreensão, muito menos a concepção de uma bioética global. Penso que devemos pensar uma bioética integral estruturada como uma rede, onde todos os segmentos estejam articulados, mas podendo e devendo adotar caminhos epistemológicos específicos, sem, entretanto, perder contato com a estrutura da unidade ‘bioética integral’.

Potter se diz ocupado com o conceito de saúde e está convencido que a adaptação fisiológica em combinação com a genética molecular reducionista é a chave para entender saúde e doença (POTTER, 2018, p. 164). Daí ele gostaria de desenvolver um novo conceito de saúde humana que ele denomina de saúde pessoal. Enfatiza ele:

Proponha chamá-la de saúde pessoal, ou seja, a saúde que é a propriedade de uma pessoa senciente, responsável e cognitiva, que mantém ou melhora ativamente sua condição mental e física.

Nesse sentido, um bebê recém-nascido não tem saúde pessoal. Sua saúde é responsabilidade de seus pais. Pode-se dizer que o bebê tem saúde ou é saudável, mas não que ele tenha saúde pessoal.

A saúde pessoal potteriana, centrada exclusivamente no ser humano, cria um novo antropocentrismo, algo já totalmente superado. Vejamos o que diz a Encyclopaedia Herder sobre o tema:

A partir de uma perspectiva exagerada, o antropocentrismo é uma tendência que considera o ser humano como o centro do universo e, este, como um instrumento destinado à realização dos próprios fins. O ser humano aparece, portanto, como o ser privilegiado com base no qual todas as

(25)

coisas teriam sido criadas. Essa concepção geralmente está ligada ao antropomorfismo.

Como predisposição mais ou menos inconsciente, o antropocentrismo condiciona a imagem do mundo e surge como obstáculo epistemológico a ser superado. Freud assinala (em Uma dificuldade da Psicanálise) que a história da ciência "humilhou o narcisismo humano em três ocasiões": primeiro, com o sistema copernicano, que destronou o homem como centro do universo; mais tarde, com o darwinismo, que privou a humanidade de seu caráter privilegiado em relação a outras espécies animais; enfim, com a mesma psicanálise, que, partindo da teoria do inconsciente, mostrou que «o eu não é dono de sua própria casa”19. (Tradução minha).

É importante relembrar o pensamento de Monod

20

(2006, p. 28) quando aborda os seres vivos:

Diremos que estes se distinguem de todas as outras estruturas de todos os sistemas presentes no universo, por esta propriedade que chamaremos de teleonomia.

No entanto, observaremos que esta condição, se é necessária à definição dos seres vivos, não é suficiente, pois não propõe critérios objetivos que possibilitariam distinguir os próprios seres vivos dos artefatos, produtos de sua atividade.

Penso que o que Monod afirma, é a capacidade que todas as formas de vida, desde as mais simples até as mais complexas como as humanas, são capazes de rever as suas trajetórias em

19 Antropocentrismo: Disponível em: Antropocentrismo - Encyclopaedia Herder (herdereditorial.com)

20 MONOD, Jacques. O Acaso e a Necessidade. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

(26)

função de uma necessidade ontológica de garantir a própria sobrevivência, mesmo em condições adversas, por isso conseguem mudar o seu rumo em função desta capacidade ou propriedade teleonômica, o que vem a ser o processo adaptativo.

As várias mutações do novo coronavírus, é um exemplo terrivelmente claro, que mostra a busca de sobrevivência do vírus aos ambientes que se tornam hostis a sua sobrevivência.

Diante disso, penso que uma concepção de saúde não pode se restringir a uma ideia proveniente de considerações que individualizam e pessoalizam os humanos, já que é evidente a existência de uma interação que vai muito além dos limites de um corpo humano pessoalizado, identificado como ‘esta pessoa’. Isso não faz parte do pensamento tradicional da filosofia, algo que a Aristóteles já afirmava, que o homem é um ser gregário que precisa dos outros e das coisas, o que afasta a pretensa ideia de uma individualização, ou atomização, da condição humana.

Penso que a concepção de saúde, ou algo que possa ser apresentada como uma definição, acaba por negar a sua existência, pois a palavra definir é entendida como uma determinação de limites, a demarcação de um território, o estabelecimento de uma fronteira. Mas, como fazer isso se a noção de saúde, na minha percepção é um constructo, algo que é um eterno vir-a-ser, pois se o ser humano, na visão heideggeriana é um dasein, o ser-aí, um ente em eterna construção, nunca alguém acabado, concluído. Por essa razão, a saúde como uma condição humana essencial deve ser percebida, também, como uma eterna construção, daí que pessoalmente concebo saúde como a plenitude da condição humana.

Então vejamos: a condição humana trata das formas de

vida que o ser humano impõe a si mesmo para sobreviver. Elas

servem para garantir e suprir a existência das pessoas. Essas

condições são variáveis, considerando o momento histórico e o

lugar do qual o ser humano está fazendo parte, até porque não

somos separados do mundo natural, do ambiente sócio-histórico

(27)

onde vivemos. Somos parte integrante e indissociável dele e por ele somos condicionados, ao mesmo tempo em que imprimimos modificações, ou seja, também o condicionamos, muitas vezes sem mesmo perceber isso.

Tomo como ponto de partida as concepções de Hanna Arendt

21

, que sistematiza as condições humanas em três aspectos:

1. Labor – que é o processo biológico necessário para garantir a sobrevivência do indivíduo e da espécies humana nas mesma condições. Aqui ela percebe o ser humano na condição de animal laborans; aquele ser humano cuja vida se resume em se manter vivo, bem como a sua prole;

2. Trabalho - é a atividade de transformação da natureza para produzir artefatos que garantam melhores condições de vida, assumindo nesta condição a denominação de homo faber; embora em muitas situações este mesmo homo faber encontra-se em condições próximas às do animal laborans;

3. Ação - A ação é a necessidade de o ser humano viver entre seus semelhantes, dada a sua natureza social e gregária. Algo que, por razões já descritas anteriormente, vem sendo cada vez mais prejudicadas.

Ao nascer, o ser humano precisa de cuidados para sobreviver, dada a sua indigência, a sua grande vulnerabilidade ontológica. Diferente dos animais que já sabem buscar o leite, no caso dos mamíferos, e caminhar poucas horas após nascer, o ser humano necessita de cuidados. Para Winnicott

22

é nessa fase que uma mãe suficientemente boa, conforme termo utilizado por

21 ARENDT, H. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

22 LOPARIC, Zeljko (Org.). Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW

Editorial, 2013.

(28)

ele, que se constituem as condições para que alguém possa se preocupar com o outro, elemento essencial para uma ética do cuidado e consolidação de uma sociabilidade plena. Para isso deve ser orientado por essa mãe suficientemente boa a aceitar o sim como elemento alternativo ao não, e vice-versa, o que poderíamos intuir como a prevenção da soberba, da arrogância e da prepotência, tão em voga hodiernamente.

Para Arendt, tanto o labor (animal laborans), como o trabalho (homo faber) e a ação (homo sapiens), estão relacionados ao que ela chama de “Vita Activa”, que antigamente era a ocupação, inquietude, desassossego, que, em trabalho anterior

23

, é concebido como cuidado em seu sentido tradicional.

Para se distanciar dessa “Vita Activa” e se aproximar da vida contemplativa, reflexiva, ou seja, o homo sapiens sapiens, o ser humano deve partir para a busca do conhecimento no intento de se conhecer mais e melhor, de modo a realmente ter uma vida dotada de uma sociabilidade que possa garantir, agora sim, a verdadeira saúde. Para se ter saúde, não basta não ter uma doença ou qualquer outra inquietação ou desassossego, conforme Hanna Arendt, mas a garantia de uma qualidade de vida que vai muito além da simples percepção de bem-estar. É importante chamar atenção para a dupla instância proposta por Arendt, contemplativa e reflexiva, o que pressupõe contemplar e refletir, o que é pensar outra vez sobre o mesmo fato e, a partir dessa reflexão, tomar uma decisão política, que, no meu entender, decisão política é aquela que é fruto da capacidade/possibilidade de escolher, entre várias, a melhor alternativa que atendam os desejos/necessidades de uma determinada sociedade ou grupo social.

Quando coloco uma dupla entrada como capacidade/possibilidade, estou chamando atenção para uma realidade das práticas políticas atuais, onde a possibilidade de

23 GONÇALVES, José Pedro R. Da Cura para o Cuidado. Cuiabá – MT:

Carlini & Caniato Editorial, 2018.

(29)

tomar decisão geralmente está nas mãos de que não tem capacidade, o que gera mais problemas do que soluções. O mesmo para desejos/necessidades, porque, muitas vezes, o povo é induzido a satisfazer certos desejos não necessários, enquanto a necessidade real é deixada de lado, possibilitando a sua permanência no mesmo status quo.

A saúde, nesta concepção filosófica, é um télos que deve direcionar a caminhada do ser-no-mundo e não algo externo que se recebe ou se conquista apenas com avanços sobre os complexos processos de adoecimento. Muito mesmo algo do qual se toma posse individualmente, mas uma condição coletiva que diz respeito à nossa condição humana como elemento indissociável do mundo natural.

Potter defende a tese de que faz parte das funções de médicos, psicólogos, filósofos e cientistas estabelecer uma união de esforços para “a construção de uma bioética global que possa instruir, guiar e ajudar o público na obtenção de saúde pessoal”.

(POTTER, 2018, p. 165) e prossegue em suas ideias sobre ela:

A bioética global apresentada aqui é um conceito que pode proporcionar um modelo para que as pessoas – de qualquer sexo ou raça – comecem a desenvolver responsabilidade pela própria saúde.

Isso significa assumir responsabilidade por limitar o número de filhos em uma família a fim de melhorar a qualidade da comunidade em um ambiente de qualidade administrável. Por meio do planejamento familiar em muitos níveis locais, uma bioética médica e ecológica combinada poderia se estender para se tornar uma bioética global expandida.

Na página seguinte, Potter enfatiza que “apenas pessoa,

particularmente em sua discussão de “pessoas como agente

moral”, que ele chama de “ser pessoa em sentido estrito”. E

finaliza, Potter, “um feto ou neonato ou mesmo uma criança

(30)

muito pequena não seria uma pessoa “no sentido estrito”, quando adota essa visão.

Aqui Potter faz referência a uma concepção de pessoa proposta por Tooley

24

, que é exatamente nesse sentido estrito.

Ao incorporar em sua ética global a ideia de pessoa como agente moral em seu sentido estrito, Potter reitera e concorda com a pretensão de Tooley apresentada por Galvão, conforme acabamos de ver.

Este argumento é contestado por Holland

25

(2008, p. 34, 35)), quando afirma claramente que

[...] “segundo o princípio da potencialidade”, tais entidades (embriões) possuem estatuto moral em virtude de seu potencial de se desenvolver, tornando-se pessoas. [...] Assim, é natural formular o princípio da potencialidade em termos de possibilidade: se X é um possível Y, e se Y tem estatuto moral, então X tem estatuto moral. Uma vez que é possível, por exemplo, que um feto se torne uma pessoa, então o feto tem estatuto moral.

É imprescindível analisar as ideias de Potter sob uma visão mais aguçada de modo a perceber que estas ideias compiladas do pensamento de Tooley, nos leva a aceitar o fato

24 Em diversos artigos, bem como num livro bastante volumoso, Tooley argumentou, com um cuidado exemplar, que o aborto é eticamente permissível em todas as fases da gravidez. Em seu entender, a moralidade do aborto depende crucialmente da questão de saber se os fetos humanos têm o direito moral à vida. A reflexão sobre as condições para ter este direito leva Tooley a concluir que nenhum feto o tem. Um corolário da sua argumentação é que esta conclusão se estende aos recém-nascidos humanos, pelo que também o infanticídio é permissível. In: GALVÃO, Pedro. Tooley em Defesa do Aborto e do Infanticídio: Uma Análise Crítica. Disponível em: Aborto (Pedro Galvão) | Compêndio em Linha (ulisboa.pt)

25 HOLLAND, Sthephen. BIOÉTICA, Enfoque filosófico. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2008.

(31)

de que esta bioética global potteriana, claramente, tem um pé no eugenismo.

Em sua pregação por uma ética normativa que ele chama de global, Potter ensaia uma prescrição a ser seguida pelas pessoas:

[...] poderemos começar a aconselhar as pessoas quanto ao que elas devem fazer por si mesmas, reconhecendo que apenas pessoas como agentes morais, ou seja, pessoas no sentido estrito, podem exercer a autodisciplina necessária para proteger e melhorar sua saúde pessoal. As pessoas que aceitam essa responsabilidade estão, assim, em posição de orientar o desenvolvimento de seus filhos crianças e adolescentes para uma vida adulta saudável.

Aqui ele nos remete a uma nota de rodapé que afirma, entre outras coisas:

[...] O mínimo que uma bioética global poderia fazer seria informar aos indivíduos o que fazer para ficar saudável e dizer à sociedade como ajudar os indivíduos a alcançar a saúde”. (POTTER, 2018, p. 167).

O que se pode depreender disso, é que Potter preconiza

uma tutela universal ao afirmar que compete a essa sua bioética

global ensinar as pessoas, esquecendo totalmente de um aspecto

aceito universalmente, a sua autonomia. Muito mais do que isso,

as pessoas aprendem a viver uma vida saudável não por meio de

uma catequese, como Potter propôs. O aprendizado da vida para

a vida toda resulta de uma conquista permanente de saberes a

partir de informações, que devem se transformar em

conhecimentos, algo que é a função das escolas em todos os seus

níveis, aliados à herança cultural, experiências, crenças e

descobertas pessoais.

(32)

Em seguida Potter (2018, p. 167-168) detalha em oito itens a sua receita para que as pessoas possam realmente serem saudáveis, o que nomeei com ‘Octólogo potteriano’, acreditando que a sociedade mundial é do tipo domesticável, conforme pensamento de Michel Foucault

26

.

[...] a ideia que se a arte de governar está fundamentalmente ligada à descoberta de uma verdade e ao conhecimento objetivo dessa verdade, bem, isso implica a constituição de um saber especializado, a formação de uma categoria de indivíduos também especializados no conhecimento dessa verdade. E essa especialização constitui um domínio que não é exatamente próprio da política, e que define muito mais um conjunto de coisas e de relações que deverão se impor à política. Grosso modo, vocês vêm bem que esse é o princípio de Saint-Simon27. (Grifo meu).

26 FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France, 1979-1980. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009.

27 Cf. Conde de Saint-Simon. Catéchisme politique des industriels. Paris:

Naquet, 1832, pp. 49-50: “As concepções diretoras da força social devem ser produzidas pelos homens mais capazes em administração. Ora, os industriais mais importantes são aqueles que deram prova da maior capacidade em administração, visto que é da capacidade neste assunto que advém a importância que adquiriram, serão eles quem, definitivamente, estarão necessariamente encarregados da direção dos interesses sociais.” Saint- Simon (1760 – 1825), acreditava que uma sociedade se dividia entre os produtores e ociosos. Por isso, defendeu outra sociedade onde a oposição entre operários e industriais deveria ser reconfigurada. Para isso, ele pregava a manutenção dos privilégios e do lucro dos industriais, desde que os mesmos assumissem os impactos sociais causados pela prosperidade. Dessa forma, ele acreditava que no cumprimento da sua responsabilidade social, o industriário poderia equilibrar os interesses sociais. Disponível em:

Socialismo Utópico. Os primeiros pensadores socialistas - Brasil Escola (uol.com.br). Acesso em: 24/01/21.

(33)

Mesmo discordando do pensamento de Potter, não quero acreditar que realmente ele tenha imaginado isso, penso que foi apenas um deslize ou o que posso chamar de um obstáculo epistemológico.

5. Repensando a bioética global

Uma bioética global deve tomar como ponto de partida não apenas uma conjuntura local/temporal, pois isso acabaria por esgotar as possibilidades de adaptação ao processo evolutivo, próprio de uma civilização em andamento. Por essa razão, penso que a palavra primordial de uma bioética, não com a denominação de global, pois isso poderia provocar a ilação de que ela atingiria do mesmo modo a dimensão planetária, global, mas uma denominação já proposta na Declaração de Rijeka

28

, bioética integral porque integra em um mesmo projeto todas as dimensões da bioética em termos de conteúdo, não de abrangência geográfica.

Outra palavra essencial para se pensar em uma bioética global, daqui para frente, bioética integral, deve ser a palavra sustentabilidade.

Penso que não podemos mais nos ater a uma bioética que toma como ponto de partida e de chegada a pessoa humana ou seu coletivo, em um determinado tempo. Por essa razão proponho que devemos pensar em uma bioética que toma como

28 A Declaração de Rijeka sobre o futuro da Bioética foi assinada em 12 de março de 2011, o mesmo dia em que ocorria o desastre de Fukushima num insensível mundo repleto de tecnologia. Sugere-se, nas afirmações da Declaração, uma ampliação metodológica baseada nos elementos que Fritz Jahr formulou a partir de 1927. A Conferência Eurobio-N-Ética realizada na Croácia estabeleceu como acordo uma união baseada no respeito às perspectivas plurais, no reconhecimento da sabedoria supra étnica, assim como no próprio conhecimento não acadêmico para o bem da Vida. Não é em vão que São Francisco de Assis o primeiro ícone bioético mencionado por Jahr na história. Apresentam-se ao longo desse documento as traduções para os idiomas contemporâneos mais comuns do hemisfério ocidental

(34)

referência, não apenas a pessoa e suas inter-relações, mas o conjunto de seres vivos da e na natureza, tendo como ponto focal a ideia de Gaia

29

, que segundo Lovelock em sua Hipótese Gaia:

A hipótese de Gaia, também denominada hipótese biogeoquímica, é uma hipótese da ecologia profunda que propõe que a biosfera e os componentesfísicosda Terra (atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera) são intimamente integrados de modo a formar um complexo sistema

interagente que mantém as

condições climáticas e biogeoquímicas preferivelmente em homeostase30.

Ao tomarmos o conjunto do sistema proposto por Lovelock, estaremos contemplando mais do que uma bioética nos moldes tradicionais, mas aquilo que fora pensado por Fritz Jahr ao incorporar em sua proposta todos os seres vivos que, por sua vez, só permanecem vivos enquanto compondo um grande sistema que Lovelock chama de Gaia. Dentre esses seres vivos há um, que somos nós, que não deve ser percebido como alguém que esteja sobre todos os demais seres, o que configuraria um antropocentrismo que deve ser combatido por ser discriminatório e aético. Devemos aceitar de uma forma definitiva que não somos diferentes, nem estamos acima ou abaixo da grande cadeia viva, ou como prefere Fritjof Capra

31

, a teia da vida, esse mesmo complexo Gaia.

Outro ponto fundamental para uma bioética integral, é a concepção do que o tempo seja percebido em uma nova ótica.

29 Uma abordagem [da vida] na perspectiva de Gaia abre novas portas para a percepção e amplia nossa visão da interdependência de todas as coisas do mundo natural. In: Harding, Stephan. "From Gaia Theory to Deep Ecology".

Schumacher College

30 Disponível em: Hipótese de Gaia – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org). Acesso em: 01/03/21,

31 CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. Uma nova compreensão Científica dos Sistemas Vivos. São Paulo: Editora Cultrix, 1966.

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