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JULIETTE OU DE QUANDO O CINZENTO É COR: LEITURAS DE LEITURAS E LEITORES

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Academic year: 2021

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JULIETTE OU DE QUANDO O CINZENTO É COR: LEITURAS DE LEITURAS E LEITORES

ANTÓNIO BRANCO

Um dos artigos mais interessantes e importantes sobre didáctica da leitura escrito em Portugal intitula-se «Agora não posso. Estou a ler!». No incipit, a autora relaciona esse magní­

fico título com uma experiência da infância-juventude, por que muitos de nós passámos:

E o livro era acabado ainda nacjuela tarde se houvesse um irmão para fazer o recado que a mãe pedia. O que interessa­

va era não sair daquele mundo em que se estava envolvido por observação, é certo, mas sentindo alegrias e tristezas, ex­

perimentando medo, surpresa, entusiasmo tal como aqueles que se observavam (de longe, para eles não nos verem e as­

sim não se desfazer o encanto). (Maria de Lourdes Dio- nísio de Sousa, 1998: 55)

Outro dos meus autores dilectos, a propósito de um li­

vro onde nos fala das suas leituras da infância e da juventude, traduz assim essa experiência:

Temo que a veces la nostalgia del asombro intacto con que lei por primera vez los relatos evocados aqui me hayan hecho caer en lo excesivamente afirmativo, en la facilidad del en­

tusiasmo. Era inevitable: como Merleau-Ponty, yo tampoco

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podré nunca curarme de mi incomparable infanda. (Fer­

nando Savater, 1999: 19)

Acrescento, agora, a esta curta sequência de citações iniciais, o relato de um outro leitor ávido:

Lire rnétait pretexte à rester seul [...]. Mon lieu de lecture préféré était alors le plancher de ma chambre, oii je me cou- chais à plat ventre, les pieds croisés sous unfauteuil. Ensui- te, mon lit, tard le soir, est devenu 1'endroit le plus sur, le mieux protégé pour lire dans cette région nébuleuse entre sommeil et veille. Je ne me rappelle pas m'être jamais senti seul; defait, lors des rares occasions oú je rencontrais ^au- tres enfants, je trouvais leurs jeux et leurs conversations beaucoup moins intéressants que les aventures et dialogues queje Usais dans mes livres. (Alberto Manguei, 1998: 24) Finalmente, e para não alongar excessivamente este preâmbulo, recordo o que Marguerite Yourcenar faz dizer a uma sua personagem:

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela pri­

meira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram livros. (Marguerite Your­

cenar, 2000: 34)

Nestes e noutros relatos similares, a descoberta da lei­

tura (geralmente na infância ou na juventude) é expressa por palavras que remetem para um conjunto muito preciso de ideias. A leitura:

1. estimula a sensibilidade;

2. aguça a inteligência;

3. permite a evasão;

4. proporciona emoções e sensações (prazer, medo, sur­

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presa, tristeza, alegria, etc.), semelhantes às causadas pela pró­

pria vida;

5. é uma actividade íntima e profundamente pessoal, por isso, irrepetível.

Creio que todos os leitores apaixonados se reconhecem nas coordenadas que acabei de esboçar. A dificuldade está, contudo, em transmitir essa experiência aos outros, em conta- miná-los com o desejo de ler, sobretudo quando esses outros não tiveram o privilégio de encontrarem no seu núcleo fami­

liar um ambiente de sementeira da leitura. Efectivamente, pais e professores confrontados com crianças e jovens renitentes, no que à actividade de ler diz respeito, conhecem bem esta difi­

culdade e sabem, seguramente, que não há métodos infalíveis ou universais para induzir o hábito da leitura de livros. Pelo contrário, nenhum dos contributos da investigação, da metodo­

logia ou da didáctica, por mais completo, informado ou inspi­

rado, poderá responder individualmente ao problema de leitura que cada criança e cada jovem constituem. E se chamo a aten­

ção para esta incompletude da didáctica da leitura é porque estou convencido de que, de todos os princípios atrás enuncia­

dos, um único determina o grau de êxito e de profundidade de todos os outros:

5. a leitura é uma actividade íntima e profundamente pessoal, por isso, irrepetível.

(Corrijo: mais do que irrepetível, irreproduzível por outros.) Ora, de que falamos nós, quando falamos de leitores ávidos, apaixonados, frequentes visitadores de livros? E onde estão esses leitores? Que bom seria podermos mostrá-los àque­

les outros não-leitores ou leitores renitentes; que bom seria, em jeito de visita de estudo, podermos espreitar para dentro do seu universo e captá-los enquanto se transformam nessa outra realidade harmónica resultante do seu encontro com um livro.

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É justamente um simulacro dessa intromissão que vos proponho hoje, tentando transformar-nos a todos, leitores ou não, em curiosos voyeurs de leitores. A minha tarefa é facilita­

da pelas Artes Visuais. Efectivamente, a pintura, o desenho e a fotografia parecem interessar-se muito por esta espécie hu­

mana, se tivermos em conta a enorme quantidade de reprodu­

ções existentes nas bases de dados disponíveis em sítios da internet perfeitamente acessíveis. A dificuldade, aliás, está na escolha, tantos são os quadros, os desenhos e as fotografias que nos falam dessa capacidade especial. Comecemos, então, a vi­

sita.

1. O m enino a ler um livro

Aparentemente, nada haveria a dizer sobre esta fotogra­

fia ('), quase banal. Deixem-me, ainda assim, chamar a atenção para a intensidade dos seus contrastes. O menino é muito pe­

quenino e magrinho — e está sentado numa grande cadeira, o que só acentua a vulnerabilidade da figura, reafirmada pelos grandes óculos através dos quais acede às palavras. Repare-se, agora, na firmeza dos braços e das mãos, em cujo colo assenta o livro, na concentração do rosto (traduzindo entendimento do que nele se diz), na inesperada verticalidade do tronco, na segurança com que, profundamente envolvida na leitura, a criança abdica do conforto físico que o encosto poderia pro­

porcionar. Exprime, numa síntese quase perfeita, uma das propriedades da leitura: a capacidade de transmitir tensão e gravidade até ao corpo flexível e vulnerável de uma criança.

Há, de facto, neste leitor, um sentido de disciplina, uma espé­

cie de responsabilidade serena que, afinal, não surpreende:

porque está mesmo a ler. E ler é uma tarefa que exige toda a energia disponível.

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2. A menina a ler um livro

Agora, é uma menina que lê (2). A mesma tensão no cor­

po jovem, a mesma concentração. Mergulhada num cenário cromaticamente quase explosivo (em que predominam verdes, azuis e amarelos acastanhados), não se deixa distrair pelas for­

mas exuberantes da palmeira nem pela festa de cores que a circunda. A menina lê. Se a chamassem, provavelmente não ouviria — ou responderia como Maria de Lourdes Dionísio:

«Agora não posso. Estou a ler!» O toque magistral, contudo, concentra-se no jogo estabelecido entre a página visível do li­

vro aberto, de que se desprende uma intensa luminosidade inverosímil, e o rosto da menina. É isso mesmo: do livro, e só do livro, emana toda a luz projectada no rosto, e só no rosto, da menina. Metáfora rigorosa de outra das propriedades da leitura, que me abstenho de explicitar. Como não ver, então (e talvez o jogo de luz também lá esteja para isso) os lábios vívi­

dos com que, supomos, soletra e lê?

3. Mãe e menina a ler

A mãe lê para a filha, no banco de um jardim explici- tamente idílico (3). No lago tranquilo espelha-se uma árvore.

Atente-se na imagem reflectida do tronco: é mais fina do que o original, como se se tratasse de uma metáfora da relação entre a arte e a vida. As cores predominantes das duas figu­

ras femininas (cor-de-rosa e azul) sublinham o valor simbó­

lico (e quase cliché) do que o quadro glorifica: o amor entre mãe e filha, partilhado através de um livro. A mãe, sorriden­

te e concentrada, lê. A filha também, com os olhos postos num longe bem dentro dela. Aqui não existe severidade: ape­

nas o conforto com que o tronco da menina se aninha no re­

gaço azul e líquido da mãe. É uma imagem do paraíso do leitor: o livro e as histórias do livro são a voz da mãe e a voz

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da mãe é o próprio livro. Observemos atentamente o centro do quadro, porque nele se incrusta o elemento principal da imagem: o livro aberto e (quase?) assente na cabeça da me­

nina forma com esta uma unidade indissociável e primordial.

O livro também protege a menina de um sol provável, como se fosse um chapéu. A proximidade física entre livro e cabe­

ça consubstancia a intimidade de que falei no início. Em prin­

cípio, estão reunidas todas as condições para que a filha de Augusta venha a ser uma leitora autónoma. Quando lemos, regressamos sempre a este quadro maternal. Ou ao seguinte, onde a perfeição do encontro da criança com o livro é ainda mais notória.

Mas, antes, recordemos um trecho de uma obra de re­

ferência:

Sejamos justos; não era nossa intenção impor-lhe a leitura como uma obrigação. Pensámos, acima de tudo, no prazer que ele daí poderia tirar. Durante os primeiros anos estáva­

mos positivamente em estado de graça. O deslumbramento absoluto perante esta nova vida transformou-nos numa es­

pécie de génios. Para ele, nós éramos os contadores de his­

tórias. Contávamos-lhe histórias desde que começou a falar.

Era uma aptidão que desconhecíamos em nós. O seu prazer inspirava-nos. A sua felicidade animava-nos. Em honra dele criámos personagens, encadeámos episódios, refinámos ar­

madilhas... À semelhança do que o velho Tolkien fazia aos seus netos, inventámos um mundo para ele. Na fronteira en­

tre o dia e a noite, éramos o seu romancista. [...] E mesmo se afinal não contámos coisa nenhuma, se nos limitámos a ler em voz alta, éramos os seus romancistas, só dele, os contadores de histórias exclusivos, por quem, todas as noites ele enfiava o pijama do sonho antes de adormecer entre os lençóis. Mais do que isso, éramos o Livro. (Daniel Pennac, 1995 5: 15)

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A N TÓ N IO B R A N C O 45

Haverá, provavelmente, dois tipos de meninos: aqueles para quem um adulto (o pai, a mãe, a avó, um tio, um irmão mais velho) leu ou contou frequentemente e os outros — que nunca encontraram, na infância, esse chamamento amoroso da voz-livro. O quadro seguinte oferece-nos poeticamente, em acordes de uma harmonia assombrosa, um retrato do primei­

ro grupo.

4. A avó e os netos

Uma mulher lê histórias aos seus três netos (4). A figura feminina, de branco vestida, impõe-se nas suas formas cheias, lê num livro apoiado na mão esquerda. Os três netos ouvem- ma atentamente. Mas de modos muito diferentes. A menina à sua esquerda olha na direcção do livro, onde parece perseguir as pegadas da voz da avó. O menino da frente, aparentemen­

te o mais velho dos três, está sentado atrás do livro, razão pela qual se concentra no rosto sereno da avó. Ao fundo, por de­

trás de todos eles, abre-se uma grande janela verdejante. Mas entre o livro e o tronco da avó aparece a personagem mais fas­

cinante deste conjunto, a personagem cujo corpo está, justa­

mente, escondido pelo da avó e cuja força, por esse mesmo motivo, se concentra na parte do rosto que conseguimos ver:

trata-se de um petiz, mais novo e pequenino do que os outros, com os olhos pregados na anciã. Olhos negros e muito vivos, ligeiramente virados para cima, de forma a não perderem ne­

nhum dos movimentos dos lábios da leitora. A seriedade do rosto daquele menino exprime a importância do momento.

Mas, para ele, ainda não é o livro que interessa. Não, para ele, a magia do livro e das histórias que nele são contadas brota integralmente da voz da avó. Esta cena íntima aviva em todos nós a memória de que nos fala Daniel Pennac, a memória de uma comunhão significativa da leitura.

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5. 0 m enino e o cão

Agora, vemos um menino só, na companhia de um cão amorosamente adormecido no seu colo (5). Um menino de fa­

ces nítidas e redondas, olhar grave e concentrado. Não lê um livro, mas uma revista de banda desenhada: lê histórias. Ao lado dele, contudo, um livro revela marcas de uso e de leitu­

ra: ficou marcada aquela página, aquele momento da história.

Descobrimos, também, neste quadro, o início de um outro te­

ma que desenvolverei de seguida: onde lêem os leitores? Al­

guns, nos seus locais favoritos. De facto, a leitura anda muitas vezes associada a um lugar. Neste caso, trata-se daquela parte da casa onde se pode encostar a almofada ao grande baú (um sótão?). É um sítio secreto: o sítio da leitura, aquele onde não queremos ser encontrados a não ser pelas personagens que povoam as histórias em que mergulhamos. Talvez não se tra­

te de uma obra-prima, mas nele se retrata com uma sobrieda­

de luminosa a secreta aventura que a leitura também é. O cão aproveita para dormir, porque, enquanto lê, o dono é inteira­

mente seu.

6. Ao fundo o mar

Esta jovem não escolheu a comodidade do sofá nem da cama, para ler (6). O conforto, encontrou-o na liberdade da ter­

ra e do mar. E que contraste tão intenso entre esse espaço infi­

nitamente aberto e o fechamento desta leitora sobre o livro...!

Notem-se as duas mãos agarradas ao livro — ou o livro ama­

do pelas duas mãos? Uma bastaria.... O livro é leve.

A idade é outra, o tipo de local, também, mas entre ela e o menino anterior existe aquele elo invisível que une todos os leitores para quem ler é uma actividade íntima e secreta.

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-.NTÓNIO B R -.N C O 47

7. O rosto da laranja

Outra leitora, outro local secreto: um laranjal (7). Não precisávamos do título do quadro para o saber: por trás da jovem uma laranjeira exibe vaidosamente quatro dos seus fru­

tos. Quase sentimos o perfume, tão forte é a presença da laran­

jeira. Um pouco da cor das laranjas passou para o rosto da leitora. Na mão, folhas da árvore protectora da leitura. Have­

rá rosto mais doce, mais pacífico do que o desta secreta leitora do laranjal? Em cima do banco, tal como no caso do menino, uma laranja adormecida... Esta leitora lê ou é lida pelo livro?

8. No terraço

Uma jovem mulher lê, encostada ao murete de um ter­

raço solarengo (8). Os tons muito suaves do cenário quase nos fazem perder de vista a figura feminina. De facto, ela quase se confunde com a própria paisagem, como se dela fizesse parte integrante. Não tem rosto, apenas um grande chapéu da cor da areia ou do sol. O livro prolonga a mancha branca do vestido.

Que local de leitura mais inesperado! Os leitores são mesmo assim: de repente, sem aviso, encontramo-los nos sítios mais inauditos, mais desconfortáveis, mais inapropriados. Imagina- -se que, na sombra de um salão desta casa, esta leitora encon­

traria um recanto mais fresco para ler. Mas não, aqui, neste terraço de onde só ela não admira a paisagem deslumbrante, a leitura tomou conta dela — e a moça ali ficou, a um passo do abismo. A um passo da vida.

9. Descanso

O cenário impressiona, de tão expressivo (9). A leitora corta o quadro numa diagonal descansada. Outro sítio im­

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previsto para a leitura: por trás da porta de entrada de uma quinta. O avental branco indica trabalho: tratar-se-á de um mo­

mento de repouso entre duas tarefas domésticas? Seja como for, é um momento bom e um sítio apetecível. A cadeira não pertence àquele alpendre, com certeza, mas pertence inteira­

mente à escolha desta mulher. Por detrás da porta, um sol in­

tenso bate no caminho. Nada poderá, todavia, distrair esta leitora totalmente repousada. Nem o ruído da carroça a pas­

sar na estrada, nem o ladrar dos cães da quinta, nem o sino ao longe. Ela lê, lê totalmente. Entrega o corpo à leitura: o braço direito segura o livro, o esquerdo descansa, simplesmente.

Imagina-se um ritual: àquela hora, entre uma coisa e outra do quotidiano atarefado, o silêncio, o repouso e o prazer da leitu­

ra. Ali, naquele lugar improvável, mas tão certo... Porque o sítio onde um leitor escolhe ler é sempre o sítio mais acer­

tado.

10. Persistência

Ler é difícil. Mas vale a pena não desistir (10).

Não sabemos se o corpo deste homem está curvado pela idade ou pela vontade persistente de agarrar as letras do livro.

Ou se pelas duas coisas, harmoniosamente conjugadas para nos oferecerem um retrato pungente do apego à leitura.

A fraqueza estará na luz ou nos olhos? A dificuldade estará no texto ou na falta de flexibilidade do corpo? Desistir seria tão mais fácil, tão mais repousante, tão mais evidente...

e, no entanto, neste outro alpendre, desconfortavelmente sen­

tado num trémulo banco, o velhinho não desiste de querer ler.

O segredo comovente deste quadro está precisamente nessa ideia: leitor é aquele que quer ler. E querer ler é, exactamente, o que este retrato nos atira para dentro dos olhos. Aprendamos com ele e ensinemos com ele.

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Ultimamente, lamentamo-nos com alguma frequência de nos parecer haver cada vez menos leitores como este velho homem. Raramente nos perguntamos, contudo, por que moti­

vo existem tantos leitores. Por que lê quem gosta de ler? O que procura nos livros quem lê? Que efeito provoca o livro em quem o lê? Uma das respostas, encontrei-a num quadro de Magritte.

11. Fusão

Procuramos o risco da leitura, de que pode resultar este susto, esta paralisia, esta dependência total, este cativeiro (u).

Procuramos uma experiência radical como esta. Vejam-na nas cores escolhidas, violentas e inauditas; na rigidez do corpo aprisionado numa emoção incontrolável; no desmesurado te­

mor dos olhos; no espanto escancarado da boca quase em grito;

na própria sombra resultante de nenhuma luz visível. Porque a sombra é o que verdadeiramente sobrou desta leitora tomada de assalto pelo livro. A leitora-mulher deixou de existir, para passar a existir, apenas, a leitora-do-livro. O risco da leitura, que todos os leitores procuram, provoca este transvasamento do livro para o leitor, numa mutação transformadora do cor­

po, das emoções e da própria vida. Neste retrato, já não há, efectivamente, livro e leitora, mas apenas uma única entidade, uma espécie de estátua que fixa o momento em que o livro ultrapassa a fronteira que o separa do mundo. Fica, como já disse, a sombra, aquele refúgio onde a leitora talvez ainda possa regressar à sua humanidade, à sua normalidade. Se qui­

ser regressar. Ou se conseguir. Alguns leitores nunca mais re­

gressam.

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12. Desalinho

Esta leitora também se esqueceu do mundo e de si (12).

Ou, melhor, esqueceu-se da parte de si que a compõe, quando sai à rua ou está na presença de outros. Judite descompôs-se, desalinhou-se, porque, provavelmente, a leitura é um dos ac- tos mais íntimos e mais livres da sua vida. E o livro é o melhor dos companheiros: não lhe aponta condutas, não lhe impõe nor­

mas, não a condiciona. E talvez dos mais belos retratos que conheço representativos da total liberdade da leitura, literal­

mente transposta para a atitude descompassada, impudica e infrene de Judite. O corpo dela diz tudo: não se sujeita a ne­

nhuma regra (nem às da leitura?). No entanto, por detrás de Judite espreita o mundo ordenado e composto, o mundo que Judite nega quando lê. Estou a falar daquela janela virada para a rua, em que as casas arrumadas nos recordam que, lá fora, não há lugar para a leitura praticada por esta mulher. Ler, neste quadro, é um prazer socialmente censurado e censurá­

vel. Que importa isso a Judite? Na sua casa, na sua intimida­

de, no seu sofá, Judite só tem que prestar contas a si própria (e ao livro que lê apaixonadamente).

Mas ler não é só prazer e a sua aprendizagem pode ser uma tarefa muito árdua. Ler não é natural. Por isso, não podia deixar de vos trazer um quadro onde a leitura não está de for­

ma nenhuma associada ao prazer, mas tão-somente ao dever.

13. Renitência

As cores algo sombrias deste quadro adequam-se per­

feitamente aos vários conflitos nele presentes. Entremos nele lentamente (13).

Vemos três figuras: a mãe e dois filhos. Estão na rua, sentados num passeio de pedra. Nota-se um volume por trás

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.-.NTÓNIU B R A N C O 51

da criança da esquerda, que pode corresponder a uma trouxa onde se guardam a roupa e os haveres desta família. Não te­

mos dúvidas de que o quadro nos fala de pobreza: um dos meninos está descalço.

O rosto da mãe exprime profunda severidade. O indi­

cador, em riste, da sua mão direita exprime a ordem que o menino não quer cumprir: «Lê!». O olhar agravado pela som­

bra, a rigidez dos lábios, a firmeza do queixo e a posição do tronco, debruçado sobre a criança, traduzem uma tenacidade quase ameaçadora. Mas, apesar desse esforço, o menino des­

via os olhos do livro e da mãe e recusa-se a cumprir a tarefa.

O seu rosto redondo apresenta uma expressão ambígua: entre a teimosia determinada, explicitada pela mão direita cerrada em cima do joelho, e uma tristeza do olhar. Podíamos utilizar a palavra «birra» para explicar o seu comportamento. A ten­

são entre mãe e filho é de tal forma central, que quase nos es­

quecemos da outra figura: um bebé, muito contrariado, porque a sua tarefa é ainda mais árdua: segurar o livro onde o irmão deveria ler. A sua expressão e a sua atitude introduzem uma nota humorística no retrato — o que, de certa forma, alivia a tensão criada pelas outras personagens. Este bebé rechon- chudinho também está zangado com o irmão... mas provavel­

mente por motivos muito diferentes dos da mãe: enquanto o maninho não se decidir a cumprir a tarefa da leitura, ele não poderá largar aquele livro tão pesado. No entanto, cumpre inteiramente o papel que a mãe lhe atribuiu, como se tivesse consciência da importância da mesma.

Reflictamos, agora, sobre a inverosimilhança explícita deste quadro: as personagens estão na rua, são pobres, mas possuem um livro encadernado. Quem segura o livro é o mais infante dos meninos. A teimosia da mãe e do leitor renitente não se coadunam nem com o ambiente de pobreza nem com o espaço onde se encontram.

De que nos fala, então, este quadro? Da importância so­

cial da leitura e da consciência aguda que uma mãe pobre tem

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Juliette adormeceu, porque a leitura a cansou, porque o livro lhe não transmitiu a energia electrizante que impossibili­

ta o sono? Talvez.

Terá Juliette adormecido, justamente para poder entrar melhor no mundo daquele livro? Será, neste caso, o sono ape­

nas o sintoma do sonho induzido pelo livro? Talvez. E se assim for, este retrato afirma a liberdade, a intimidade e a inviolabili­

dade da relação entre leitor e livro.

Será, ainda, que Juliette parou apenas um pouco para descansar, para retemperar as energias, para organizar as ideias, para recuperar a sua ordem interior antes de voltar a deixar-se dominar pela ordem do livro?

E por que não supormos que Juliette finge dormir, por­

que alguém quis interromper a sua leitura?

Outra hipótese de interpretação: e se o pintor quis re­

presentar, tão-somente, uma criança a dormir, num hino à bele­

za inocente e primordial que se desprende de todas as crianças adormecidas, e lhe acrescentou o livro, para glorificar a leitu­

ra enquanto chão privilegiado desse estado de total vulnera­

bilidade, de total disponibilidade, de humanidade total?

Mas... e se Juliette não estiver a dormir? Nesse caso, não será esta a forma mais exacta de traduzir a inseparabilidade do leitor e do livro? Os olhos fecharam-se, sim, mas para melhor se abrirem ao livro. Não ao suporte material da escrita, mas ao livro. Assim sendo, o leitor poderá ser, também, aquele que, a partir de dentro da leitura, já não sabe que está a ler, ou, se qui­

sermos, já não precisa dos olhos abertos para continuar a ler o livro. Esta interpretação, arriscada, sei-o bem, é, contudo, a que dá mais consistência à luminosidade da zona central do quadro.

Este desenho a lápis não nos oferece qualquer chave her­

menêutica definitiva. Pelo contrário, assenta a sua firmeza na ambiguidade da situação e, em consequência disso, admite todas as possibilidades interpretativas que formos capazes de criar.

Desde a da representação de uma leitora que se nega enquanto tal até à da leitora que existe exclusivamente nessa condição.

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Por tudo o que acabei de dizer, o cinzento também é cor. Uma cor suficientemente indefinida para o ser sem nos distrair. Um leitor quer ficar a olhar para este quadro para sempre.

Concluo

Se, quando obstinadamente falamos de leitores e de lei­

tura, não estivermos a referir-nos a leitores e a leituras como a que vos mostrei, valerá a pena continuarmos a falar? E será que, através de quadros como algum destes, um não-leitor poderá ver nascer em si o desejo de ser leitor? Dito de outro modo, e para terminar, não existirão noutras formas de Arte respostas didácticas e educativas tão ou mais fortes do que aquelas que pais e professores procuram confinar exclusivamen­

te à relação dos não-leitores com os livros? A resposta só pode ser uma: se a leitura que tanto gostaríamos de impor tiver por finalidade desenvolver a inteligência, a sensibilidade, a emanci­

pação afectiva e social, então o seu apelo pode vir das fontes mais improváveis e pode acontecer nos sítios mais inesperados.

Como nos recorda Alberto Manguei, ler livros é apenas uma das faces da leitura. Porque os seres humanos precisam de ler para se conseguirem ler a si próprios, ao mundo que os rodeia e para irem sabendo, em cada momento da sua vida, quem são e onde se encontram. Esquecermo-nos disto é redu­

zirmos os livros à sua dimensão mais irrelevante. Aquela de que não vos quis falar, hoje e aqui.

Notas

(’) Anónimo, c. 1960. Rapazinho a ler um livro. Colecção Shin Kee. Arquivo Nacional de Singapurax http://www.a2o.com.sg/pu- blic/html/findoutmore/accq01_02.jsp>.

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56 N O E F U N C D L O L U L : 3 C O R E L D O C LI' 'R O S 2 0 J 4

(2) Morisot, Berthe. 1888. Menina a ler. St. Petersburg, Florida:

Museum of Fine Arts. <http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/

morisot/morisot.girl-reading.jpg>.

(3) Cassatt, Mary. 1910. Augusta lendo para a sua filha. Colec­

ção privada, <http://community.webshots.com/photo/40189867/

/40191009cWxUZP>.

C) Cassat, Mar/. 1880. Sra. Cassatt a Ler para os seus netos. Nova Iorque: Colecção privada, <http://community.webshots.com/photo/

/40134678/40215797sDpGVZ>.

(5) Daly, Jim. 1987. Leitor Favorito. <http://www.christcentere- dmall.com/stores/art/daly/favorite-reader-zoom.jpg>.

(6) [Anónimo/Boston School]. c. 1898-1910. Mulher a ler. N.Y.:

Adelson Galleries. <http:// www.artincontext.org/LISTINGS/IMA- GES/FULL/O/ATXGUIVO.htm>.

(7) Perugini, Charles E. c. 1878. No laranjal. Colecção privada.

<http://www.artrenewal.org/asp/database/art.asp?aid=347>.

(8) Bidart, Marie Antoinette. 1931. Mulher jovem lendo no terra­

ço. ?. <http://www.boekgrrls.nl/BgDiversen/Onderwerpen/lezen- de_vrouwen.htm#Bidart>.

0 Homer, Winslow. 1872. Moça lendo no alpendre de pedra. Colec­

ção privada, <http://community.webshots.com/photo/38395590/

/39054272jIiaBT>.

(10) Dogan, Atanur. s/d. Velho a ler um livro, <http://www.do- ganart.com/resimler/TFarm 01d°o20man%20reading%20book.html>.

(") Magritte, René. 1928. A leitora submetida [«soumise»]. Paris:

Museu Pompidou. <http://www.boekgrrls.nl/BgDiversen/Onder- werpen/lezende_vrouwen.htm#Magritte:-.

(12) Martin, Fletcher. 1939. Judite a ler. Colecção privada. <http:/

/ www.spanierman.com/artists/rn/martin_2k0275_m.htm: •.

(13) Delaroche, Hippolyte Paul. 1948. Uma criança a aprender a ler. Colecção privada, <http://www.artrenewal.org/images/artists/

/d/Delaroche_Paul/large/A_Child_Learning_to_Read_1848.jpg>.

(,4) Courbet, Gustave Courbet. 1841. Retrato de Juliette Courbet.

Paris: Museu d'Orsay. <http://www.artrenewal.org/images/artists/

/c/Courbet_Gustave/large/Portrait_of_Juliette_Courbet_as_a_Slee- ping_Child_WBM.jpg>.

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