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DOMINGO É DIA DE MISSA

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Academic year: 2021

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EDIÇÃO 3 | DEZEMBRO_2006

questões religiosas – Revista Piauí

DOMINGO É DIA DE

MISSA

As atribulações de um católico que perdeu a fé na

adolescência e a reencontrou três décadas depois

JOÃO SAYAD

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FOTO: © PHILLIPPE RAMETTE_LICENCIADO POR AUTVIS, BRASIL_2006

N

asci brasileiro e católico, neto de quatro avós libaneses. Mais

precisamente, nasci católico apostólico maronita, palavra que designa alguns cristãos anteriores à Igreja de Roma, e que depois passaram a fazer parte dela, com permissão para rezar a missa em árabe. Desde o

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Concílio Vaticano da primeira metade dos anos 60, todas as missas são rezadas no vernáculo, e o privilégio idiomático não diferencia mais os maronitas dos outros fiéis. Os maronitas são batizados com nomes de santo, como todos os cristãos, mas de forma mais enfática, para se distinguir dos Muhamads e Alis com os quais convivem no Oriente Médio. Sou João, irmão de Pedro, sobrinho de Miguel, primo de muitos Pedros, neto de Pedro João e Isabel, bisneto do João Pedro, primo de muitas Isabel, às vezes com Maria na frente.

Não escolhi nacionalidade, religião ou data de nascimento. Se escolhesse, queria ter nascido francês, com capa de chuva e

chapéu, maquis da Resistência – o ator Lino Ventura descendo de um Citröen preto, atarracado, calado, irascível, modestamente heróico. O sujeito ativo dessa escolha sou eu, com a língua que aprendi a falar, educado como fui, com a história que vivi, as mulheres que amei, os amigos que fiz, os filmes que vi, os livros que li. A escolha é de um brasileiro que preexiste ao Lino Ventura de sua predileção. Posso gostar do personagem, da nacionalidade e do período romantizado da história imediatamente anterior ao meu nascimento. Não posso saber se, em sendo Lino Ventura, gostaria de ser Lino Ventura, pois Lino Ventura não posso ser. Assim como sou brasileiro e falo português, sou católico e tenho fé. Assim como não posso ser Lino Ventura, não poderia ser muçulmano, judeu ou budista.

Até os 18 anos, fui à missa todos os domingos. Aí abandonei a Igreja. Aos oito anos, entrei para o catecismo, ensinado numa casa antiga ao lado da Igreja de São Domingos, no alto das Perdizes, em São Paulo. A professora ensinou pouco. Disse que Deus é eterno, onipotente e onisciente, criador do céu e da terra. E Jó? E o meu amigo que perdeu o filho tão cedo? E o corrupto que ficou rico? E a injustiça que o compositor Antonio Salieri achava que Deus tinha feito com ele, ao dar tanto talento para Mozart? Ela nada disse sobre a justiça divina e a liberdade humana. Mas falou que Deus criou Adão e Eva e nos deu os Dez Mandamentos, que tive que decorar, assim como decorei os

mandamentos da Igreja, os pecados veniais e os sete sacramentos, aprendidos para poder fazer a primeira comunhão.

Ganhei uma folha de papel onde estava desenhado um terço, as contas em branco. A cada sacrifício que oferecesse para Deus — não fazer alguma coisa de que gostasse ou fazer alguma coisa difícil em

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todas. O catecismo se destina a crianças de oito anos. Passei dos oito e não me ensinaram mais nada do catolicismo. Somos muitos os

católicos infantilizados.

O resultado imediato às aulas de catecismo foi não reagir mais aos tapas e pontapés, nas brigas comuns entre meninos. Deixava o corpo mole, apanhava e oferecia a outra face, de acordo com as lições recebidas. Meus pais me proibiram de não reagir. O catecismo era para valer ou eu não havia entendido direito? Foi a primeira

contradição. Minha filha mais velha sofre do mesmo defeito

congênito. Ela sempre levou muito a sério tudo o que eu lhe ensinava. Primeira confissão — não consigo me lembrar quais seriam os

pecados de um menino de oito anos. Depois, o enxoval com terno azul-marinho, calça curta, gravata branca, faixa de seda no braço direito, uma linda vela, ornamentada como o círio pascal, santinhos para distribuir em comemoração e um missal. Ensaios na igreja. No domingo, engoli emocionado, sem mastigar (sairia sangue, disse a professora), o Corpo de Cristo.

Confessava no sábado para comungar no dia seguinte. Meu irmão falava palavrões para “estragar” a minha confissão. Eu precisaria confessar de novo ou estava valendo? Melhor tapar os ouvidos. Quando subia a pé para a igreja, bem cedo, meu irmão ia gritando atrás: “Lá vem o padre João!”.

Eu levava tudo a sério, particularmente a idéia de salvação e a de vida eterna. Perguntei a meu pai o que ele fazia durante a missa. Fazia contas, respondeu. Talvez sobre os seus negócios. Era dono de uma loja de armarinhos, por atacado, na Rua 25 de Março. Como podia ser tão displicente? Iria para o inferno? Por que não dava atenção à

eternidade?

Tive dúvidas quanto à minha vocação. Queria ser padre, palhaço ou, em menor grau, cientista. Padre jesuíta, de batina preta, que eu via, ao lado de outros padres, como um exército de soldados disciplinados e devotados. Minha mãe, sábia, me matriculou num colégio laico e misto, coisa rara naquela época, para contrabalançar a vocação preocupante e precoce. Entrei no segundo ano primário do Colégio Rio Branco, onde fiquei até o último ano do clássico. A minha classe expulsou o professor de lógica que demonstrou a existência de Deus.

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Era prova costumeira, mas os alunos não aceitaram, fizeram greve e o professor foi demitido. Falta de caridade.

Tinha fé — um sentimento concreto sobre a existência de Deus. Minha família era praticante, ia à missa, respeitava os dias santos de guarda. Não sei como tratavam a questão de evitar filhos. Tiveram quatro. Peixe às sextas-feiras, visita a sete igrejas, para rezar diante do Cristo crucificado, na Quinta-Feira da Paixão, comunhão de todos no domingo de Páscoa, exceto meus pais. Por quê? Nunca soube.

Escrevia os pecados num pedaço de papel para não esquecer. Às vezes, o padre, atrás da treliça do confessionário, percebia e me pedia que não lesse. Outra vez, perdi o papel. Numa outra confissão,

declarei:

— Pequei contra a castidade.

— Ela era casada? — perguntou o padre.

Eu tinha dez anos. O que e como seria pecar contra a castidade com uma mulher casada?

Numa Semana Santa, assisti ao filme O Manto Sagrado. À noite, tive um pesadelo terrível. Vi labaredas e Cristo, que gritava comigo.

Acordar do pesadelo não foi fácil. Com medo, mudei para a cama de meus pais. Como diferenciar sonho e realidade, pesadelo e revelação? Seria eu um outro Jacó?

Eu precisava de uma profissão que fizesse sentido, que tivesse importância, que fosse útil. Queria ser palhaço porque ele era uma figura marcante da infância. Queria ser padre porque acreditava em Deus. E queria ser cientista para fazer descobertas. Em qualquer dos casos, contava em ser plena e justamente reconhecido, aplaudido no púlpito, na arena do circo ou condecorado ao lado do foguete

brasileiro a chegar na Lua, projetado por mim mesmo. Os americanos pisaram na Lua alguns anos depois.

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M

inha filha é atriz e diretora de teatro. Trabalha

como clown, para os Doutores da Alegria. Estudou na Suíça e na França para ser clown. Ela não sabe, e eu havia esquecido, que

também quis ser palhaço. Sou culpado pelos meus pecados ou eles são genéticos? Sou livre e Deus é onipotente e onisciente? Ou sou

simplesmente parecido com meu pai?

Cresci, e a fé começou a faltar. Procurei o padre na Igreja de São Domingos para conversar. Havia trazido um texto escrito, para não esquecer nada do sofrimento e da angústia produzidos pela ausência de fé. O padre disse que não me preocupasse, que era assim mesmo, que a fé voltaria.

Ir à missa continuou a ser obrigatório para mim, meu irmão e os amigos da rua. Os amigos de rua, que estudavam em escolas

religiosas, tinham até que carimbar a caderneta escolar, como prova de que tinham comparecido à missa no domingo. Ficávamos na porta da Igreja de Santa Teresinha, em Higienópolis. Se tivéssemos dinheiro, comíamos rolinhos primavera no restaurante chinês em frente. Meus pais sabiam, mas insistiam em nos ver antes e depois da missa, mesmo que ficássemos do lado de fora, na porta da igreja.

Aos 13 anos, me apaixonei pela Brigitte Bardot. Entrei na Aliança Francesa para aprender francês e sair atrás da BB. Não casei com a Brigitte e a religião ficou para trás. Deixei de ser carola para me tornar um adolescente radical.

Distraí-me com os obstáculos comuns da vida. Exame de admissão ao ginásio, ginásio, colegial, escolha de profissão, vestibular, casamento. Não gostava dos “católicos” da política estudantil. Implicava com o ar caridoso deles, que me parecia hipócrita. Casei-me na capela da PUC de São Paulo.

Compra de casa própria, doutorado no exterior, duas filhas, professor da Universidade de São Paulo, doutorado, livre docência, titular, vida financeira difícil, secretário da Fazenda de Franco Montoro, escolhido por Tancredo Neves para ser seu ministro do Planejamento, morte de

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Tancredo, ministro do presidente José Sarney, católico que vai à missa, com quem trabalhei dois anos.

A vida continuava, e continuava eu longe da Igreja, sem fé. Mas algo em mim havia.

No Instituto do Coração, onde Tancredo estava internado, na missa celebrada na capela pela saúde do presidente eleito, frei Betto, do meu lado, cochichava críticas ao general Bayma Denis, ministro-chefe da Casa Militar. Depois, quando frei Betto foi para o altar, o general me disse no ouvido: “Frei Betto é um vermelho”.

Pedi ao frei Betto livros de religião. Minhas incertezas eram

elementares e profundas. Com quem casaram os filhos de Adão e Eva – casaram entre irmãos? Por sugestão dele, li Leonardo Boff e outros autores da teologia da libertação. Não esclareceram as dúvidas de um católico brasileiro de classe média que fez primeira comunhão na Igreja de São Domingos. O interesse, a fé e a dúvida estavam

voltando, trinta anos depois. Antes de sair do governo, pedi indicações bibliográficas ao ministro Marco Maciel, muito católico, muito gentil. Ganhei de presente a Liturgia das Horas.

Kierkegaard detestava Hegel porque o alemão dedicou a vida inteira a explicar o curso da história e do espírito, mas não pensou nada que o ajudasse a decidir se devia se casar ou não. Nem sobre Abraão, no momento de oferecer o filho Isaac como sacrifício a Deus. Era realmente uma ordem de Deus? Devia matar?

Seguia distraído com as tarefas intermináveis da vida, com política, economia, dinheiro, casamento, separação, novo casamento e, principalmente, ganhar a vida. Qual era o sentido de todo aquele trabalho? Estava num momento difícil. Problemas no trabalho, os negócios iam mal. Preocupação com o irmão, com a saúde da minha mãe, com o casamento, com minhas filhas. Quando passava por alguma igreja aberta, entrava para rezar. Num determinado domingo, não sei exatamente qual, resolvi ir à missa. Em Campos do Jordão, onde passava os fins de semana. Missa das seis da tarde, na Igreja de São Benedito.

Na fila da comunhão, cada uma daquelas cabeças, que me impediam de ver o altar, estava cheia de ansiedades, problemas e dúvidas iguais

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ou mais terríveis do que as minhas. Desconhecidos que eram

cúmplices, parceiros, irmãos de um destino comum. Senti aconchego e conforto. “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”, Mateus 18:20.

Desde então, vou à missa todos os domingos.

A missa da minha infância era diferente. Em latim, o padre de costas para o público, movimentando-se misteriosamente diante do altar. Ele se voltava para os fiéis apenas para dizer Dominum vobiscum,

respondido com et cum spiritum tuo. Parecia um feiticeiro murmurando palavras mágicas e incompreensíveis.

Até o início do século XI, a missa era celebrada de frente para o

público, como hoje. Com o crescimento de seitas heréticas, a rebeldia dos albigenses e de outros, a missa passou a ser rezada de costas para o público. Missa e religião precisavam de um exegeta, o sacerdote, detentor de conhecimentos e segredos que não podiam nem deviam ser interpretados pelos fiéis.

Agora, a missa é em português, com o padre de frente para o público. Os fiéis fazem as leituras. Música brasileira, palmas para o padre, para o casal que completou bodas de prata, para Nossa Senhora. Uma festa, liberada pelo ii Concílio Vaticano e pela concorrência dos cultos

evangélicos. Perto de casa, em São Paulo, a missa do meio-dia é freqüentada por uma classe média rica e/ou em processo de

empobrecimento. Missa solene, com cantora lírica de boa voz, mas incompreensível. Na hora da comunhão, um quatrocentão se dirige ao altar antes da hora, para ser o primeiro a receber a hóstia. Pouco

incenso, quatro filas desorganizadas, quem vai esbarra em quem vem. Muita afetividade e alegria na hora do aperto de mãos.

Às 8 horas da manhã, na mesma igreja, há um padre carismático e homilias surpreendentes. Ele diz coisas como “Hoje é o dia do

padroeiro dos cosmonautas, conhecido como João Babão, pois tinha uma língua muito grande, que ficava para fora da boca, e babava. Ele levitava, e por isso é o padroeiro dos cosmonautas. O cantor de rock Fulano de Tal tomou uma superdose de cocaína, subiu ao

quadragésimo andar de um prédio e atirou-se pela janela. Deus é assim: quem faz o bem, levita e sobe aos céus. Quem faz o mal, esborracha-se no chão”.

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Em Campos do Jordão, vou à missa dos caseiros, às sete horas da manhã, na Igreja de Santa Teresinha. Gente pobre, pele encarquilhada, mãos de pele grossa, vestida com várias camadas de roupas, por causa do frio. Irmãs e freiras que trabalham nos hospitais da cidade, onde ainda se recebem tuberculosos. Gente sofrida e dedicada. A irmã comentarista, alegre, inicia a missa, e ao canto de entrada convida todos a acompanhar: “Quem canta, reza duas vezes!”. O som ruim não permite ouvir direito o sermão. São sacerdotes jovens, na maioria nordestinos. Falam contra o desemprego, a pobreza e a corrupção. Os cantos são acompanhados por violão, acordeom e coral. No Brasil, são sempre as mesmas músicas, cantadas à moda de cada lugar. Em São Paulo cantora lírica; em Campos, violão e sanfona.

E

m todas as igrejas brasileiras, o folheto à disposição dos fiéis

tem as leituras, as orações e tudo o que um missal teria. É uma solução prática e conveniente. Nos Estados Unidos, é preciso consultar um livro grosso que fica no encosto de cada banco e contém as músicas e as leituras do ano inteiro. Para cada domingo, uma página específica, indicada por números afixados numa coluna da igreja. É mais difícil e mais caro do que no Brasil.

Em Washington, na Igreja de St. Stephen, que o presidente John Kennedy freqüentava, a música é uma maravilha. Começa com um moteto de Bach. O celebrante entra em procissão. Na frente, um fiel carrega o crucifixo. Logo atrás, outro fiel balança um porta-incenso, enchendo a igreja de perfume e fumaça. A senhora do banco à minha frente reclama sempre, e abana um leque para evitar a fumaça e o perfume. Incenso deve ser caro, pois é escasso nas missas brasileiras. Depois, o coral. Moços e moças de cabelo comprido (como as

evangélicas brasileiras), da escola de música da igreja, vestem batas de cetim preto. O órgão da igreja está com problemas. Se não for consertado, anuncia um panfleto, logo estará imprestável. Desejam transformar St. Stephen na melhor igreja do mundo, em termos musicais. O novo órgão custa 1 milhão de dólares e será construído pelo melhor especialista da Alemanha. Já ganharam 600 mil dólares

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de um fiel generoso e contam com a generosidade dos demais para obter os 400 mil que faltam.

Os sermões são interessantes. O padre sempre faz referência aos seus alunos. Um celebrante começou a homilia dizendo que quando criança lhe ensinaram que não existia inferno. Pausa longa, enquanto

mostrava aos fiéis um sorriso irônico e ameaçador. Não esclareceu o que seria o inferno. Lembrei-me do filme O Exorcista, e fiquei curioso com o que ele iria dizer. Não disse nada relevante.

Não acredito no inferno, embora seja a parte mais interessante da Divina Comédia. Como será a vida eterna, que tanto me

preocupava na infância? Igual à vida aqui na terra, só que tudo dá certo? Maçante. Uma vida sem desejos nem satisfações? Nirvana? Dante, quando chega ao paraíso, fala em muita luz, em tanta luz que não consegue ver nada.

Na hora da comunhão, os fiéis de cada banco saem em ordem, os da frente primeiro. Vão ao altar pelo corredor central e voltam pelas laterais. Na missa dos filipinos, à uma da tarde, dois auxiliares fecham os bancos que estão mais atrás, para manter a ordem de saída dos fiéis subdesenvolvidos. O sacerdote americano sai pela porta da frente, em procissão, e aguarda do lado de fora para cumprimentos.

N

os Estados Unidos, como diz a frase feita, até os católicos são

protestantes. Os católicos americanos se comportam como minoria. É uma enorme minoria, de origem irlandesa, mais descendentes de italianos, espanhóis, filipinos, orientais, africanos e latinoamericanos, gente do mundo inteiro. O americano, ao que parece, é individualista. Precisa resolver suas contradições sozinho. Talvez por isso pareça um protestante. Já os católicos integram uma igreja hierarquizada, na qual as contradições são resolvidas pelas autoridades em Roma e pelo papa. O católico é tolerante, peca com menos culpa, pode ser salvo se se arrepender, ainda que no último minuto. Protestantes levam tudo muito a sério. Não por acaso a história do protestantismo é marcada por ondas de fundamentalismo.

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São Francisco, meu santo predileto, foi o grande político entre os heréticos. Conseguiu sobreviver dentro da Igreja romana. Mas os próprios franciscanos se dividiram em grupos, fiéis em maior ou menor grau à pregação de São Francisco — um pedaço de pão e mais nada. Hoje, as igrejas de São Francisco em Salvador e Ouro Preto são as mais lindas, ornamentadas com muito ouro, o oposto da capela original, em Assis.

Na França, na Igreja de Saint-Pierre de Chaillot, o padre é alto, parece De Gaulle. Seus paramentos são elegantes, impecáveis. Entra

acompanhado de quatro coroinhas — dois brancos e dois negros, intercalados, todos de bata branca. No Brasil, os auxiliares usam jaleco branco, parecem enfermeiros. A cantora faz gestos rígidos de maestro, e toda a igreja acompanha. Uma cerimônia pomposa, perfumada por muito incenso.

Em Paris, assisti à missa à moda antiga, no estilo do período posterior ao ano 1000, pré-concílio. Mulheres de véu, padre de costas, reza em latim. Não lembrou a missa da minha infância. Havia um ar de

rebeldia, exagero, encenação.

Na Bahia, na capela da Praia do Forte, a missa é africana, com padre bonachão, gordo, simpático e carinhoso. Na Espanha, em Barcelona, no bairro medieval, uma igreja escura, um espanhol gutural.

Inquisição.

Como é voltar a ser católico praticante no Brasil em que vivo, onde se fala pouco de religião? Na igreja, encontro amigos de hoje e de

antigamente, que também vão à missa e eu não sabia. Descubro outros “filhos pródigos”, como eu. Encontro políticos que sempre estiveram próximos à igreja. Não conversamos sobre os temas mais difíceis — aborto, divórcio, camisinha, o uso de células-tronco para pesquisas. Vou à missa sozinho. Minhas filhas não me acompanham. Jovens, estão distraídas com a carreira. Às vezes, Natal ou Páscoa, consigo arrastar uma delas. A missa fica mais bonita. Brasileiras, meio italianas, meio libanesas, inteligentes e sensíveis, a sorte delas está lançada. Na primeira pausa agradável ou desagradável da vida, aposto que voltarão. Minha mulher também não vai à missa. Pede que eu reze por ela. Não precisava pedir.

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Antes da morte da minha primeira mulher, passei uma vez por um momento difícil. O sermão foi sobre a comunhão e o adultério. O celebrante disse várias vezes, e enfaticamente, que adúlteros são

proibidos de comungar. Eu era adúltero, vivia em concubinato. Minha mãe, que naquele domingo estava ao meu lado, sugeriu que eu não comungasse. Eu já havia tomado a decisão de não comungar. Foi política de respeito, e não religiosa. Consultei depois um sacerdote. Ele confirmou a proibição, mas disse que eu voltasse a comungar. “Quem de vocês não tiver pecado, atire a primeira pedra”, João 8:7. Viúvo, estou liberado do pecado e da culpa. Vou à missa todos os domingos. Como quem vai ao teatro, se gosta de teatro, ao cinema, se gosta, ou a um jogo de futebol. Como se vai a uma cerimônia

importante. E importante ela é. Na missa, há a presença litúrgica de Deus. Existe coisa mais importante?

Aguardo curioso a homilia, para saber o que o padre vai falar sobre o Evangelho. Cheio de fraternidade na hora em que todos se

cumprimentam. Emocionado na hora da eucaristia. Leio os textos antes, no folheto da missa, canto quando é para cantar. Quem vai à missa tem esperança e o outro lado da esperança, a ansiedade, a dúvida, o sofrimento que transforma todos os que estão ali na igreja, sentados, de pé ou de joelhos, em companheiros de um mesmo

momento de humanidade — solidão, procura de sentido, sofrimento, inveja, injustiça. Comungam felicidade e angústia, sofrimento e consolo.

Fé? Ateus padecem de fé negativa, tão arbitrária e não demonstrável quanto a fé dos que tiveram a graça de ter uma fé que não é tranqüila ou passiva. Que é cheia de dúvidas, de perguntas. Rezo para manter a fé e penso que os ateus devotos são como carolas científicos. Os

demais, nem ateus nem crentes, estão distraídos. Que Deus tenha pena da sua distração.

Sinto falta de uma educação religiosa mais completa do que a

ministrada nos catecismos. As universidades americanas têm ótimos departamentos dedicados a estudos bíblicos e religiosos. Tenho lido bastante. Preciso encontrar um sacerdote com tempo e paciência para minhas perguntas sacrílegas.

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S

ou brasileiro, católico, neto de libaneses e todos os domingos,

bem cedo ou ao meio-dia, vou à missa. Não consigo viver distraído, obcecado pela trivialidade, consumido pela inveja, olhando para o próprio umbigo, competindo com as pessoas que amo. Graças a Deus — ou graças ao meu DNA, ou à minha educação (mas qual a origem destas coisas? Quem decidiu que eu seria João e não Lino Ventura?) — tenho fé para encontrar na missa consolo, esperança, caridade e afeto suficientes para viver uma, até o próximo domingo.

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