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Emoções e virtudes morais em Aristóteles

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Academic year: 2021

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Emoções e virtudes morais em Aristóteles

Juliana Santana Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC

Resumo

Este artigo tem a intenção de apresentar a possibilidade de conciliar emoções e virtudes a partir das propostas da Ética a Nicômaco. Vários trechos do tratado em questão parecem indicar que para se viver virtuosamente seria necessária uma grande intervenção da razão em detrimento das emoções. Por isso começamos nosso estudo com a análise de algumas das passagens da Ética que indicam a divisão das qualidades da alma entre as quais encontramos disposições e paixões. Em seguida verificamos aquelas passagens que ressaltam a tensão entre emoções e virtudes, trechos que poderiam sugerir a inconveniência das emoções na vida moral ideal. Mas, para cumprir a tarefa proposta recorremos a teorias aristotélicas a respeito da alma e de suas divisões, o que nos permitiu uma primeira aproximação entre as virtudes e as emoções devido à sua localização na alma humana. O estudo nos levou a perceber que a ação da razão, que a princípio parecia um entrave à participação das emoções na vida moralmente boa, na verdade propicia a harmonia dessas duas coisas devido à boa medida que pode conferir. Percebemos que boa parte dos fatores que num primeiro momento sugeriam um desligamento em relação ao lado emocional da vida para que o homem se tornasse virtuoso, na verdade tendiam a ligar as emoções e as virtudes morais. Concluímos que as emoções são importantes para tais virtudes, desde que bem encaminhadas e moderadas com o auxílio da racionalidade humana, o que permite uma relação positiva entre as qualidades da alma em questão.

Palavras-chave: Emoções. Virtudes morais. Razão.

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Introdução

O texto da Ética a Nicômaco parece apontar para uma relação difícil entre as virtudes morais e as emoções. Vários trechos deste tratado parecem indicar que para se viver virtuosamente seria preciso uma grande intervenção da razão, a ponto mesmo de minorar as emoções. Esse tipo de impressão teve considerável repercussão na filosofia e nos levou a questionar: se Aristóteles parece separar as qualidades da alma em hexeis (disposições de caráter), dynameis (faculdades) e páthe (emoções ou paixões), haveria como harmonizar emoções e virtudes morais a fim de uma vida plena, já que o filósofo entendeu as virtudes como disposições de caráter? Ao separar hexis e páthos, Aristóteles estaria também a separar emoção e virtude? A dificuldade é acentuada pelo próprio filósofo, ao propor a presença da racionalidade, além dos hábitos, na virtude moral. E é destacada por alguns estudiosos antigos e contemporâneos que, desenvolvendo e interpretando esse tipo de proposição, pensaram as emoções como irracionais ou apartadas da razão.

Para tentar responder a essas questões começaremos nosso estudo com a análise de algumas das passagens da Ética que indicam a divisão das mencionadas qualidades da alma.

Em seguida buscaremos verificar aquelas passagens que indicam a tensão entre emoções e virtudes, e que poderiam sugerir o afastamento das emoções em relação à vida moral. Mas, se o texto da Ética a Nicômaco nos traz embaraços, buscaremos auxílio nesse mesmo texto, e em tratados como a Retórica e o De anima, para cumprir a tarefa proposta e esclarecer a relação entre emoções e virtudes. Recorreremos às teorias aristotélicas a respeito da alma (psyché) e de suas divisões, o que nos permitirá uma primeira aproximação entre as virtudes e as paixões, devido à localização destas na alma humana. Assim, o que incialmente havia indicado um distanciamento entre essas duas instâncias acabará por aproximá-las. Ao longo do estudo poderemos perceber que a ação da razão, que a princípio parecia um entrave à união das emoções com a vida moralmente boa, na verdade propicia a harmonia dessas duas coisas devido à boa medida que pode conferir às emoções, aos desejos e aos prazeres. Por fim, chegaremos à ideia de que a maioria dos fatores que num primeiro momento sugeriam um desligamento em relação ao lado emocional da vida para que o homem se tornasse virtuoso tendiam a ligar as emoções e as virtudes morais.

Portanto, conseguiremos perceber que a vida boa moralmente, da forma como Aristóteles a descreveu, não dispensa as emoções. Mas estas devem poder seguir o que a

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razão determina. Todavia, buscaremos ressaltar o enorme papel desempenhado pelas páthe na vida ética, papel não necessariamente nocivo àquilo que o filósofo propunha como a melhor forma de vida possível ao homem, ou ainda, como a melhor forma de vida que pudesse ser almejada pelo homem.

I.

Em sua busca pelo entendimento do que seja a felicidade (eudaimonía) Aristóteles se depara com a necessidade de pensar a virtude (areté), pois considera que “a felicidade é uma certa atividade da alma em acordo com uma virtude perfeita”, e pensa que por isso “é a natureza da virtude que é preciso examinar” (EN 1102a5-7; tradução nossa). O filósofo esclarece que a areté em questão é humana, já que a felicidade procurada também é humana, e

“por virtude humana entendemos não a excelência do corpo, mas aquela da alma” (EN 1102a17). Contudo, Zingano (2007, p. 145) observa:

A felicidade é o fim último de todas as nossas ações, as ações devem ser aperfeiçoadas pela razão, mas no início, estão as emoções. Muito da vida moral depende dos hábitos tomados em sua relação, o que não é de pouca importância; ao contrário, Aristóteles nos diz que é “de uma grande importância, ou antes: de toda importância” (II 1 1103b25), pois aqui se abre – ou se fecha – o caminho para a felicidade.

Nessas propostas vemos afirmações que nos levam a indagar: o que as emoções têm a ver com a virtude? Questão que ganha destaque no trecho da Ética a Nicômaco no qual Aristóteles parece diferenciar certas qualidades que encontramos na alma humana.

Entendo por estados afectivos, o apetite, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o arrependimento pelo que agradou, o ciúme, a piedade, em suma todas as inclinações acompanhadas de prazer ou de dor; por faculdades, as atitudes que fazem dizer de nós que somos capazes de experimentar essas afecções, por exemplo a capacidade de experimentar a cólera, dor ou piedade; por disposições, enfim, nosso comportamento bom ou mau relativamente às afecções (EN 1105b22-26).

O passo permite ainda formular outra questão: se o filósofo separa essas três qualidades da alma, como poderíamos relacioná-las? Poderíamos responder, conforme o que se lê no próprio trecho, que as qualidades sempre se referem às emoções. Assim, embora o trecho defina de modo diferente essas três instâncias, haveria contato entre as emoções e as

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disposições de caráter. Contudo, seria preciso esclarecer como se dá essa relação, pois embora Aristóteles afirme que possa ser boa ou má, na maioria das vezes parece ser considerada de modo negativo. Portanto, nossa questão poderia ser formulada ainda da seguinte maneira:

como relacionar emoções e virtudes (ou emoções e disposições de caráter) da maneira adequada?

Contrariando a obviedade do primeiro contato entre os conceitos em questão, a sequência do texto distancia cada vez mais emoções e virtudes ao deixar claro que as virtudes não são emoções, porque ninguém considera um homem bom ou mau, ninguém louva ou censura um homem por suas emoções, mas sim por suas virtudes ou vícios (EN 1105b29-35;

1106a1). Por exemplo, não se censura aquele que se encoleriza, mas aquele que se encoleriza de certo modo. E as emoções são sentidas sem nenhuma escolha, mas as virtudes são modalidades de escolha, ou ao menos envolvem escolha. Ainda quanto às emoções, é dito que movem o homem; mas quanto às virtudes, é dito que os homens têm tal ou tal disposição (EN 1106a2-6). As virtudes também não são faculdades pelas mesmas razões mencionadas há pouco: não se diz que um homem é bom ou mau, não se louva ou censura alguém por sua capacidade de sentir emoção. O homem possui faculdades por natureza, mas se torna bom ou mau por hábito (EN 1106a7-9). “Portanto, se as virtudes não são nem afecções, nem faculdades, resta que sejam disposições” (EN 1106a10-11). Eis o gênero das virtudes (EN 1106a12) conforme proposta do Livro II que entende por disposição o modo pelo qual o homem se comporta frente às emoções. Mas, definir a virtude como disposição de caráter não basta. É preciso definir que tipo de disposição ela é.

Portanto, para buscar entender melhor a areté ética podemos destacar a seguinte proposta: toda virtude ou excelência põe em boas condições a coisa de que é virtude ou excelência, fazendo com que tal coisa desempenhe bem sua função (EN 1106a16-18). Deste modo, a virtude do homem será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz desempenhar bem sua função (EN 1106a24). E para que tal função seja realizada de modo excelente, seria necessária uma medida determinada pela razão, evitando o que é excessivo ou de menos em relação às disposições que se tem. Deste modo, a virtude é definida em termos gerais como justa medida entre excessos e faltas, que são vícios a serem evitados. E o justo meio não se configura como cálculo matemático exato e invariável por não ser o mesmo para toda situação e pessoa. Mas a questão não é totalmente subjetiva; o que o filósofo pretende dizer é que cada média é conforme a situação na qual a ação é produzida (ZINGANO, 2007, p. 157). Ou seja, a medida não depende somente do sujeito e de suas escolhas, mas das

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circunstâncias nas quais a ação é produzida (EN 1106a26-31).

Mas, como foi ressaltado, estamos a lidar com virtudes e com emoções, qualidades da alma humana que parecem destoar na maioria das vezes. Por isso cabe àquele que estuda tais assuntos saber o que diz respeito à alma. Também por isso trataremos desta brevemente, de suas divisões e subdivisões, e daquilo que nela está contido, a fim de localizar na psyché a virtude moral e as demais qualidades em questão. Caminho que é justo seguir, pois, como observa Cooper (1999, p. 253), a teoria das virtudes de Aristóteles é construída sob a base da teoria psicológica.

Na Ética a Nicômaco a discussão sobre a natureza da alma inicia com análise das teorias elaboradas antes de Aristóteles. Nesse ponto o filósofo aceita algumas das propostas de tais teorias e afirma que a alma possui parte racional (lógon échon) e parte irracional (álogon;

EN 1102a28-29). A partir dessa divisão, subdivide ainda ambas as partes. Seguindo a tradição, a parte irracional seria dividida em vegetativa e desiderativa. Sendo a vegetativa responsável pela nutrição e pelo crescimento, seria faculdade comum a todo ser vivente. Contudo, não seria a responsável pelo ser bom ou mau, não participando da excelência humana. Haveria ainda uma segunda parte irracional na alma, a parte desiderativa. Entretanto, esta participaria da razão de algum modo, embora, em grande medida, se opusesse ao princípio que direciona bem o agir humano, e a este seria resistente. Contudo, em determinados agentes seria capaz de obedecer ao princípio racional, entrando em consonância com aquilo que a razão dita. Então, o filósofo observa que o elemento irracional parece ser duplo, sendo que a parte vegetativa não tem participação no racional. Mas o elemento desiderativo participaria, sendo capaz de lhe ouvir e obedecer (EN 1102b29-45; 1103a1-3).

E, sendo que há virtudes separadas para partes da alma, e estando a virtude dianoética na parte racional, resta que as virtudes de nosso interesse, as virtudes éticas, estejam do lado do que não é exatamente racional, mas que é capaz de ouvir a razão.

Assim, para compreender o que seja a virtude ética, temo-la localizada na alma irracional. E tendo em vista tudo que foi escrito, pode-se entender que, de modo geral, as virtudes são disposições de caráter, que tendem por sua própria natureza para a prática dos atos que as produzirão. Dependem de cada um e das circunstâncias em que os agentes se encontram, mas buscam a ação conforme o que dita a boa medida. Portanto, Aristóteles propõe que as virtudes morais são disposições de caráter habituadas ao que é convenientemente bom, escolhendo o termo médio entre dois vícios, um por excesso, outro por falta. Mesmo que tais virtudes pertençam à parte irracional da alma, para que sejam

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realmente consideradas virtudes precisam, como mencionamos anteriormente, ouvir e obedecer à razão. Por isso será necessária uma breve averiguação da relação entre virtudes éticas e dianoéticas, a fim de prosseguirmos em nossa inquirição acerca daquela que aparenta ser uma relação difícil entre as virtudes e as paixões. Porém, antes veremos em maiores detalhes o que levou a separá-las.

II.

A aparente dificuldade em associar as virtudes e as emoções dentro da proposta ética de Aristóteles foi ressaltada pela diferenciação que o trecho 1105b22-26 fez das qualidades que existem na alma, trecho seguido por inúmeras afirmações que parecem confirmar tal cisão. Estas passagens parecem sugerir a necessidade de um privilégio do racional em relação ao emocional na vida moral, a despeito de nosso entendimento de que as virtudes morais não se posicionam na parte racional da alma. Trechos como aquele que se refere à melhor vida possível destacam a importância da razão (EN 1097b35; 1098a1-17) e defendem que a vida completa em sentido ético não poderia existir sem a virtude, e não poderia ser totalmente dada ao passional, pois:

um homem é dito temperante ou intemperante conforme seu intelecto tem ou não o domínio, o que implica que cada um de nós é seu próprio intelecto. E as ações que nos parecem as mais propriamente nossas, nossas ações verdadeiramente voluntárias, são aquelas que se acompanham de razão. [...]

viver conforme um princípio difere de viver sob o império da paixão, na medida em que desejar o bem é diferente de desejar o que parece somente vantajoso. [...] Para o homem vicioso, portanto, há desacordo entre o que ele deve fazer e o que ele faz, enquanto para o homem de bem, o que ele deve fazer ele o faz, porque o intelecto sempre escolhe o que há de mais excelente para si mesmo, e o homem de bem obedece ao comando de seu intelecto (EN 1168b34-35; 1169a18).

Essa passagem parece mesmo sugerir a necessidade da submissão das emoções e dos desejos à razão, pois se estivessem à frente das ações o homem seria mau. E mais adiante na Ética a Nicômaco o filósofo torna a afirmar que a melhor vida possível deve estar de acordo com a virtude e com a razão, que chega a ser comparada a algo divino, ou ao que haveria de mais divino no homem, conduzindo-o à melhor das atividades: a contemplação. O que reforça a ideia da necessidade da primazia da racionalidade quanto às emoções na condução da ação, porque Aristóteles afirma que o melhor tipo de vida não pode ser acessado pelo homem a não ser que tenha algo de divino em si. E, se a razão é divina em comparação com o homem, a

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atividade conforme a razão é divina se comparada com a vida humana. Por isso o homem deveria escolher viver conforme a razão, pois “o intelecto é em mais alto grau o homem” (EN 1178a6-7). Deste modo, a vida conforme a razão e em contemplação seria a vida mais feliz.

Contudo, devemos prestar atenção à ressalva feita por Sorabji (2002, p. 190): apesar de Aristóteles apontar o intelecto como o verdadeiro homem, é provável que essa não seja a posição definitiva do filósofo quanto ao assunto. Isso indica que a questão ainda requer maiores cuidados porque, embora Aristóteles tenha a opinião de que melhor é seguir a regra justa, estaria pronto a admitir que isso não se cumpra com frequência. E, segundo Sorabji,

Aristóteles viu as emoções não apenas como úteis, mas como essenciais para a melhor vida que os homens podem alcançar na prática. Embora dividido, ele reconhece que uma vida de nada mais que contemplação não é possível para nós. Até mesmo os filósofos devem comer e viver em sociedade, e a vida mais feliz envolverá também o exercício das virtudes em sociedade. As virtudes, por sua vez, envolvem acertar o ponto médio na emoção, bem como na ação (2002, p. 190-191; tradução nossa).

Mas as questões sobre conduta e sobre o que é bom não são fixas (EN 1104a5).

Sendo assim em relação aos casos gerais, quanto aos casos particulares ter-se-á ainda menos exatidão, porque não há arte ou preceito que alcance todos eles, e é nos casos particulares que a presença das emoções nas ações se manifesta com maior intensidade. E é a razão que ajuda a determinar, nos casos de ações particulares, a justa medida com o intuito de não deixar o desejo, o prazer e as paixões desmesurados direcionarem o que se faz. Contudo, a intervenção destes elementos na ação é indiscutível. Por isso a presença da razão como reguladora do prazer, do desejo e das emoções deve ser concreta, mesmo porque a virtude moral está próxima a estes na alma humana.

Então, haveria uma relação clara entre páthos e areté, mas uma relação aparentemente negativa. O que pode ter levado à proposta da necessidade de prevalência da razão na ação e da necessidade da separação da emoção e da virtude no agir bem, pois por natureza tais qualidades já se viam separadas na alma. Segundo Nussbaum (2008, p. 24-25), esse tipo de constatação conduziu algumas teorias sobre a questão, a propor as emoções como movimentos não raciocinados, ou ao menos a propor a irracionalidade das emoções. Tais estudos muitas vezes pensam-nas como energias irrefletidas que puxam as pessoas, mas que não se ligam aos modos como essas pessoas percebem ou pensam o mundo. Movem as pessoas sem que percebam um objeto ou uma crença que as motive. Ideia que pode estar ligada, por vezes, à proposição de que as emoções vêm da parte animal ou natural do homem,

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e não necessariamente daquela parte “humana”. Às vezes essa perspectiva está ligada à ideia de que as emoções são antes corporais que mentais, sendo estúpidas e não inteligentes. A autora considera essa visão inadequada, mas pensa que deve ser levada em conta devido à influência que teve até bem pouco tempo.

Esse tipo de interpretação leva a dar atenção à proposta de Zingano, que também ressalta a forte presença (não necessariamente positiva) das emoções na vida humana pensada por Aristóteles. O estudioso destaca a afirmação da Ética a Nicômaco que os homens que vivem segundo a paixão (kata pathos) são surdos e cegos aos conselhos morais e ao que a razão propõe (Cf. EN 1195a8; 1179b27; 1128b17; 1179b13). Tal afirmação parece adquirir quase um tom de advertência, porque Aristóteles pensa que a boa medida é dada pela razão.

Mas, Zingano observa: é o próprio Aristóteles quem une as emoções à parte não racional da alma (EN 1168b20). Então, como não pensar a razão em conflito com as emoções, buscando domá-las, embora escapassem à medida que a razão poderia lhes dar?

Esse embate entre o emocional e o racional nos enuncia uma emoção tão fortemente presente na vida ativa que escaparia mesmo ao controle do racional. Contudo, temos lido Aristóteles a destacar a importância de um caminho inverso. Talvez esse seja o motivo do filósofo evocar o auxílio das virtudes intelectuais, bem como da escolha deliberada (prohairesis) e da deliberação (bouleusis) à vida virtuosa. Portanto, é preciso observar a participação das virtudes intelectuais na vida moral, especialmente a participação da phrónesis (prudência). Pois, segundo Aristóteles, os princípios dessa sabedoria concordam com as virtudes morais e a retidão moral concorda com ela.

As reflexões de Zingano sobre o que realmente seja a virtude pensada por Aristóteles reforçam sua relação com a phrónesis, com a escolha deliberada e com a deliberação. Ao traduzir e interpretar o trecho da Ética que descreve a areté, o estudioso chega ao seguinte resultado: “uma mediedade segundo o enunciado que revela a quididade” (to ti en einai;

ZINGANO, 2007, p. 157; cf. EN 1107a6-7). Está em jogo a essência da virtude que é descrita como uma “disposição ligada à escolha deliberada, que consiste em uma mediedade relativa a nós, a qual é determinada por uma razão, isto é, como a determinaria o homem prudente” (EN 1106a36-37). Mas é possível dizer que “a escolha deliberada consiste no ato de pesar razões rivais a respeito dos meios para obter o fim almejado” (ZINGANO, 2007, p. 158). A deliberação é o ato por excelência da razão prática, quando esta mostra sua potência. Por isso no Livro VI, capítulo 8, o prudente é descrito como quem sabe deliberar, e no capítulo 10 a prudência é dita boa deliberação. Então, “a escolha deliberada introduz, no centro da virtude,

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por conseguinte no seio mesmo das emoções, o ato de pesar razões para aquilo que se faz ou se deixa de fazer” (ZINGANO, 2007, p. 158).

Sendo assim, a phrónesis, bem como a escolha e a deliberação, tem papel de destaque junto à virtude moral. Papel que pode ser mais bem compreendido se pensarmos outra proposta feita pela Ética a Nicômaco a respeito do que seja a virtude. Aristóteles afirma que temos uma disposição natural para certas qualidades que quando não acompanhadas da razão tornam-se nocivas. Contudo, “uma vez que a razão veio, então no domínio da ação moral é uma mudança radical, e a disposição que não tinha até aqui senão uma semelhança com a virtude, será então virtude em sentido estrito” (EN 1144b13-14). O que leva a entender que temos naturalmente certas disposições, mas que a virtude “no sentido estrito da palavra” é aquela gerada pelo hábito a partir de tais disposições, como foi proposto acima. Assim, há virtude “no sentido estrito da palavra” se a disposição natural está de acordo com a razão.

Portanto, na parte moral existem dois tipos de virtude, uma natural e uma virtude em sentido estrito. A segunda envolve phrónesis, pois para ser realmente virtuoso o princípio racional deve estar em ação. E “a regra justa é aquela que é segundo a prudência” (EN 1144b22).

Deste modo, “vemos assim claramente, por aquilo que já dissemos, que não é possível ser homem de bem no sentido estrito, sem prudência, nem prudente sem a virtude moral” (EN 1444b30-31). Um homem incondicionalmente bom deve “possuir” todas as virtudes na acepção estrita (EN 1144b35). Portanto, o homem que apresentasse a virtude em sentido estrito seria senhor de si. Mas, tal homem estaria livre do incômodo das paixões, dos prazeres e dos desejos da parte não racional da alma? Ou deveria livrar-se destes, já que na maioria das vezes, ou na maioria das pessoas as emoções estariam à frente da razão, desviando o homem comum do ideal de virtude e de vida? As propostas de Aristóteles e dos estudiosos supracitados não parecem tender a afirmar que o virtuoso deva se livrar das emoções a fim da boa vida. Por isso precisamos ainda esclarecer melhor a relação das virtudes com o páthos.

III

Embora as virtudes morais e as emoções pareçam dificilmente conciliáveis à primeira vista, há evidências de sua relação. Como afirmamos acima, tais indícios começam a surgir no próprio trecho que destacou a diferença entre as qualidades da alma, pois assinala a relação entre os ditos “três fenômenos” que são encontrados na alma: “os estados afectivos, as

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faculdades a as disposições” (EN 1105b17-21). Mas, ainda é preciso esclarecer como possam conviver pacificamente e até interagir positivamente. Para isso podemos ressaltar algumas das ideias sugeridas ou defendidas anteriormente. Primeiro, podemos pensar a boa associação das emoções com a virtude, pois o fato de serem coisas diferentes não implica que estejam separadas, já que o filósofo entende “por disposições, enfim, nosso comportamento bom ou mau relativamente às afecções [...] por faculdades, as atitudes que fazem dizer de nós que somos capazes de experimentar essas afecções” (EN 1105b23-26). Deste modo, as qualidades se ligam por sempre se referirem às emoções. Segundo, ao contrário do que a sequência do texto poderia levar a crer, se prestarmos atenção ao contexto, este indica que as disposições de caráter que pelo hábito podem se tornar virtudes morais (ou vícios) estão postas na mesma parte da alma que as emoções, como também vimos acima. Interpretação confirmada por teorias como a de Fortenbaugh (2008, p. 75) que afirma ser possível entender a virtude moral como perfeição do lado irracional do homem. Constatação importante para nossa investigação, pois reconhece a relação entre a metade irracional da alma e a reposta emocional, entendendo a virtude como uma hexis pela qual os homens são bem dispostos a respeito da resposta emocional (EN 1105b19; 1106a13). Terceiro, tal proposta se torna ainda mais clara pela forma como Aristóteles, ao longo da Ética, relaciona virtudes morais, desejos, prazer e dor. Por sua vez, estes últimos são descritos como intimamente ligados às emoções (EN 1105b22-24), que são descritas pela Ética a Nicômaco como “todas as inclinações acompanhadas de prazer ou de dor” (1105b23) e pela Retórica como “causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida que elas comportam dor e prazer” (1378a19-21).

Por fim, para reforçar o que foi afirmado, é preciso falar da possibilidade e mesmo a necessidade de medida nas emoções. Esta medida põe em contato emoções e virtudes de modo favorável à boa vida já que foi entendida como um objetivo da virtude. E é sugerida porque as emoções também estão sujeitas ao excesso e à falta (EN 1106b15-16), como podemos ler no trecho que segue:

Assim, o medo, a ousadia, o apetite, a cólera, a piedade e em geral em todo sentimento de prazer e de dor, encontramos muito e muito pouco, que não são bons nem um nem o outro; ao contrário, sentir essas emoções no momento oportuno, no caso e a respeito das pessoas que convêm, pelas razões e do modo que é preciso, é a medida e excelência, caráter que pertence precisamente à virtude (EN 1106b17-23).

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Então, como explica Sorabji (2002, p. 78), a disposição virtuosa a quanto à emoção consiste não consiste em evita-la ou experimentá-la, mas em experimentá-la corretamente. Por isso a doutrina da metriopatheia (da moderação nas emoções), termo que, observa Zingano (2007, p. 143), embora não apareça entre o vocabulário aristotélico da virtude apreende de modo “sucinto e feliz” um dos principais aspectos da moral aristotélica. Conseguir dar a boa medida às emoções, mas também aos desejos e aos prazeres que as acompanham, é sinal de virtude moral e prova maior da relação destas virtudes com as emoções.

As emoções, mesmo por sua relação com o desejo, sempre estão relacionadas a prazeres ou dores. E, sendo que o agradável e o doloroso acompanham o homem e suas emoções desde a infância, é difícil “conter essas paixões” que estão enraizadas na vida humana. Mas, como vimos, tal ‘contenção’ se faz necessária à virtude (EN 1105a4). Por isso, a mediania quanto às emoções, aos desejos e aos prazeres deve ser própria à virtude (EN 1109a20-23; 1121a2-4; 1124a6-15). Deste modo, “não se trata de extirpar as emoções, mas de lhes dar uma justa medida, vive-las metriôs, e a virtude moral consiste justamente em encontrar sua medida em função e no meio das circunstâncias em que se produzem as ações”

(Zingano, 2007, p. 144). E por isso é possível afirmar que as paixões estão presentes na constituição do sujeito moral: têm papel significativo tanto para o caráter e até mesmo para o início das ações. Já a razão prática atua no interior do sujeito moral, pode conduzi-lo melhor ao seu objetivo, mas também frear ou redirecionar seus movimentos, tornando o sujeito moral um agente moderado em suas emoções, pois a emoção desmesurada não deve controlar o agir.

Isso concorre para a virtude que é considerada boa medida por localizar-se “entre” dois extremos e o ato virtuoso é agradável e isento de dor, pois “[...] a virtude tem por caráter não sentir prazer ou dor senão nas circunstâncias nas quais se deve experimentar isso, e como se deve” (EN 1121a3), sendo o mesmo válido para as emoções.

Referências

ARISTÓTELES. De anima. Tradução de Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006.

____________. L´Ethique a Nichomaque. Tradução de Jean Tricot. Paris : Vrin, 2012.

____________. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

BESNIER, B. Paixões Antigas e medievais. Trad. Miriam Campolina Diniz Peixoto. São

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Paulo: Loyola, 2008.

COOPER, J. M. Reason and emotion. Princenton: Princenton University Press, 1999.

FORTENBAUGH, W. W. Aristotle on emotion. London: Duckworth, 2008.

NUSSBAUM, M. Upheavals of thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

SORABJI, R. Emotion end peace of mind. Oxford: Oxford university Press, 2002.

VERGNIÈRES, S. Ética e Política em Aristóteles. Tradução de Constança Marcondes César.

São Paulo: Paulus, 1998.

ZINGANO, M. Estudos de ética antiga. São Paulo: Discurso editorial, 2007.

Referências

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