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Juventude, violência e educação: nomadismo e experimentação

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Academic year: 2018

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Juventude, violência e educação:

nomadismo e experimentação

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Glória Diógenes

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A igreja diz: O corpo é uma culpa A ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: O corpo é um negócio O corpo diz: eu sou uma festa. (“As Palavras Andantes”, Eduardo Galeano)

Um prelúdio

Experimentar. Usar os cinco sentidos. Ser

afetado. Em outras palavras, educar. O conjunto desses

dispositivos provoca um movimento ininterrupto do ato

aprender-desaprender-aprender. Essa ação contínua da

aprendizagem requer um entrelaçamento entre espaço e tempo, entre lugar da experiência e tempo da memória. Como diz Bachelard, a memória é topográfica. “É pelo espaço, é no espaço que encontramos que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências” (1998, p. 29). A lembrança, para se fixar, demanda um suporte, um lugar, uma paisagem capaz de abrigar os signos da experiência. Essa paisagem nem é fixa, como visualizamos nos mapas, nem muito menos física, tal qual costumamos visualizar e tatear em nossas

26 Esse texto foi previamente apresentado no X Encontro de VIII Encontro

cearense de historiadores da Educação/ III Encontro Cearense de Geografia da Educação, Fortaleza, julho de 2011.

27 Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

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vivências urbanas. Essa experiência de educação é móvel, assume múltiplos campos de experimentação e não tem uma finalidade específica. Porém, prescinde dos requisitos mais tangíveis, mais concretos e mais ocultados nos ritos da aprendizagem – território corpo, território cidade.

Por tal razão, neste texto, em vez de seguir apenas trilhas discursivas, compartilharei narrativas e reflexões acerca das conexões entre corpo e cidade no campo de estudos e pesquisas sobre juventude. Vale ressaltar que aqui pouco importa a ideia do corpo invólucro, isolado dos outros corpos e dos lugares por onde anda e por onde fica. Interessam os pontos de encontro e os sentimentos que daí emergem e que produzem lastros compactuados de sentido, já que “sem o afeto que o sustenta os códigos são línguas mortas”(GIL, 1997, p. 42). Por essa razão, o corpo é, também, sedimento da escrita, lugar de dar passagem aos códigos dos afetos.

Em todas as vias percorridas, fui eu, também, andarilha. Seja como facilitadora da oficina da palavra no Enxame,28 seja como educadora-pesquisadora em planos diversos de encontros e descobertas com os vários atores que povoaram o campo dos vários processos de pesquisa: gangues, galeras, hip-hop, pichadores, grafiteiros, integrantes de torcidas organizadas de futebol, lutadores de jiu-jítsu, dentre outros. Desse modo, algumas linhas poderão desenhar mapas em zigue-zagues, conjuntos entrelaçados de nós entre juventude, corpo e cidade.

A arte é a força motriz da narrativa. Os saberes emanados no campo da arte têm o corpo como o lugar que dá passagem, que emite códigos, produz e compactua sentidos. O corpo atua na educação como um transdutor de signos (GIL, 1997, p. 32). Isso significa dizer que em particular, convirá dar um lugar de importância ao corpo, à sua aptidão para emitir e receber signos, para os inscrever

28 Essa experiência de criação e coordenação da ONG Enxame ocorreu

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sobre si mesmo, para os traduzir uns nos outros. Os signos do corpo é que conduzem, conformam e fazem circular códigos e significantes da cidade, movendo, em cada um desses lugares, diferentes formas de apropriação e nomeação simbólica; tanto dos sujeitos como dos espaços urbanos. São os corpos que fazem trafegar os signos que informam cidade, transformam cidade e imaginam cidade (FERRARA, 1988).

Cidade e corpo projetam-se como lugares amalgamados de experimentação. Misturar saberes segregados, como diz Michel Serres (2001, p. 311), significa perceber que o sensível é resultado da presença constante da flutuação, de circunstâncias que mudam o tempo todo, que passam para as bordas e provocam trocas, bifurcações, mudanças de dimensão, passagens de energia à informação, em suma, tudo que conecta o indivíduo local e singular às leis globais do mundo e as flutuações do nicho móvel. Acredito que eu mesma, nessa qualidade dupla e também

misturada de professora da universidade, coordenadora de uma experiência com jovens da periferia, pesquisadora nômade, fui quase sempre impelida a movimentar-me para as franjas do que se denomina ser educadora e ir para além das salas, bibliotecas e gabinetes. Sair do lugar para que o conhecimento assuma a forma e o fluxo do movimento.

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Fronteiras e territórios

A cidade produz um sentido, uma significação nomeada e apropriada por cada sujeito a partir do conjunto de imagens que ele acumula: um repertório de signos urbanos. Não se faz isso sem o corpo, não se faz isso sem movimento, sem experimentação. São os jovens que parecem, mais do que qualquer outro personagem urbano, perceber o caráter imagético da existência na cidade e do corpo como artífice dessa cultura da comunicação visual (CANEVACCI, 2001). Os lugares da cidade transmudam-se através do conjunto de imagens acionadas nas passagens dos corpos juvenis. Desse modo, ser jovem tem significado, para além da condição geracional, a habilidade de

construir, partilhar e exibir signos juvenis. “A comunicação visual tornou-se tão recorrente que é como se as palavras funcionassem apenas como âncoras para que o corpo-linguagem pudesse exibir-se, para que os sinais pudessem explicitar os jogos de identidades”

(DIÓGENES, 1998, p. 162). Promovem um estatuto singular de existência a cada experiência, e acreditam muitas vezes que têm que demarcar, dominar e defender esses territórios.

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Se o urbano, em seu funcionamento previsível e homogêneo dos percursos casa-trabalho-consumo, revela-se como lugar de mera passagem, reforça a face oficial da cidade, essas experiências juvenis fazem emergir espaços que pareciam não existir, formas singulares de vivência e apropriação da cidade. Nesses movimentos são desenhados e projetados jeitos diversos de sentir e pertencer à cidade.

Os jovens parecem reeditar, nas grandes metrópoles, a dinâmica do espetáculo, do cortejo, do desfile, da cor, da música e da fantasia como forma de acionar uma comunicação urbana, um modo de ser e de se fazer cidade. “A etimologia da palavra polis mostra que significa ‘aglomeração’, ‘multidão’, ‘fluir’, ‘cheio’, muitos. Está relacionada à palavras tais como ‘plenus’, ‘plerus’, ‘plebs’, ‘palus’, ‘plus’ (ou superabundância, sempre mais)” (HILLMAN, 1993, p. 75). É desse modo que as festas, a música, usos intensos do espaço urbano em geral, parecem mobilizar, concentrar e fazer explodir energias dispersadas, contidas e silenciadas nos espaços padronizados de conduta pública. É possível ler juventude ao seguir pegadas das múltiplas vias e vidas que os jovens experimentam na cidade. Eles produzem imagens que fazem ver

cidade, nem que seja pelo confronto ou pela via da depredação, pichação, pelas tretas incessantes com a polícia.

Eles precisam andar, movimentar-se para exibir signos de estilos e filiações juvenis muitas vezes sombreados no mundo invisível das periferias. A dimensão tradicional de cidade, baseada na geografia física tem como referente o caráter de materialidade, de lugar fixo e concreto assumido por suas paisagens. De outro modo, as cidades modernas têm como estatuto de existência o conjunto de imagens que são capazes de acionar por meio de signos que circulam e produzem linguagem.

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tradicional, o espaço representa um lugar geograficamente delimitado, com fronteiras e dimensões físicas visíveis e até mesmo táteis. Cada lugar, uma função. Talvez fosse pertinente estabelecer uma diferenciação entre o que se considera no escopo desses registros, espaço e território. De acordo com Raffestain (1993), “é essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao assumir o território uma dimensão de comunicação e representação encenada por seus atores, ele pode ser conduzido através de imagens, atos e palavras; ele movimenta-se por outro território: o corpo.

É preciso corpo com potencial de movimento para além das fronteiras convencionais; pernas para percorrer velocidades e transpor divisas. Apenas assim, o território, lugar de morar e ficar assume uma entidade física. Daí a possibilidade de transmudação permanente do espaço em território, de um movimento turbilhonar absoluto. Porque o corpo é que define o território (RAFFESTAIN, 1993, p. 143), é ele que realiza, por meio de um programa, errante ou sedentário, a circulação de imagens capazes de traduzir o espaço em território.

(...) os corpos dilacerados dos integrantes das galeras, mesmo na expressão pública do transbordamento de seus limites, entrelaçam corpo e cidade. Trazem às superfícies suas nomeações, dissidências, enfrentamentos múltiplos e suas marcas territoriais. Esvaziam-se para fazer do corpo um lugar em que sejam fincados signos territoriais (DIÓGENES, 2003, p. 210).

Ocupar a cidade, fazer valer estéticas, imagens, formas de viver e movimentar-se; ultrapassar barreiras de segregação urbana; estar nos shoppings, nas vias e nos locais destinados a usos específicos, ocupar e inverter usos urbanos, principalmente quando tais movimentações são realizadas por jovens da periferia, representa

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jovens em seus locais de moradia, não ultrapassarem as barreiras da alfândega. Limites e divisas da cidade são reproduzidos em zonas de atuação, seja das turmas, incluindo as de classe média e os jovens moradores de periferia, zonas de ação da polícia. Uma cidade zoneada, entrincheirada, controlada e descontrolada torna-se não apenas espaço de confrontos e violência, mas fundamentalmente, lugar de reinvenção, de criação de novas táticas de expressão de si, do grupo e dos loci de pertencimento. Assim, como veremos a seguir, a cidade é múltipla, possibilita dobras diversas e reconhecimento público. As conexões entre corpo e cidade e seus fluxos produzem experiências táteis e desenham múltiplos fios de pertencimento. Para isso, precisamos continuar seguindo trajetos.

Pistas de Lobão: um sujeito de tantos nomes

Sigamos Lobão. Rapper, participante do movimento hip-hop, da rádio comunitária do bairro, dançarino de break, ex-pichador, educador social do Centro Comunitário do Morro, mestre de briga de galos, soltador de arraia,29 integrante da banda Conscientes do Sistema e articulador comunitário da ONG Enxame. Lobão não para. O Morro do Lobão e o Morro da Cidade de Fortaleza, situados no bairro do Mucuripe, projetam-se como mapas que parecem ter sofrido alterações em seus limites, no traçado de suas vias, na disposição dos equipamentos e nos usos e desusos do espaço urbano. É bom lembrar, estamos em Fortaleza. De cima do Morro Santa Teresinha, podemos ver a orla onde se situam os principais hotéis, restaurantes, bares e os edifícios de mais alto valor especulativo no mercado imobiliário. Morro e beira-mar parecem dar corpo à alma da cidade: lugar de nítidos contrastes e de linhas demarcatórias de uma visível segregação espacial. É assim que Lobão, segundo ele, pode apreender a manha de andar “na moral” no Morro e dar início aos nossos percursos.

Quando entro na minha rua, já vou logo soltando o corpo. Fico todo ameninado, deixo esse meu jeito

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de líder do bairro, não dou conselho a ninguém. Sento na calçada e sei que ali eu sou o Chuchu. Brinco e grito igual os meus primos, meus amigos ‘das antiga’. Ali, não sou modelo pra’ ninguém. Até meu olhar muda. A diferença do Lobão pro Chuchu é porque o Lobão as pessoas veem com muito respeito, né, e vê como um artista, e aqui não; eu me sinto à vontade de não tá tendo que se preocupar com o que eu tô falando, com a postura, tá passando informação, aqui eu não tenho que passar nada. Aqui eu sou, eu sou um nada, sou o Chuchu, simplesmente Chuchu, sem compromisso com nada e aí quando eu quero, quando eu tô estressado, que eu quero fugir de tudo, eu pego, tranco aqui a sede e vou lá pra rua e sento no meio da rua.

O significante nada parece desnudar Lobão da ordem dos papéis e atribuições sociais que ela já alcançou no bairro. Quando adentramos a rua e alguém gritou “Chuchu”, Lobão parecia ter deixado para trás os signos da consciência,do corpo como suporte de uma moral tão referida em seus raps. Ali, ele voltava à infância, era menino. Na rua da família, outro corpo pôde emergir.

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ligado, aquela doidinha que é só massa, agora não é sapatão?”, “Diz aí, doido, que deram uma furada no teu ex-cunhado, viche, o cara quase morre, dava pra entrar era uma mão. “Joãozinho, bora lá, pra tu vê como é que tá, não sei quê e tal”. Isso aqui é a rua, quando eu chego lá, é outro mundo.

Desenhos, fotografias e a gravação da fala de Lobão, durante todo o trajeto, possibilitaram ao grupo identificar, posteriormente, quantos nomes “adotamos” nos lugares em que passamos e que relação existe entre nome, lugar e formas de ser e se relacionar. Nesses caminhos, produzem-se desvelamentos, exibições, encontros fortuitos, aparições dos lugares que já são outros, nos

lugares da memória; caminhar faz acordar os corpos artífices da cidade, corpos que movimentam cidades. Caminhar pode significar transmudar a lógica rotineira do deslocamento para outros itinerários.

É nessas zonas costumeiras que os jovens como Lobão reinventam cidades e corpos. Não qualquer juventude, apenas aquela que embaralha os códigos do habitar, do trabalhar, do brincar, do jogar e do viver com intensidade. Ganha, essa juventude, possibilidade de produzir tantos corpos e tantos pedaços de cidade quanto necessitam para poder driblar os muros e as fronteiras do disciplinamento. Nesses movimentos fora das vias costumeiras, a cidade se confunde, se dilui e se reinventa.

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Este é o grande desafio das políticas públicas que atuam no campo da violência juvenil e das práticas de delinquência: tomar a recusa, o conflito e a agressão como lugares de reinvenção, de mudanças de atitudes e de valores.

(...) ressignificar valores e atitudes dos adolescentes que se sentem excluídos e são realmente excluídos do acesso a equipamentos e serviços urbanos mais diversos, nos seus lugares de vida, nas suas práticas de espaço e, concomitantemente, interligá-los a toda rede de direitos que os constituam como sujeitos atuantes para além dos seus âmbitos costumeiros de atuação e vivência. Nossa empreitada é a de criarmos políticas para a juventude que, no geral, quando são distantes de suas aspirações, se apropriam ao seu próprio modo sem que se observe um envolvimento e uma mudança efetiva na condição de vida dos que usufruem dessas políticas (DIÓGENES, 2009, p. 283).

Como criar uma política pública mediada pela lógica do movimento? Ser jovem tem significado efetuar uma representação, uma marcação, a produção de um estilo, de uma filiação, de um modo de ser, ou seja: projeção de uma imagem ou de um repertório delas. Eles passam, carregam signos-cidade e com essas andanças proclamam uma dupla existência: a deles e a da cidade propriamente dita. Em cada lugar que experimentam, que aportam, fincam marcos territoriais, produzem e consomem imagens.

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acústica; elas apenas nos conduzem a outras passagens. Andar é

uma forma não intencional de praticar cidade.

E qual é a razão dessa não intencionalidade? O

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Referências bibliográficas

BACHELARD, Gastón. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

CANEVACCI, Mássimo A Antropologia da Comunicação visual. São

Paulo: Brasiliense, 1990.

DIÓGENES, Glória. Cartografias da Cultura e da Violência: gangues,

galeras e o Movimento hip hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e do Desporto, 1998.

__________________Itinerários de Corpos Juvenis: o tatame, o jogo e o baile. São Paulo: Annablume, 2003.

____________________. Juventude, exclusão e a construção de políticas públicas: estratégias e táticas. In: MENDONÇA FILHO, M. e NOBRE, T. (org.). Política e afetividade: narrativas e trajetórias de pesquisa. Salvador: São Cristóvão, EDUFBA/EDUFS, 2009.

DELEUZE, Gilles. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrênia, vol. 5, Rio de Janeiro, 1997.

FERRARA, Lucrécia. Ver a Cidade. São Paulo: Nobel, 1988.

GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’ água, 1977.

HILLMAN, James. Cidade & Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

MINAYO, Cecília Sales. O gesto inacabado. São Paulo: Annablume,

1998.

RAFFESTAIN, Claude. O Que é Território? In: Por uma Geografia do

Poder. São Paulo: Ática, 1993.

SERRES, Michel. Os Cinco Sentidos: Filosofia dos corpos Misturados.

Referências

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