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A Voyage into Tartary (Londres, 1689):prelúdio da Revolução Gloriosa de 1688

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MORUS – Utopia e Renascimento, 12, 2017

A Voyage into Tartary (Londres, 1689):prelúdio da Revolução Gloriosa de 1688

Bruna Pereira Caixeta

Universidade Estadual de Campinas, FAPESP

Resumo

Desde a sua ascensão ao poder na Restauração de 1660, os Stuart, primeiro Carlos II e em seguida seu filho e sucessor, James II, encetaram um regime monárquico de alianças com a católica França de Luís XIV, a fim de conseguir vencer o Parlamento e instituir a monarquia absoluta no país.

Pouco a pouco, começaram um processo de catolização da Inglaterra. O catolicismo, em um gesto, se transformou no maior elemento para a continuação da monarquia e, ao mesmo tempo, maior empecilho para a modernização e para os planos imperialistas ingleses. Tendo isso em vista, no círculo dos intelectuais ingleses de maior prestígio na época, como Milton e Locke, pouco antes de deflagrar a Revolução Gloriosa que acabaria com absolutismo e o catolicismo do reino, ficou corrente de que estava mais que comprovado que o catolicismo era inseparável do absolutismo e dos governos tiranos; e então, para se estabelecer um nova e moderna ordem de Estado para a Inglaterra, e conseguir a continuidade dos planos imperialistas, ele deveria ser assumido como o grande problema a ser enfrentado na política e pelo qual se deveria partir para a edificação de um novo Estado. Uma ficção intitulada A Voyage into Tartary, publicada anônima em 1689, em Londres, integrou os primeiros a se propor esquematicamente,um novo Estado inglês a partir da religião. E assumiu a religião como uma esfera a partir da qual haveria nova orientação política.

Palavras-chave

Utopia, dinastia Stuart, Estado inglês, catolicismo, século XVII, Revolução Gloriosa

Bruna Pereira Caixeta é doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – IEL/UNICAMP. Seu doutorado, financiado pela FAPESP e orientado pelo professor doutor Carlos Eduardo Ornellas Berriel, consiste em realizar uma tradução para o português e um estudo crítico, da utopia inglesa, publicada anâonima em Londres, no ano de 1689, intitulada A Voyage into Tartary. Na mesma instituição, sob a mesma supervisão e órgão financiador, realizou seu mestrado. O trabalho consistiu em traduzir para o português e elaborar um estudo crítico para a obra The Man in the Moone (1638) do bispo anglicano Francis Godwin. No mestrado, realizou seis meses de pesquisa na University of Massachusetts Amherst, Estados Unidos, sob a supervisão da professora doutora Daphne Patai, e financiamento da BEPE-FAPESP; e, no doutorado, também por um período de seis meses, realizou pesquisas na Royal Holloway University of London, Inglaterra, sob a supervisão do professor doutor Gregory Claeys, e financiamento BEPE-FAPESP. Desde então, se dedica a pesquisar e fazer estudos dos temas e das obras pertencentes ao gênero da utopia literária publicadas na Inglaterra no século 17.

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1688

Bruna Pereira Caixeta

Universidade Estadual de Campinas, FAPESP

Abstract

Since his rise to power in the Restoration of 1660, the Stuarts, first Charles II, and then his son and successor, James II, began a monarchical regime of alliances with the Catholic France of Louis XIV, in order to win over Parliament and institute absolute monarchy in the country. Little by little, they began a process of catholization of England. Catholicism, in a gesture, has become the greatest element for the continuation of the monarchy and, at the same time, greater impediment to modernization and to the British imperialist plans. Bearing this in mind, in the circle of the most prestigious English intellectuals at the time, such as Milton and Locke, shortly before the Glorious Revolution that ended with absolutism and Catholicism in the kingdom, it became clear that it was more than proved that Catholicism was inseparable from absolutism and tyrannical governments;

and then, in order to establish a new and modern order of state for England, and to achieve the continuity of the imperialist plans, it should be assumed as the great problem to be faced in politics and by which one should begin to build a new State. A fiction titled The Voyage into Tartary, published anonymously in 1689 in London, included the first works to propose schematically a new English state from religion. It assumed religion as a sphere from which there would be new political orientation.

Keywords

Utopia, Stuart Dynasty, English State, Catholicism, 17th Century, Glorious Revolution

Bruna Pereira Caixeta is a PhD student in Theory and Literary History at Instituto de Estudos da Linguagem of the Universidade Estadual de Campinas - IEL / UNICAMP. Her doctorate, financed by FAPESP and guided by Professor Carlos Eduardo Ornelas Berriel, consists of a translation into Portuguese and a critical study of the English utopia entitled A Voyage into Tartary, published anonymously in London in the year 1689. At the same university, under the same supervision and funding institution, she completed her master's degree. The work consisted of translating into Portuguese and elaborating a critical study for the Anglican bishop Francis Godwin's The Man in the Moone (1638). In the master's degree, she completed six months of research at the University of Massachusetts Amherst, USA, under the supervision of Professor Daphne Patai, and sponsered by the BEPE-FAPESP funding; and in her doctorate, she also conducted six months research by BEPE-FAPESP funding at the Royal Holloway University of London, England, under the supervision of Professor Gregory Claeys. Since then she has been researching and studying the themes and works belonging to the genre of literary utopia published in England in the 17th century.

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O século 17 inglês, período da ambientação, composição e publicação da ficção A Voyage into Tartary,foi o mais decisivo para a Inglaterra efetivar a passagem para Idade Moderna. Foi o período em que, finalmente, os três pilares que atravancavam o plano imperialista e a modernização do país – a saber, monarquia, economia feudal e religião - ruíram efetivamente, e, em que houve o surgimento de novas perspectivas de alterar a sociedade em todos os seus âmbitos – a política, a economia, a religião, a educação – e, inclusive se alterar a visão de mundo. Neste século, um verdadeiro novo mundo foi preludiado na Inglaterra e aos poucos instalado.

No espaço do 17, a monarquia ruiu efetivamente – a Coroa passou a ser controlada pelo Parlamento; a economia de tipo feudal, feneceu – deixou de apoiar-se no sistema de monopólios e concessão de terras, para investir no comércio exterior, sobretudo em escambos ena colonização do Oriente; e, finalmente, a religião, motivo das inúmeras e intermináveis guerras civis no país, da segregação da comunidade protestante eda desavença por excelência, entre Coroa e Parlamento -, passou a determinar e reger menos as esferas econômica e política, passando cada vez mais a ter funções estritamente litúrgicas e separadas dos demais âmbitos civis; tudo isso, muito graças às mais recentes conquistas da revolução científica e das novas exigências mercantis.

A conquista da modernização e alteração desses três pilares foi gradual e, embora, o tempo todo e a todo momento se alteravam conjuntamente, se transformaram em tempo diferente ao longo do século 17. Voltando às décadas finais do século, 1680-90, nota-se que os grandes proprietários rurais e os comerciantes já haviam conseguido progressos nas iniciativas de minimizar o poder da Coroa e também alavancar as atividades econômicas, sobretudo no Oriente, nas regiões da Eurásia.

Contudo, a questão religiosa ainda não mudava de caráter e continuava a trazer problemas para a Inglaterra e impedi-la, tanto de finalmente se livrar da monarquia, quanto de findar as desavenças entre a comunidade protestante.

No final do século 17, a religião era o último âmbito que havia se desenvolvido, e era o último e maior atravanque para o sucesso efetivo das recentes conquistas nos campos da política e economia. Consistia, portanto, no maior empecilho para a modernização e para os planos imperialistas ingleses. A religião então em voga era o anglicanismo de cada vez maiores tendências católicas, influenciada pela política pró-católica assumida pelos últimos reis Stuarts. Desde a sua ascensão ao poder na Restauração de 1660, os Stuart, primeiro Carlos II e em seguida seu filho e sucessor, James II, encetaram um regime monárquico de alianças com a católica França de Luís

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XIV, a fim de conseguir vencer o Parlamento e instituir a monarquia absoluta no país. Pouco a pouco, começaram um processo de catolização da Inglaterra1.

Desta feita, o catolicismo que ainda havia na Inglaterra, era um possível meio de continuação da monarquia e de todos os atravanques às novas conquistas do século; por essa razão, a religião, indubitavelmente senão representava o maior empecilho para o país naquela altura, era próximo disso. Assim, não despropositada, conta Trevor-Roper2, entre intelectuais protestantes ingleses, dos quais Milton e John Locke são um exemplo chave, pouco antes das conquistas finais da Revolução Gloriosa e da assinatura da The Bill of Rights em 1689, os dois eventos que oficialmente decretaram o término da monarquia e de praticamente todo o arsenal do feudalismo, remanescentes, circulou uma tese unânime de que o mais importante e urgente a se considerar para estabelecer a ordem do Estado e conseguir a paz política, bem como se conseguir finalmente que a monarquia findasse e a continuidade dos planos imperialistas da Inglaterra nos mares obtivesse êxito, era admitir o catolicismo romano como o grande problema a ser enfrentado na política, uma vez que, segundo eles, ficara mais que comprovado que ele era inseparável do absolutismo e dos governos tiranos.

Para essa visão política, era necessário estabelecer de modo definitivo uma premissa de que o catolicismo romano seria permitido como religião pessoal, mas deveria ser erradicado da atividade política. Esses mesmos intelectuais também começaram a aventar a elaboração de tratados políticos que sugerissem uma transformação da sociedade e a proposição de uma nova cidade e/ou novo Estado partindo primeiro da alteração da religião: alterando-se tanto seus preceitos litúrgicos, quanto o raio de sua influência na determinação de assuntos como a política e a economia do estado.

Entendiam que na altura das duas últimas décadas do século, a Inglaterra já havia vivido uma transformação científica, visto a gestação e disseminação das principais obras de Bacon e dos estadistas Locke e Hobbes, sua política e sociedade, sua economia, já haviam recebido atenção acurada, longos estudos com apontamentos de soluções viáveis às transformações sociais, políticas,

“tecnológicas”, mas ainda havia a carência de obras que pensasse uma transformação política a partir da transformação da visão de mundo e das esferas de atuação da religião. Em outras palavras, ainda não havia sido feito um tratado político, a partir da esfera religiosa e determinante por ela, isto

1 Cf. Morton (1970).

2 Ver o capítulo “The Glorious Revolution of 1688” em seu From Counter-Reformation to Glorious Revolution, 1992.

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é, que pensasse a Inglaterra regida por uma religião de novo tipo erigindo um novo Estado, condizente com a nova situação política e as novas atividades imperialistas.

Dada a data de sua obra e as questões que fomenta, o autor e a ficção Tartary compuseram o grupo dos primeiros a se propor a imaginar, e também propor esquematicamente, nova política, novo Estado a partir da religião; assim, assumindo a religião como uma esfera a partir da qual haveria nova orientação política. O autor anônimo, muito provavelmente, esteve atento, ou mesmo, foi um participante ativo do círculo de intelectuais que cogitaram uma Inglaterra em que a política, a economia, a educação e a prática religiosa, o funcionamento da cidade e da sociedade, o organum civil baconiano, enfim, estivesse regido por uma nova concepção de mundo, fornecida por uma nova religião transmutada em organismo político.

1. Recepção e filiação da ficção A Voyage into Tartary

A ficção A Voyage into Tartary apesar de ter sido recebida inicialmente como produção libertina ou de ficção científica, respectivamente por Jean Michel Recault e Everett Bleiler, pelas razões acima justificadas, consistir em uma ficção política, encontra íntegra filiação no gênero da utopia. De acordo com a historiadora de doutrinas política, Silvia Ghibauldi3, dentro das três4 qualificações possíveis que poderiam receber os autores de utopia, uma delas consistiria naqueles que a colocam na realidade histórica. Para esses, a utopia se define por ser uma corrente histórica de renovação da sociedade, cujo objeto de investigação é essencialmente uma nova organização da vida associativa. Tartary constitui uma projeção consciente e intencional de um intelectual, da situação política da Inglaterra pós-Restauração.

O projeto político que o autor sugere coaduna com os de Milton, Locke, e muito especialmente com os de Bacon e Hugo Grotius, em se transmutar a política, ou fundar um novo estado, através da fundação de nova religião. Na esteira das iniciativas desses mesmos intelectuais

3 O texto em que traz essas ideias foi publicado originalmente nas páginas 161 a 172, do volume 1 da coleção “Forme dell’Utopia”, intitulado Per una definizione dell’utopia – metodologie e discipline a confronto (Ravenna: A. Longo editore, 1992); que acaba de receber tradução para o português por Carlos Berriel (UNICAMP) e Helvio Moraes (UNEMAT) na Revista MORUS, onde pode ser consultado pela referência: Silvia Rota Ghibauldi (2016, pp. 247-260).

4 “Os estudiosos da utopia podem ser distintos basicamente em três grupos essenciais: os que a reduzem ao romance utópico ou a preferem como tal, os que a colocam na realidade histórica, como uma corrente histórica de renovação da sociedade fundada sobre valores e necessidades considerados essenciais tais como liberdade, igualdade, justiça e irmandade, e, por fim, os que se atentam aos conteúdos dos problemas enfrentados, e não à forma de sua enunciação.”

(Ghibauldi, 2016, p. 250).

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em suas obras5 publicadas no final do século, propuseram a religião natural (ou Filosofia da Natureza) e o cristianismo universal como alternativas ao catolicismo romano e organização da cidade. Optaram por ela, pois a julgaram uma forma de religião cristã ampla, que tanto fosse capaz de abarcar todos os cristãos não-romanos, para, naquele momento, se obter alianças e aliados políticos - protestantes e católicos ortodoxos - fora do país, quanto que fosse funcionar como ordenação civil em suas terras e ferramenta de combate da monarquia.

O que faz a ficção A Voyage into Tartary é apresentar a história de fundação e o perfeito funcionamento de uma cidade governada por leis cristã/cristiano-filosóficas universais, totalmente protestante, livre de quaisquer influências católicas - da forma de conceber o mundo até a de organizar a igreja, as crenças de cada indivíduo e as leis civis. Também, paralelo e precedendo a apresentação desta cidade utópica, a ficção Tartary resgata um antigo e já facultado projeto da Igreja Anglicana de união entre anglicanos e a comunidade de cristãos ortodoxos do oriente (sobretudo aquela situada no Levante na sua enorme porção naquela época denominada por Tartária6) e os filósofos de Atenas, Grécia. A ideia de aliança com essa outra igreja proscrita por

5 Lembro duas obras, uma de Bacon e outra de Grotius, respectivamente, saídas não só no mesmo ano de publicação, mas vendida pelo mesmo livreiro (Randal Taylor) de Tartary, de Bacon: Certain considerations for the better establishment of the Church of England, under the following heads: I. The government of bishops. II. Liturgy, ceremonies, and subscriptions. III. A preaching ministry. IV. The abuse of excommunication. V. Non-residents and pluralities. VI. Provision for sufficient maintenances in the Church. By the Right Honourable Francis Bacon, Baron Verulam, Viscount St. Albans. With a new preface. London: printed and are to be sold by Randal Taylor, near Stationers Hall, MDCLXXXIX [1689]; de Grotius: The proceedings of the present Parliament justified by the opinion of the most judicious and learned Hugo Grotius; with considerations thereupon. Written for the satisfaction of some of the reverend clergy who yet seem to labour under some scruples concerning the origina right of kings, their abdication of empire, and the peoples inseparable right of resistance, deposing, and of disposing and settling of the succession to the crown. By a lover of the peace of his country. With allowance. London: printed, and are to be sold by Randal Taylor, 1689.

6Tartária, foi um termo geral usado durante muitos séculos, para descrever os territórios desconhecidos da Ásia Central, e “tártaros” foi o nome que se atribuiu a todos os habitantes desses locais. Da Idade Média até o século XX foi bastante comum se usar a designação "Grande Tartária" (ou, Tartaria Magna) referindo-se a uma grande extensão de território da Ásia Central e setentrional que se estendia do Mar Cáspio e das Montanhas Urais até o Oceano Pacífico, que era habitada pelos povos turcomanos e mongóis do Império Mongol, genericamente chamados de tártaros. O território conhecido por este nome abrange as regiões atuais da Sibéria, Turquestão (com exceção do Turquestão Oriental), Grande Mongólia, Manchúria e, por vezes, o Tibete.A Tartária frequentemente era dividida em seções, com prefixos que indicavam o nome da autoridade dominante ou da localização geográfica. Assim, a Sibéria ocidental era a "Tartária Moscovita" ou "Russa", o Turquestão oriental e a Mongólia eram a "Tartária de Catai" ou "Chinesa", o Turquestão ocidental (mais tarde conhecido como Turquestão Russo) era conhecido como "Tartária Independente", e a Manchúria como "Tartária Oriental". Um excelente estudo sobre Tartária, e de onde procedeu as informações acima, é fornecido por Elliott (2000, p. 638). Como relata Antonucci (2015, pp. 117-32), no século 17, o nome Tartari Orientalis surgiu na literatura europeia graças às cartas e relatos dos jesuítas enviados de suas missões na China. Ronald Love conta que, em 1684, os jesuítas enviaram o padre Philippe Avril para encontrar uma rota segura de terras para a China através da Sibéria, região conhecido como "Grande Tartária" pela Europa Ocidental. Essa informação de Love é bastante curiosa porque ela permite pensar que “Tartária” entre o círculo eclesiástico pode ter se tornado um termo que passou a ser sinônimo da rota a China - que os jesuítas esperavam encontrar. A informação completa de R. Love é aseguinte: “En 1684, les Jésuites ont envoyé le père Philippe Avril pour découvrir une route terrestre sûre à la Chine à travers la Sibérie (connue sous le nom de "Grande Tartarie" par les européens occidentaux). Quittant la France, Avril s'est arrivé

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Roma e de posse do catolicismo dito mais original, dava-se pela crença de que ela pudesse, junto com a filosofia platônica grega, fornecer os princípios da nova religião que os intelectuais criam ser então ideal e possível fundante da religião e do estado novo amplo. Também, por, simultaneamente, essas duas regiões virem a ser uma ótima porção de aliados econômicos contra o império francês e holandês nos mares, garantindo, assim, o êxito do projeto imperialista inglês. Em um artigo bastante interessante, Hugh Trevor-Roper (1978) informa que, na época, se chegou até a se cogitar a fundação de uma igreja anglicano-ortodoxa-platônica, que, claro, teria sede em Londres, e houve investimento intenso por parte da Igreja Anglicana tutelada então pelo célebre William Laud, na tradução de obras dos primeiros padres cristãos e também de Platão e Demócrito.

2. O enredo de A Voyage into Tartary

A narrativa de A Voyage into Tartary pode ser dividida em duas amplas partes. A primeira parte da narrativa consiste em um mapeamento da religião e da organização da Igreja Ortodoxa na Grécia e nos inúmeros povoados que compunham a região da Ásia Média, na porção naquele tempo denominada por Tartária. O autor realiza uma espécie de “cristianografia” dos ortodoxos de Atenas e das regiões tártaras de Smyrna, Geórgia e arredores, e exalta as características positivas e aponta os problemas do atual estado das igrejas ortodoxas nesses lugares, para propositalmente mencionar as contribuições que os ingleses poderiam dar para os problemas da religião, e também, eventualmente, da situação política dos mesmos, de uma forma que ficasse nítido e propagandeado como o acordo com esses cristãos era bem possível e seria rentável para ambas as partes.

Por fim, na segunda parte da narrativa se apresenta o complexo de Heliópolis, uma cidade do sol descoberta na Eurásia, local que foi o berço das religiões. Heliópolis representaria o próximo estágio da conquista inglesa após a união dos protestantes e as reformulações da religião. Heliópolis é apresentação de uma cidade governada por leis universais, dos âmbitos da religião, aos da ciência e comércio, tomando-os como organismos interligados e capazes de serem regidos por essa única lei ampla, universal. Sua arquitetura tem evidente inspiração nas ideias plantonistas difundidas por um grupo de intelectuais de Cambridge denominado de Cambridge Platonits. Ela toma parte de uma antiga tradição do pensamento inglês inspirada pela ideia clássica de Platão de que as leis

au Moyen-Orient, et puis a voyagé à travers la Perse, la mer Caspienne, et la Volga jusqu'à Moscou. Il a envisagé de traverser ensuite la Sibérie russe jusqu'à la frontière chinoise, mais le gouvernement tsariste, déterminé à interdire aux étrangers l'accès à, aussi bien que la connaissance de, son empire asiatique grandissant, lui a bloqué la route” (Love, 2003, pp. 85-100).

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universais, representadas pela ideia da filosofia natural e da razão, seriam as únicas capazes de sustentar o estado inglês ideal. Assim, apresenta uma cidade governada por leis universais, totalmente protestante, livre de quaisquer influências católicas, da forma de conceber o mundo até a de organizar a igreja, as crenças de cada indivíduo e as leis civis.

Quando afirmo no título que A Voyage into Tartary é um prelúdio da Revolução Gloriosa de 1688 e também conseguintemente, em grande medida, da assinatura da The Bill of Rights em 1689, é porque a ficção, em sua proposta ideológica de fundar uma nova religião que contivesse em si um novo sistema político, conquistava o que pouco tempo depois seria conseguido oficialmente por esses dois eventos. Tartary não é uma espécie de prelúdio anunciador, mas um prelúdio de ação cumprida com antecedência do que a Revolução conseguiu. Todavia, embora a ideia de seu projeto necessariamente fosse por fim na monarquia e em toda a ordem de mundo necessária para mantê-la - isto é, na economia centralizada nos interesses da Coroa, e na política comandada pelo rei -, sua proposta não era contra diretamente o sistema político monárquico, consistia mais em uma proposta para naucatear o catolicismo, então com sua enorme potencialidade de impedir os projetos imperialistas e modernizadores da Inglaterra. A Voyage into Tartary define-se melhor como um projeto de nova religião e novo estado; e, deste modo o sendo, preludiou e propôs uma revolução muito maior para a Inglaterra que chegava ao fim do 17 e já via as Luzes, literalmente, do século 18.

Referências bibliográficas

A VOYAGE into Tartary containing a Curious Description of that Country, with part of Greece and Turkey; the manners, opinions, and religion of the inhabitants therein; with some other Incidents. By M. Heliogene De L’Epy. Doctor in Philosophy. London. Printed by T. Hodgkin, and are to be sold by Randal Taylor near Stationers Hall, 1689.

ANTONUCCI, Davor. “The “Eastern Tartars” in Jesuit Sources: News from Visitor Manuel de Azevedo”. Central Asiatic Journal. vol. 58, n. 1-2, 2015.

BACON, Francis. Certain considerations for the better establishment of the Church of England, under the following heads: I. The government of bishops. II. Liturgy, ceremonies, and subscriptions. III. A preaching ministry. IV. The abuse of excommunication. V. Non-residents and pluralities. VI. Provision for sufficient maintenances in the Church. By the Right Honourable Francis Bacon, Baron Verulam, Viscount St. Albans. With a new preface. London:

printed and are to be sold by Randal Taylor, near Stationers Hall, MDCLXXXIX [1689].

ELLIOT, Mark. “The Limits of Tartary: Manchuria and Imperial and National Geographies”. The Journal of Asian Studies. vol. 59, n. 3. Ago. 2000.

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GHIBAULDI, Silvia Rota. “Por uma definição de utopia”. Tradução de Carlos Berriel e Helvio Moraes. MORUS – Utopia e Renascimento -Parte I, vol. 11, 2016.

GROTIUS, Hugo: The proceedings of the present Parliament justified by the opinion of the most judicious and learned Hugo Grotius; with considerations thereupon. Written for the satisfaction of some of the reverend clergy who yet seem to labour under some scruples concerning the origina right of kings, their abdication of empire, and the peoples inseparable right of resistance, deposing, and of disposing and settling of the succession to the crown. By a lover of the peace of his country. With allowance. London: printed, and are to be sold by Randal Taylor, 1689.

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