• Nenhum resultado encontrado

Uma abelha na chuva: interdições da história, interdições do querer | Litterata: Revista do Centro de Estudos Hélio Simões

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Uma abelha na chuva: interdições da história, interdições do querer | Litterata: Revista do Centro de Estudos Hélio Simões"

Copied!
18
0
0

Texto

(1)

Uma abelha na chuva: interdições da história,

interdições do querer

Silvia Niederauer1 Inara de Oliveira Rodrigues2

Resumo: Desenvolve-se uma análise sobre o romance Uma abelha na chuva (1953), de Carlos de Oliveira, visando-se a desvelar as relações entre história e fi cção que, nessa relevante narrativa do Neorrealismo literário português, tornam-se visíveis por meio dos desencontros afetivos e desejos cerceados das personagens, a exemplo da trajetória de Maria dos Prazeres.

Palavras-chave: História e fi cção; Literatura Portuguesa; Neorrealismo; Carlos de Oliveira.

A bee in the rain: interdicts of history, interdicts

of desire

Abstract: An analysis of Carlos de Oliveira’s A bee in the rain (1953) is developed, aiming to unveil the relationship between history and fi ction which, in this relevant narrative of the Portuguese literary Neorealism, become visible through the characters’ aff ective discords and constrained desires, such as Maria dos Prazeres’.

1 Professora do Curso de Letras do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA-RS), integrante do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Literaturas Lusófonas (PUCRS).

2 Professora do Curso de Letras e do Mestrado em Letras Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz. Integrante do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Literaturas Lusófonas (PUCRS).

(2)

Keywords: History and fi ction; Portuguese Literature; Neorealism; Carlos de Oliveira.

Considerações iniciais sobre o Neorrealismo

literário português

3

Para o Neorrealismo, informado ideologicamente pelo materialismo histórico e dialético e, por isso, preocupado em apontar caminhos de transformação social por meio da criação estética, o sentido de elevação da consciência histórica possuía peso considerável. Tal elevação recorria-se da participação da História enquanto elemento ativo na construção de seus mundos fi ccionais (diegéticos) e não apenas como mero ornamento a moldurar um certo tempo narrado.

Nesse processo de construção fi ccional, ganha destaque a representação. Em sentido mais restrito, no âmbito da narratologia, a representação narrativa torna-se um conceito afi m à perspectiva narrativa, entendida como o conjunto das várias opções de focalização. Os diferentes focos narrativos permitem a criação de particulares imagens fi ccionais, condicionadas pelos variados pontos de vista que a modelizam.

A construção de determinada perspectiva narrativa está implicada, por sua vez, na consequente formulação de uma estratégia narrativa específi ca. Compreendidas como procedimentos de incidência pragmática, colocados em ação pelo narrador, as estratégias 3 Partes deste texto integram a Tese “Entre a história e a fi cção:

diálogos de várias vozes no resgate da utopia” (PUC/RS, 2001), de Inara Rodrigues.

(3)

narrativas destinam-se a provocar junto ao narratário efeitos defi nidos, ligados diretamente ao contexto periodológico em que se situa a narrativa, bem como com suas dominantes temáticas, metodológicas e epistemológicas.

O reconhecimento da ação comunicativa da narrativa literária coloca-se no centro do problema de como conceber a obra literária, enquanto criação estética, em seu envolvimento com os dilemas da linguagem e do mundo que lhe é exterior. Trata-se, na verdade, de um questionamento sempre atualizado, na medida em que a literatura, enquanto fenômeno humano, é produção permanente e, como tal, não prescinde do diálogo das várias correntes de análise que, em suas discordâncias ou complementaridades, vão potencializando seus incontáveis e surpreendentes sentidos.

Trata-se de reconhecer, assim, que a potencialidade de sentidos da literatura amplia-se no reconhecimento do caráter dialógico de toda obra literária e de sua historicidade. Desse modo, no diálogo que as obras estabelecem dentro de si, entre si, com seu tempo presente e passado, resgata-se a comunicação da arte com a vida.

Enquanto ação comunicativa, portanto, a obra literária institui-se como artefato estético pleno de signifi cações que são acessadas por sua constituição em linguagem, fundada na noção de alteridade, seguindo-se a ótica de Bakhtin (1988). Por outro ângulo, que seguindo-se permite acrescentar a esse último, a relação entre fi cção e história estabelece-se também como dialógica, seguindo-se a conceituação bakhtiana de cronotopo: todas as determinações espaciais e temporais são inseparáveis no

(4)

campo (da arte e) da literatura, estabelecendo a unidade da obra literária em suas relações com a realidade. Isso signifi ca que, interdiscursivamente, toda criação artística interage com a história, para além das possíveis referências históricas explicitamente representadas.

A interdependência irrevogável que permeia essas duas áreas do conhecimento humano (acreditando-se no caráter cognitivo de toda formulação histórica e literária) se estabelece, ainda, por sua conformação textualizada e, no plano que aqui importa vincar, narrativa. No ato de narrar, o homem tenta descobrir-se e descortinar o mundo e, nesse processo de busca, rememorar o passado revela-se como possibilidade de construção de um sentido para a existência. No cuidado com o lembrar, enraízam-se a história e a literatura. Assim, no entretecer da narração à representação, estabelecem-se dialeticamente as intercambiáveis fronteiras entre a história e a fi cção, cujas confl ituosas defi nições “territoriais” são, antes de mais nada, regidas pela própria historicidade.

No campo da fi ccionalidade, também deve ser abordada a questão da referência. A referencialidade fi ccional deve ser entendida como pseudo-referencialidade tendo em conta que as práticas fi ccionais também abrangem uma dimensão perlocutória no que tange às injunções ideológicas exercidas sobre o receptor. Para Paul Ricoeur, é através da leitura, principalmente, que se concretiza

a referência metafórica, resultante da inevitável fusão de horizontes, o do texto e o do leitor e, portanto, a intersecção do mundo do texto com

(5)

o mundo do leitor (1994, p. 15).

O ato da leitura ganha, portanto, dimensão efetiva de presentifi cação de sentido como fundamento da signifi cação tanto da narrativa histórica quanto da narrativa fi ccional. Nas palavras de Maria Luíza Ritzel Remédios,

o leitor do discurso histórico tal como o leitor do discurso fi ccional interagem com o texto atualizando-o e atribuindo-lhe signifi cado presente, sendo, portanto, responsáveis pela fi ccionalização da história e pela historicização da leitura (1999, s/p.).

Deve-se salientar, contudo, que, nas proposições analíticas sobre as relações entre a história e a fi cção (literária), alguns teóricos acabam apontando peculiaridades que garantem mais nítidas fronteiras entre esses dois campos da atividade humana. Nesse caso, é signifi cativo, por exemplo, o trabalho de Luiz Costa Lima intitulado A aguarrás do tempo, no qual apresenta, como uma das diferenciações entre história/ fi cção, o fato de que à primeira cabe

designar o mundo que estuda. [...] Designá-lo no caso signifi ca: organizar os restos do passado, tal como presentes ou inferidos de documentos, em um todo cujo sentido centralmente não é da ordem do imaginário. [Quanto à fi cção, seu intento] é criar uma representação desestabilizadora do mundo. [...] O correto será dizer que ela cria uma representação desestabilizante das

(6)

representações (LIMA, 1989, p. 102).

Necessita-se, fundamentalmente, neste campo de diferenciação, abarcar a noção e a importância da história de acordo com o materialismo dialético. Em primeiro lugar, torna-se necessário reafi rmar que, relativamente à questão das relações entre infraestrutura e superestrutura, de acordo com o ideário marxista, essas são relações dialéticas, em que as forças econômicas, somente em última instância, determinam as outras esferas da vida humana - como a arte. Fato é que, para o marxismo, no momento em que se instaura o sistema capitalista, rearticulam-se essas relações em favor de um primado da estrutura econômica, e isso pelo fenômeno que Marx denominou como fetichismo da mercadoria (ou reifi cação, na terminologia de Lukács).

Trata-se do fenômeno em que ao valor de uso se sobrepõe o valor de troca; a partir daí todas as relações sociais são transformadas num jogo em que o que conta realmente são os aspectos quantitativos e as necessidades aparentes, sempre remodeladas em favor do lucro dos grandes detentores de capital. O jogo, contudo, é de tal forma colocado, por intermédio dos vários aparelhos ideológicos a serviço da classe dominante, que acaba também aparentando uma realidade natural, daí o nome reifi cação, diante da qual se “mascara o caráter histórico e humano da vida social, transformando o homem em elemento passivo” (GOLDMAN, 1991, p. 123).

A possibilidade de essa imposição ideológica ser ultrapassada dá-se, justamente, por seu constante desmascaramento por processos de desalienação do homem - a resistência e as lutas das classes exploradas,

(7)

quando, então, essas se tornam conscientes de seu papel na história. Portanto, a partir de Marx, a utilização da história é fundamental nesse processo de desalienação - pelo que foi, explicando o que é, e apontando o caminho de sua transformação.

Como fundamento de sua práxis fi ccional, o Neorrealismo português procurou, em muitas de suas obras, seguir essa orientação no equacionamento do difícil equilíbrio de uma estética voltada a claros princípios políticos, na articulação das relações entre história e literatura. Em Uma abelha na chuva, como se intenta mostrar a seguir, Carlos de Oliveira alcança, com maestria, o tom crítico fundamentado nos pressupostos neorrealistas sem descurar da confi guração de um universo fi ccional que não aceita pinceladas fáceis enquanto representação artística literária.

Ficção e história em Uma abelha na chuva

Também ele tinha ajudado, anos e anos, aquela obra de pintar, repintar, a colméia dos Silvestres, sem atender a que lá dentro o enxame apodrecia. (Uma abelha na chuva – Carlos de Oliveira)

O jogo discursivo que Uma abelha na chuva apresenta vai-se delineando pouco a pouco, na medida em que os contornos subjetivos ganham maior relevo do que as ações vividas pelas personagens da trama. Seguir os pensamentos e as lembranças, principalmente das personagens centrais, faz-se, aqui, imperioso para que as pontas dos desejos possam ser amarradas e

(8)

entendidas na sua plenitude.

Lançado no ano de 1953, Uma abelha na chuva é o terceiro romance de Carlos de Oliveira, que já havia estreiado, em 1942, na poesia, com Turismo, que integra a coleção Novo Cancioneiro. Vinculada à estética Neorrealista Portuguesa, a obra em questão tematiza, principalmente, os dissabores de uma vida conjugal estreitada, única e exclusivamente, por um acerto econômico. Nesse cenário de aparências nem sempre mantidas, emergem as fi guras de Álvaro Silvestre e “Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho... Silvestre”4, ao lado de Clara, Jacinto, Mariana e António, que compõem a trama romanesca, dando a ela o suporte necessário para que se descortinem as relações de opressão e desejos reprimidos vividas pelas personas.

Percebidas as relações estreitas que se estabelecem entre as personagens, entendidas estas como “categoria fundamental da narrativa” (REIS; LOPES, 2002, p. 314), é possível desenhar-se o quadro de oposição que se concretiza, especialmente, na fi gura de Maria dos Prazeres, esposa de Álvaro Silvestre. Casados por conta de um acerto feito pelo “pai fi dalgo, que era Pessoa, Alva e Sancho, descendente de um coudel-mor, de um guerreiro das Linhas de Elvas e primo do Bispo missionário de Cochim” (UAC: 21), Maria dos Prazeres opõe-se a Álvaro Silvestre, da família dos “Silvestres de Montouro, lavradores e comerciantes” (UAC: 21), por questões sociais e econômicas. O confl ito, então, instala-se 4 OLIVEIRA, Carlos de. Uma abelha na chuva. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1984. Todas as demais citações foram retiradas desta edição e serão apresentadas, a seguir, com a sigla UAC seguida do respectivo número de página.

(9)

justamente porque ambos são de extração social diferente e em tudo são diversos: atitudes, posturas, ambições.

Maria dos Prazeres concentra toda a gama de frustração possível, tanto no plano econômico, pois que é representante de uma classe social em franca decadência, quanto no plano afetivo/emocional, uma vez que seu casamento mantém-se por questões fi nanceiras, apenas. Ela traduz a densidade de uma atmosfera de luta de interesses e de valores já relativizados pela impotência de sua condição social. O próprio nome pomposo que ostenta - Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre -, característico de uma nobreza que não mais existe, entra em confl ito com o nome simples de Álvaro Rodrigues Silvestre, sarcasticamente chamado por ela simplesmente de ‘Silvestre’. A rudeza da formação do homem acentua ainda mais os resquícios guardados por ela de um tempo de riqueza e de fi dalguia:

e a minha cama de Alva?; as rendas minuciosas, o cristal, a prata [...] festas de aniversário, setenta convidados sob o lustre estelar, o pai com a taça de champanhe na mão; as gravuras de caça ainda mais minuciosas do que as rendas, as louças frágeis como a espuma; e o calor do quarto (UAC, p. 80).

As lembranças são parte de um passado que, ao mesmo tempo em que torna o presente mais suportável, atenuando o sofrimento, acentua o desconforto e o inconformismo deste tempo atual, pois “tudo tão distante [...] sem nenhuma esperança de voltar atrás: porque não se pode, evidentemente” (UAC, p. 80). A frustração econômica e social concretizada na

(10)

personagem Maria dos Prazeres é evidenciada no jogo narrativo que permeia toda a obra: ora a narração está no tempo presente, ora se volta para o pretérito, num entrecruzar temporal que permite conhecer-se o ontem e o hoje de maneira contrastiva.

O eixo temporal, ao deslocar-se do presente para o passado, e vice-versa, vai-se estruturando de maneira a dar espaço para que os confl itos sociais e econômicos sejam acentuados de forma a perceber-se o quão deslocada está a fi gura de Maria dos Prazeres neste cenário de solidão e desarmonia que é a “sua” casa: a dos Silvestres. Nela, centra-se uma força de repulsa a sua atual situação, só remediada e, de certa forma, atenuada, pela nostalgia dos tempos passados, quando ainda desfrutava de uma situação econômica privilegiada.

O deslocamento temporal se coaduna com as diferentes focalizações ou perspectivas narrativas presentes em Uma abelha na chuva. Com o privilégio do monólogo interior, que traduz a temporalidade psicológica vivenciada pelas personagens, são as lembranças e a subjetividade de seus pensamentos que se acentuam na estrutura trama narrada. A visão predominante da diegese da obra em questão revela os confl itos sociais e psicológicos por meio de uma focalização interna, transgredida raras vezes por uma focalização externa. Assim, segue-se a trilha percorrida pelo casal Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre, bem com as demais personagens da obra, via lembranças e monólogos interiores, conhecendo-se, então, os dissabores de cada segmento social presente no universo romanesco em foco.

(11)

uma relação contrastiva entre Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre no que diz respeito aos seus modos de vida: eles habitam a mesma casa, mas cada um ‘destila’ a sua solidão de maneira diferente. Álvaro desconta suas frustrações na bebida e, com isso, permanece ‘imóvel’ e sem atitude alguma em relação à vida conjugal de aparências. Por seu turno, Maria dos Prazeres depura sua solidão e infelicidade em atitudes de infi delidade conjugal, mesmo que apenas isso ocorra em sua imaginação, pois que tem sonhos adúlteros com o cocheiro Jacinto e com seu cunhado, Leopoldino. É por esse viés de liberdade que ela assume a relação de opressão em contraste com o marido. Enquanto Maria dos Prazeres domina a situação, impondo sua presença orgulhosa e altiva na casa, Álvaro imobiliza-se, temente ao olhar de sua esposa. É ela, então, quem detém o querer e mostra-se, sempre, superior a ele, mesmo que, muitas vezes, refugie-se sozinha em meio a recordações e sonhos impossíveis.

De forma sintética, essa relação do casal poderia ser assim compreendida: a opressão social, decorrente da crítica mais ou menos velada sobre a situação da ditadura salazarista então vivida, atinge a ambos, Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre. Entretanto, ela permanece representando um passado de superioridade que (Portugal?) já não tem, mas continua desejando. Já Álvaro Silvestre mantém-se alienado e inferiorizado (como o povo português). Por certo essas relações das personagens com a situação histórica portuguesa não são especulares nem diretas, mas pode-se admitir que o contexto da narrativa permite o reconhecimento desse contexto a implicar na confi guração de suas ações e vivências afetivo-emocionais.

(12)

Essa relação de opressão também é reduplicada nas personagens António/ Clara/ Jacinto. António, o oleiro pai de Clara, sonha para a fi lha um futuro melhor em termos econômicos, o que se traduz em um casamento com um “lavrador com terras, com dinheiro...” (UAC, p. 87). Entretanto, ela enamora-se por Jacinto, cocheiro dos Silvestres, de igual situação social a dela, o que contraria os desejos de António.

A situação de Maria dos Prazeres também contrasta com a de Clara: enquanto a primeira deseja, mesmo que só em pensamento, os amores de Jacinto, quem o tem verdadeiramente, e para sua desgraça, é Clara. Se Maria dos Prazeres é casada com um homem de posses, a ela falta justamente o amor de seu homem, ao contrário de Clara que, mesmo às escondidas, tem reciprocidade afetiva. Jacinto ama a fi lha do oleiro e desfaz das insinuações da mulher de seu patrão: “mas lá que a D. Prazeres me comia com os olhos...” (UAC, p. 88). “O lavrador Silvestre, que não chega para a mulher, que nem um fi lho se lhe atreveu a fazer” (UAC, p. 93).

O próprio nome, ‘Maria dos Prazeres’, traz à tona uma série de (im)possibilidades, o que a faz, enquanto constructo de um signo narrativo, depositária de uma concentração de sentidos e sentimentos importantes a sua caracterização. Nela, recaem toda a sorte de potencialidades que a identifi cam com o objetivo de “transformação da sociedade com a denúncia das iniqüidades sociais”5. É o caso do contraste explícito entre ela e seu marido, uma vez que ambos, encarcerados na relação conjugal infeliz, caminham 5 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. São

(13)

para o seu aniquilamento pessoal. Dito de outra forma, nada resta a essas personagens, como refl exo de uma sociedade economicamente díspare, a ser feito: a falta de entendimentos e desejos próximos os afasta cada vez mais, acentuando o confl ito pessoal e, por extensão, coletivo. Assim, a ironia do nome ‘Prazeres’ fi ca ainda mais presente, pois, isolada em suas rememorações, sonhos e desejos reprimidos evidencia com maior clareza o seu papel também de alienada.

É notável a presença da água em toda a narrativa, em especial nos momentos fulcrais para as personagens, nos quais, por meio das referências ao líquido, seu estado psíquico torna-se evidente. O fl uir do tempo, referendado pela água, evidencia a passagem do tempo, que é irreversível. Essa irreversibilidade é, ainda, perceptível pela volta ao passado, via recordação saudosista, efetuada por Maria dos Prazeres: ela vive presa ao tempo pretérito que lhe era mais ameno e feliz. Daí sua alienação e inconformismo com o momento presente e sua condição frustrada de esposa/mulher:

Deu um salto na cama. Francamente, ciúmes duma negra, dum cocheiro, e ciúmes porquê? Há quinze dias que a carta de Leopoldino a trazia mais alvoroçada que uma rapariguinha (UAC, p. 82).

A subjetividade que perpassa toda a obra expressa as relações contrastivas que se estabelecem entre as personagens centrais, Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre, e a vigência de inconformismos verifi cados por meio da oscilação de seus monólogos interiores. É

(14)

por meio da alternância de tempo que, por exemplo, a solidão e o isolamento, especialmente de Maria dos Prazeres, vem à tona. Sujeito do querer, é nela que se revelam os vestígios de uma subjetividade projetados em Uma abelha na chuva.

A presença de Maria dos Prazeres frente a Álvaro Silvestre desencadeia nele a ruína mórbida de seu estado de espírito atormentado a ponto de querer declarar publicamente suas atitudes pouco ou nada recomendáveis. É ela que o humilha junto ao diretor do jornal, impedindo, naquele momento, que Álvaro publique na primeira página a confi ssão de roubos e enganos que fi zera durante a vida:

- Imagine o senhor que veio do Montouro a pé por este tempo. Com charrete em casa, cavalos e cocheiro. Uma criança de cinqüenta anos. Não sei o que o trouxe aqui. Seja lá o que for. O certo é que anda doente, com idéias estranhas, e tem de se lhe dar o devido desconto. O que ele diz não é nenhuma bíblia, compreende? (UAC, p. 17). A mulher “fi gura álgida, terrível” (UAC, p. 73) o intimida e, por extensão, reafi rma sua impotência frente as mais diversas situações, chegando a desencadear a morte de Jacinto e de Clara por conta de sua frustração amorosa e sua condição de homem rude e temente pela revelação que fez ao oleiro sobre sua fi lha:

- Não te matam, descansa, posso lá ter tamanha sorte; hei-de aturar-te até o fi m da vida, até que Deus me leve deste inferno que é tua casa. Tenho nojo de ti, nojo, entendeste bem? Que te

(15)

admiras tu que eu sonhe?, sonhos sobre sonhos, sempre, para esquecer a tua cama, o pão da tua mesa (UAC, p. 153).

Da oscilação entre os pontos de vista de Maria dos Prazeres e de Álvaro Silvestre decorre o fl uir de suas refl exões a respeito de seu estar naquela situação de confl ito para ambos. Dessa insatisfação, ressalta-se, sempre, a quase inexistência de ações perpetradas por eles. Portanto, seus estados de espírito, suas vontades e posicionamentos vão sendo percebidos por uma combinação simbólica que margeia toda a história: é a água, em suas formas mais variadas – chuva calma, temporal, poço, mar, fonte – que determina o estado psicológico dessas personagens atormentadas e sofridas. Por conseqüência, a água é premonitória do confl ito das personagens, tanto íntimos quanto coletivos.

Uma abelha na chuva, ao mimetizar os confl itos

sociais em âmbito mais amplo, mesmo que se ocupe apenas em referir os do universo diegético onde circulam Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre e, por conta deles, as demais personagens, confi gura uma teia de tramas em que o ‘fel’ transborda das ações e das frustrações de todos.

Do querer, Maria dos Prazeres recebe apenas sonhos cada vez mais longínquos e solitários. Sua vida, marcada pelo desejo, fi nda aí, sem a menor possibilidade de retornar ao passado de luxo e fausto de sua família. Agora, entregue à podridão causada pelo acordo fi nanceiro que foi seu casamento, resta-lhe apenas continuar levando a vida de sonhos frustrados: “o perfi l luminoso apagado, a moeda de oiro gasta; tudo

(16)

mais escuro e empobrecido” (UAC, p. 170).

Esse Portugal escuro e empobrecido não deve ser esquecido. Por certo, hoje, outros e sérios confl itos assolam a nação portuguesa, mas nunca é demais se fazer referências a um tempo que tentou extinguir dos sujeitos o seu direito de pensar e transformar a vida. Por meio da literatura, entretanto, sempre sopraram ventos de resistência, capazes de afi rmarem o desejo de construção de novos mundos.

(17)

Referências

BAKHTIN, Mikail. Questões de Literatura e de

Estética. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1988.

GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 123. .

OLIVEIRA, Carlos de. Uma abelha na chuva. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1984.

LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de

narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.

REMÉDIOS, Maria Luíza R. O entretecer da História

e da Ficção: movimento de refl exão e reescrita na

literatura portuguesa da atualidade, 1999. (Fotocópia não publicada).

RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994, Tomo I.

(18)

Referências

Documentos relacionados

Comparando as interações estabelecidas com os pares no recreio e no convívio no Projeto Investir na Capacidade, conclui-se que o tipo de relação estabelecida

No final, os EUA viram a maioria das questões que tinham de ser resolvidas no sentido da criação de um tribunal que lhe fosse aceitável serem estabelecidas em sentido oposto, pelo

Para analisar as Componentes de Gestão foram utilizadas questões referentes à forma como o visitante considera as condições da ilha no momento da realização do

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

FODA: “Instrumento de avaliação de Fortalezas-Oportunidades (FO) e Debilidades-Ameaças (DA)” é uma estratégia empresarial de medição da competência, utilizada

A transição epidemiológica e demográfica em curso no país impacta em novos desafios para a oferta de serviços de saúde, com aumento da demanda por assistência em alta complexidade,

Este trabalho tem por objetivo reunir informações a cerca de algumas pesquisas mais promissoras (devido ao caráter abrangente do tema, tentar abranger todas demandaria um

Inversamente quaisquer duas involutas de uma curva dada, numa vizinhança de um ponto regular e de curvatura não nula para ambas, são