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Estilo e escrita de si em Oswaldo Lamartine de Faria

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE BACHARELADO EM HISTÓRIA

Eduardo K. de Medeiros

ESTILO & ESCRITA DE SI EM OSWALDO LAMARTINE DE FARIA (1989 – 1994)

CAICÓ – RN 2019

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Eduardo K. de Medeiros

ESTILO & ESCRITA DE SI EM OSWALDO LAMARTINE DE FARIA (1989 – 1994)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em História, do Centro de Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito final para a obtenção do título de Bacharel em História, sob a orientação do Professor Dr. Evandro Santos.

CAICÓ – RN 2019

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Eduardo K. de Medeiros

ESTILO & ESCRITA DE SI EM OSWALDO LAMARTINE DE FARIA (1989 – 1994)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em História, do Centro de Ensino Superior do Seridó, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito final para a obtenção do título de Bacharel em História, sob a orientação do Professor Dr. Evandro Santos.

Caicó/RN, ______ de _________________, 2019.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________ Prof. Dr. Evandro Santos

Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES/UFRN) (Orientador)

____________________________________________________________ Prof. Dr. Joel Carlos de Souza Andrade

Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES/UFRN) (Prof. Examinador)

____________________________________________________________ Profa. Dra. Paula Rejane Fernandes

Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES/UFRN) (Profa. Examinadora)

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À minha mãe, Cely Rejane de Medeiros; e ao meu pai, Expedito Rodrigues de Medeiros.

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AGRADECIMENTOS

Neste percurso de quatro anos de graduação, estive sempre acompanhado e por isso pude dividir as dificuldades e alegrias, ordinárias e extraordinárias, com quem esteve ao meu lado.

Agradeço à minha mãe e minha tia (Branquinha) por todos os cuidados caseiros no dia-a-dia, que possibilitaram me organizar sem maiores apertos nos períodos antes de sair para e após voltar da universidade; ao meu pai, pelo apoio financeiro que me prestou sempre que precisei para reforçar o custeio de passagens com transporte, livros e computador; às minhas irmãs (Elaine e Soraia), sobrinha (Mª Eduarda) e sobrinhos (Caio, Pedro e Lucas), pela companhia e divertimento nos fins de semana; ao apoio e palavras de incentivo da amiga Andressa Araújo, e a disponibilidade da biblioteca e bate-papo do amigo Júnior de Leca, além de nossas esporádicas bebericagens para desopilar!

No cotidiano da universidade são muitas as pessoas com quem interagimos, convivemos e aprendemos. E, de passagem, cada colega nos traz e nos desperta algo do qual buscamos desfrutar o melhor possível, pelo que agradeço a todas e todos. Porém, algumas pessoas se tornam mais próximas e nos marcam de maneira singular. Agradeço o companheirismo de Aline Vale, parceria certa em qualquer trabalho acadêmico ou plano, do mais simples ao mirabolante – nem sempre infalíveis!; a presença constante de Ana Cristina Monteiro, em sua canceriana reserva, mas sempre ao lado; a diversão garantida dos contos e causos de Francisco José Silva, nosso velho Chico, a quem devo ainda agradecimento por sua ajuda e intermediação no contato com a Biblioteca Pública Municipal Ramiro Monteiro Dantas, em Serra Negra do Norte/RN; o astral de Jokassya Soares, sorrindo mesmo nos momentos de dificuldades, no melhor estilo: “tá no inferno, abraça o capeta!”; o carinho inestimável de Mª Eunice Oliveira, além de suas delícias para saborearmos na hora do lanche; a curiosidade em questões históricas de Matheus Barbosa e Matheus Vinícius, contagiando nossas conversas no intervalo entre aulas ou nas constantes viagens de ônibus; ao abraço e à companhia amiga de Patrícia Bezerra, e sua não menos fundamental parceria nas atividades acadêmicas; à Raquel Lima, melhor companhia para um cafezinho no meio da tarde, além de sua generosa e confortável hospitalidade em Caicó/RN, nos dias mais longos e corridos; ao esconderijo da calma que pude encontrar em meio às turbulências da vida acadêmica, no bate-papo com o amigo Wendio Bezerra; e aos demais colegas que todas as noites se reúnem no Cu (lugarzinho aconchegante ao fim do corredor que dá para o estacionamento do Bloco D), antes da aula, para curtir aquele fresquinho gostoso – especialmente Alberione Dantas e Luan Santos, os mais assíduos.

Não posso deixar de agradecer às pessoas que trabalham para o funcionamento do Sistema de Bibliotecas da UFRN, de muita utilidade ao longo de toda a minha formação. Devo

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agradecimentos especiais à bibliotecária Rita de Cássia Pereira de Araújo, sempre dando retorno satisfatório às minhas necessidades informacionais; ao bibliotecário Fernando Cardoso da Silva, de muita ajuda no período em que esteve administrando a Biblioteca Setorial do CERES; às bibliotecárias Martina Luciana Souza Brizolara, e Mayane Paulino de Brito e Silva, e ainda toda equipe de servidores e bolsistas da BS-CERES, pela boa receptividade e atendimento nos serviços de informação que nos prestam cotidianamente.

Agradeço também à equipe do Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC), e sua disposição para o atendimento sempre que precisei acessar as fontes que possibilitaram a realização desta pesquisa.

Agradeço ainda a todas as professoras e professores com quem tive oportunidade de aprender no decorrer desta graduação em História, fosse em sala de aula, ou em discussões possibilitadas pelas atividades do Laboratório de História e Práticas de Pesquisa (LHCP), ou nos mais diversos eventos acadêmicos e projetos de extensão promovidos pelo Departamento de História, ampliando as oportunidades de aprendizagem e diálogos com pesquisadores e docentes de todo o país.

Alguns docentes contribuíram de forma determinante para a realização desta monografia. Apenas tomei conhecimento da existência e localização das fontes que utilizo nesta pesquisa devido ao íntimo envolvimento do professor Helder Macedo com o acervo e trabalho do LABORDOC e a atenção que dedica às pesquisas realizadas por discentes envolvidos com a Iniciação Científica e demais atividades do LHCP.

Na reta final da graduação, a professora Airan Borges muito me auxiliou com orientações e incentivos enquanto ela ministrava o componente curricular Pesquisa Histórica, no qual eu estava matriculado, contribuindo de forma muito significativa para o aperfeiçoamento do projeto de pesquisa que eu vinha elaborando e do qual resulta esta monografia.

Em especial, o professor Evandro Santos, que tem me orientado nos últimos dois anos em atividades de Iniciação Científica, e motivado a dedicar-me sempre com mais afinco aos estudos em Teoria da História e História da Historiografia, pelas leituras, questões e posturas que nos apresenta em suas abordagens de ensino e pesquisa em História.

Por fim agradeço ao professor Joel Andrade e à professora Paula Fernandes por terem aceitado o convite e assumido as responsabilidades de analisar, discutir e avaliar os resultados deste Trabalho de Conclusão de Curso.

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“Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo o que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros.” (O vendedor de passados. AGUALUSA, 2018, p. 108)

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RESUMO

Abarca discussões no campo da Teoria da História e da História da Historiografia acerca do estilo e da escrita de si em Oswaldo Lamartine de Faria (1919 – 2007). Se propõe a pensar como este memorialista produz um discurso sobre os sertões do Seridó a partir de trocas que envolvem uma escrita autobiográfica. Introduz exposição acerca do indivíduo moderno enquanto sujeito histórico (DUMONT, 1985) e de práticas de produção de si (GOMES, 2004), sendo aqui privilegiada a escrita autobiográfica (LEJEUNE, 2008). Compõe-se um panorama que permite reconhecer uma tradição historiográfica à qual se pode associar os escritos de Oswaldo Lamartine de Faria (MACÊDO, 2012; MEDEIROS NETA, 2007; MONTEIRO, 2006). A partir dos estudos de Michel Foucault (2017) sobre as regularidades discursivas, objetiva discutir a formatação de um discurso acerca dos sertões por meio do estudo do estilo do “autor” e de sua “obra”, categorias estas que também são discutidas (FOUCAULT, 2000). Mais especificamente, investiga o papel do saudosismo (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011) como elemento central da escrita de si oswaldiana (GOMES, 2004; MALATIAN, 2009). A bibliografia do autor e um conjunto de dezessete cartas enviadas do Rio de Janeiro/RJ a Serra Negra do Norte/RN, durante o período de 1989 a 1994, tendo como destinatário o sertanejo, seu parente e amigo, Ramiro Monteiro Dantas (1912 – 1997), servem de fontes para as análises pretendidas.

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ABSTRACT

It includes discussions in the field of Theory of History and the History of Historiography about the style and self-writing in Oswaldo Lamartine de Faria (1919 – 2007). It proposes to think about how this memorialist produces a discourse on the hinterlands of Seridó based on exchanges that involve autobiographical writing. It introduces an exhibition about the modern individual as a historical subject (DUMONT, 1985) and self-production practices (GOMES, 2004), with autobiographical writing privileged here (LEJEUNE, 2008). A panorama is composed that allows recognizing a historiographical tradition to which the writings of Oswaldo Lamartine de Faria can be associated (MACÊDO, 2012; MEDEIROS NETA, 2007; MONTEIRO, 2006). Based on the studies of Michel Foucault (2017) on discursive regularities, it aims to discuss the formatting of a discourse about the sertões through the study of the style of the “author” and his “work”, categories that are also discussed (FOUCAULT, 2000). More specifically, it investigates the role of nostalgia (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011) as a central element of Oswald's self-writing (GOMES, 2004; MALATIAN, 2009). The author's bibliography and a set of seventeen letters sent from Rio de Janeiro/RJ to Serra Negra do Norte/RN, from 1989 to 1994, with the inlander, his relative and friend, as the recipient, Ramiro Monteiro Dantas (1912 – 1997), serve as sources for the intended analyzes.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 PARENTES E AMIGOS ... 17

1.1 O INDIVÍDUO: SUJEITO HISTÓRICO ... 18

1.2 TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA ... 22

1.3 O DEPOSITÁRIO DA TRADIÇÃO SERTANEJA ... 25

1.4 RAMIRO MONTEIRO DANTAS ... 37

2 DESTINO: SAUDADE ... 42

2.1 SINAIS DE DISTINÇÃO ... 43

2.2 UMA AUTOBIOGRAFIA NÃO-AUTORIZADA ... 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 68

FONTES ... 71

FONTES COMPLEMENTARES ... 72

REFERÊNCIAS ... 73

ANEXOS ... 77

ANEXO 1 [Carlos Magno e seus cavaleiros] ... 77

ANEXO 2 [A pedra do reino] ... 78

ANEXO 3 [Cartas de um desconhecido] ... 79

ANEXO 4 [O sertão, o boi e a seca] ... 80

ANEXO 5 [A cidade e as serras] ... 81

ANEXO 6 [João Miguel] ... 82

ANEXO 7 [Brasil caboclo] ... 83

ANEXO 8 [A vela e o temporal] ... 84

ANEXO 9 [Os valentões] ... 85

ANEXO 10 [Terras de Uauá] ... 86

ANEXO 11 [Histórias de Trancoso] ... 87

ANEXO 12 [Trapiá] ... 88

AENXO 13 [Tempo de vingança] ... 89

ANEXO 14 [Robinson Crusoé] ... 90

ANEXO 15 [Terra pernambucana] ... 91

ANEXO 16 [Doidinho] ... 92

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INTRODUÇÃO

Oswaldo Lamartine de Faria (1919 – 2007) foi um escritor que se dedicou por cerca de sessenta anos à temática sertaneja. Em seus textos o sertão é um espaço acossado pelo sensível, já que, enquanto materialidade, gradativamente vê-se extinguir no contato com as técnicas (e valores) trazidas pela modernidade. O sertão, tal como Oswaldo Lamartine o concebe, vai sendo empurrado para um outro lugar, o da memória. Este é um sertão sem garantias concretas, de futuro ameaçado; agora é preciso vivê-lo na saudade.

Mesmo sendo natural de Natal, capital do Rio Grande do Norte (RN), Oswaldo Lamartine reivindica raízes sertanejas. A genealogia do escritor remonta à ocupação dos sertões potiguares, no século XVII; nascido do casamento entre famílias tradicionais que constituíam a oligarquia hegemônica no RN no período da Primeira República (1889 – 1930), cujas riquezas assentavam-se sobre as atividades pecuarista e algodoeira cultivadas na região do Seridó – mesorregião central do RN.1 Através deste vínculo genealógico, o menino Oswaldo teve a oportunidade de desfrutar os sertões desde a sua infância – melhor seria dizer que teve a oportunidade de desfrutar sua infância nos sertões do Seridó, uma vez que os sertões, propriamente, já eram bastante antigos, como Oswaldo Lamartine viria a saber e bendizer em seus textos.2

Após o levante militar de outubro de 1930, os sertões se tornariam, senão mais antigos, mais nostálgicos. As transformações sofridas no espaço e nos valores culturais devido a gradativa complexificação e modernização da sociedade brasileira provocou – além do levante armado – reações nostálgicas, principalmente naqueles que sentiam decair seu poder e prestígio. Ao fim da “era Vargas”, em meados da década de 1940, com o processo de redemocratização

1 Seu pai foi Juvenal Lamartine de Faria (1874 – 1956), cujos ancestrais receberam sesmaria de terra do Governador Geral da Bahia em 1673, e estabeleceram, a partir de 1728, a primeira fazenda de gado que daria origem ao atual município de Serra Negra do Norte/RN (LAMARTINE, 1965, p. 13). A mãe de Oswaldo Lamartine, foi Silvina Bezerra de Araújo (1880 – 1961), filha de Silvino Bezerra de Araújo Galvão (1836 – 1922), chefe político em Acari/RN, e irmão de José Bezerra de Araújo Galvão (1843 – 1926), chefe político em Currais Novos/RN, “coronéis” ligados à grande propriedade rural algodoeira-pecuária do Seridó no período da Primeira República, e que tiveram no próprio Juvenal Lamartine um dos principais representantes políticos desta oligarquia (MONTEIRO, 2007, p. 135).

2 Em “A morte do sertão antigo no Seridó: o desmoronamento das fazendas agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970 – 1990)”, o historiador Douglas Araújo observa que “o termo antigo solicita, por tradição histórica do pensamento ocidental, o seu par antagônico: o moderno. [...] pensar os sertões como acontecimento social e, particularmente o sertão do Seridó no Rio Grande do Norte, é discutir o Antigo nos limites do tempo da colonização [...] Antigo aqui é o mesmo que longevo” (ARAÚJO, 2006, p. 37-38). Araújo relaciona a morte do sertão antigo à crise rural da década de 1970, como indica o subtítulo de seu livro. Nos textos de Oswaldo Lamartine, sertão antigo – ora chamado de ‘velhos sertões’, ou mais comumente o ‘sertão de nunca mais’ – pode ser lido como período que vai da colonização dos sertões até o fim da Primeira República, pois já “das eras de [19]30 pra cá principiaram [...] toda intrincada engrenagem das máquinas com a zoeira dos motores” (FRAIA, 1980, p. 42).

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possibilitando o retorno de antigas lideranças políticas à cena pública, tem-se outro momento privilegiado para a manifestação nostálgica. Nestes contextos o passado foi muitas vezes convocado nas páginas dos jornais ou da literatura; genealogias, memórias e valores tradicionais associados à lugares e paisagens foram instrumentalizados para afirmação de uma identidade, como tentativa de direcionar ou interferir em decisões políticas, buscando a legitimação de poderes, ou justificando articulação de alianças.

Exatamente neste período, mais precisamente em 1945, Oswaldo Lamartine está começando sua carreira de escritor, estreando no universo das letras com a publicação de uma série de artigos na coluna “Assuntos rurais” do periódico A República (Natal/RN). É então um jovem adulto de vinte e cinco anos de idade, casado, formado em Agronomia pela Escola Agrícola de Lavras (Lavras/MG), pondo seus conhecimentos técnicos em prática, e adquirindo outros no contato com trabalhadores sertanejos, ao administrar a Fazenda Lagoa Nova, propriedade de seu pai, Juvenal Lamartine de Faria, localizada na mesorregião Agreste do estado, no município de São Paulo do Potengi (RN).

Ávido leitor, observador e pesquisador atento às coisas e causos dos sertões, Oswaldo Lamartine de Faria se tornará rapidamente uma referência entre os sertanistas no Brasil. A partir de fontes diversas, constrói seu texto com um vocabulário próximo da oralidade, num estilo narrativo marcado por sua presença. A narrativa autodiegética evidencia a “relação de identidade entre autor, narrador e personagem”. É a esta relação que Philippe Lejeune se refere quando sugere a existência de um “pacto autobiográfico” (2008, p. 15; grifos do autor).

Oswaldo Lamartine explora um universo que “toca o que se situa além da elaboração intelectual, mas nunca se separa dela”, que “coincide com os territórios do imaginário, mas tampouco se confunde com ele” (GRUZINSKI, 2007, p. 7). Alcança, portanto, o espaço do sensível, aquele espaço capaz de “capturar as razões e os sentimentos que qualificam a realidade, que expressam os sentidos que os homens, em cada momento da história, foram capazes de dar a si próprios e ao mundo” (PESAVENTO, 2007, p. 10). Aspecto importante para se pensar a História dos Sertões, pois observa os autores das produções históricas e culturais acerca desses espaços, eles próprios como “atores sob efeitos de práticas discursivas e não-discursivas” que integram suas relações sociais, construídas por relações de poder, mas também como “emanações de afetos, de sentimentos, de vontade”, portanto, de dimensões da subjetividade que precisam ser interpretadas e explicadas (ALBUQUERQUER JÚNIOR, 2011, p. 16).

Por todas estas qualidades, tem crescido as atenções voltadas ao autor e sua obra no âmbito acadêmico, tanto na área de História quanto no campo dos Estudos da Linguagem. Em

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2007, Oswaldo Lamartine de Faria foi abordado na dissertação de mestrado em História realizada por Olívia Morais de Medeiros Neta. Ser(Tão) Seridó em suas cartografias espaciais aborda quatro livros escritos por quatro memorialistas potiguares “ligados” pela genealogia e pela dedicação à escrita de um espaço de interesse comum. A historiadora questiona as representações de espaço e as configurações que o demarcam. O livro Sertões do Seridó (1980), de Oswaldo Lamartine, compõe a seleção que inclui ainda Homens de outrora (1941), de Manoel Dantas; Seridó (1954), escrito por José Augusto; e Velhos costumes do meu sertão (1965), de Juvenal Lamartine.

Em sua Especialização em História dos Sertões, Natália Raiane de Paiva Araújo (2018) realizou a pesquisa O sertão de nunca mais: natureza e modernidade em Oswaldo Lamartine de Faria (1960-1980). Este trabalho também se dedica à análise do livro Sertões do Seridó (1980), buscando discutir o sertão oswaldiano sob a perspectiva da paisagem natural e da transformação do espaço seridoense em consequência dos processos de modernização, especialmente a urbanização. Em 2013, no âmbito do bacharelado em História, Natália Araújo já havia apresentado a monografia Pelas memórias de Oswaldo Lamartine: artes de fazer nos sertões do Seridó. Outra monografia em História que toma o sertanista como objeto foi defendida por Alex de Assis Batista (2018), A memória, a história e a tradição em Oswaldo Lamartine e Paulo Bezerra, realiza uma análise dos usos da história em ambos os memorialistas potiguares.

Na área dos Estudos da Linguagem é possível localizar outros dois trabalhos. Em 2014, a dissertação de mestrado defendida por Daniel de Holanda Cavalcanti Piñero, Multiplicando veredas entre Guimarães Rosa e Oswaldo Lamartine, realiza um estudo comparativo entre os sertões escritos pelo romancista Guimarães Rosa e o ensaísta Oswaldo Lamartine. Enquanto que Marize Lima de Castro (2015) apresenta como tese de doutorado o estudo biográfico titulado Areia sob os pés da alma: uma leitura da vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria. Todos estes trabalhos acadêmicos foram realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ainda assim, trata-se de uma quantidade pequena de pesquisas se considerarmos as possibilidades de discussões contidas na vasta obra oswaldiana.

Tenho entrado em contato com esta obra por quatro períodos letivos (a partir de 2017.1), através das atividades desenvolvidas na Iniciação Científica. Motivado por estas leituras e outras realizadas nos campos da Teoria da História e História da Historiografia, nos propomos a discutir: como Oswaldo Lamartine de Faria produz um discurso sobre os sertões do Seridó a partir de trocas que envolvem uma escrita autobiográfica?

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Devido à ampla documentação levantada nos últimos dois anos voltados aos estudos da obra oswaldiana, fez-se necessário realizar uma seleção dentre as fontes que permitisse dar objetividade à pesquisa. Neste sentido, foi dada preferência às correspondências por se mostrar uma tipologia adequada ao estudo sobre a escrita de si.3

Ainda assim, o corpus documental se mostrava volumoso e fez-se necessário outro filtro. Descartamos o livro De Cascudo para Oswaldo (2005), que reúne correspondência endereçada por Luís da Câmara Cascudo a Oswaldo Lamartine de Faria, por se tratar de um conjunto de correspondência passiva, e já trabalhada recentemente em pelo menos duas teses de doutorado4. Descartamos também o livro Cartas e cartões de Oswaldo Lamartine (1995), organizado por Veríssimo de Melo, por reproduzir apenas fragmentos – trechos selecionados – de correspondências escritas por Oswaldo Lamartine e endereçadas a destinatários diversos. Descartamos ainda a possibilidade de trabalhar – neste momento – com o livro Conversa sobre a Bastilha (1995), compilado de correspondências escritas por Oswaldo Lamartine de Faria endereçadas a Vingt-un Rosado, pois a qualidade da digitalização a que tivemos acesso não encontra-se plenamente legível, dificultando a leitura paleográfica da documentação em sua integralidade; e o único exemplar físico que conseguimos localizar encontra-se no acervo de Coleções Especiais da Biblioteca Central Zila Mamede (UFRN), em Natal/RN, não saindo para empréstimo ou fotocópia, sendo possível consultá-lo apenas no local.

Portanto, a escolha recaiu sobre um conjunto de correspondências composto por dezessete cartas emitidas por Oswaldo Lamartine de Faria desde a cidade do Rio de Janeiro/RJ, durante o período de 1989 a 1994, a um parente chamado Ramiro Monteiro Dantas (1912 – 1997), residente na Fazenda Saudade, situada no sertão seridoense, no município de Serra Negra do Norte/RN, e que se encontra disponível para consulta pública no LABORDOC (CERES/UFRN). Além da facilidade de acesso e de seu ineditismo em trabalhos acadêmicos, esta documentação apresenta uma peculiaridade em seu suporte material que também pesou na seleção. As cartas foram escritas na folha de guarda (falsa folha de rosto) ou na página do colofão de livros que Oswaldo Lamartine remetia ao seu parente e amigo. Esta literatura

3 Além de vasta, a documentação recuperada é diversa em sua tipologia, constitui-se de antologia poética, artigos jornalísticos, plaquetes, correspondências, discursos, ensaios, entrevistas, obras de referência, relatório técnico em agronomia; e ainda a organização, notas e prefácios de livros assinados por outros autores. Também foi possível recuperar documentários audiovisuais. Dar preferência à análise de correspondências não significa descartar por completo a consulta a outros documentos levantados. Estes aparecerão listados ao fim desta monografia como fontes complementares.

4 CASTRO, Marize Lima de. Areia sob os pés da alma: uma leitura da vida e obra de Oswaldo Lamartine de Faria. 171 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2015.; e OLIVEIRA, Giuseppe Roncalli Ponce Leon de. Correspondência de Luís da Câmara Cascudo: arquivos da criação e redes de sociabilidade intelectual. 286 fl. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo. Pós-Graduação em História Social, 2016.

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remetida está relacionada às temáticas sertanejas, rurais, ou a algum modo rústico de vida; todos os títulos tratam direta ou indiretamente de enunciados mobilizados na construção do sertão de Oswaldo Lamartine – mesmo quando as espacialidades na qual se desenrola o enredo do livro são outras que não especificamente um sertão.

Assim, a própria materialidade do suporte da correspondência possibilita uma frente de discussão que é de interesse ao nosso objetivo geral, qual seja: discutir a formatação de um discurso acerca dos sertões por meio do estudo do estilo de Oswaldo Lamartine de Faria. É neste sentido que recorremos aos estudos de Michel Foucault (2017) sobre as regularidades discursivas, quando sugere o estilo como possibilidade de investigação das formações discursivas.

Sendo assim, em “Parentes e amigos”, primeiro capítulo desta monografia, investigaremos o estabelecimento de uma ideia de sertão em Oswaldo Lamartine de Faria, identificando as características do estilo oswaldiano, a partir das análises de sua obra e da tradição historiográfica à qual se vincula. Amparados em Louis Dumont (1985) e Angela de Castro Gomes (2004), iniciamos com uma breve exposição sobre como o indivíduo emerge enquanto sujeito histórico na modernidade, e como esse indivíduo moderno passa a dotar de significados próprios o mundo que o rodeia, construindo uma identidade para si através de seus documentos. A partir dessa discussão, investimos em apresentar um panorama do contexto histórico em que vive o escritor, para entender como Oswaldo Lamartine alcança o estatuto de um indivíduo representativo da tradição sertaneja. Só então passaremos a dar ênfase à sua escrita, analisando aspectos gerais da bibliografia do autor, inclusive, colocando a discussão acerca das categorias autor e obra provocada por Foucault (2000). Portanto, nesta etapa da pesquisa, será privilegiada a consulta à bibliografia produzida pelo escritor analisando-a em relação às regularidades discursivas acerca dos sertões. Encerramos o capítulo apresentando o senhor Ramiro Monteiro Dantas e seu contato com Oswaldo Lamartine de Faria antes de travarem correspondência.

No segundo capítulo, “Destino: Saudade”, buscamos apreender o papel do saudosismo como elemento central da escrita de si oswaldiana. Aqui nos debruçaremos sobre as correspondências-livros emitidas desde o Rio de Janeiro/RJ pelo sertanista Oswaldo Lamartine ao seu parente e amigo Ramiro Monteiro Dantas, sertanejo morador da Fazenda Saudade, em Serra Negra do Norte/RN. As historiadoras Angela de Castro Gomes (2004) e Teresa Malatian (2009) nos servem orientações sobre como analisar a carta como espaço biográfico passível de exploração pelos estudos históricos. Destas correspondências recuperamos Oswaldo Lamartine em um exercício de escrita que expõe a si mesmo ao se comunicar com o amigo, e ao refletir

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sobre o mundo que os cerca e a literatura que compartilham, cujas referências inscrevem os sertões no que o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2011) compreende como espaços da saudade.

Com a promoção desta discussão esperamos contribuir com a área da História dos Sertões que começa a organizar-se. Com o intuito de contribuir também com a preservação da documentação consultada, decidimos anexar ao fim deste trabalho fotografias das mensagens escritas e remetidas por Oswaldo Lamartine, pois alguns livros que serviram de suporte material para elas já estão consideravelmente desgastados. Contudo, entendemos que somente a consulta direta a esta documentação pode dar pleno alcance às suas potencialidades, visto que cada livro traz diversas intervenções de Ramiro Monteiro Dantas ao longo de suas páginas.

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1 PARENTES E AMIGOS

“Falo de temas sertanejos, quando falam a nossa fala e retratam o nosso viver – alegre e gostoso.”5

Depois que o sol se põe, e a coalhada com rapadura já descansa na barriga ao balanço manso da rede no alpendre, é hora do prosear entre os parentes e amigos. Nestes momentos de sociabilidade durante sua estadia nos sertões do Seridó, o menino Oswaldo muito deve ter escutado e se encantado com o debulhar de causos contados pelos mais velhos sobre aqueles sertões antigos, que diziam da perigosa caçada à onça, do encontro desafortunado com um bando de cangaceiros, da valentia dos que emendavam os panos e decidiam suas pelejas na ponta da faca, da pega de boi embrenhada na caatinga, ou ainda das misérias vividas em épocas de seca, condenando as gentes à comida braba. Enfim, um sem número de venturas e desventuras que persistem ainda hoje na memória e nas rimas sertanejas.

Ainda garoto, Oswaldo Lamartine de Faria viajou para morar e estudar em cidades grandes e distantes daqueles sertões, se fez homem longe dali.6 Sentiu saudades, trocou correspondências, leu muitos versos e romances sertanejos, imaginou outros tempos passados e futuros. Pesquisou sobre os sertões e a vida rural, muito aprendeu, e decidiu que chegara a sua vez de contar histórias. Desenterrou as lembranças que tanto lhe absorviam e, como manda a tradição, transmitiu as sabedorias adquiridas, contando a seu próprio modo aqueles “era assim...”

Rapidamente foi reconhecido como um representante da tradição sertaneja, não só pela importância de seus ensaios, registrando um processo de modernização através das diversas inovações técnicas nos modos de fazer e de viver nos sertões, mas também por assumir uma postura por vezes inconformada com as mudanças que tais inovações provocaram ao sistema de valores daquelas sociedades. Condenou o irrevogável, saudou o nunca mais, e defendeu que algumas inovações técnicas pudessem ser conciliadas aos valores tradicionais, de forma a evitar ou amenizar bruscas implicações sociais. Apesar de conservador, reticente à modernização de técnicas e costumes, Oswaldo Lamartine não deixa de ser também um homem de seu tempo – por mais que se recusasse a reconhecer isto –, e cultivou cuidadosamente algo que caracteriza

5 FARIA, Oswaldo Lamartine de. [Brasil caboclo]. Destinatário: Ramiro Monteiro Dantas. Rio de Janeiro, 13 dez. 1990. 1 Correspondência autografada.

6 Em 1931 foi interno no Ginásio do Recife, em Recife/PE. Em 1933, transferiu-se para o Instituto Lafayette, no Rio de Janeiro/RJ. E em 1938 segue para a Escola Superior de Agricultura de Lavras, em Lavras/MG (CASTRO, 2015).

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a ideologia moderna – o individualismo – através da escrita de si, como se pode perceber em uma entrevista concedida à escritora Natércia Campos, onde Oswaldo Lamartine se queixa do tempo em que vive:

Compensa estar cada dia mais mouco e de vista mais curta para não-assistir essa terraplanagem cultural. Sua Majestade a eletrônica, o laser e o genoma estão virando tudo pelo avesso. Parece que, se demoro mais por aqui, vou terminar em um museu [...] Modéstia à parte vim de tempos mais silenciosos, simples e tranquilos” (CAMPOS, 2001, p. 30; grifo nosso).

Além da crítica acerca da modernização das técnicas e suas consequências sobre o mundo, é interessante observar que ao mesmo tempo em que rejeita o tempo em que vive, realiza também uma “automonumentalização” ao indicar-se como objeto próprio à musealização. O que implica a interpretação: eu sou o passado que o presente precisa dotar de significado histórico, pois o tempo que sou é “um tempo mais...” (entenda-se, um tempo melhor).

1.1 O INDIVÍDUO: SUJEITO HISTÓRICO

Um dos aspectos que caracterizarão a Idade Moderna será o surgimento de um “novo homem”. No livro O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, Louis Dumont busca mostrar o desenvolvimento do individualismo, a partir da manifestação dessa categoria em monografias escritas desde o século XIII. Segundo sua pesquisa, a concepção moderna de indivíduo emerge com o nascimento do Estado moderno, quando a categoria política emancipa o indivíduo da Igreja. Dumont também considera um progresso do individualismo a emancipação da categoria econômica, em relação à Igreja e ao Estado, a partir do século XVII (1985, p. 26), e reconhece o triunfo do individualismo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, “a primeira a ser adotada como fundamento da Constituição de uma grande nação, imposta a um monarca reticente pela manifestação popular e proposta como exemplo à Europa e ao mundo” (DUMONT, 1985, p. 109). Assim, a ideologia do individualismo moderno seria construída sobre os valores de liberdade, igualdade e propriedade, em contrário aos valores centrais das sociedades de castas, tidas por tradicionais, caracterizadas pela interdependência e a hierarquia.

Há um certo consenso na historiografia de que “o século XIX marcou o triunfo do eu, do individualismo, [...] desnudar-se, revelar-se, conhecer-se são palavras de ordem da burguesia oitocentista” (SCHMIDT, 2012, p. 191). A historiadora Angela de Castro Gomes concorda que “a escrita auto-referencial, ou escrita de si, [...] encontra seu apogeu no século XIX” e pode ser “entendida a partir da ideia de uma relação que se estabeleceu entre o indivíduo moderno e seus documentos” (2004, p. 10 – 11). Mais precisamente, para a historiadora,

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Essas práticas de produção de si, [...] da constituição de uma memória de si, [...] evidenciam a relevância de dotar o mundo que os rodeia de significados especiais, relacionados com suas próprias vidas [...] O ponto central a ser retido é que, através desses tipos de práticas culturais, o indivíduo moderno está constituindo uma identidade para si através de seus documentos, cujo sentido passa a ser alargado. Embora o ato escrever sobre a própria vida e a vida de outros, bem como de escrever cartas, seja praticado desde há muito, seu significado ganha contornos específicos com a constituição do individualismo moderno. A chave, portanto, para o entendimento dessas práticas culturais é a emergência histórica desse indivíduo nas sociedades ocidentais. (GOMES, 2004, p. 11).

Contudo, o século XIX assistiria também a uma ‘reação anti-individualista’, ao insistir nos fatores sociais como constituintes da personalidade, revelando as raízes sociais do ser humano (DUMONT, 1985, 120). O fato é que a própria teoria política moderna apresenta diferentes concepções onde ora “o todo (social e) político está em primeiro lugar”, ora “os direitos do homem individual são os primeiros e determinam a natureza das boas instituições políticas” (DUMONT, 1985, p. 74).

No Brasil, o processo de industrialização se deu tardiamente, apenas nas últimas décadas do século XIX, e está diretamente relacionado às transformações econômicas e sociais que forçaram a queda do regime monárquico e a proclamação da República, em 1889. Iniciaria na região Sudeste, àquele momento, o centro mais dinâmico da economia no país, cujos grandes produtores e agroexportadores de café, no Oeste paulista, conseguiram o aumento da produção ao introduzir métodos aperfeiçoados no beneficiamento do produto. Também já utilizavam a mão-de-obra livre e assalariada, composta principalmente por imigrantes europeus. Estes fazendeiros compunham um setor da classe senhorial mais progressista que, interessada em ocupar mais espaço no aparelho de Estado, acolheram ideias que surgiam e beneficiavam seus interesses, como o abolicionismo, a reforma eleitoral, e o republicanismo. O aumento da produção e o acúmulo de capital devido à exploração do trabalho assalariado produziu maior circulação de dinheiro, criando condições para a consolidação de um mercado interno consumidor, e ainda a dinamização e maior investimento na produção fabril, também condicionado pela multiplicação de instituições de crédito. Concomitantemente, em algumas regiões, se deu um processo de urbanização e o desenvolvimento da infraestrutura necessária para a manutenção e fluxo produtivo fabril e industrial, como as redes viárias e elétricas (COSTA, 1999, p. 464).

Assim, a República recém-proclamada, assistia a profundas mudanças no seu tecido social, com a composição de novos grupos sociais: divisões na classe senhorial devido a diversidade de interesses que acompanhava a indústria emergente e as contrariedades com os

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tradicionais setores agrários; a concentração de trabalhadores assalariados no campo e nas cidades; o estabelecimento de um grande número de imigrantes que traziam consigo novas perspectivas e expectativas políticas e econômicas; a ampliação dos serviços oferecidos por trabalhadores autônomos, que embora circulando na órbita senhorial tradicional, não necessariamente compartilhavam em plenitude dos mesmos valores. Enfim, a sociedade brasileira se tornava cada vez mais complexa.

Aqui importa ressaltar que a indústria têxtil é um dos primeiros setores fabris a se consolidar no Brasil, em fins do século XIX, criando um importante mercado interno para a cotonicultura produzida no Nordeste, inclusive no Rio Grande do Norte, onde a exportação de algodão apresenta crescimento até 1930, tornando esta a principal atividade econômica geradora de receita para o estado. Esta produção está concentrada na elite agrária da região do Seridó, que alcança também crescente importância política, desalojando em definitivo a oligarquia Albuquerque Maranhão, cujo poder econômico estava baseado na produção açucareira, então em declínio. A alternância de poder significou também uma mudança do direcionamento de recursos públicos, antes voltados para o litoral, agora voltados para o interior, criando melhores condições para o cultivo, beneficiamento e circulação da produção de algodão (MONTEIRO, 2007, p. 134-5).

No Rio Grande do Norte, portanto, também ocorriam transformações importantes na tessitura social, apesar de responderem a outros ritmos e intensidades. No interior do estado, uma realidade ainda majoritariamente rural, marcada pela concentração de terras, pelo mandonismo, por relações de trabalho variadas em suas formas de pagamento, e pelas esporádicas secas que dificultavam a vida de populações e culturas em áreas não atendidas pelos serviços públicos, forçando contínuos fluxos migratórios ou à vida em condições miseráveis. No litoral, e principalmente em Natal, capital do estado, tinha-se iniciado o processo de urbanização, e a circulação de gentes e ideias eram maiores devido às atividades portuárias. Também já surgiam organizações de trabalhadores autônomos e operários fabris, com demandas políticas às quais o governo buscava conferir aparência de conciliação, ou reprimir.

Na eleição presidencial de 1930, o governo estadual do Rio Grande do Norte, então ocupado por Juvenal Lamartine de Faria (1928 – 1930) apoiou o candidato paulista, que havia rompido a “política do café-com-leite”, possibilitando a formação da Aliança Liberal entre as oligarquias de Minas Gerais e outras oligarquias regionais excluídas do acordo anterior.7 A

7 “Política do café-com-leite” foi a alternância no poder federal de representantes das elites paulista e mineira, garantindo, essencialmente, a defesa dos interesses da cafeicultura em termos de política econômica do Governo (MONTEIRO, 2007, p. 131).

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chapa, encabeçada por Getúlio Vargas e João Pessoa, tinha o apoio de setores militares advindos das camadas médias que reclamavam maior participação na política, e alcançou forte ressonância popular nos centros urbanos.8 Ainda assim a candidatura paulista venceu as eleições. A suspeita de fraude nas urnas e o assassinato de João Pessoa evidenciaram a falta de abertura à oposição pela via eleitoral, abrindo assim o caminho para conspiração por parte da Aliança Liberal e a tomada do poder pelas armas (MONTEIRO, 2007, p. 144). A historiografia registra o levante armado que se deu como a “Revolução de 1930”.9 O episódio dá início ao declínio da oligarquia algodoeira-pecuária seridoense, e força a fuga de Juvenal Lamartine ao exílio, em Paris (França), em outubro de 1930, quando Oswaldo Lamartine era ainda um garoto. Ele próprio iniciaria uma “jornada cosmopolita” devido ao incômodo e dificuldades de lidar com as constantes agressões que passaria a sofrer nas escolas por parte de outros alunos.10 Em seus escritos futuros, o início do fim dos sertões do Seridó coincidirá com o período “revolucionário”. Os sertões decaem juntamente com a oligarquia seridoense e o governo de seu pai.

Oswaldo Lamartine só tornará a viver no Rio Grande do Norte na década de 1940, intercalando duas passagens breves por Macaé/RJ e Barra do Corda/MA. Até que, em 1955, assume um cargo no Banco do Nordeste do Brasil (BNB), em Fortaleza/CE, e em 1957 é transferido para o Rio de Janeiro/RJ, onde viverá até 1996, quando falece sua segunda esposa, a atriz Ludy Veloso (1924 – 1996), e então decide voltar em definitivo ao RN, após quarenta e um anos morando em regiões metropolitanas fora do estado. Aos setenta e sete anos de idade, já nacionalmente reconhecido como importante escritor sertanista, instala-se na Fazenda Acauã, localizada no município de Riachuelo/RN, na mesorregião do Agreste potiguar.

8 Maria Cecília S. Forjaz afirma que “há um núcleo tenentista relativamente coeso e atuando politicamente organizado [...] Esse núcleo tinha um projeto político antioligárquico, centralizador, estatizante e autoritário, além de esposar propostas explicitamente agraristas e anti-industrialistas (além de distributivistas)” (FORJAZ apud SPINELLI, 1996, p. 12).

9 O sociólogo José Antonio Spinelli não utiliza o termo sem antes fazer a seguinte colocação: “Utilizamos o termo ‘revolução’ para caracterizar os episódios de outubro de 1930, atendendo mais à tradição do uso corrente que ao seu significado conceitual. Na verdade, uma revolução efetiva [...] leva a uma ruptura nas bases da formação econômico-social e da superestrutura política e ideológica da sociedade. Em outras palavras, isto significa uma mudança radical no âmbito do poder econômico e do poder político. A revolução de 1930 não teve como consequência uma reorganização dos fundamentos econômico-sociais do país (como aconteceu em 1888-91) e as mudanças que ocorreram seguiram a via da chamada ‘modernização conservadora’, implicando uma composição de interesses entre a burguesia industrial e os setores agrários ligados aos mercados externos e interno. Por outro lado, na instância política sucedeu um rearranjo entre as frações burguesas e semiburguesas que constituíam o bloco no poder, com uma progressiva e nítida afirmação da hegemonia da fração industrial da burguesia nos anos 30 e seguintes” (SPINELLI, 1996, p. 11). A historiadora Denise Mattos Monteiro ressalta a diversidade de correntes políticas entre os militares que compunham o movimento tenentista na década de 1920 e a aberta divergência no episódio de 1930: “É importante registrar que no apoio dos tenentes à Aliança Liberal, o movimento tenentista se dividiu: uma ala, liderada por Luís Carlos Prestes, negou o seu apoio, considerando o movimento de 30 como uma ‘Revolução da Oligarquia’” (MONTEIRO, 2007, p. 144-5).

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Ali, tentará reviver o passado em uma dimensão além da escrita, colecionando o sertão antigo. Constrói sua casa de fazenda como um relicário, adornada de objetos antigos e outros produtos que remeta aos tempos áureos de sua casa – tapeçaria, louças, móveis e roupas levam a heráldica do ferro de marcar da família –, quando eram grandes proprietários de terras e gados, monta para si próprio um cenário sertanejo onde possa encenar suas memórias. Mas “o indivíduo não existe só. Ele só existe ‘numa rede de relações sociais diversificadas’” (DEL PRIORE, 2018, p. 79). Oswaldo Lamartine é apenas um homem, não pode restaurar nem o tempo nem a sociedade. Ali já não vive uma densa sociedade rural, como na primeira metade do século XX; não há sequer um vaqueiro encouraçado aboiando o gado para colaborar com sua ambientação. Neste sentido, seu empreendimento está fadado ao fracasso, é impossível voltar no tempo. Mas sua personagem se torna um sucesso! Autor de seu próprio sertão, Oswaldo Lamartine de Faria encarna antigas tradições sertanejas, e esta forte identificação com o sertão lhe renderá a publicidade e a definitiva consagração por parte de instituições públicas e privadas nos seus últimos anos de vida.

Filho de uma oligarquia decaída, Oswaldo Lamartine será exaltado como o representante de uma época extinta, o indivíduo através do qual se poderia reviver um mundo perdido. Passa a figurar como se fosse ele próprio uma reminiscência, o sobejo de uma seca devastadora.

1.2 TRADIÇÃO HISTORIOGRÁFICA

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi criado em 1838, no Rio de Janeiro, às expensas do próprio imperador, dom Pedro II, dezesseis anos após a proclamação de Independência do Brasil. Sua instituição faz parte de um esforço maior em se forjar uma identidade nacional brasileira. O IHGB será então o lugar responsável pela sistematização de uma história apropriada ao Estado há pouco fundado. Atribuição que esteve orientada por duas diretrizes principais: (1) coletar e publicar documentos relevantes para a história do Brasil e, (2) incentivar o ensino público de estudos de natureza histórica (GUIMARÃES, 1988, p. 8). Sua fundação deve ser entendida dentro do processo de centralização do Estado, que buscava integrar as diferentes regiões e efetivar a unidade do território. Desta forma, o IHGB, com a central localizada na capital do Império, buscava manter relações com instituições congêneres nacionais – inclusive, incentivando a criação de outros Institutos nas províncias – e internacionais. Tem-se assim “o Estado Nacional como o eixo central a partir do qual se lê a história do Brasil, produzida nos círculos restritos da elite letrada imperial” (GUIMARÃES, 1988, p. 9). A história produzida no IHGB terá consequentemente uma visão elitista, continuadora da tarefa civilizacional portuguesa e condutora deste fim, uma história que busca

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definir uma identidade própria à nacionalidade e consequentemente demarcadora de diferenças internas (índios e negros) e externas (repúblicas latino-americanas). Em seu caráter político manifesta-se “a ideia da história nacional como forma de unir, de transmitir um conjunto único e articulado de interpretações do passado, como possibilidade de atuar sobre o presente e o futuro” (GUIMARÃES, 1998, p. 17).

Entre os dias 25 a 29 de junho de 2004, ocorreu em Natal/RN o I Encontro Regional da ANPUH-RN (Associação Nacional de História, seção Rio Grande do Norte), com o tema “O ofício do historiador”. Neste momento significativo para estudantes e profissionais em História no estado, nada mais adequado do que ter como tema da mesa de abertura um ‘balanço da historiografia norte-rio-grandense’.

Balanços historiográficos, seja qual for o objeto, significam acima de tudo avaliações críticas da produção existente, com um propósito específico: buscar a renovação dos estudos e pesquisa na área de História, a partir de diagnósticos que nos permitam pensar novos temas, problemas e metodologias a serem desenvolvidas (MONTEIRO, 2006, p. 51).

A historiadora Denise Mattos Monteiro, uma das profissionais a compor a mesa, enfatiza a influência daqueles historiadores do IHGB sobre a historiografia brasileira, que ficaria, por décadas, marcada por uma visão elitista e conservadora do Brasil.

Fundado em 1902, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) seguiu a inspiração do IHGB e, por décadas, reproduziu a mesma leitura histórica no âmbito regional.11 Para Monteiro, a historiografia produzida no estado durante

[...] os primeiros 70 anos do século XX foi caracterizada, especialmente, pelo peso mítico de Câmara Cascudo. Foi constituída pela produção de historiadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, pertencentes a uma geração anterior à formação universitária em História. O que me parece importante frisar é que sua matriz teórica, no sentido de uma certa concepção de História e de escrita da História, dos valores a serem defendidos e cultuados, encontra-se no século XIX, quando nasceu a escrita da História no Brasil. Esse nascimento esteve intimamente articulado ao processo de organização do Estado Nacional, processo esse no qual os historiadores, reunidos em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado no Rio de Janeiro, em 1838, desempenharam um importante papel na construção de uma identidade nacional, de um passado em comum para o ‘povo’ dessa nação que se organizava, por obra e em função de suas elites. Em decorrência, essa matriz teórica, e por conseguinte a primeira fase da historiografia norte-rio-grandense, apresentou dentre suas características principais: uma visão de sociedade esvaziada de conflitos sociais; uma visão de política como atividade exclusiva das elites; a

11 Para uma leitura aprofundada acerca das atividades intelectuais organizadas pelo IHGRN, ver COSTA, Bruno Balbino Aires da. “A casa da memória norte-rio-grandense”: o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a construção do lugar do Rio Grande do Norte na memória nacional (1902-1927). 590 fl. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, 2017.

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recorrência, como tema dos estudos, de determinados fatos históricos enobrecedores, nos quais celebravam-se certos personagens históricos que deles participaram; a predominância da descrição sobre a interpretação, originando uma histórica crônica ou factual; e a ausência do que nós chamamos hoje de rigor metodológico, especialmente no que diz respeito à ausência de informações sobre a base documental desses estudos (MONTEIRO, 2006, p. 52).

Monteiro classificará este período da historiografia potiguar como “historiografia clássica”, em três sentidos: (1) a ela correspondem as obras seminais; (2) sua matriz de pensamento é profundamente conservadora, e (3) nela pode ser identificado um esforço de construção de uma certa identidade norte-rio-grandense (MONTEIRO, 2006, p. 52). Este perfil historiográfico começará a mudar apenas na virada da década de 1970 para 1980, com o surgimento dos primeiros estudos acadêmicos sobre o RN, possibilitando uma “renovação do conhecimento histórico, através do desenvolvimento de novos temas e problemáticas e da preocupação com o rigor teórico-metodológico nas pesquisas” (MONTEIRO, 2006, p. 52).

Voltando-nos mais especificamente para o recorte seridoense, há também a “invenção de uma certa tradição historiográfica” (MACÊDO, 2012, p. 216; grifo do autor), no dizer do professor e historiador Muirakytan K. de Macêdo, em seu livro A penúltima versão do Seridó. Neste importante estudo sobre o regionalismo seridoense, Macêdo buscou “rastrear, no tempo, o nascimento do Seridó enquanto construção discursiva de suas elites” (MACÊDO, 2012, p. 13). Inicia sua exposição relacionando a construção cartográfica do Seridó com a expansão e atuação das elites pecuaristas nos sertões, no período colonial (século XVII), e tendo como referência os limites administrativos das vilas e freguesias. Espaço que será dotado de significados sociais historicamente construídos e que “ganham visibilidade através da locução daqueles agentes que têm o poder de dizibilidade mais proeminente” (MACÊDO, 2012, p. 22). Assim, alguns elementos discursivos aparecerão de forma significativa na constituição do regionalismo seridoense: a noção do espaço agônico como provação e promissão; a natureza singular da resistência do sertanejo; e a cotonicultura como consagração do Seridó (MACÊDO, 2012, p. 24-25).

Qualificando o homem e a paisagem, o discurso regionalista criava um lugar particular. Não um espaço preexistente ao tempo, nem um tempo fora do espaço. Mas um espaço imaginário, político e econômico, onde as falas que nomeiam são locuções que procuram instituir verdades. Normalmente vozes que conseguem uma visibilidade maior, posto que dizem de uma maneira e de um lugar privilegiados: por meio da palavra escrita, ou oralizada nos púlpitos do poder, e advinda de um pequeno número de locutores – a elite que domina os meios de fixar suas palavras em lápides mais perenes. Parte do Seridó é “ficção”, parte existe de se tocar. Sua história será sempre, como a história de outras paisagens, a tarefa de traduzirmos uma parte na outra parte. Espaço,

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tempo e, no meio do redemoinho, o homem a criar sinais (MACÊDO, 2012, p. 219; grifo do autor).

Muirakytan K. de Macêdo privilegia em seu estudo aqueles documentos que considera “instituintes de aspectos discursivos fundamentais [...] do regionalismo seridoense” (2012, p. 24). Logo, pode-se entender a não seleção de textos de Oswaldo Lamartine de Faria na composição de seu corpus documental como a intepretação de que este é considerado um reprodutor de enunciados já estabelecidos na discursividade em questão.

Há ainda outro estudo histórico que se dedica à investigação das atribuições de sentidos e significados para o Seridó a partir do discurso historiográfico. Trata-se da dissertação de mestrado Ser(Tão) Seridó em suas cartografias espaciais, defendida em 2007 por Olívia Morais de Medeiros Neta, no programa de Pós-Graduação em História da UFRN. A historiadora se volta à análise das obras Homens de Outrora (1941), escrita por Manoel Dantas; Seridó (1954), por José Augusto; a obra póstuma Velhos costumes do meu sertão (1965), de Juvenal Lamartine, e a coletânea de ensaios de Oswaldo Lamartine de Faria, publicada sob o título Sertões do Seridó (1980), justificando sua seleção pelo que as “fontes-obra” apresentam em comum: o Seridó como recorte espacial historicamente construído, os elos genealógicos entre os autores, e a relação do lugar social dos autores com a prática discursiva.12 Ligado a estes nomes, Oswaldo Lamartine de Faria se faz “príncipe do sertão”, herdeiro da “dinastia” de memorialistas com significativas relações com a história daquela região, situado entre os elocucionadores responsáveis por dar visibilidade privilegiada ao Seridó.

1.3 O DEPOSITÁRIO DA TRADIÇÃO SERTANEJA

Contudo, seria equivocado pensar que a consagração do nome de Oswaldo Lamartine de Faria como um grande escritor dos sertões do Seridó, se dá meramente por um elo genealógico com outros memorialistas que, supostamente, teriam maior relevância. Esta aproximação genealógica é, sem dúvida, uma das vantagens que ele possui e explora na produção de si.13 Porém, Oswaldo Lamartine tem brilho próprio.

12 Dentre os materiais que compõem o corpus documental da pesquisa de Muirakytan K. de Macêdo encontram-se artigos de jornais escritos por Manoel Dantas, um discurso de Juvenal Lamartine, e o mesmo livro de José Augusto citado acima, coincidindo quase completamente com os autores selecionados para compor a pesquisa de Olívia Morais de Medeiros Neta, fortalecendo a instituição destes nomes como “cânones” do regionalismo seridoense.

13 “Escutei a conversa de parentes e amigos de meu pai. Conversa evocativa de velhos. No embalo das redes no alpendre, eles transmitiam o maior dos legados, o memorial daquele vasto mundo dos sertões” (CAMPOS, 2001, p. 9).

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No livro O que é um autor?, Michel Foucault problematiza a relação do sujeito com a escrita. Partindo da percepção de que “a noção de autor constitui o momento forte da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas” (2000, p. 33), se dedica a pensar “a relação do texto com o autor, a maneira como o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos em aparência” (2000, p. 34). Foucault considera que a noção de autor é uma invenção da experiência moderna que tem a subjetividade como “princípio constitutivo do pensamento moderno” (2000, p. 7), dessa forma “o autor foi individualizado na moderna cultura ocidental, enquanto portador de uma biografia onde se entrecruzam os fios da vida e os fios da obra” (2000, p. 22). Segundo Foucault, um nome de autor

“exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; [...] permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si; [...] o facto de vários textos terem sido agrupados sob o mesmo nome indica que se estabeleceu entre eles uma relação seja de homogeneidade, de filiação, de mútua autentificação, de explicação recíproca ou de utilização concomitante. Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de autor [...] indica que esse discurso não é [...] um discurso flutuante e passageiro, [...] mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto” (2000, p. 44-45).

A crítica de Foucault é a de que a apropriação realizada pela categoria autor impede que “cada livro seja lido por si mesmo” (2000, p. 6). O autor é assim definido por uma certa unidade estilística, além de uma suposta constância e coerência na exposição de seus pensamentos (2000, 52). Portanto, a sua resistência à noção moderna de autor diz respeito a uma espécie de ilusão autoral que ela comporta.

A nossa própria problemática sugere que o discurso produzido por Oswaldo Lamartine de Faria acerca dos sertões do Seridó é argamassado pelas trocas que realiza com diferentes interlocutores com os quais dialoga, direta ou indiretamente, através de diferentes experiências – familiares, profissionais, literárias, afetivas, traumáticas, etc. Ainda assim, reconhecemos que é na própria lógica da troca, do diálogo com diversas referências, na multiplicidade de fontes e agentes consultados, que o escritor consolida o seu estilo e empreende um caráter autoral, sendo este estilo próprio um dos tijolos basilares sobre os quais sustenta sua autoridade discursiva, buscando conciliar as características estilística e – o que entende por – cientista de sua escrita,

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em sua tentativa de “proporcionar prazer sem comprometer a verdade”. Assim seu estilo se torna também “um instrumento de diagnóstico” (GAY, 1990, p. 18).14

Quanto às suas publicações, estão todas voltadas ao universo sertanejo, ou à sua própria pessoa, com ênfase na sua relação com os sertões. Ou seja, a obra (conjunto de publicações bibliográficas, audiovisuais, correspondências, iconográficas) e a pessoa pública de Oswaldo Lamartine de Faria são construídas sob luzes sertanejas – mesmo escritos originalmente não pensados como produtos publicáveis, como o conjunto de correspondências consultados nesta pesquisa.

É novamente às reflexões de Michel Foucault que recorremos para buscar compreender como aquelas trocas inferem diretamente na produção do discurso de Oswaldo Lamartine de Faria sobre os sertões do Seridó. Ao discutir as formações discursivas a partir de suas regularidades, Foucault chama atenção para

“um certo estilo, um certo caráter constante da enunciação [...] se constituía [...] de um corpus de conhecimentos que supunha uma mesma visão das coisas, um mesmo esquadrinhamento do campo perceptivo, uma mesma análise [...], um mesmo sistema de transcrição do que se percebe no que se diz (mesmo vocabulário, mesmo jogo de metáforas); enfim, [...] que se organizava como uma série de enunciados descritivos (FOUCAULT, 2017, p. 41; grifos do autor).

A partir dessa perspectiva, foi possível perceber a regularidade de certos enunciados e modos de enunciação sobre os sertões que aparecem reunidos no discurso oswaldiano. Neste sentido, o primeiro aspecto que atrai a nossa atenção é a adequação da obra oswaldiana ao Manifesto regionalista declarado por Gilberto Freyre.15 O manifesto reclama a necessidade de “homens práticos” e não apenas “poetas, homens politicamente da esquerda e da extrema direita” conduzirem e darem sentido regional aos debates sobre os problemas do Nordeste, superando o “estadualismo” de caráter “separatista”, e substituindo-o

por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são modos de ser – os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão – que pedem estudos ou indagações

14 Quando chamamos atenção para a multiplicidade de fontes consultadas por Oswaldo Lamartine, não queremos com isso sugerir que existe no texto oswaldiano a construção de um espaço democrático de expressão. Para que a memória que reproduz se sustente, outras precisam se manter submersas no esquecimento. Portanto, seu texto é conservador e elitista. Oswaldo Lamartine dialoga com o trabalhador rural sertanejo (geralmente trabalhadores-moradores das fazendas administradas pelo próprio Oswaldo Lamartine), com homens da elite política e econômica do Seridó, do RN, e/ou do Nordeste (NE), com os círculos letrados que se dedicam aos sertões na literatura ficcional, memorialista, histórica e técnica, mas utilizará somente aqueles enunciados em harmonia com o seu discurso.

15 O Manifesto foi lido no Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo que se reuniu na cidade do Recife, durante o mês de fevereiro de 1926, e foi o primeiro do gênero na América. Divulgado em parte por jornais da época, este ‘Manifesto’ apareceu em primeira edição em 1952 (FREYRE, 1976, p. 44).

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dentro de um critério de inter-relação que ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano (FREYRE, 1976, p. 54).

Esta reivindicação regionalista ocorre contemporaneamente e em acordo com o processo de folclorização16 das expressões culturais, que ocorre em diferentes países à medida em que avança o processo de modernização trazido pelo capitalismo industrial, e que remete a modos de vida de qualquer “estrutura social anterior que estava sendo destruída pela sociedade burguesa e capitalista moderna” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a, p. 249). No Brasil, a década de 1950 é um período de significativa aceleração do processo de modernização iniciado na década de 1930. Não é coincidência que no mesmo período emerjam esforços em se organizar um movimento cultural de caráter conservador. Ainda no início dos anos trinta é publicado um rol de aspectos que mereceriam estudos folclóricos. Na lista constam:

I – Generalidades (bibliografia, método etc.); II – O arraial (o lugarejo, sítio, vivenda, agrupamento de casas etc.); III – As construções (arquitetura, decoração, instalação: casas, fazendas, igrejas etc.); IV – Os objetos (de uso, feitos pelo homem); V – Os sinais (marcas de propriedade, distintivos etc.): VI – As técnicas de artífices ou os ofícios e as artes populares (tecidos, rendas, escultura, móveis, cerâmica, madeira, metais etc.): VII – O vestuário e seus elementos (joias etc.); VIII – Costumes, hábitos, cerimônias de passagem, ritos sociais, associações, confrarias, festas, calendários, jogos e brinquedos e esportes populares etc.; IX – A alimentação e as bebidas; X – Direito popular; XI – Crenças (religiões e mitos, culto dos santos, superstições, feitiçaria, assombramentos, presságios, amuletos, mandingas etc.); XII – Medicina popular; XIII – Generalidade sobre a literatura popular, teorias etc.; XIV – Poesia popular (trovas, canções, desafios, ditados, inscrições, música, danças etc.); XV – Contos populares (contos de fadas, lendas, contos brejeiros, licenciosos, anedotas, pilhérias etc.); XVI – Teatro popular (autos, mistérios, pastorais, ‘semanas santas’: carnavais etc.); XVII – Calendários, almanaques, folhinhas; XVIII – Linguagem popular (dialetologia, brasileirismos, gíria, geringonça etc.; línguas profissionais; provérbios, adivinhações, frases feitas; imagens verbais etc.): XIX – Nomes (de lugares, de povos, de famílias, prenomes, apelidos, de divindades, de animais, de plantas, de corpos celestes etc.) (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013a, p. 249-250; grifos nosso).

16 Forma de saber que procura metodizar e sistematizar cada vez mais, reivindicando para ela foros de saber científico, um maior número de temas, de assuntos, de matérias e formas de expressão, uma maior gama de atividades humanas, que são nomeadas, classificadas, vistas e ditas como populares, como pertencentes ao povo, como pertencentes à tradição, como vindas de uma temporalidade anterior, um tempo imemorial, um tempo milenar. Este processo de folclorização tende a ter como marca a retirada da matéria e forma de expressão, que nomeiam como folclóricas, do seu lugar e contexto de produção, pensando-os como resquícios, como sobrevivências exóticas, como atividades que vêm de outros tempos e espaços e resistem como que à revelia do meio e da época em que acontecem (ALBUQUERQUER JÚNIOR, 2013, p. 247-248).

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Até aquele ano de 1952, com exceção de Notas sobre a pescaria de açudes no Seridó (Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1950), Oswaldo Lamartine apenas havia publicado artigos em periódicos – A República (Natal/RN), Nordeste (Recife/PE) e Diário de Pernambuco (Recife/PE) –, mas já recebera publicamente elogios do próprio Gilberto Freyre, e era tratado nas colunas de jornais em Natal/RN e Recife/PE como folclorista, discípulo de Câmara Cascudo.17

A verdade é que, apesar da ainda escassa produção, Oswaldo Lamartine estava bastante afinado com o novo regionalismo que ganhava corpo. O escritor compunha os círculos intelectuais de estudiosos potiguares voltados às discussões folclóricas, e seus artigos estavam todos vinculados à vida rural, ambiente que sofria forte assédio da folclorização.18 Não à toa, em sua produção predominam objetos culturais. Os termos em destaque na citação anterior dizem respeito a temas que o escritor já havia abordado ou viria abordar em suas publicações futuras. Além do mais, a sua justificativa nunca se distanciou daquela expressa no Manifesto regionalista: “Procuramos defender esses valores e essas tradições [...] do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que passam por ‘progressistas’ pelo fato de imitarem a novidade estrangeira” (FREYRE, 1976, p. 56).

Outro aspecto estilístico observável na obra oswaldiana é a recorrência ao ensaio, gênero predominantemente utilizado desde o século XIX até a década de 1930, quando os primeiros cursos universitários são fundados e o ensaio passa a ser visto com maior desconfiança pelos novos cientistas. Ainda assim, este impreciso gênero literário de estudo crítico constitui uma renomada tradição quando o assunto é sertões. Afinal, esta foi uma das categorias fundamentais a compor os esforços iniciais em se interpretar o Brasil enquanto nação. Dentre eles, Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado na virada do século XIX para o XX, tornou-se um dos mais importantes clássicos da literatura brasileira. Enviado como colaborador do periódico A Província de São Paulo para cobrir a expedição militar à Canudos, no sertão da Bahia,

foi enquanto o viandante/observador que Euclides da Cunha foi reconstruindo a sua visão do sertão, dos sertanejos e de seus costumes, e, consequentemente, do próprio significado de Canudos [...] A composição de Euclides dialoga com

17 Para um levantamento exaustivo da bibliografia de Oswaldo Lamartine de Faria ver SOBRAL (2018, p. 185 – 218). “Na edição de 9 de outubro de 1948 da revista O Cruzeiro, Gilberto Freyre escreve um artigo descobrindo Oswaldo para o Brasil. Segundo o autor de Casa Grande & Senzala, o jovem pesquisador potiguar é uma revelação de estilo na etnografia brasileira” (CASTRO, 2015, p. 40). Na edição de domingo, 30 de maio de 1948, o Diário de Pernambuco anunciava Veríssimo de Melo como novo colaborador do periódico: “Ao lado de Oswaldo Lamartine e outros rio-grandenses do norte [que] vem realizando interessantes trabalhos no campo do folclore de sua terra, seguindo assim o caminho de nosso conhecido Câmara Cascudo, de quem é um bom discípulo, segundo Gilberto Freyre”. Para uma leitura da conexão entre Câmara Cascudo e Oswaldo Lamartine, ver CASTRO (2015, p. 103 – 140).

18 Para ler mais acerca do envolvimento de Oswaldo Lamartine com os círculos intelectuais voltados às discussões folclóricas, ver BARROS (2018, p. 58).

Referências

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