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“Lá pelas eras de 40, quando trabalhava na construção de um açude na Fz. Lagoa Nova (São Paulo do Potengi/RN), Clovis Lamartine lhe deu um mote: Toda moça quando mija, / Deixa um buraco no chão. E Ramiro assim o glosou:

Nem toda abelha tem mel, Nem toda música é baião, Nem todo frei capelão, Nem tudo que amarga é fel, Nem todo vento é tufão, Nem tenente é capitão, Nem toda botija é botijão Mas toda moça que mija Deixa um buraco no chão! Nem toda água é corrente, Nem toda montanha é serra, Nem todo barulho é guerra, Nem todo homem é valente, Nem todo velho é demente, Nem toda gruta é rincão, Nem todo rio é Jordão, Nem toda madeira é rija, Mas a moça quando mija Deixa um buraco no chão. Tudo no mundo acontece, Tudo no mundo se vê. Nascer, gozar e sofrer, O chão seca e umedece. O valentão esmorece, Há paz, há revolução, Há tumulto, há confusão, Sem que explicação exija. Só a moça quando mija Deixa um buraco no chão. Portanto, Clovis, eis aí, O seu mote está glosado. Não sei se está bem rimado, Ou se alguma coisa esqueci. A coisa que nunca vi Foi uma moça mijar, Já não posso assegurar Se a história é certa ou não Se elas mijando no chão Deixam um buraco ficar...”

(FARIA, 2008, p. 101 – 102; grifos do autor)

Provavelmente era Oswaldo Lamartine quem administrava a mesma fazenda, no mesmo período e, ao que parece, na mesma oportunidade da construção do açude, como deixa

transparecer em um de seus ensaios.21 É provavelmente neste período que Oswaldo Lamartine manterá um contato pessoal mais próximo com aqueles sertanejos que terá como mestres de ofícios, a quem agradece e homenageia reiteradamente nos discursos que proferiu em oportunidades de condecoração por sua obra – por exemplo, na titulação de doutor honoris causa, pela UFRN:

[...] o que botei no papel foram apenas momentos do dia-a-dia do nosso sertanejo. Convivi com alguns deles debaixo das mesmas telhas – tenho repetidamente confessado. Mestre Pedro Ourives e seu filho Chico Lins – magos do couro, zelosos e ranzinzas, da escolha do couro-verde ao derradeiro nó-cego da costura. Ramiro e Bonato Dantas, pescadores d’água-doce e memorialistas. Zé Lourenço, tora de homem, analfabeto, cujos instrumentos de trabalho se resumiam em um nível de pedreiro e um novelo de cordão. Pois bem, apenas com ele, levantou 640 metros de parede do açude Lagoa Nova sem deixar um caculo nem uma barroca. O que deixou o engenheiro do DNOCS de queixo caído. Olinto Ignácio, rastejador e vaqueiro maior das ribeiras do Camaragibe [...] (OSWALDO, 2011, aprox. 21 min.; grifo nosso).

Ramiro M. Dantas é lembrado como um de seus mestres de ofício, no assunto pescaria. Recorremos então ao ensaio ABC da pescaria de açudes no Seridó, originalmente publicado em 1961, mas no livro o nome de Ramiro M. Dantas não é citado, há apenas uma dedicatória em homenagem ao irmão, Bonato Dantas (1897-1955), “que nos sertões da Fazenda Lagoa Nova, em 1943, nos explicou, tin-tin por tin-tin, como pescava nas ribeiras do Seridó” (FARIA, 2015, p. 7). De toda forma, o local (Fz. Lagoa Nova) e o ano (1943), além das referências à construção do açude e às conversas de alpendre com os sertanejos que trabalhavam na fazenda enquanto era o administrador, indicam que foi neste período que travou contato pessoal com Ramiro Dantas. Encontramos ainda uma outra menção feita por Oswaldo Lamartine ao impudico glosador, na pequena nota de apresentação em Uns fesceninos:

Ramiro Monteiro Dantas – A 3 de novembro de 1912 cortou o umbigo na Fazenda Saudade, município de Serra Negra do Norte, onde também foi batizado. Ali mesmo cresceu e passou pelas escolas de b-a bá das fazendas. Já homem feito andou trabalhando aqui e acolá. De 1948 a 1952 ocupou o cargo de Delegado do distrito de Barra de São Pedro (Serra Negra). A partir de 1952 se agregou a um grupo de tarrafeiros (pescadores de açude) tornando-se depois profissional do ofício. Diz ter em preparo um caderno de poesias impudicas – Rancho de pescador (FARIA, 2008, p. 100; grifos do autor).

No município de Serra Negra do Norte/RN, a Biblioteca Municipal leva seu nome. Lá, um quadro pendurado expõe a fotografia de busto de Ramiro Monteiro Dantas, e dois textos biográficos impressos em três folhas de ofício fixadas à parede com fita adesiva. O texto Ramiro

21 Os açudes dos sertões do Seridó (1978).

da Saudade (1912 – 1997), tem apenas três parágrafos, está escrito em terceira pessoa, e informa que a personagem

“nasceu, criou-se e viveu na Fz. Saudade, na ribeira das Espinharas” [...] É proprietário de terras mas segue ao pé da letra aquelas palavras bíblicas: ‘Olhai os lírios do campo como crescem, não trabalham nem fiam.’ Prefere amar a Natureza plenamente e escrever poemas. É um mestre nos cordéis [...], autodidata, aprendeu a ler depois de adulto, nos rótulos das garrafas de bebidas, nas bodegas do interior onde vive. Acredito que tenha sido ao mesmo tempo o início da sua intimidade com o conteúdo das garrafas. É solteirão inveterado e tem três paixões na vida: as mulheres, a leitura e uma boa caninha que não dispensa de manhã, à tarde e à noite. Vive a vida dos simples e é uma reserva da cultura popular autêntica, castiça, do nosso sertão. Lamentavelmente esses tipos estão desaparecendo, destruídos pela massificação cultural alienígena transmitida pela televisão” (LAMARTINE, 2004).

O outro texto, titulado Ramiro Monteiro Dantas, está escrito em primeira pessoa, confirma o local e data de nascimento. Também explica não ter estudado durante a infância devido a raridade de professores primários e ainda em consequência da seca de 1919, quando obteve idade escolar, mas precisou trabalhar. Diz ainda:

Eu tinha uma vontade danada de aprender a ler. Todos os fazendeiros, naqueles tempos, conservavam em seus armários uma boa quantidade de vinho do Porto para as festas e reuniões familiares. Nos rótulos das garrafas era gravado em baixo relevo: ‘Vinho Velho do Porto’. Decorei aqueles nomes e lia desembaraçadamente. Um dia, como por encanto, li de um só fôlego um versinho de cordel do poeta violeiro João Melquíades da Silva, estrofes sobre as enchentes de 1917 [...] Foi assim com a vontade de ferro pude me afastar das trevas do analfabetismo. Hoje, sou amigo, não só dos rótulos como também do conteúdo das garrafas, onde tive as minhas primeiras lições (LAMARTINE, 2003, p. 213).

Não conseguimos mais informações com o funcionário da biblioteca municipal.22 Nossa última fonte com informações acerca de Ramiro M. Dantas foi retirada do blog de Arysson Soares da Silva – que assina a matéria como membro do IHGRN –, na matéria em que reverencia “a justa homenagem ao saudoso boêmio, pesquisador, escritor e professor Ramiro Monteiro Dantas – Ramiro da Saudade [...], um dos cronistas sertanejos que guardo como lembrança e memória pelas inúmeras qualidades de ser sertanejo puro e de raça”. A referida homenagem é justamente a adoção do nome de Ramiro Monteiro Dantas pela Biblioteca

22 Ambos os textos fixados à parede da Biblioteca Pública Municipal Ramiro Monteiro Dantas foram digitados e impressos em uma folha comum de papel ofício A4. O primeiro traz uma nota indicando que teria sido extraído de “Aeroplano-Vaqueiros-Velhas Oiticicas” (Col. Mossoroense, 2004), de Pery Lamartine, mas não conseguimos acessar a publicação original. O segundo texto traz indicação de que fora retirado do livro Personagens serra- negrenses, do mesmo autor – o texto é compatível com a publicação original. Hypérides (Pery) Lamartine é um escritor memorialista, sobrinho de Oswaldo Lamartine, com quem escreveu o ensaio Algumas abelhas dos sertões do Seridó: Notas de carregação (1964), e também aparece como consultor do tio em Conservação de alimentos nos sertões do Seridó (1965).

Pública Municipal de Serra Negra do Norte.23 Arysson S. Silva também faz comentários sobre hábitos do “autodidata, poeta e escritor, Ramiro da Saudade”, quando se refere à sua “dedicação de pescar, tomar umas boas doses de cachaça, além do costume diurno de ler e escrever cartas, versos, poemas e rimas”. A matéria informa ainda que a Fz. Saudade, na qual Ramiro Dantas viveu a maior parte de sua vida, foi “herdada do seu avô paterno o Capitão da Guarda Nacional, Josué Álvares de Faria”. Comenta que o “então governador Juvenal Lamartine de Faria, seu primo”, o havia convidado, juntamente com o irmão Bonato Dantas, para morar na Fz. Lagoa Nova, e tendo retornado ao seu “torrão natal”,

passou a desenvolver a árdua e difícil missão de ensinar, como mestre escola nas fazendas dos seus parentes; em seguida como um grande conhecedor da história e dos fatos da região do Seridó, tornou-se uma espécie de consultor, o que por décadas foi repassador de informações de estudos para vários escritores e pesquisadores famosos do estado, como: Oswaldo Lamartine de Faria, Pery Lamartine, Olavo de Medeiros Filho, Deífilo Gurgel e Vingt-un Rosado, acrescido também de vários outros colegas admiradores de nossa história (SILVA, 2011).

De todos esses ditos entusiásticos, tem-se a constante afirmação de uma boêmia personagem, de pouca ou nenhuma escolaridade, um provável autodidata que teria se tornado professor, escritor, e uma espécie de informante acerca de assuntos do Seridó para pesquisadores potiguares que residiam fora da região. A este respeito, é interessante notar que na correspondência-livro [João Miguel] de 04/set./1990, Oswaldo Lamartine informa ao seu destinatário: “Sim, e por falar em livro – O de Ulysses Lins q o Pe. João Medeiros tinha endereçado a vcs foi devolvido porquanto ele em vez de endereçar Fz. Saudade – escreveu Solidão.24 Mas, a essa altura, já corrigido, deve estar viajando por aí” (linhas 10 a 13). O que demonstra que Ramiro Monteiro Dantas se correspondia com outros escritores e pesquisadores, mantendo uma rede de sociabilidade literária, e ainda, que era de conhecimento destes pesquisadores a relação missivista com um destinatário em comum, na região do Seridó.

O provável é que Ramiro da Saudade e Oswaldo Lamartine tenham tido pouco tempo de convivência presencial, provavelmente nos primeiros anos da década de 1940, e tenham passado muitos anos sem contato um com o outro, até que estabeleceram correspondência no

23 Homenagem que parece ter sido motivada pelo próprio Arysson S. Silva: “pedi ao edil Jarbas Faria de Araújo, que ingressasse com uma indicação nesta augusta casa legislativa, para depois de lida, e apreciada, fosse aprovada por unanimidade, o seu nome em sua homenagem, em um dos logradouros público de Serra Negra do Norte” (SILVA, 2011).

24 Três anos antes, em 1987, o Pe. João Medeiros Filho publicou o livro Seridó – sec. XIX: fazendas & livros, em parceria com Oswaldo Lamartine de Faria.

final da década de 1980, pois na mesma correspondência, Oswaldo Lamartine se mostra bastante desinformado e sedento de atualização dos familiares distantes:

“Quantos são vcs – irmãos? E quais os vivos, solteiros ou casados com descendentes e q ainda vivem aí na Saudade? Bonato me falava com carinho de todos e especial admiração pela inteligência de Romeu (?), de saúde precária. É vivo? Tem descendentes?” (FARIA, 04 set. 1990).

Neste capítulo buscamos apresentar os parentes e amigos, Oswaldo Lamartine de Faria e Ramiro Monteiro Dantas, correspondentes das fontes que analisaremos a seguir. Aqui, enfatizamos o estilo oswaldiano, situando-o em relação a uma ampla gama de enunciados correntes, a partir do qual Oswaldo Lamartine vai constituindo seu discurso sobre o sertão do Seridó, sustentado sobre uma tradição memorialista a qual está ligado genealogicamente, e um modo de descrever, ensaiar e representar subjetiva, poética e imageticamente a natureza e as culturas praticadas nos sertões.

2 DESTINO: SAUDADE

“É o nosso amargo e travoso destino de ponta-de-rama. Sofrer saudades e desenterrar lembranças para dizer aos mais novos – era assim...”25

As diversas e significativas transformações que se dão no país durante o século XX, principalmente entre as décadas de 1930 e 1970, quando o processo de modernização se acelera e redefine o status de um país predominantemente rural para um país predominantemente urbano, promoverão em muitas pessoas uma forma saudosista de lidar com o tempo.

A saudade também pode ser um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que perdeu suas referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que perdeu historicamente a sua posição, que viu os símbolos de seu poder esculpidos no espaço serem tragados pelas forças tectônicas da história (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 78).

A reordenação política que se dá a partir do levante militar de 1930; os intensos fluxos de migrações internas que ocorrem nas décadas seguintes e que mobilizam grande número de pessoas do Nordeste para outras regiões do país, por diferentes motivações, formando os contingentes de “soldados da borracha” no Norte, dos “candangos” envolvidos e muitas vezes soterrados na construção de Brasília no Centro-Oeste, compondo as massas de “operários” das grandes indústrias no Sudeste; a aceleração da modernização no período pós-Segunda Guerra Mundial; a expansão da urbanização que gradativamente vai se dando em todas as regiões do país a partir de meados do século XX; são alguns dos eventos que levam cada vez mais pessoas a migrarem, ou trocarem o campo pela cidade. Essas pessoas levarão consigo memórias do lugar que deixavam para trás.

Oswaldo Lamartine de Faria está entre estes citadinos desterritorializados. Em seus ensaios, em entrevistas, ou em suas correspondências, reage constantemente de forma negativa aos processos da modernização. Enxergando no mundo moderno não uma promessa, mas uma ameaça, se agarra às memórias do sertão, fazendo do Seridó um “território existencial” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 260), experimentando o tempo sob o signo da saudade, sempre em busca de um tempo passado.

25 FARIA, Oswaldo Lamartine de. [Terra pernambucana]. Destinatário: Ramiro Monteiro Dantas. Rio de Janeiro, 13 jun. 1994. 1 Correspondência autografada.

Encontrará no amigo Ramiro M. Dantas mais que um correspondente, um ponto de fuga através do qual pode se remeter, em umas poucas palavras, da metrópole carioca à Saudade! À esta fazenda – situada em Serra Negra do Norte (RN), onde os Lamartine estrumaram suas sementes seridoenses –, na qual viveu e amou, Ramiro Monteiro Dantas dedicou os seguintes versos:

FAZENDA SAUDADE.

Fazenda centenária, Saudade, de meus sonhos, Terra de meus avós, de meus antepassados, Se em ti gozei os dias felizes da meninice, Em ti também quisera um dia sepultado. Em ti passei os dias ditosos da infância,

Plantando um mulunguseiro, que ligeiro cresceu, Hoje é árvore gigante de sombra acolhedora, Apenas oito anos mais moço do que eu. Bem perto, o velho açude com águas, Há 120 anos, foi construído,

E como um velho Hércules resiste à ação do tempo, É testemunha muda de tanto acontecido.

Onde está o teu dono, que assim abandonas? Fugiu da imunda terra, está na eternidade, E hoje dividida, estranhos moram nela, Merece duas vezes o nome de Saudade. (SILVA, 2011).

De uma forma ou de outra, parece que viver na saudade, será mais um elo de aproximação entre os parentes e amigos. Passemos à análise desta saudação.

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