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Que imagens contam o que foi a Grande Guerra?

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Academic year: 2021

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Y-Título:

Portugal e aGrand.e Guerra. Contextos e Protagonistas O dos autores dos artigos

Revisão: Marcelino Amaral Capa:FBA Depósito Legaln.a 399467 /15

PONTUGAI, E

A

GRATIIIE

GUENRA

GOilTEXTOS

E PROTAGOTII$TAS

TTI¡TÍ

E¡å

ARTTIETNN

¡HNTITTTHII

{{ÈmG.} Paginação: CláudiaMoura Impressão e acabamento: PENTAEDRO,LDA. Outubrode20lS

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.

Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível

de procedimento judicial.

Biblöotecø Nacional d.e Portugøl - Catalogøção na Publicação AGRANDEGUERRA

Portugal e a Grande Guerra. Contextos e protagonistas / org. Miguel BandeiraJerónimo. - (Extracoleção)

rsBN 978-972- 44-t668-7 I -JERÓNIMO, Miguel Bandeira

cDU 94(100)"1914 / 1978"

-

cnrMuõEs

I DAcooPERAcÃo

L

ËËåiÜi;L

(2)

Ana Paula Laborinho

Nota introdutória . 9

Bárbara Reis

Os 100 anos daCrande GuerranoPúblico 11

13 15 17 25 at 45 5t 69 Miguel BandeiraJerónimo Introduçdo Textos.

Filipe Ribeiro de Meneses

Guerra sonhada e guerra aiaida: as contradições

do interaencionismo português. . . . .

Aniceto Afonso

Portugal e a Grande Guerra, a questão mi'litar . .

José Manuel Sobral

Heróis do mar: anação, o império e a þarticiþação de Portugal na Primeira Guerra'. . . .

Miguel BandeiraJerónimo

Os choques da ciuilização: testemunhos, homoresesilêncios

...

Isabel Pestana Marques

A corresþondência do desassossego e da saudade

AntónioAraújo

(3)

-t

I ronrucnl E A cRANDE GUERRA. coNTExros E pRorAGoNrsrAs

Filipa Lowndes Vicente

Que imagens contamo que.foi a Grande Guerra? . . ., .

Anne Cova

As mul heres to ram a t i ais t as nn guerra.,

d,epois uoltaram ao lar Sílvia Correia

Celebrar a uitória en¿ d,iad,e d¿rrota - afinal, aquern þertencem as þolíticas

da memória da Primeira Guerca Mund,ial? Nuno Severiano Teixeira

Portugal na Grand¿ Guerra: memória do þassad,o,

desafiosd,ofuturo. . . . . Pedro Lains

Lições económicas da Primeira Guerra Mundial . . . .

António CostaPinto

A Primeira Guerra Mundial e a Qued,a d,a Reþública. Uma relaçd.o comþlexa

Fernando Rosas

Guerra e revolução na Rússia de 1917

85 95 103 113 t2r 12? 135 745 T4? 155 163 177 185 191 199 20? 2t7 2r9 994 Entrevistas Jay Winter Frederick Cooper RichardFogarty... Françoise Thébaud ErezManela

...

Nicolas Offenstadt AdamHochschild . SusanPedersen .. .

Aler

. Miguel

Band.lru¡".oni-;,"

' ' ' ' A imþortônciadaHistória . . . . . Bibliografia básica sobre Portugal

(4)

FilipaLowndes Vicente

(Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa)

O que são as fotografias daPrimeira GuerraMundial? As

foto-grafias oficiais tiradas pelos militares de ambos os lados da barri-cada, em vários momentos do seu novo quotidiano? As imagens

pessoais daqueles soldados que levaram as suas próprias

máqui-nas fotográficas para a frente de batalha? Os retratos dosjovens

soldados, feitos longe de casa, e enviados às mães e mulheres - a

última imagem para muitos deles? As fotografias oficiais, sujeitas

ao crivo da censura, consciente do poder das imagens como arma

de guerra, que depois eram impressas emjornais ou em folhetos?

As fotografias, horríficas, para uso exclusivo de médicos, a

mos-trar as feridas dos soldados e os efeitos, desconhecidos, das novas

tecnologias de combate? Ou as fotografias dos mortos, enquanto

prova mais dura do conflito, do que de pior tinha acontecido?

Todas elas são fotografias da guerra. Todas elas são produzidas

nos diferentes contextos da Guerra. E todas podem ser pensadas

como objetos históricos para melhor se compreender os diversos

aspetos do conflito armado e as suas consequências.

Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada como a

Pri-meira Guerra Mundial. O enorme desenvolvimenf-o

tecnoló-gico da fotografia, ao longo da segunda metade do século xIx

(5)

86 I ronrucel E A cR^NDE cuERRA. coNTExros EpRorAGoNrsrAS

da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma velocidade nunca

vista e que o seu impacto tivesse lugar ainda durante o decurso do

conflito. O uso da máquina fotográfica e a impressão de imagens

democratizara-se. Passara a ser fácil e barato

tirar

fotografias.

O postal fotográfico, inventado na transição do século,

tornara--se uma forma de comunicação comum. E os exércitos e

gover-nos tambémjásabiam como as imagenspodiam ser uma arma de

guerra.

Os þrogressos cla tecnologia: Mríquinasfotogrdficas e armamento

Em 1854,

o fotógrafo

britânico Roger Fenton esteve na

Guerra da Crimeia e, um ano depois, os visitantes da Exposição

IJniversal de Paris de 1855 puderamjá ver as suas imagens. Não

uma guerra mostrada através da pintura ou da gravura, mas um

conflito

representado através de uma nova técnica de

repro-dução que fora patenteada em 1839 - a fotografia. Em meados

do século xrx a discussão ainda ia no adro - a fotografia

perten-cia à <indústria> ou às <belas-artes>? Era um meio mecânico

ou um meio artístico? Na Exposição Universal de Paris de 1855,

a primeira de várias que tiveram lugar nas décadas seguintes, a

fotografia foi exposta no edifício dedicado à indústria. No livro

Esquzsses Photographiques aPropos d,e l'Exltosition (Jniaerselle et d,e la

Guerre d,'Orient,Ernestlacan tratou a exposição, a fotografia e

a guerra da Crimeia numa só abordagem. <Graças ao Monsieur

Fenton, esta modernalliada jâtem o seu pintor, tal como um dia

terá os seus poetas>>. As guerras faziam parte da história e tanto

a literatura como a pintura contribuíam para preservar a sua

memória. Em meados do século xrx, a fotografia surgia como um

novo instrumento deste processo, mesmo que a identidade

pro-fissional daquele que realizava as fotografias fosse ainda

ambí-gua. O mesmo crítico chamava <pintor> a Roger Fenton, mas as suas obras estavam expostas no edifício dedicado à indústria.

Ao longo da segunda metade do século xrx, as guerras,

con-flitos armados, ações políticas, e todos aqueles acontecimentos

que eram considerados <históricos>>, foram fotografados. Não

apenas na Europa onde as técnicas de reprodução fotográfica

tinham sido inventadas -porDaguerre, emFrança,ouporNièpce,

QUE IMAGENS CoNTAM O QUE FOI A GRANDE GUERRA? ì S'

¿sr Inglaterra - mas num mundo global que logo se apropriou

das múltiplas possibilidades da fotografia. O mesmo veio

asuce-der com a Primeira Guerra Mundial' Ou seja, as transferências

de conhecimento que possibilitaram a divulgação globalizada da

fotografia, em 1914, transformaram um conflito europeu na

pri-peira guerra <mundiab>. O desenvolvimento dos meios de

repro-dução, a mobilidade e a comunicação associados às múltiplas

conexões territoriais, proporcionadas pelos impérios coloniais,

criaramos novos espaços e tempos que acabaram por

multipli-car os cenários de guerra e os envolvimentos de tantas nações

e respetivas colónias.

Quando em 1914 despoletou o conflito, o fundador da Kodak,

George Eastmann jâlançara no mercado a <Vest Pocket>, ou

<soldier's camera>> Uma máquina que, tal como o nome sugere,

se podia guardar num bolso de casaco. Ou ntrm uniforme militar.

O seu caráter portátil permitia uma nova mobilidade, bem

dis-tinta da que era permitida pelas câmaras de madeira e tripé.

Podiam ser levadas em viagens

ou

excursões. Mas também

podiam ser levadas paraaguerra. A fotografia estivera, desde

os seus começos, associada aos momentos excecionais da

vivên-cia humana - uma ida com os filhos ao estúdio fotográfico, uma

visita real ao país vizinho, o dia do casamento, a visita à Torre

Eiffel, mas também aguerra.

A guerra também era um evento excecional e temporário.

Embora quase sempre menos temporário do que se pensava à

partida. As guerras implicavam quase sempre viagens, sendo

estas momentos que deviam ser preservados na memória, oral,

escrita ou material dos indivíduos. Aqueles que viajavam por

lazerpartiamcom a obrigatoriedade da escrita(de diários de

via-gem ou de correspondência) e, mais tarde, com a obrigatoriedade

de trazerem imagens para casa. O aristocrata britânico do século

xvIII que trazia o seu autorretrato pintado durante o Grand Tour

italiano; a norte-americana que se fazia fotografar em Paris

durante o seu tour europeu na segunda metade do século xrx;

o casal moderno que obrigavaafarnilia a longas sessões de

sli-des nos anos 1970, ou osjovens que transformam o seu Erasmus

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sol-dados também viajavam para a guerra. E, quando regressavam,

também traziamas cartas, postais, fotografias ou mesmo diários

com que tinham registado a sua experiência.

O þoder das imagens: Fotografar na linhadafrente

O controlo sobre a produção de imagens passou a estar não

apenas nas mãos dos fotógrafos profissionais, mas de umnúmero

muito mais alargado de homens e, em menor número, também

de mulheres. Nos cenários de guerra ou nos países envolvidos no

conflito podemos identificar sobretudo três tipos de fotógrafos:

os fotógrafos oficiais, contratados pelo exército ou pelas

autori-dades; os repórteres fotográficos, ao serviço dejornais; e os

ama-dores, que se dedicavam à fotografia por iniciativa própria.

O exército português também teve o seu fotógrafo oficial

em Arnaldo Garcez (Santarém,1885-1964). Quando no Cais de

Santa Apolónia se deu o primeiro embarque das tropas nacionais

para França, emjaneiro de 1917, com os soldados, partiram três

homens cuja função não era a de combater, mas a de

represen-tar a experiência de guerra através da fotografia, do desenho e

da pintura. Ao acompanhar o Corpo Expedicionário Português,

o pintor Sousa Lopes, que se especializara em pintura de

histó-ria durante os vários anos da sua estadia em Paris, pôde pôr em

prática a sua especialidade. A história em direto, vivida, e sofrida,

sobretudo através de águas fortes, a preto e branco tal como as

fotografias da guerra. Cristiano Cruz, artista quejá se destacara

com os seus desenhos e traço satírico com que apreendia a

con-temporaneidade. E Arn aldo Garcez.

Quando se deu a República em 1910, Garcez erajá um

fotó-grafo profissional que colaborava com váriosjornais da

capi-tal. Na altura em que se começou a ponderar a participação de

Portugal no

conflito,

Norton de Matos, Ministro da Guerra,

convidou-o a fotografar os treinos militares que decorriam em

Tancos. Tomada a decisão de avançar para Flandres, Garcez

tornou-se a escolha natural para fotografar aparticipação

por-tuguesa na Guerra. Partiu com o exército mas não voltou com

ele após o Armistício de 1918, pois continuou por França até ao

ano de 1921. O casamento com uma francesa e o nascimento

de três filhos também terão adiado o seu regresso a Portugal.

euer em França, querjá em Portugal, continuou a documentar

os resquícios e destroços do conflito, contribuindo para a

cons-¡¡ução, imediata, da memória da guerra. Escolhido para membro

da Comissão de Padrões da Grande Guerra, organizou

exposi-ções fotográficas sobre a Guerra; envolveu-se naconstrução dos

cemitérios em França onde ficaram tantos portugueses e

foto-grafou as transladações de corpos, inauguração de monumentos

ãos mortos e todas as cerimónias de luto e lembrança. Isto, claro,

depois da euforia da vitória aliada - que ele também

testemu-nhou, ao acompanhar as tropas portuguesas a passar sob o Arco

do Triunfo de Paris, ou nas ruas engalanadas de Londres.

A <guerra> de Garcez desobedeceu a algumas das instruções

superiores que decidiam aquilo que podia ou não podia ser

foto-grafado e aquilo que podia ou não ser visto. O estatuto do exército

português - entre uma afirmação nacional que queria defender

as suas colónias africanas da ameaça alemã, e a dependência da

Inglaterra que secundarizavao seu poder militar - também teve

implicações naprâticadafotografia. As imagens de Arnaldo

Gar-cez tinham que passar no crivo censório do exército britânico.

Os 16 fotógrafos oficiais britânicos, deslocados em vários

tea-tros de guerra,já estavam sujeitos a uma política de propaganda

que decidia aquilo que permanecia nos arquivos militares ou

o que deveriaser visto pelo público. Havia que mostrar os aspetos

negativos do inimigo, sem revelar o pior da guerra, e sem abalar

o espírito combativo e entusiasta que as populações deveriam

manter. O esforço de guerraaf etavatodos, incluindo aqueles que

não estavam na frente da batalha, e que sabiam da guerra

sobre-tudo pela imprensa. Para os muitos que, em Portugal, não sabiam

ler, as fotografias impressas emjornais eram a guerra visível.

Para além deGarcez, fotógrafo oficial, é provável que entre

os militares que partiram para França também existissem

ama-dores, homens que levaram consigo uma máquina fotográfica.

Noutros países envolvidos na Guerra, têm sido vários os casos

de fotógrafos amadores identificados nos últimos anos. Em

Por-tugal, o caso do Capitão da Infantaria Artur Carlos Barros Basto

(7)

valoriza-7

l

I

90 PORTUGAL E A GRANDE GUERRA. CONTEXTOS E PROTAGONISTAS

ção da fotografia privada, não profissional, não oficial e, ainda

hoje, guardados em casas de família. Recentemente foram

des-cobertas, tratadas e expostas no Centro Português de

Fotogra-fia, no Porto, as quase duzentas imagens realizadas pelo jovem

portuense que partiu para França tenente e regressou capitão.

As fotografias desta <viagem)> representam as paisagens marcadas

pela destruição da guerra ou o quotidiano dos soldados do Corpo

Expedicionário Português, em momentos de ação militar ou nos

intervalos do conflito quando era necessário reinventar uma

nor-malidade possível. Nos anos 1920,finalizada a guerra, o Capitão

Barros Basto continuará a fazer da fotografia uma forma de

docu-mentário da sua identidadejudaica - fotografando comunidades

dejudeus marranos ou a construção da sinagoga portuense - mas

eml937,será precisamente a sua religião a afastá-lo de uma

car-reira militar.-Ialvez também por isso, as muitas fotografias que

tirou na sua experiência enquanto soldado da Primeira Guerra

Mundial acabaram esquecidas em gavetas de sua casa.

Não chega fazer ur":'a distinção entre fotografia oficial da

guerra e fotografia individual e privada. Até porque as próprias

fotografias do Garcez

foram

caracterizadas por uma enorme

diversidade e, elas próprias, sujeitas à censura militar que decidia

quais é que eram as imagens <oficiais> e quais eram as que deviam

permanecer protegidas de um olhar público. Mas a história da

fotografia está cada vez mais atenta àquelas imagens produzidas

pelos não-fotógrafos, todos aqueles que fotografavampara si ou

para círculos familiares próximos e que tinham a liberdade de não

obedecer a convenções ou a crivos alheios. Assim, as fotografias da

Primeira Guerra ou de qualquer outro acontecimentojá imbuído

com a força do <acontecimento>> histórico, são também aquelas

que não estavam previstas nem encomendadas, e que nem seriam

vistas publicamente. Aquelas fotografias que não se encontram

nos arquivos públicos mas sim, nos espaços privados enquanto

memórias individuais de experiências coletivas e históricas.

Do did.rio ilustrado ao þostalfotogrdfico

Em 1916, um ofício confidencial da Secretaria da Guerra

orde-nava à Comissão de censura que não se publicassem fotografias

QUE IMAGENS CONTAM O QUE FOI A GRANDE GUERRA? 91

sobre assuntos militares em jornais <sem que apresentem uma

prova vizada neste Ministério>. O principaljornal a publicar

ima-gens da guerra - em desenho ou em fotografia - era a llustração

Portuguesq tal como França tin}:ra L'Illustratione a Inslaterra o Illustrated Loni,on News. Aprimeira cap a que a lhrstração Portuguesa

dedicou à guerra foi logo em outubro de 1914. Não uma fotografia,

lras um desenho de um soldado feito por Stuart de Carvalhais. Era

o momento damobilizaçáo das tropas por toda a Europa, mas não

deixava de ser ainda um acontecimento estrangeiro.

Perante a ameaça alemã às fronteiras coloniais de

Moçambi-que e Angola, pouco depois, Portugal enviou as primeiras tropas

portuguesas para um cenário de guerra. O embarque dos navios

para

Africa

foi

fotografado pelo prestigiado fotojornalista

Joshua Benoliel,juntamente com Garcez, Novais e outros,

teste-munha dos acontecimentos políticos e públicos portugueses das

primeiras décadas do século xx. Desfiles das tropas destinadas às

colónias, navios atulhados de soldados ou, num registo distinto,

um soldado abraçado à sua mãejá velha. A llustração Portuguesa

colocou esta imagem na capa e legendou o soldado com <<um

sor-riso, misto de ternura, de coragem e da consciência do dever.>

Que saibamos não partiu nenhum fotógrafo oficial para as

colónias africanas, tendo ficado o registo fotográfico da

experiên-cia nas mãos dos amadores, quase sempre oficiais do exércitoJoão

Alves de Melo, por exemplo, <<soldado-repórter>, terá regressado

à metrópole com as imagens que depois enviou paraa llustração.

Os registos da presença militar em Africa são assim mais

frag-mentados e dispersos, sem a unidade do trabalho de Garcez que,

dos treinos em Tancos antes dapartida,atéao enterro dos mortos,

contou da experiência militarportuguesa naEuropaumahistória

reflexiva, intimista e com preocupações totalizantes.

As centenas de fotografias realizadas por Garcez mostram

tudo menos a morte (ou as da morte foram feitas e não se sabe do

seu paradeiro): os treinos com a máscara antigás a que as novas

tecnologias de guerra obrigavam; os acampamentos

provisó-rios, onde a logística do quotidiano se tivera que reinventar em

espaços inóspitos; os momentos de espera entre batalhas, em que

(8)

entre diversas frentes; os encontros oficiais entre o exército

por-tuguês e o inglês;uma Igreja naFlandres arruinadapor

umbom-bardeamento; as crianças locais abrincarem entre escombros; os

vários momentos da visita do presidente Bernardino Machado

à frente de batalha, como aquela onde visita um ferido no

hos-pital militar; os repérteres de guerra a escrevinhar

desconforta-velmente deitados no chão. Ou os retratos emblemáticos de dois

soldados de cigarro na boca. IJm, o cabo <Sementes>>, sem nome

e sem esperança. Outro, sem nome mas com a identidade

militar

de pertencer ao batalhão do regimento de Infantaria n.a 7, a

mos-trar na lapela a condecoração da Cruz de Guerra.

Quem é que viu estas imagens? Onde é que foram

repro-duzidas? Logo em 1916, Arnaldo Garcez participa com outros

fotógrafos da sua geração na Primeira Exþosição Naciona,l de

Photogro,phia realizada em nouembro de 1916 no Paldcio Nacional de Belløs Artes Lisboa e þromouida þelø reaistct Arte Photograþhica. Ão

lado de Domingos Alvão,Jorge de Almeida Lima ou Villarinho

Pereira, apresenta 12 fotografias mas, apenas com os seus títulos,

não sabemos se a guerra jâapareciaexposta - mesmo com uma

das legendas denominada <raça heroica>.

Em França, no entanto, TS das suas fotografias foram

utiliza-das numa coleção de postais fotográficos sobre a guerra editados

pelo C.E.P. A transformação da fotografia em postal

fotográ-fico, para venda e circulação massificada,erajáuma prática

cor-rente. Nascido em finais do século xrx, o postal era ainda um meio

recente, mas a guerra acabou por lhe dar um forte impulso. Ao

forçar a mobilidade de milhões de pessoas em diversas regiões

do mundo e ao afastar famílias e amigos durante longos espaços

de tempo, a guerra acabou por ser um espaço privilegiado para

o desenvolvimento do postal.

Nas trincheiras, com as condições de vida limitadas aos

míni-mos da sobrevivência, um postal permitia enviar uma imagem,

fotográfica ou desenhada, com umas breves palavras. Texto e

imagem, num pequeno retângulo viajava dos cenários de guerra

para as moradas dos que tinham ficado e de quem se tinham

saudades. As mães e os pais, mas também as mulheres, e as

noi-vas que não se deveriam esquecer deles e deveriam esperar pelo

seu regresso. Os postais amorosos - com encenações realistas de casais em fotografias por vezes pintadas e decoradas -

conhece-¡2¡n umagrande popularidade durante aguerra. Eram a ligação

possível. Foi uma guerra onde se escreveu muito de sofrimento

rnas também se escrevelr muito de amor.

Mulheres nas linhas de guerra

As mulheres ficaram - quase todas - mas não ficaram paradas.

ChristinaBroom, por exemplo, uma das primeiras

mulheresbri-tânicas fotógrafas de reportagem, especializou-se em fotografar

os soldados em Londres, antes de partirem para a guerra

(Expo-sição no Museum of London, em 2015). A ausência dos homens

e as necessidades de alimentar os teatros de guerra com

arma-mento e logística militar obrigaram-nas a assumir novos tipos de

trabalho. A fotografia deste período dá conta deste fenómeno

um pouco por toda a Europa, embora os casos britânicos e

fran-cês sejam talvezaqueles com maior visibilidade. Mulheres a

con-duzirem transportes públicos enquanto os maridos faziam de

soldados. Sentadas em uniforme, às dezenas, em fábricas

impro-visadas ou a lidar mais diretamente com os resultados da guerra,

nos hospitais improvisados que acolhiam os mutilados e feridos

que proliferavam com os novos tipos de ataques.

Com o exército português também partiram mulheres - as

<Damas Enfermeiras Auxiliares> da Cruz Vermelha

Portu-guesa, <<senhoras damelhor sociedade> que tinham feito o curso

de enfermagem e que se voluntariaramparatrabalhar nos

hos-pitais da frente de batalha francesa. Garcez fotosrafou-as várias

vezes, contribuindo assim para a multiplicação de imagens de mulheres a prestar serviços de saúde durante a guerra.

As mulheres que ficavam usavam a fotografia como a

memó-riados que tinham partido. Os usos privados da fotografia, a

unir

aqueles que a guerra afastara na projeção da dor e da saudade,

na troca de correspondência, na memória, individual, de cada

família são um fenómeno que, apesar de menos visível, não deve

ser descurado. Para as famílias daqueles que não regressaram da

guerra, a fotografia do morto quando ainda estava vivo

(9)

s4 | ronrucel E A cRANDE cuERRA. coNTEXTos E PRoTAGoNISTAS

íntima. Vestidos com o uniforme militar antes de partirem,

mui-tos não puderam voltar a ser fotografados. Estas fotografias de

guerra permanecem sobretudo nos arquivos familiares. Outras

foram preservadas em museus de fácil acesso, como o Imþerial

War Museumlondrino, onde as fotografias portuguesas da

pri-meira guerra são uma ínfima parte de um espólio que possui

quase

ll

milhões de fotografias. Outros conjuntos de imagens da

Primeira Guerra continuam a ser descobertos, como aquele que

se encontrou há uns anos num celeiro abandonado de uma aldeia

no Nordeste da França. Mas, 100 anos depois, nem a fotografia

guarda todas as memórias - não se sabe quem foi o autor das 400 chapas fotográficas de vidro, um amador provavelmente, nem

quem são as centenas de soldados britânicos que para ele

posa-ram. Os arquivos de guerra continuam a ser desenterrados para

enriquecer a cultura visual do primeiro conflito a ser tão

fotogra-fado na história da humanidade. Depois de 1918, nos muitos

con-flitos armados que se seguiram, a fotografia continuou a assumir

todas as suas facetas e a ser usada tanto como um instrumento nas

estratégias de guerra, como um antídoto para a dor'

Bibliografia

Catdlogo da þrimeira Exþosição Nøcional de Photograþhia real-izad,aentnoaembro de 1916 no Pald'cio Nacional de Bellas Artes Lisboa

e þromouida ltela r ea is ta' A rte Photogrøþ hicø.

Cor. Cavu Co ndeEalcão, Imagens dø Primeira Guerra Mundiøl

(Lisboa: Estado Maior do Exército, 2004).

Sérgio B. Gomes, <O Capitão Barros Rasto escondia um

segredo>>, Pú.blico,16 de novembro de 2014'

General Ferreira Martins, dir., Portugal na Grande Guerra

(Lisboa: Átic a,7934).

Jorge Pedro Sousa,

A

Grande Guerra. Uma crónica a'isual

-Pa,rte I. Estud,o do discurso emi'møgerts døllustração

Portuguesa(1914-1918) sobre a þarti.ci'pação þortuguesa na Primeira Guerra Mundial

(Porto: Media XXI, 2013).

António Pedro Vicente, Arnaldo Garcez. Um

repórterfotogrú-fico nø l.s Grønd,e Guerrø(Porto: Centro Português de Fotografia,

Referências

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