Y-Título:
Portugal e aGrand.e Guerra. Contextos e Protagonistas O dos autores dos artigos
Revisão: Marcelino Amaral Capa:FBA Depósito Legaln.a 399467 /15
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{{ÈmG.} Paginação: CláudiaMoura Impressão e acabamento: PENTAEDRO,LDA. Outubrode20lS
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Biblöotecø Nacional d.e Portugøl - Catalogøção na Publicação AGRANDEGUERRA
Portugal e a Grande Guerra. Contextos e protagonistas / org. Miguel BandeiraJerónimo. - (Extracoleção)
rsBN 978-972- 44-t668-7 I -JERÓNIMO, Miguel Bandeira
cDU 94(100)"1914 / 1978"
-
cnrMuõEs
I DAcooPERAcÃo
L
ËËåiÜi;LAna Paula Laborinho
Nota introdutória . 9
Bárbara Reis
Os 100 anos daCrande GuerranoPúblico 11
13 15 17 25 at 45 5t 69 Miguel BandeiraJerónimo Introduçdo Textos.
Filipe Ribeiro de Meneses
Guerra sonhada e guerra aiaida: as contradições
do interaencionismo português. . . . .
Aniceto Afonso
Portugal e a Grande Guerra, a questão mi'litar . .
José Manuel Sobral
Heróis do mar: anação, o império e a þarticiþação de Portugal na Primeira Guerra'. . . .
Miguel BandeiraJerónimo
Os choques da ciuilização: testemunhos, homoresesilêncios
...
Isabel Pestana Marques
A corresþondência do desassossego e da saudade
AntónioAraújo
-t
I ronrucnl E A cRANDE GUERRA. coNTExros E pRorAGoNrsrAs
Filipa Lowndes Vicente
Que imagens contamo que.foi a Grande Guerra? . . ., .
Anne Cova
As mul heres to ram a t i ais t as nn guerra.,
d,epois uoltaram ao lar Sílvia Correia
Celebrar a uitória en¿ d,iad,e d¿rrota - afinal, aquern þertencem as þolíticas
da memória da Primeira Guerca Mund,ial? Nuno Severiano Teixeira
Portugal na Grand¿ Guerra: memória do þassad,o,
desafiosd,ofuturo. . . . . Pedro Lains
Lições económicas da Primeira Guerra Mundial . . . .
António CostaPinto
A Primeira Guerra Mundial e a Qued,a d,a Reþública. Uma relaçd.o comþlexa
Fernando Rosas
Guerra e revolução na Rússia de 1917
85 95 103 113 t2r 12? 135 745 T4? 155 163 177 185 191 199 20? 2t7 2r9 994 Entrevistas Jay Winter Frederick Cooper RichardFogarty... Françoise Thébaud ErezManela
...
Nicolas Offenstadt AdamHochschild . SusanPedersen .. .Aler
. MiguelBand.lru¡".oni-;,"
' ' ' ' A imþortônciadaHistória . . . . . Bibliografia básica sobre PortugalFilipaLowndes Vicente
(Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa)
O que são as fotografias daPrimeira GuerraMundial? As
foto-grafias oficiais tiradas pelos militares de ambos os lados da barri-cada, em vários momentos do seu novo quotidiano? As imagens
pessoais daqueles soldados que levaram as suas próprias
máqui-nas fotográficas para a frente de batalha? Os retratos dosjovens
soldados, feitos longe de casa, e enviados às mães e mulheres - a
última imagem para muitos deles? As fotografias oficiais, sujeitas
ao crivo da censura, consciente do poder das imagens como arma
de guerra, que depois eram impressas emjornais ou em folhetos?
As fotografias, horríficas, para uso exclusivo de médicos, a
mos-trar as feridas dos soldados e os efeitos, desconhecidos, das novas
tecnologias de combate? Ou as fotografias dos mortos, enquanto
prova mais dura do conflito, do que de pior tinha acontecido?
Todas elas são fotografias da guerra. Todas elas são produzidas
nos diferentes contextos da Guerra. E todas podem ser pensadas
como objetos históricos para melhor se compreender os diversos
aspetos do conflito armado e as suas consequências.
Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada como a
Pri-meira Guerra Mundial. O enorme desenvolvimenf-o
tecnoló-gico da fotografia, ao longo da segunda metade do século xIx
86 I ronrucel E A cR^NDE cuERRA. coNTExros EpRorAGoNrsrAS
da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma velocidade nunca
vista e que o seu impacto tivesse lugar ainda durante o decurso do
conflito. O uso da máquina fotográfica e a impressão de imagens
democratizara-se. Passara a ser fácil e barato
tirar
fotografias.O postal fotográfico, inventado na transição do século,
tornara--se uma forma de comunicação comum. E os exércitos e
gover-nos tambémjásabiam como as imagenspodiam ser uma arma de
guerra.
Os þrogressos cla tecnologia: Mríquinasfotogrdficas e armamento
Em 1854,
o fotógrafo
britânico Roger Fenton esteve naGuerra da Crimeia e, um ano depois, os visitantes da Exposição
IJniversal de Paris de 1855 puderamjá ver as suas imagens. Não
uma guerra mostrada através da pintura ou da gravura, mas um
conflito
representado através de uma nova técnica derepro-dução que fora patenteada em 1839 - a fotografia. Em meados
do século xrx a discussão ainda ia no adro - a fotografia
perten-cia à <indústria> ou às <belas-artes>? Era um meio mecânico
ou um meio artístico? Na Exposição Universal de Paris de 1855,
a primeira de várias que tiveram lugar nas décadas seguintes, a
fotografia foi exposta no edifício dedicado à indústria. No livro
Esquzsses Photographiques aPropos d,e l'Exltosition (Jniaerselle et d,e la
Guerre d,'Orient,Ernestlacan tratou a exposição, a fotografia e
a guerra da Crimeia numa só abordagem. <Graças ao Monsieur
Fenton, esta modernalliada jâtem o seu pintor, tal como um dia
terá os seus poetas>>. As guerras faziam parte da história e tanto
a literatura como a pintura contribuíam para preservar a sua
memória. Em meados do século xrx, a fotografia surgia como um
novo instrumento deste processo, mesmo que a identidade
pro-fissional daquele que realizava as fotografias fosse ainda
ambí-gua. O mesmo crítico chamava <pintor> a Roger Fenton, mas as suas obras estavam expostas no edifício dedicado à indústria.
Ao longo da segunda metade do século xrx, as guerras,
con-flitos armados, ações políticas, e todos aqueles acontecimentos
que eram considerados <históricos>>, foram fotografados. Não
apenas na Europa onde as técnicas de reprodução fotográfica
tinham sido inventadas -porDaguerre, emFrança,ouporNièpce,
QUE IMAGENS CoNTAM O QUE FOI A GRANDE GUERRA? ì S'
¿sr Inglaterra - mas num mundo global que logo se apropriou
das múltiplas possibilidades da fotografia. O mesmo veio
asuce-der com a Primeira Guerra Mundial' Ou seja, as transferências
de conhecimento que possibilitaram a divulgação globalizada da
fotografia, em 1914, transformaram um conflito europeu na
pri-peira guerra <mundiab>. O desenvolvimento dos meios de
repro-dução, a mobilidade e a comunicação associados às múltiplas
conexões territoriais, proporcionadas pelos impérios coloniais,
criaramos novos espaços e tempos que acabaram por
multipli-car os cenários de guerra e os envolvimentos de tantas nações
e respetivas colónias.
Quando em 1914 despoletou o conflito, o fundador da Kodak,
George Eastmann jâlançara no mercado a <Vest Pocket>, ou
<soldier's camera>> Uma máquina que, tal como o nome sugere,
se podia guardar num bolso de casaco. Ou ntrm uniforme militar.
O seu caráter portátil permitia uma nova mobilidade, bem
dis-tinta da que era permitida pelas câmaras de madeira e tripé.
Podiam ser levadas em viagens
ou
excursões. Mas tambémpodiam ser levadas paraaguerra. A fotografia estivera, desde
os seus começos, associada aos momentos excecionais da
vivên-cia humana - uma ida com os filhos ao estúdio fotográfico, uma
visita real ao país vizinho, o dia do casamento, a visita à Torre
Eiffel, mas também aguerra.
A guerra também era um evento excecional e temporário.
Embora quase sempre menos temporário do que se pensava à
partida. As guerras implicavam quase sempre viagens, sendo
estas momentos que deviam ser preservados na memória, oral,
escrita ou material dos indivíduos. Aqueles que viajavam por
lazerpartiamcom a obrigatoriedade da escrita(de diários de
via-gem ou de correspondência) e, mais tarde, com a obrigatoriedade
de trazerem imagens para casa. O aristocrata britânico do século
xvIII que trazia o seu autorretrato pintado durante o Grand Tour
italiano; a norte-americana que se fazia fotografar em Paris
durante o seu tour europeu na segunda metade do século xrx;
o casal moderno que obrigavaafarnilia a longas sessões de
sli-des nos anos 1970, ou osjovens que transformam o seu Erasmus
sol-dados também viajavam para a guerra. E, quando regressavam,
também traziamas cartas, postais, fotografias ou mesmo diários
com que tinham registado a sua experiência.
O þoder das imagens: Fotografar na linhadafrente
O controlo sobre a produção de imagens passou a estar não
apenas nas mãos dos fotógrafos profissionais, mas de umnúmero
muito mais alargado de homens e, em menor número, também
de mulheres. Nos cenários de guerra ou nos países envolvidos no
conflito podemos identificar sobretudo três tipos de fotógrafos:
os fotógrafos oficiais, contratados pelo exército ou pelas
autori-dades; os repórteres fotográficos, ao serviço dejornais; e os
ama-dores, que se dedicavam à fotografia por iniciativa própria.
O exército português também teve o seu fotógrafo oficial
em Arnaldo Garcez (Santarém,1885-1964). Quando no Cais de
Santa Apolónia se deu o primeiro embarque das tropas nacionais
para França, emjaneiro de 1917, com os soldados, partiram três
homens cuja função não era a de combater, mas a de
represen-tar a experiência de guerra através da fotografia, do desenho e
da pintura. Ao acompanhar o Corpo Expedicionário Português,
o pintor Sousa Lopes, que se especializara em pintura de
histó-ria durante os vários anos da sua estadia em Paris, pôde pôr em
prática a sua especialidade. A história em direto, vivida, e sofrida,
sobretudo através de águas fortes, a preto e branco tal como as
fotografias da guerra. Cristiano Cruz, artista quejá se destacara
com os seus desenhos e traço satírico com que apreendia a
con-temporaneidade. E Arn aldo Garcez.
Quando se deu a República em 1910, Garcez erajá um
fotó-grafo profissional que colaborava com váriosjornais da
capi-tal. Na altura em que se começou a ponderar a participação de
Portugal no
conflito,
Norton de Matos, Ministro da Guerra,convidou-o a fotografar os treinos militares que decorriam em
Tancos. Tomada a decisão de avançar para Flandres, Garcez
tornou-se a escolha natural para fotografar aparticipação
por-tuguesa na Guerra. Partiu com o exército mas não voltou com
ele após o Armistício de 1918, pois continuou por França até ao
ano de 1921. O casamento com uma francesa e o nascimento
de três filhos também terão adiado o seu regresso a Portugal.
euer em França, querjá em Portugal, continuou a documentar
os resquícios e destroços do conflito, contribuindo para a
cons-¡¡ução, imediata, da memória da guerra. Escolhido para membro
da Comissão de Padrões da Grande Guerra, organizou
exposi-ções fotográficas sobre a Guerra; envolveu-se naconstrução dos
cemitérios em França onde ficaram tantos portugueses e
foto-grafou as transladações de corpos, inauguração de monumentos
ãos mortos e todas as cerimónias de luto e lembrança. Isto, claro,
depois da euforia da vitória aliada - que ele também
testemu-nhou, ao acompanhar as tropas portuguesas a passar sob o Arco
do Triunfo de Paris, ou nas ruas engalanadas de Londres.
A <guerra> de Garcez desobedeceu a algumas das instruções
superiores que decidiam aquilo que podia ou não podia ser
foto-grafado e aquilo que podia ou não ser visto. O estatuto do exército
português - entre uma afirmação nacional que queria defender
as suas colónias africanas da ameaça alemã, e a dependência da
Inglaterra que secundarizavao seu poder militar - também teve
implicações naprâticadafotografia. As imagens de Arnaldo
Gar-cez tinham que passar no crivo censório do exército britânico.
Os 16 fotógrafos oficiais britânicos, deslocados em vários
tea-tros de guerra,já estavam sujeitos a uma política de propaganda
que decidia aquilo que permanecia nos arquivos militares ou
o que deveriaser visto pelo público. Havia que mostrar os aspetos
negativos do inimigo, sem revelar o pior da guerra, e sem abalar
o espírito combativo e entusiasta que as populações deveriam
manter. O esforço de guerraaf etavatodos, incluindo aqueles que
não estavam na frente da batalha, e que sabiam da guerra
sobre-tudo pela imprensa. Para os muitos que, em Portugal, não sabiam
ler, as fotografias impressas emjornais eram a guerra visível.
Para além deGarcez, fotógrafo oficial, é provável que entre
os militares que partiram para França também existissem
ama-dores, homens que levaram consigo uma máquina fotográfica.
Noutros países envolvidos na Guerra, têm sido vários os casos
de fotógrafos amadores identificados nos últimos anos. Em
Por-tugal, o caso do Capitão da Infantaria Artur Carlos Barros Basto
valoriza-7
l
I
90 PORTUGAL E A GRANDE GUERRA. CONTEXTOS E PROTAGONISTAS
ção da fotografia privada, não profissional, não oficial e, ainda
hoje, guardados em casas de família. Recentemente foram
des-cobertas, tratadas e expostas no Centro Português de
Fotogra-fia, no Porto, as quase duzentas imagens realizadas pelo jovem
portuense que partiu para França tenente e regressou capitão.
As fotografias desta <viagem)> representam as paisagens marcadas
pela destruição da guerra ou o quotidiano dos soldados do Corpo
Expedicionário Português, em momentos de ação militar ou nos
intervalos do conflito quando era necessário reinventar uma
nor-malidade possível. Nos anos 1920,finalizada a guerra, o Capitão
Barros Basto continuará a fazer da fotografia uma forma de
docu-mentário da sua identidadejudaica - fotografando comunidades
dejudeus marranos ou a construção da sinagoga portuense - mas
eml937,será precisamente a sua religião a afastá-lo de uma
car-reira militar.-Ialvez também por isso, as muitas fotografias que
tirou na sua experiência enquanto soldado da Primeira Guerra
Mundial acabaram esquecidas em gavetas de sua casa.
Não chega fazer ur":'a distinção entre fotografia oficial da
guerra e fotografia individual e privada. Até porque as próprias
fotografias do Garcez
foram
caracterizadas por uma enormediversidade e, elas próprias, sujeitas à censura militar que decidia
quais é que eram as imagens <oficiais> e quais eram as que deviam
permanecer protegidas de um olhar público. Mas a história da
fotografia está cada vez mais atenta àquelas imagens produzidas
pelos não-fotógrafos, todos aqueles que fotografavampara si ou
para círculos familiares próximos e que tinham a liberdade de não
obedecer a convenções ou a crivos alheios. Assim, as fotografias da
Primeira Guerra ou de qualquer outro acontecimentojá imbuído
com a força do <acontecimento>> histórico, são também aquelas
que não estavam previstas nem encomendadas, e que nem seriam
vistas publicamente. Aquelas fotografias que não se encontram
nos arquivos públicos mas sim, nos espaços privados enquanto
memórias individuais de experiências coletivas e históricas.
Do did.rio ilustrado ao þostalfotogrdfico
Em 1916, um ofício confidencial da Secretaria da Guerra
orde-nava à Comissão de censura que não se publicassem fotografias
QUE IMAGENS CONTAM O QUE FOI A GRANDE GUERRA? 91
sobre assuntos militares em jornais <sem que apresentem uma
prova vizada neste Ministério>. O principaljornal a publicar
ima-gens da guerra - em desenho ou em fotografia - era a llustração
Portuguesq tal como França tin}:ra L'Illustratione a Inslaterra o Illustrated Loni,on News. Aprimeira cap a que a lhrstração Portuguesa
dedicou à guerra foi logo em outubro de 1914. Não uma fotografia,
lras um desenho de um soldado feito por Stuart de Carvalhais. Era
o momento damobilizaçáo das tropas por toda a Europa, mas não
deixava de ser ainda um acontecimento estrangeiro.
Perante a ameaça alemã às fronteiras coloniais de
Moçambi-que e Angola, pouco depois, Portugal enviou as primeiras tropas
portuguesas para um cenário de guerra. O embarque dos navios
para
Africa
foi
fotografado pelo prestigiado fotojornalistaJoshua Benoliel,juntamente com Garcez, Novais e outros,
teste-munha dos acontecimentos políticos e públicos portugueses das
primeiras décadas do século xx. Desfiles das tropas destinadas às
colónias, navios atulhados de soldados ou, num registo distinto,
um soldado abraçado à sua mãejá velha. A llustração Portuguesa
colocou esta imagem na capa e legendou o soldado com <<um
sor-riso, misto de ternura, de coragem e da consciência do dever.>
Que saibamos não partiu nenhum fotógrafo oficial para as
colónias africanas, tendo ficado o registo fotográfico da
experiên-cia nas mãos dos amadores, quase sempre oficiais do exércitoJoão
Alves de Melo, por exemplo, <<soldado-repórter>, terá regressado
à metrópole com as imagens que depois enviou paraa llustração.
Os registos da presença militar em Africa são assim mais
frag-mentados e dispersos, sem a unidade do trabalho de Garcez que,
dos treinos em Tancos antes dapartida,atéao enterro dos mortos,
contou da experiência militarportuguesa naEuropaumahistória
reflexiva, intimista e com preocupações totalizantes.
As centenas de fotografias realizadas por Garcez mostram
tudo menos a morte (ou as da morte foram feitas e não se sabe do
seu paradeiro): os treinos com a máscara antigás a que as novas
tecnologias de guerra obrigavam; os acampamentos
provisó-rios, onde a logística do quotidiano se tivera que reinventar em
espaços inóspitos; os momentos de espera entre batalhas, em que
entre diversas frentes; os encontros oficiais entre o exército
por-tuguês e o inglês;uma Igreja naFlandres arruinadapor
umbom-bardeamento; as crianças locais abrincarem entre escombros; os
vários momentos da visita do presidente Bernardino Machado
à frente de batalha, como aquela onde visita um ferido no
hos-pital militar; os repérteres de guerra a escrevinhar
desconforta-velmente deitados no chão. Ou os retratos emblemáticos de dois
soldados de cigarro na boca. IJm, o cabo <Sementes>>, sem nome
e sem esperança. Outro, sem nome mas com a identidade
militar
de pertencer ao batalhão do regimento de Infantaria n.a 7, a
mos-trar na lapela a condecoração da Cruz de Guerra.
Quem é que viu estas imagens? Onde é que foram
repro-duzidas? Logo em 1916, Arnaldo Garcez participa com outros
fotógrafos da sua geração na Primeira Exþosição Naciona,l de
Photogro,phia realizada em nouembro de 1916 no Paldcio Nacional de Belløs Artes Lisboa e þromouida þelø reaistct Arte Photograþhica. Ão
lado de Domingos Alvão,Jorge de Almeida Lima ou Villarinho
Pereira, apresenta 12 fotografias mas, apenas com os seus títulos,
não sabemos se a guerra jâapareciaexposta - mesmo com uma
das legendas denominada <raça heroica>.
Em França, no entanto, TS das suas fotografias foram
utiliza-das numa coleção de postais fotográficos sobre a guerra editados
pelo C.E.P. A transformação da fotografia em postal
fotográ-fico, para venda e circulação massificada,erajáuma prática
cor-rente. Nascido em finais do século xrx, o postal era ainda um meio
recente, mas a guerra acabou por lhe dar um forte impulso. Ao
forçar a mobilidade de milhões de pessoas em diversas regiões
do mundo e ao afastar famílias e amigos durante longos espaços
de tempo, a guerra acabou por ser um espaço privilegiado para
o desenvolvimento do postal.
Nas trincheiras, com as condições de vida limitadas aos
míni-mos da sobrevivência, um postal permitia enviar uma imagem,
fotográfica ou desenhada, com umas breves palavras. Texto e
imagem, num pequeno retângulo viajava dos cenários de guerra
para as moradas dos que tinham ficado e de quem se tinham
saudades. As mães e os pais, mas também as mulheres, e as
noi-vas que não se deveriam esquecer deles e deveriam esperar pelo
seu regresso. Os postais amorosos - com encenações realistas de casais em fotografias por vezes pintadas e decoradas -
conhece-¡2¡n umagrande popularidade durante aguerra. Eram a ligação
possível. Foi uma guerra onde se escreveu muito de sofrimento
rnas também se escrevelr muito de amor.
Mulheres nas linhas de guerra
As mulheres ficaram - quase todas - mas não ficaram paradas.
ChristinaBroom, por exemplo, uma das primeiras
mulheresbri-tânicas fotógrafas de reportagem, especializou-se em fotografar
os soldados em Londres, antes de partirem para a guerra
(Expo-sição no Museum of London, em 2015). A ausência dos homens
e as necessidades de alimentar os teatros de guerra com
arma-mento e logística militar obrigaram-nas a assumir novos tipos de
trabalho. A fotografia deste período dá conta deste fenómeno
um pouco por toda a Europa, embora os casos britânicos e
fran-cês sejam talvezaqueles com maior visibilidade. Mulheres a
con-duzirem transportes públicos enquanto os maridos faziam de
soldados. Sentadas em uniforme, às dezenas, em fábricas
impro-visadas ou a lidar mais diretamente com os resultados da guerra,
nos hospitais improvisados que acolhiam os mutilados e feridos
que proliferavam com os novos tipos de ataques.
Com o exército português também partiram mulheres - as
<Damas Enfermeiras Auxiliares> da Cruz Vermelha
Portu-guesa, <<senhoras damelhor sociedade> que tinham feito o curso
de enfermagem e que se voluntariaramparatrabalhar nos
hos-pitais da frente de batalha francesa. Garcez fotosrafou-as várias
vezes, contribuindo assim para a multiplicação de imagens de mulheres a prestar serviços de saúde durante a guerra.
As mulheres que ficavam usavam a fotografia como a
memó-riados que tinham partido. Os usos privados da fotografia, a
unir
aqueles que a guerra afastara na projeção da dor e da saudade,
na troca de correspondência, na memória, individual, de cada
família são um fenómeno que, apesar de menos visível, não deve
ser descurado. Para as famílias daqueles que não regressaram da
guerra, a fotografia do morto quando ainda estava vivo
s4 | ronrucel E A cRANDE cuERRA. coNTEXTos E PRoTAGoNISTAS
íntima. Vestidos com o uniforme militar antes de partirem,
mui-tos não puderam voltar a ser fotografados. Estas fotografias de
guerra permanecem sobretudo nos arquivos familiares. Outras
foram preservadas em museus de fácil acesso, como o Imþerial
War Museumlondrino, onde as fotografias portuguesas da
pri-meira guerra são uma ínfima parte de um espólio que possui
quase
ll
milhões de fotografias. Outros conjuntos de imagens daPrimeira Guerra continuam a ser descobertos, como aquele que
se encontrou há uns anos num celeiro abandonado de uma aldeia
no Nordeste da França. Mas, 100 anos depois, nem a fotografia
guarda todas as memórias - não se sabe quem foi o autor das 400 chapas fotográficas de vidro, um amador provavelmente, nem
quem são as centenas de soldados britânicos que para ele
posa-ram. Os arquivos de guerra continuam a ser desenterrados para
enriquecer a cultura visual do primeiro conflito a ser tão
fotogra-fado na história da humanidade. Depois de 1918, nos muitos
con-flitos armados que se seguiram, a fotografia continuou a assumir
todas as suas facetas e a ser usada tanto como um instrumento nas
estratégias de guerra, como um antídoto para a dor'
Bibliografia
Catdlogo da þrimeira Exþosição Nøcional de Photograþhia real-izad,aentnoaembro de 1916 no Pald'cio Nacional de Bellas Artes Lisboa
e þromouida ltela r ea is ta' A rte Photogrøþ hicø.
Cor. Cavu Co ndeEalcão, Imagens dø Primeira Guerra Mundiøl
(Lisboa: Estado Maior do Exército, 2004).
Sérgio B. Gomes, <O Capitão Barros Rasto escondia um
segredo>>, Pú.blico,16 de novembro de 2014'
General Ferreira Martins, dir., Portugal na Grande Guerra
(Lisboa: Átic a,7934).
Jorge Pedro Sousa,
A
Grande Guerra. Uma crónica a'isual-Pa,rte I. Estud,o do discurso emi'møgerts døllustração
Portuguesa(1914-1918) sobre a þarti.ci'pação þortuguesa na Primeira Guerra Mundial
(Porto: Media XXI, 2013).
António Pedro Vicente, Arnaldo Garcez. Um
repórterfotogrú-fico nø l.s Grønd,e Guerrø(Porto: Centro Português de Fotografia,