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Ideologia e Absurdo na Obra de Kafka

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Bruno Andrade de Sampaio Neto

IDEOLOGIA E ABSURDO NA OBRA DE KAFKA

Salvador

2017

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Bruno Andrade de Sampaio Neto

IDEOLOGIA E ABSURDO NA OBRA DE KAFKA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor.

Orientador: Prof. Dr.Antônio da Silva Câmara

Salvador 2016

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Bruno Andrade de Sampaio Neto

IDEOLOGIA E ABSURDO NA OBRA DE KAFKA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor

.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Prof. Dr. Antônio da Silva Câmara

Universidade Federal da Bahia Orientador

__________________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Elísio Araújo Alves Peixoto

Universidade Federal da Bahia

__________________________________________________________ Profa. Dra. Antonia Torreão Herrera

Universidade Federal da Bahia

__________________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Dalvo da Costa Silva

Universidade do Estado da Bahia

__________________________________________________________ Profa. Dra. Anatércia Ramos Lopes

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RESUMO

A presente pesquisa propõe estabelecer um diálogo entre a literatura de Franz Kafka e o conceito de ideologia, como formulado no âmbito do pensamento de Karl Marx e de alguns autores marxistas. O principal objetivo é investigar de que maneira este debate nos ajuda a compreender aspectos que consideramos fundamentais da obra deste escritor (em especial o uso que ele faz do absurdo e a famosa passividade das suas figuras dramáticas) e como podemos relacioná-los com os dias atuais. Nossa análise lançará mão de diversas obras deste autor, com ênfase em seus três romances (Amerika, O Processo e O Castelo) e na novela A Metamorfose. No primeiro capítulo, veremos as características do estilo kafkiano e a sua relação com o desenvolvimento formal do romance europeu. Os capítulos dois e três são dedicados ao estudo de como a literatura deste escritor dialoga com os conceitos de alienação e de desumanização em Marx. No último capítulo abordamos definitivamente o debate sobre a ideologia e a maneira como Kafka a representa literariamente. Deste modo, podemos afirmar que Kafka trata de uma problemática crucial para o marxismo contemporâneo: a capacidade, muitas vezes subestimada, do capitalismo desenvolvido em reproduzir as suas deterioradas relações sociais, ao promover um estado de alienação generalizado. A resposta para a emancipação dos sujeitos históricos das gigantescas estruturas deste tipo de organização social passa pela resolução dos impasses referentes aos processos de controle ideológico.

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ABSTRACT

The present research proposes to establish a dialogue between the literature of Franz Kafka and the concept of ideology, as formulated in the context of the thought of Karl Marx and some Marxist authors. The main objective is to investigate how this debate helps us to understand aspects that we consider fundamental of this writer's work (especially his use of the absurd and the famous passivity of his dramatic figures) and how we can relate them to the days current. Our analysis will draw on several works by this author, with emphasis on his four main novels: Amerika, The Process, The Castle and The Metamorphosis. In the first chapter, we will see the characteristics of the Kafkaesque style and its relation to the formal development of the European novel. Chapters two and three are devoted to the study of how this writer's literature dialogues with the concepts of alienation and dehumanization in Marx. In the last chapter we definitely address the debate about ideology and the way Kafka represents it literarily. In this way, we can say that Kafka addresses a crucial problem for contemporary Marxism: the often underestimated capacity of developed capitalism to reproduce its deteriorating social relations by promoting a state of generalized alienation. The answer to the emancipation of the historical subjects of the gigantic structures of this type of social organization passes through the resolution of the impasses referring to the processes of ideological control.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

07

CAPÍTULO 1

IMPLICAÇÕES DO ESTILO KAFKIANO

20

1.1. Em terreno pantanoso

22

1.2. Grandes transformações

26

1.3. A origem social do romance realista

29

1.4. Um marco da literatura

37

1.5. O absurdo no universo kafkiano

45

CAPÍTULO 2

KAFKA E A ALIENAÇÃO

51

2.1. O além como aquém

58

2.2. Universalizando a matrioshka de Praga

64

2.3. A armadilha do mundo a-histórico

68

2.4. Josef K. enfrenta o processo

78

CAPÍTULO 3

O ABSURDO DA DESUMANIZAÇÃO

92

3.1. A desumanização capitalista

98

3.2. O pesadelo taylorista de Kafka

105

3.3. Uma peça do mecanismo burocrático

115

3.4. Da metamorfose ao processo

125

CAPÍTULO 4

A IDEOLOGIA EM KAFKA

137

4.1. Recorte do conceito de ideologia

139

4.2. A mistificação racionalista

155

4.3. A distopia kafkiana

165

(7)

CONCLUSÃO

194

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa propõe estabelecer um diálogo entre a literatura de Franz Kafka e o conceito de ideologia, como formulado no âmbito do pensamento de Karl Marx e de alguns autores marxistas. O principal objetivo aqui é investigar de que maneira este debate nos ajuda a compreender aspectos que consideramos fundamentais da obra deste escritor (em especial o uso que ele faz do absurdo e a famosa passividade das suas figuras dramáticas) e como podemos relacioná-los com os dias atuais. Para isso, precisamos também analisar a conexão existente entre o universo ficcional de Kafka e os conceitos de alienação e desumanização.

Em certo momento do conto O Foguista – que também é o primeiro capítulo do romance Amerika – o personagem principal da obra se dirige ao foguista do título com as seguintes palavras: “Por que não diz nada? (...) Por que suporta tudo?” (KAFKA, 2003, p. 39). Humilhado pelos seus superiores, o foguista do navio que levava Karl Rossmann para os E.U.A. apresentava uma covardia que indignou o protagonista. Estamos diante daquele que talvez seja o maior enigma da literatura de Franz Kafka: a passividade de seus personagens perante situações de opressão.

É este elemento fundamental da obra de Kafka que pretendemos analisar no presente estudo. E nesse sentido, perguntamos a ela o mesmo que Karl Rossmann perguntou para o foguista. Qual é o motivo da teimosa resignação de seus personagens, que os fazem suportar condições absurdamente degradantes? Podemos ainda acrescentar uma outra questão a esta: qual o papel da alienação e da desumanização na gênese deste insistente conformismo? Na combinação das duas está a ponte que nos levará ao debate a respeito do conceito de ideologia e como ele aparece em Kafka.

Portanto, não estamos querendo necessariamente entender como as questões ideológicas do contexto histórico vivenciado pelo autor afetou a sua escrita, e sim em que medida podemos encontrar a noção de ideologia atuando como elemento diegético de suas obras. Como características fundamentais da literatura de Kafka, a alienação e a desumanização podem nos ajudar a explicar a passividade de seus personagens se a encararmos como poderosas ferramentas de controle social.

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Desta maneira, dividiremos a pesquisa em quatro capítulos, organizados de forma a estabelecer uma argumentação que dê conta de discutir a maneira como esses elementos podem ser encontrados no nosso objeto de estudo. Para tanto, nossa análise lançará mão de diversas obras deste autor, com ênfase em seus três romances (Amerika, O Processo e O Castelo) e na novela A Metamorfose.

O primeiro capítulo será dedicado à compreensão daquelas que consideramos as características fundamentais do estilo de Kafka. As armadilhas interpretativas que devem ser evitadas. A sua inserção no âmbito do desenvolvimento da forma literária europeia da virada do século XIX para o século XX. Além de procurar de analisar como alguns elementos específicos daquele contexto histórico dialogam com a obra deste autor, para, enfim, destacarmos a forma peculiar com que ele utiliza o absurdo.

Em seguida, entraremos no debate acerca do fenômeno da alienação, mostrando primeiro como este conceito aparece no pensamento de Marx. Algo que nos fornecerá uma base teórica para entendermos como os processos de alienação são representados literariamente por Kafka. Neste capítulo precisaremos ainda estabelecer um diálogo com algumas informações de cunho biográfico sobre o autor, que possam nos ajudar a compreender a importância dessa problemática na sua literatura. Concluiremos com uma análise de suas obras utilizando a perspectiva da alienação.

Dedicaremos o capítulo três para discutir a questão da desumanização, de forma semelhante com que fizemos com o conceito de alienação. Assim, abordaremos as profundas relações entre a obra de Kafka e essa temática, buscando as origens sociais desse fenômeno e de como ele está intensamente relacionado com as formas sociais do capitalismo. Terminamos o capítulo investigando os possíveis diálogos entre trabalhos do autor e a desumanização. Na última parte desta pesquisa entraremos definitivamente no exame das possíveis relações entre o universo literário de Kafka e o conceito de ideologia. O primeiro passo é propor um recorte do conceito dentro do amplo debate ocorrido no pensamento marxista, procurando observá-lo enquanto processos de mistificação que servem para manter as relações de dominação vigentes. Depois disso, encerramos mostrando como os fatores ideológicos contidos nos fenômenos da eternização e da naturalização aparecem na obra de Kafka.

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Considerações sobre o método

As ligações entre uma obra literária e o meio social no qual ela surgiu é motivo constante de debates no âmbito da sociologia da literatura e mesmo da sociologia de arte de uma maneira geral. Se em determinado momento do século XIX o historicismo ganhou destaque enquanto um método de interpretação do fenômeno artístico supostamente capaz de revelar os segredos da criação estética, depois de algum tempo essa perspectiva passou a ser criticada, vista como um equívoco interpretativo inaceitável.

Tal mudança deve-se principalmente ao fato do historicismo tomar a arte enquanto um reflexo quase que mecânico da realidade histórica na qual ela foi criada, levando a generalizações que fatalmente reduziam a complexidade do fenômeno. Esta abordagem tendia a olhar com bons olhos obras que representassem determinados traços da realidade, mas em contrapartida não tinha muita indulgência com aquelas que fugiam a esse critério.

Ou seja, o essencial para a análise do objeto nessa perspectiva era algo que muitos passaram a considerar como sendo exterior a obra artística, qual seja: o seu contexto histórico. O que teria levado, em muitos casos, a um comportamento determinista, atribuindo à obra apenas os condicionamentos sociais aos quais estaria subordinada. Existe aí um desvio do foco que se retira da obra em direção ao meio social e as suas implicações, reduzindo a arte aos limites de métodos científicos pertencentes à história ou à sociologia.

O principal problema identificado nesta maneira de investigar o fenômeno artístico consiste no seu desprezo pela autonomia e singularidade da obra de arte. Numa postura oposta, talvez excessiva, desenvolveu-se uma perspectiva anti-historicista, que defendeu a completa autonomia da obra de arte em relação aos processos sociais, insistindo na interpretação da estrutura formal, relegando o contexto histórico, no máximo, a um plano secundário da análise. Deste modo, os pesquisadores que adotaram essa visão pensavam emprestar ênfase à própria arte literária, ou seja, aos elementos internos do objeto artístico, não mais a determinações externas. Este procedimento, talvez, cometa o erro oposto ao do primeiro método, pois atribui à dimensão formal da arte absoluta independência em relação aos eventos históricos e às transformações sociais – atitude que leva a um ponto de vista com forte teor formalista e revela um acentuado idealismo em relação a este fenômeno social.

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Em meados do século XX este conflito entre o historicismo e o esteticismo começou a caminhar para uma conciliação. A ideia é de que as duas perspectivas estariam incompletas enquanto continuassem sendo tomadas de maneira isolada. De algum modo, ambas ferem a integridade da obra estudada, na medida em que exageram a centralidade de uma de suas facetas e diminuem a importância da outra.

Todo esse caminho realizado pelo estudo da arte parece ter sido necessário para conseguirmos perceber que ambas são importantes na compreensão do fenômeno artístico. O presente trabalho procura seguir essa linha de pensamento. Nossa base é a compreensão de que existe uma relação dialética entre a obra e o seu contexto. Portanto, nos debrucemos sobre alguns pontos deste debate que consideramos essenciais para a presente pesquisa. Lembrando que não se trata de tornar iguais a estética e a história. O primeiro termo continua sendo o mais importante, o que precisamos é compreender que a própria estética contém a história, o que evita o dilema entre o externo e o interno.

Deste modo, o contexto histórico não cumpre aqui uma função de causalidade direta em relação à obra. Preferimos acreditar que a sua influência incide justamente na construção do universo formal imaginado pelo artista durante a criação dos seus trabalhos. Consequentemente, a ação do contexto não pode mais ser encarada como um fator externo à arte, mas antes como algo que faz parte dos seus próprios elementos internos.

No livro Literatura e Sociedade, Antônio Candido sugere que ao analisar uma obra literária os fatores sociais precisam ser encarados “como agentes da estrutura, não como enquadramento” (CANDIDO, 2010, p. 15). O contexto passa a ser um fator fundamental da dimensão estética e não algo que lhe sobrepõe e determina. É, portanto, a estrutura formal da obra que devemos tomar enquanto referência.

O procedimento metodológico sugerido acima, antes de subtrair a relevância do conhecimento histórico para a compreensão da arte, confere-lhe um papel mais profundo, porém sem a preponderância de outrora, pois continua sendo essencial, mas se torna somente um entre outros determinantes que podem nos auxiliar na interpretação, como o fator psicológico ou o religioso, para citar alguns exemplos.

Reunidos, tais elementos compõem aquilo que Antônio Candido designou como o “fermento orgânico” da obra de arte. Local onde as distinções entre os diversos fatores possuem pouco peso, uma vez que cada um deles atua mutuamente um sobre os outros, surgindo para

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nós somente enquanto a própria totalidade do objeto artístico. Pensando desse modo, estamos aptos a evitar eventuais deformações da obra, respeitando as suas idiossincrasias e sutilezas. Outro ponto importante de se observar na relação entre a forma artística e o contexto histórico, vem da tradição de uma crítica marxista – da qual procuramos fazer parte – onde a arte integra o plano da superestrutura da sociedade junto com a religião, a ciência, a política e os mais diversos tipos de instituições sociais. Portanto, para conseguirmos apreender corretamente esse fenômeno, temos a obrigação de entendê-lo como pertencente a um processo histórico mais amplo.

Em outras palavras, para compreender a arte não basta um conhecimento sobre a os processos da superestrutura à qual pertence, mas é preciso admitir que ela só pode ser corretamente apreendida em sua ligação com a infraestrutura, que corresponde ao desenvolvimento econômico daquela sociedade. No caso do nosso objeto de estudo, isso implica em averiguar de que modo a arte está relacionada com as ideias dominantes do seu período e como essas últimas estão referenciadas com os aspectos econômicos.

Neste ponto precisamos nos manter atentos para evitarmos uma visão mecanicista da transposição que leva da estrutura econômica do meio social à obra propriamente dita. Mesmo fazendo parte da superestrutura, a arte está longe de ser um mero reflexo dela. Como qualquer outro elemento da superestrutura, o fenômeno artístico também não pode ser encarado como uma consequência direta da infraestrutura. Existe entre essas instâncias um complexo jogo envolvendo os mais diversos tipos de mediações possíveis, todas elas extremamente avessas a perspectivas generalizantes.

Essas mediações são feitas pelos próprios indivíduos, na medida em que atuam socialmente no mundo e o constroem – assim, elas estão sujeitas a toda sorte de contingências. Uma maneira de não nos perdemos nessa fragmentação é procurando observá-los a partir da relação dialética entre particular e universal, cuja aplicação nos permite encontrar referências mais sólidas para a apreensão das suas singularidades.

Por isso é preciso considerar que as ligações entre literatura e sociedade poucas vezes são suficientemente claras e diretas para que possamos limitar nossa interpretação apenas ao conhecimento sobre a sociedade na qual o autor estudado viveu. Desta maneira, o nosso grande desafio metodológico é compreender a relação da obra (tomada enquanto forma/conteúdo) com o seu tempo, sem reduzir um ao outro.

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Admitindo que a obra não existe isoladamente e sim numa relação dialética com o seu meio social, temos que considerar a figura do artista como elemento essencial desta relação. Ficamos então diante de três categorias que estão intimamente conectadas entre si: a sociedade, o criador e a obra.

Concentrar nossa atenção na primeira delas em detrimento das outras, nos faria cair no historicismo. Quando a ênfase é dada ao segundo elemento é provável que não passemos da dimensão psicológica do fenômeno, ou que concentremos esforços num estudo minucioso da biografia do artista. Por outro lado, se dermos uma importância maior à obra, tomando-a como uma instância artificialmente separada das outras dimensões, ficaremos restritos a um esteticismo.

Para sermos mais precisos na definição da nossa posição metodológica, precisamos situar também a vasta crítica literária produzida sobre a obra de Franz Kafka. A espantosa variedade de chaves interpretativas que procuram explicar os enigmas do seu universo ficcional, pode ser tomada como a medida da sua própria complexidade e de como as estranhezas e ambiguidades encontradas em seus trabalhos possibilitam a existência de leituras bastante diferentes.

No livro Franz Kafka: Sonhador Insubmisso, Michael Löwy busca categorizar as variadas análises da obra de Kafka em seis correntes distintas. Reconhecendo a validade de algumas destas contribuições, o autor destaca, porém, o perigo de certas interpretações reduzirem o material investigado a um esquema pré-definido, algo que pode levar a compreender o conteúdo do texto somente enquanto “símbolos ou alegorias de uma mensagem” (LÖWY, 2005, p. 09).

A delimitação proposta por Löwy é bastante pertinente para o nosso estudo, pois nos permite discernir as diferentes chaves interpretativas dessa enorme massa que consiste na produção crítica sobre o escritor de Praga. Procuremos então nos debruçar sobre esta classificação.

O primeiro modelo interpretativo indicado pelo autor é justamente aquele que se apega demasiadamente à dimensão estética do texto. Como vimos acima, seu principal equívoco reside num completo desprezo pelas influências do contexto histórico sobre qualquer espécie de manifestação artística. Löwy (2005) denomina este tipo de abordagem como “leituras estritamente literárias”. Reforçamos, portanto, que a nossa proposta metodológica se afasta

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consideravelmente da perspectiva apresentada pelos autores que adotam essa tendência analítica.

É bem provável que a chave interpretativa mais atraente ao longo desses anos no âmbito da crítica ao trabalho de Kafka, tenha sido a segunda categoria apontada por Löwy: a chamada leitura biográfica. Os inúmeros estudos que procuraram seguir por estes caminhos, transformam a vida particular do escritor no ponto central da leitura. Muitas vezes, este tipo de análise termina incidindo em interpretações de cunho psicológico, que atribuem um destaque muito maior aos conflitos pessoais do artista, sem considerar devidamente as influências sociais que agem sobre ele.

A leitura psicológica, portanto, é a terceira categoria descrita por Löwy. Não há dúvida de que o complexo de Édipo (tão evocado pelos críticos desta tendência) pode ser sentido com bastante vigor no trabalho de Kafka. Porém, se não compreendermos o movimento realizado pelo autor, que ultrapassa o aspecto puramente psicológico e transforma suas experiências individuais numa condição muito mais abrangente, estaremos longe de uma abordagem satisfatória. A nosso ver, um dos trunfos do estilo de Kafka consiste precisamente nesse movimento.

Somente a título de exemplo, procuremos observar alguns casos de como uma interpretação simplesmente biográfica pode nos levar a conclusões precipitadas. No que diz respeito ao romance O Processo, foi uma perspectiva recorrente considerar que Josef K. era culpado de algum tipo de crime. Esta certeza (que não possui base no texto) tinha como base a informação de que Kafka, quando escreveu o romance em questão, havia terminado seu noivado com Felice Bauer há pouco tempo, fato que teria provocado nele um terrível sentimento de culpa.

Deste dado biográfico deduz-se que o processo movido contra o protagonista do romance deveria ter algum fundamento, pois parece não haver dúvidas sobre a culpabilidade do seu criador na época em que concebeu a obra. Ora, sustentar tal afirmação implica em atribuir ao romance algo que não está contido nele.

Um dos elementos mais importantes de O Processo é justamente a total ignorância, tanto do personagem principal, quanto do narrador e do leitor, sobre os verdadeiros motivos do processo. Aliás, a frase que inicia a narrativa já nos dá uma indicação disso: “Alguém devia ter caluniado a Joseph K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã” (KAFKA, 1979, p. 07).

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Em O Castelo a falta de sentido de determinados acontecimentos da trama seria explicada por uma suposta constatação de Kafka a respeito do absurdo da existência, intensificada pela proximidade de sua morte. A distante instituição que administra o vilarejo seria então o insondável reino do além, incompreensível para aqueles que ainda não tem permissão de adentrar nos seus domínios. Conclusões como estas são feitas com base em algo que não pode ser extraído do texto.

Por outro lado, não estamos querendo insinuar que o estado de espírito de Kafka ao escrever as duas obras em questão, não estivesse contaminado por aqueles acontecimentos. Porém, desprezar o que está dito na obra para privilegiar informações de cunho pessoal não nos parece o melhor método a seguir. Procuraremos evitar este equívoco ao concentrar a nossa atenção antes de tudo no texto, partindo sempre dele para formular hipóteses interpretativas. De acordo com o crítico inglês Terry Eagleton no livro Teoria Literária: Uma Introdução, podemos dividir a abordagem psicanalítica em quatro tradições fundamentais: “Ela pode se voltar para o autor da obra, para o conteúdo, para a construção formal, ou para o leitor” (EAGLETON, 2006, p. 268). De certa maneira todas elas foram, em maior ou menor grau, aplicadas à literatura de Kafka. Contudo, a maioria das interpretações utilizou-se dos dois primeiros procedimentos.

Para Eagleton o caráter problemático dessas análises consiste principalmente no teor especulativo que elas terminam adotando, ao empenharem-se em uma busca pela intenção do escritor no instante do ato criativo. Já na visão psicanalítica que se debruça sobre o conteúdo textual, ocorre uma preocupação com “as motivações inconscientes dos personagens, ou sobre a significação psicanalista dos objetos ou acontecimentos do texto” (EAGLETON, 2006, p. 269), algo que limita demasiadamente a crítica.

Chegamos, então, à quarta leitura proposta por Löwy: as interpretações religiosas, que tiveram na figura de Max Brod o seu mais representativo emissário. Partindo do ponto de vista apresentado por este grupo, o obscuro tribunal que move o processo contra Josef K., e o distante castelo que frustra as expectativas do agrimensor K. seriam imagens da providência divina que não devem ser contrariadas pelos homens.

Não iremos nos deter na descrição dessa importante chave interpretativa, pois ela será crucial para o debate que iremos realizar no segundo capítulo da presente pesquisa, quando discutiremos as relações entre a obra de Kafka e o conceito de alienação. Portanto, as visões religiosas serão melhor aprofundadas em um momento mais oportuno, sendo que é a partir da

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crítica que fazemos a esta perspectiva que procuraremos delimitar melhor a nossa proposta para uma análise do universo kafkiano.

O quinto tipo de leitura que aparece no esquema de Löwy são “leituras pelo ângulo da identidade judaica” (LÖWY, 2005, p. 08), na qual Hannah Arendt aparece como a grande representante. Contudo, é preciso deixar claro que as análises da autora que enveredaram por este caminho, pertencem ao início da sua produção intelectual. Mais tarde, Arendt teve a oportunidade de realizar estudos que assumiam uma perspectiva mais universalista sobre a literatura de Kafka.

Na visão “judeocêntrica” desta autora, a obra que representaria de maneira mais profunda o espírito judaico de Kafka seria O Castelo. Contudo, mais uma vez, não há no livro qualquer indicação que nos leve a tal conclusão. O que podemos afirmar de antemão é que este romance retrata a condição não apenas do judeu, mas do imigrante, ou do estrangeiro, de uma maneira geral, condição que dizia respeito à Kafka de modo menos concreto do que sensível.1

Já falamos sobre a sexta categoria indicada por Löwy, que é de fundamental importância para o desenvolvimento desta pesquisa: as interpretações sócio-políticas. Vimos como este tipo de leitura privilegia a análise do contexto histórico para a compreensão das obras literárias. Löwy também acredita ser preciso tomar cuidado na aplicação desse método, pois concentrar toda a atenção unicamente nas questões históricas, por mais essencial que ele seja, torna o estudo ainda incompleto.

Por isso propomos uma análise que estabeleça uma mediação entre esta chave de leitura e aquela de caráter literário. Acreditamos que é vital manter o estudo nos limites daquilo que foi escrito pelo autor, sem esquecer as influências históricas que pesam sobre todas as formas da produção humana. São bem-vindos também eventuais esclarecimentos de outras perspectivas (como a biográfica ou a religiosa), desde que utilizados com certa moderação. Aqui reside a nossa escolha em trabalhar com as teorizações de Lukács e de Goldmann. Veremos mais adiante como estes pensadores deram passos decisivos no estabelecimento da mediação que buscamos, quando demonstraram a maneira como o contexto social pode influenciar no próprio ato de criação artística, fazendo com que os dois momentos do estudo sejam igualmente significativos.

1 Lembrando que Kafka não era um estrangeiro no sentido literal do termo, mas pela sua própria condição social ele sem dúvida sentia-se como um.

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Infelizmente uma larga parcela da crítica marxista não teve esta mesma preocupação e deixou que a análise social se sobressaísse a uma compreensão estética, tornando seus trabalhos incapazes de dar conta dos elementos estilísticos e formais da produção literária de Kafka. Muitos autores dessa corrente caíram numa armadilha recorrente que consiste em tentar submeter o complexo universo literário deste escritor a um modelo teórico fechado. Testemunharam, então, a insuficiência do pensamento científico na análise de uma obra de arte. Durante um bom tempo foi costume entre alguns pensadores de orientação marxista que se dedicaram ao estudo sobre Kafka, resolver a questão estética simplesmente localizando o romancista nos limites do movimento modernista. É inegável que a obra deste escritor foi uma poderosa influência para a literatura de vanguarda do século XX, mas o que esses críticos não conseguiram compreender é que a noção de decadência (à qual condenam tão duramente o modernismo como um todo) não é aplicável com exatidão à obra de Kafka.

A elasticidade com que o trabalho deste escritor foi classificado ao longo da história (de revolucionário a decadente) impressiona bastante e comprova a enorme dificuldade em rotular o seu trabalho. Este fato dá uma boa medida da complexidade da sua produção literária, tantas vezes acusada de ser uma ode à resignação e a passividade do homem. Esta perspectiva será aprofundada mais adiante, quanto discutirmos a questão do niilismo também no capítulo dois do nosso estudo.

É irônico notar como este tipo de perspectiva indubitavelmente aproxima-se da interpretação realizada pelos autores existencialistas a respeito da produção literária de Kafka. Com a diferença de que eles encaravam este traço como algo positivo, enquanto Lukács (e muitos marxistas) compreendia que tal atitude induz a um comportamento passivo em relação às formas de opressão do mundo moderno, que podem sim ser modificadas através da ação conjunta dos indivíduos.

Apesar de não concordarmos com a crítica realizada ao conceito de decadência ideológica quando aplicado de maneira muito rigorosa à literatura e à arte, entendemos que esta noção é bastante válida para a compreensão da vida econômica, da ciência e da própria construção da ideologia burguesa. Por isso, mesmo problematizando a validade do conceito para a análise da obra de Kafka, ele sem dúvida alguma está bastante presente na nossa maneira de perceber os ditames do mundo moderno.

Entender as transformações do pensamento burguês do seu período heroico, onde se percebia mais francamente os motores da realidade social, para a fase apologética da segunda

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metade do século XIX, quando a ciência e a filosofia procuram adequar-se às “necessidades econômicas e políticas da burguesia" (LUKÀCS, 2010, p. 52), é algo imprescindível para o desenvolvimento dessa pesquisa.

De qualquer modo Lukács recusava-se a reconhecer que a literatura de Kafka era um tipo renovado de realismo, como alguns dos seus interlocutores acreditavam. No ensaio Franz Kafka ou Thomas Mann?, o filósofo húngaro tenta demonstrar as diferenças entre os dois autores, chegando à conclusão de que Mann era o verdadeiro escritor realista, pois conseguiu conservar a objetividade do narrador clássico e ao mesmo tempo acompanhou as transformações da forma literária no seu século.

Para Lukács, Kafka faria uso de um realismo superficial, adotando uma perspectiva subjetivista, na linha dos artistas de vanguarda da época. Assim, o filósofo húngaro deixou uma noção petrificada de realismo obstruir uma visão mais condizente com o espírito inconformista de Kafka. Teremos a oportunidade de analisar com maior profundidade o que Lukács entendia como realismo.

Tempos depois, Lukács teria procurado revisar a sua polêmica análise, reconhecendo, por fim, o caráter eminentemente histórico dos escritos de Kafka. Porém, não voltou atrás na sua dura crítica à arte de vanguarda e ao modernismo, que para ele continuavam sendo essencialmente alegóricos e, portanto, não realista. Nos últimos anos de sua vida, Lukács já não considerava Kafka como a expressão mais emblemática desta tendência estilística.

Löwy conta que após a derrota da República Soviética da Hungria, durante o tempo em que ficou preso sem saber exatamente do que estava sendo acusado, ele teria finalmente admitido à sua esposa que Kafka era um realista no final das contas. Mas apesar disso, a autocrítica de Lukács em relação a Kafka não teve o mesmo nível de formulação dos seus estudos anteriores, muito pelo contrário, essa reavaliação se deu de maneira bastante difusa e esporádica.

A crítica existencialista, por outro lado, sustenta que uma das características mais evidentes do universo kafkiano, o absurdo, diz respeito à situação desesperadora do homem frente à completa falta de sentido da vida. Num mundo esvaziado de um conteúdo religioso fundamental, resta ao homem a tenebrosa visão do nada, levando à constatação da ausência de significado da existência.

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Com toda certeza este não era um aspecto da modernidade ignorado por Kafka, porém, este ponto de vista pressupõe a compreensão do vazio como uma condição fundamental dos seres humanos, e não resultante de um enquadramento histórico específico – ponto de vista que apenas de uma maneira muito forçada pode ser inteiramente atribuído àquele autor. Verificaremos com mais cuidado esta questão quando formos observar o modo pouco usual com que esse escritor aplica uma historicidade às suas peças literárias.

No entanto, podemos adiantar que muitas vezes a leitura existencialista desconsidera o teor negativo e opressor da literatura de Kafka (ou a interpreta enquanto condição essencial dos indivíduos), procedimento que torna a análise um tanto fria. Se colocarmos no primeiro plano da leitura, a crítica desse escritor aos processos de alienação e de desumanização típicos do capitalismo imperialista, conseguiremos captar melhor o imenso vigor dos seus escritos. O importante aqui é perceber como Kafka apropria-se de problemas supostamente ontológicos do homem, vestindo-o sempre sob o manto de sua época, transmitindo assim o modo como ele próprio vivenciava esses problemas. Ou seja, a concepção existencialista vai somente até a metade do caminho, ao identificar os elementos que acreditam ser de caráter ontológico, mas perde aquilo que, a nosso ver, lhe confere substância, o caráter propriamente histórico.

Apesar da abordagem hermenêutica não fazer parte da classificação realizada por Löwy, ela não pode ser simplesmente colocada de lado, pelo fato desta forma de conhecimento dialogar intensamente (mesmo que em franca oposição) com o marxismo. O principal objetivo da hermenêutica seria estabelecer uma compreensão teórica sobre a validade geral da interpretação, na qual se sustenta a própria possibilidade de existência tanto da história quanto da literatura.

Para esses autores, a busca pelas estruturas essenciais do texto atribuiria o caráter objetivo desta construção metodológica. Através dela o indivíduo pode ter acesso à história universal dos homens, conhecendo aquilo que ao longo do tempo se preservou como significante para determinados grupos sociais. Assim, a forma literária, em si mesma, torna-se uma dimensão meramente secundária do estudo.

O último viés interpretativo da obra de Kafka sugerido por Löwy é o que ele designa de leitura pós-moderna. A proximidade deste ponto de vista com o da crítica existencialista é patente. Os autores pós-modernos também costumam acreditar que o mundo descrito por Kafka é uma representação do nada insuperável, da total falta de sentido da vida, e que o trabalho de

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um pesquisador que pretenda ir além deste “fato” é desnecessário, pois o que lá existe não pode ser decifrado.

Acreditamos que a opacidade do mundo descrito por Kafka tem causas fundamentalmente sociais e sendo assim precisamos realizar um esforço interpretativo no sentido de compreendê-las. Parte dos intérpretes que estudam Kafka através deste prisma, prefere orientar-se para uma compreensão sobre a recepção da obra, procurando perceber como os leitores constroem a realidade do livro, com base em conceitos internalizados socialmente. Podemos observar sem maiores dificuldades como não são raras as ocasiões em que esses tipos de abordagem convergem. A leitura biográfica, por exemplo, geralmente é acompanhada de uma perspectiva psicológica, assim como as interpretações religiosas ou sobrenaturais podem muitas vezes lançar mão de perspectivas existencialistas, e estas ainda podem se enveredar para o campo da hermenêutica.

O objetivo desse panorama geral da crítica sobre Kafka é, além de delimitar e refletir a respeito de variados pontos de vista, localizar melhor uma parte fundamental do procedimento metodológico que aqui adotamos. Como já foi comentado acima, esta formulação consiste em compor um ponto de interseção entre a perspectiva estética e a histórica, tendo sempre em mente que os pressupostos estéticos se encontram numa relação dialética com o seu tempo, tornando impossível compreender suas implicações sem conhecer o seu contexto originário.

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CAPÍTULO 1

Implicações do Estilo Kafkiano

Poucos autores na longa história da literatura tiveram o seu nome transformado em adjetivo, entrando para a linguagem cotidiana, inclusive ganhando verbetes em dicionários. Homérico, dantesco e maquiavélico são três exemplos que vêm imediatamente à cabeça quando nos referimos a esse tipo de circunstância.

A despeito do fato de nem sempre essa adjetivação ser algo lisonjeiro para o autor (como é o caso do termo maquiavélico que hoje tem uma conotação inegavelmente pejorativa que termina enviesando a leitura da obra de Maquiavel), quando isso ocorre podemos afirmar que por motivos diversos as obras desses autores penetraram de maneira profunda a vida cultural e o imaginário de determinadas sociedades.

Mesmo que atualmente as obras de Homero, Dante e Maquiavel não gozem da popularidade de best-sellers, não há como negar que estes autores, ao recriarem circunstâncias de seu mundo social, conseguiram identificar traços e características da vida humana que permanecem até o presente histórico.

Um exemplo curioso nesse sentido é o de Miguel de Cervantes. No caso do escritor espanhol não foi o seu nome que virou um adjetivo e sim o nome do seu personagem mais famoso: Dom Quixote. A palavra “quixotesco” é utilizada para designar atitudes fora da realidade, geralmente de pessoas que não se conformam com o ocaso de uma época e querem revivê-la de alguma forma.

Não podemos esquecer também do termo balzaquiano (ou como geralmente costuma aparecer, balzaquiana ou mulher balzaquiana) que ganhou popularidade por conta do livro A Mulher de Trinta Anos escrito pelo romancista francês Honoré de Balzac entre 1829 e 1842. Ainda hoje chamar uma mulher de balzaquiana é afirmar que ela está em torno dos trinta anos de idade, apesar da enorme distância que separa a mulher de trinta anos da época de Balzac, da mulher de trinta anos contemporânea.

O fato desses termos terem sobrevivido às transformações históricas e culturais e continuarem fazendo sentido para nós, dá uma amostra de como esses autores conseguiram transcender seus contextos históricos específicos e de como suas obras ainda tem muito a dizer

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para os leitores de hoje. E isso não é um privilégio de escritores cujos nomes deram origem a adjetivos, mas é uma característica inerente à grande literatura e ao fenômeno artístico de uma maneira geral.

De fato, alguns grandes autores como Dostoievski, Thomas Mann e Victor Hugo (para citar apenas três entre uma enorme quantidade de outros exemplos) não chegaram a ter seus nomes transformados em adjetivos de grande popularidade. O que não diminui nem um pouco a qualidade artística de seus trabalhos e nem essa capacidade de conseguir continuar relevante para além do momento histórico em que viveram.

Se a história é a grande juíza dos valores estéticos de uma obra – pois não sobreviver em novas configurações sociais pode indicar o seu caráter demasiadamente prosaico – continuar despertando o interesse de públicos com outras experiências históricas, pode nos servir como um sinal de que aquele autor tocou em pontos profundos da nossa vivência histórica.

Pensando desta maneira, uma peça literária possui um duplo interesse sociológico. Primeiro, conseguimos através dela conhecer melhor épocas e lugares diferentes, aprofundando nosso conhecimento histórico com um nível de imersão que não encontramos em outros produtos culturais. Por outro lado, procurar saber o que mantém atual um autor ou uma obra é, no fundo, refletir também sobre alguns aspectos da época em que vivemos e, portanto, é uma tentativa de compreender o mundo contemporâneo e as suas questões. Este é um dos nossos objetivos ao estudar a obra de Franz Kafka.

Kafka está no grupo desses autores cujo o nome originou um adjetivo que entrou definitivamente para o nosso vocabulário: kafkiano. Como veremos mais adiante, sua obra não foi muito bem compreendida na época em que foi produzida. Porém, os eventos e as transformações históricas que se seguiram, abriram caminho para que uma nova geração de leitores passasse a encarar a literatura de Kafka sob um prisma diferente, dando ao autor uma relevância que poucas pessoas foram capazes de reconhecer na época em que ele ainda estava vivo.

É bem difícil localizar com precisão a data em que o termo “kafkiano” começou a ser utilizado. O que podemos afirmar sem receio é que depois da eclosão da primeira guerra mundial a obra de Kafka passou a ser encarada de maneira diferente e a ser reverenciada por um número crescente de artistas e leitores ao redor do mundo. Kafka se transforma num autor

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de grande influência e sua obra torna-se imprescindível para compreender esse período da civilização ocidental.

O adjetivo “kafkiano” cai como uma luva para descrever alguns aspectos centrais do mundo moderno e do seu funcionamento. Especialmente em se tratando do contexto de profundas transformações pelas quais passavam as sociedades industriais europeias na virada do século XIX para o século XX. O apuro e as particularidades da visão de Kafka sobre a modernidade, porém, ultrapassam a época em que ele viveu. Ao ponto de em pleno século XXI seu trabalho permanecer bastante relevante, preservando o impacto que já havia seduzido muitas gerações de leitores.

Assim, a palavra “kafkiano” se refere tanto ao estilo literário de Kafka, quanto a aqueles momentos em que podemos observar uma semelhança gritante entre esse estilo e determinados fatos que testemunhamos na nossa vida cotidiana. Nesse sentido acredito que não seria um exagero muito grande afirmar que o mundo moderno foi se tornando mais kafkiano com o passar do tempo; e infelizmente isso está longe de significar algo que possa ser considerado minimamente como positivo.

Nesse capítulo inicial vamos, portanto, procurar entender melhor o que geralmente queremos dizer quando utilizamos o termo “kafkiano” e para isso precisaremos mergulhar no peculiar estilo literário do escritor de Praga. Esse mergulho vai nos dar uma base, tão sólida quanto possível, para a discussão que se seguirá e é a partir dela que iremos procurar estruturar essa pesquisa.

1.1 - Em terreno pantanoso

Mesmo estudando a literatura de Kafka durante boa parte da minha vida acadêmica, ainda hoje ao começar um novo trabalho sobre o autor me vejo com alguma dificuldade para encontrar o melhor local por onde possa começar um argumento. Nessas horas sempre me assalta a lembrança aquela advertência que Walter Benjamin faz no texto Franz Kafka a respeito do décimo aniversário de sua morte endereçada para quem pretende se aventurar no universo literário de Kafka:

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Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar parábolas. Mas ele não se esgota nunca nos textos interpretáveis e toma todas as precauções possíveis para dificultar essa interpretação. É com prudência, com circunspecção, com desconfiança que devemos penetrar, tateando, no interior dessas parábolas (BENJAMIN, 1985, p. 149).

Essa advertência deveria está fixada em cada porta que dá acesso para esse mundo, como um aviso não apenas aos espíritos incautos, mas principalmente para quem acredita já conhecer muito bem o universo kafkiano e suas armadilhas.

Ao adentrarmos nesse mundo estamos de fato andando num terreno pantanoso onde cada passo tem que ser dado com muita atenção, pois aquilo que parece sólido e seguro pode se revelar movediço e nos levar por caminhos enganosos. E isso é especialmente verdadeiro para aqueles que acreditam possuir a chave que revela o código secreto da literatura kafkiana.

Deste modo, cada vez que nos aventuramos nas histórias criadas por Kafka percebemos coisas que não tínhamos atentado das outras vezes, o que pode mudar nossa interpretação daquilo que estamos lendo. O aviso de Benjamim diz muito sobre o estilo literário de Kafka e o fato dele ser bem diferente daquilo que o leitor está acostumado a encontrar nas páginas da grande maioria dos romances existentes, tanto na época em que Kafka escreveu quanto na atualidade.

É difícil encontrar, mesmo nos dias de hoje, alguém que não sinta estranhamento e desconforto ao tomar contato com alguma obra de Kafka. Seu estilo é bastante eficiente em arrancar o leitor de um solo que ele julga seguro e atirá-lo numa indeterminação sufocante para depois oferecer outra vez um porto aparentemente seguro e novamente nos tirar de lá sem nenhum aviso.

Algumas pessoas terminam se afastando da sua literatura, depois de um primeiro contato, justamente por não se sentirem à vontade em meio a esse jogo que torna a realidade algo a um só tempo estranho e familiar. Em outros leitores o efeito é justamente o contrário. Muitos terminam ficando absolutamente fascinados com a peculiaridade desse estilo e terminam por mergulhar cada vez mais na obra de Kafka, seja no intuito de procurar uma resposta para as dúvidas que ela suscita, ou simplesmente para ter mais contato com essa experiência estética transformadora.

A descrição mais comum para o estilo literário de Kafka (que encontramos em quase toda tentativa de interpretação de sua obra) é aquela que o relaciona com os sonhos; algo que

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pode levar a classificar a sua obra como surrealista. Porém, Kafka é anterior a esse movimento estético e não seria correto colocá-lo sob essa classificação, pois sua literatura não está entregue a um fluxo inconsciente.

Por isso, a comparação com os sonhos talvez seja incompleta. O teor onírico do universo kafkiano é inegável. Lendo suas obras nos sentimos dentro do sonho de alguém e isso é algo que realmente salta aos olhos de qualquer leitor.

A palavra sonho, no entanto, não é a mais precisa numa descrição do universo kafkiano. O mais correto seria defini-lo como um tipo mais específico de sonho, ou seja, como um pesadelo, já que as sensações que o autor traz à tona não são das mais agradáveis. O essencial dessa sensação se encontra naquilo que podemos considerar como a própria essência de toda a literatura de Kafka: o absurdo2.

O uso de elementos fantásticos (ou mesmo pouco realistas) já é um ponto de contraste relevante numa comparação com a chamada grande literatura europeia produzida no século XIX; da qual Kafka é herdeiro. Enquanto o romance clássico, na maioria das vezes, presava por um realismo irrestrito, Kafka adiciona doses de absurdo em suas histórias sem, contudo, descartar completamente um certo realismo, causando com isso um impacto sem muitos precedentes na história da literatura.

É aquele jogo entre o estranho e o familiar ao qual me referi acima. Utilizando esse recurso literário Kafka desconcerta o leitor fazendo o familiar parecer estranho e o estranho soar familiar. Os elementos fantásticos são revestidos de um realismo seco, protocolar, sem rodeios, e esse realismo é permanentemente descrito com pinceladas de absurdo, que ora aparece de modo direto, ora insinua-se entrelinhas e só aos poucos ganha forma mais definida. Temos aí um dos principais motivos para a existência desse terreno pantanoso, cuja existência sublinha a importância da advertência feita por Walter Benjamim sobre os cuidados que devemos tomar ao tentar elaborar uma interpretação da obra de Kafka. As armadilhas que vão se armando a partir dessa dinâmica, nos coloca frequentemente em becos sem saída e formam uma estrutura labiríntica difícil de ser decifrada.

A literatura de Kafka é construída sobre uma linha tênue entre o realismo e o fantástico. Ela funda um espaço próprio dentro dessa dicotomia. Por vezes soa como uma fábula das mais

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estranhas e bizarras (principalmente nos contos), em outras encontra ecos no realismo ou mesmo no naturalismo dos romances clássicos.

Com frequência suas metáforas ganham uma corporeidade palpável, distorcendo propositalmente aspectos chaves da realidade ali representada. A cada passo dado nessa direção Kafka transfigura, à sua maneira, a forma romanesca vigente, aproximando-se de movimentos de vanguarda que começavam a ganhar força naquele período histórico.

Avessa a qualquer tipo de classificação fixa, a obra de Kafka terminou sendo enquadrada como expressionista. Por muito tempo essa era a única classificação que a sua literatura parecia admitir. Muitas das suas primeiras publicações ocorreram justamente em revistas especializadas nesse tipo de literatura, que, de uma maneira ou de outra, guardava certa semelhança com o seu estilo3.

Porém, com o tempo, foi ficando cada vez mais claro que essa classificação não contemplava as diversas peculiaridades da escrita do autor. A sua literatura transcendia qualquer tentativa de categorização mais rigorosa. O que ajudou a tornar o seu trabalho pouco acessível para os seus contemporâneos. Essa indefinição e a estranheza que a obra causava, com certeza contribuíram para que Kafka só fosse reconhecido como um grande escritor depois da sua prematura morte em 1924.

Todos esses elementos também colaboraram para construir a imagem de Franz Kafka como um escritor maldito. Os temas tratados por ele podem não ser tão polêmicos e chocantes para o moralismo vigente quanto o de outros escritores a quem geralmente se atribui essa designação4. Por isso, podemos dizer que Kafka não é um escritor fácil de ser assimilado. E a

advertência de Benjamim nos alerta justamente para esse aspecto. O mundo que ele cria exige do leitor uma boa dose de engajamento. Mas, mesmo isso, não nos garante muita coisa, pois em Kafka as coisas não são o que aparentam ser. Ao longo da leitura, persiste no leitor a expectativa de descobrir significados ocultos, que poderão ser revelados a qualquer momento. No entanto, a expectativa é sempre frustrada pelo fluxo dos acontecimentos narrados.

3 Um fato curioso sobre essa relação da literatura de Kafka com o movimento expressionista é que quando Orson Wells fez uma versão cinematográfica do romance O Processo em 1962 ele optou em adotar fotografia e cenários inspirados no cinema expressionista alemão. Decisão criativa que se mostrou bastante acertada numa adaptação visual da obra de Kafka.

4 A estranha singularidade do seu estilo, o não reconhecimento em vida, e o seu falecimento, são utilizados para pô-lo ao lado de escritores como Oscar Wilde, Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire e Rimbaud.

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Essa é uma característica incontornável do estilo literário de Kafka e seria um erro ignorar a sua existência, acreditando ser possível navegar tranquilamente pelas suas águas profundas e tumultuosas. Essa viagem exige que estejamos preparados para enfrentar obstáculos complexos afastando a pretensão de domá-los completamente e de o pôr sob o nosso controle.

A obra de Kafka sempre vai se rebelar contra essas tentativas. Sua constante abertura para novos significados e interpretações, escapa a ambições desse tipo. Além disso, o teor hermético particular da sua literatura torna ainda mais complicada essa empreitada. É preciso, portanto, respeitar a riqueza dessa obra e admitir que podemos no máximo imaginar possíveis caminhos e tentar trilhá-los para vermos aonde eles podem nos levar.

Somente partindo dessa constatação acredito ser seguro nos arriscarmos no universo kafkiano – para isso precisamos manter o espírito aberto para toda a estranheza que ele tem a nos oferecer. Adentraremos em um mundo com suas próprias regras, mas nem sempre elas serão tão claras como esperamos. E essa é uma das poucas certezas que podemos ter nessa realidade absurda criada por Kafka.

1.2 – Grandes transformações

O final do século XIX foi uma época de profundas transformações para as sociedades europeias. O mundo moderno avançava a passos largos e superava as últimas reminiscências das estruturas feudais. Mas não só isso, ele modificava também as suas próprias características iniciais, dando às sociedades industriais um aspecto bastante diferente daquilo que se observou na primeira metade daquele século.

Os avanços tecnológicos trazidos pela segunda revolução industrial (1850 – 1870) proporcionaram mudanças significativas no convívio social dessas sociedades. O carvão foi substituído pelo petróleo como principal fonte de energia, surgiam os primeiros automóveis, os primeiros aviões, as indústrias foram tomadas por máquinas mais avançadas e por um novo tipo de organização do trabalho, que ficou conhecida como gerência científica.

Era uma época de grande euforia e otimismo com todas aquelas conquistas científicas e políticas, experimentadas num espaço de tempo relativamente curto. Contudo, foi também

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nesse período que começaram a ficar mais evidentes as consequências negativas que algumas dessas transformações ocasionaram na vida dos indivíduos. O mundo moderno ganhava proporções mais drásticas e suas contradições se acentuaram em dimensões alarmantes.

Se o capitalismo liberal, em certa medida, ainda preservava algo do velho lema iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade, o seu desenvolvimento histórico começava a dar mostras de que a classe burguesa não estava realmente comprometida com esses ideais. O salto de produtividade que as sociedades modernas experimentaram após a segunda revolução industrial, não ajudou a melhorar as condições de vida – ao contrário do que prometia o liberalismo econômico.

Um melancólico fin de siècle testemunhou o surgimento de uma espécie mais avançada e voraz de capitalismo. E em muitos sentidos, as formas sociais que começavam a se delinear nesse novo contexto contradiziam os ideais da burguesia revolucionária. Em outras palavras, o capitalismo liberal cedeu lugar ao capitalismo monopolista, que modificou sensivelmente o status geopolítico do período e criou as condições que desembocaram nos dois conflitos mundiais do começo do século XX.

Claro que tudo isso iria exercer influência significativa no universo das artes. O final do século XIX também foi um período de grandes transformações nas formas artísticas europeias. Uma configuração social com características tão diferentes, não podia mais ser representada com base em regras desenvolvidas no começo da era moderna. Isso, aos poucos, foi semeando a ideia de que era necessário criar novas formas estéticas para dar conta dos novos conteúdos observados na realidade social.

Nesse contexto, a estrutura formal do romance europeu passou por modificações expressivas – e Kafka esteve na vanguarda dessa revolução. Kafka foi sem dúvida um dos grandes inovadores da linguagem literária, além de um dos escritores mais influentes e significativos para a literatura produzida ao longo do século XX. Suas obras ajudaram a redefinir a maneira como a literatura elaborava os conteúdos de uma determinada época e oferecia uma expressão estética a ela.

Kafka foi um dos primeiros a sentir essa necessidade de transformar a forma romanesca, de trazer novos elementos, mais adequados para tratar os conteúdos de sua época. Mas ele foi além disso, fazendo com que esses conteúdos interferissem diretamente na estrutura formal das

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suas obras. A ruptura radical desse autor com a tradição literária europeia, trouxe à tona alguns dos aspectos mais essenciais desse novo período da era moderna.

Não se trata apenas de empreender mudanças formais superficiais e gratuitas, mas sim de encontrar um leitmotiv5 adequado que amarre organicamente forma e conteúdo de modo que,

a maneira de contar a história esteja em plena harmonia com os próprios temas ali explorados. Fazendo isso com uma maestria assombrosa, a obra de Kafka se destaca na virada do século XIX para o século XX. E essa é uma das grandes forças da sua literatura. Cada novidade apresentada em termos formais, possui uma razão de ser e tem uma relação íntima com a própria temática abordada. O impacto desse procedimento sobre o leitor tem um efeito duradouro. Acreditamos que essa seja uma das bases para a longevidade da literatura de Kafka.

Nela, as transformações pelas quais passou o mundo moderno e os conteúdos surgidos desse contexto, ganham uma expressão literária visceral. Uma visão não muito favorável do que significa para o homem comum viver nessa configuração social marcada pela presença de duas características basilares, a desumanização e a alienação.

Temos aqui, portanto, dois termos que não podem faltar numa descrição do estilo de Kafka. O significado do adjetivo “kafkiano” gira necessariamente em torno desses aspectos, inerentes à modernidade capitalista. E é justamente dentro da atuação combinada desses fatores que Kafka busca erigir o seu universo literário, dando uma expressão estética apurada às sociedades de sua época.

A própria maneira como Kafka utiliza o absurdo em sua obra está relacionada com a sua interpretação sobre os fenômenos da alienação e da desumanização e de como eles atuam sobre nossas vidas. Mais adiante teremos a oportunidade de ver que em Kafka o absurdo não é utilizado de modo gratuito (ou seja, apenas com a intensão de causar surpresa nos leitores), mas ele obedece a um propósito que diz respeito a como os indivíduos se relacionam com a alienação e a desumanização.

5 Do alemão motivo condutor. “Motivo musical condutor. / Frase, fórmula que ocorre por várias vezes em uma obra literária, em um discurso, etc. / Tema ou motivo nuclear persistente em uma obra” (Dicionário Enciclopédico Koogan – Larousse – Seleções).

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As relações entre absurdo, alienação e desumanização constroem o leitmotiv da obra de Kafka. São elas que adequam as inovações formais do autor aos conteúdos abordados, criando um universo coeso, apesar de toda a estranheza que desperta.

Kafka foi um dos primeiros artistas do seu tempo a sentir que nuvens carregadas rodavam a realidade social europeia naquele momento histórico; e a sua literatura é uma expressão contundente desse sentimento. A visão que ele apresenta penetrou tão profundamente em alguns dos conteúdos mais essenciais da modernidade capitalista, que os seus escritos foram capazes de antecipar o espírito de épocas com as quais ele nem chegou realmente a ter contato, ajudando a projetar a imagem de um escritor visionário, porém mal compreendido pelos seus contemporâneos.

Para entender o que torna a obra de Kafka um artefato tão incomum e enigmático da cultura ocidental, precisamos nos aprofundar um pouco mais em alguns elementos estilísticos da sua literatura e em como eles dialogam com o contexto em que o autor viveu. Afinal, o que significou para a história da literatura essa inovação formal empreendida por Kafka? É o que veremos a seguir.

1.3 – A origem social do romance realista

A literatura europeia produzida ao longo do século XIX (principalmente o chamado romance clássico) marca a produção artística da era burguesa. Sob muitos aspectos, ela foi a forma artística que melhor representou, em toda a sua complexidade, a sociedade daquele período.

Os grandes dilemas e anseios da jovem civilização burguesa – surgida no rastro da dupla revolução6 no final do século XVIII que desmantelou as estruturas feudais – foram abordados

com a merecida profundidade por escritores como Honoré de Balzac, Leon Tolstoi, Charles Dickens, Flaubert, et al.

6 “Dupla revolução” é uma expressão cunhada pelo historiador britânico Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções para se referir à revolução industrial (1760) e à revolução francesa (1789), segundo ele, os dois acontecimentos que definiram o mundo moderno.

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Não há dúvidas de que essa foi uma época de ouro para a literatura europeia, cujos efeitos foram muito além dos limites daquele continente, influenciando de maneira profunda as formas literárias ao redor do mundo.

Um dos grandes trunfos desses autores, foi o modo como eles conseguiram introduzir organicamente em suas obras, debates e temáticas exploradas pela filosofia e pelas novas formas de pensamento que surgiam naquele contexto, como a psicologia e a própria sociologia. O que torna os romances clássicos obras centrais para a reflexão acerca de questões que atravessavam a sociedade, na luta da burguesia para estabelecer uma nova forma social dominante.

Não é à toa que Marx e Engels consideravam Balzac um dos maiores intérpretes do mundo burguês. Para estes autores, o romancista francês descreveu com riqueza de detalhes a decadência da nobreza francesa frente ao avanço de uma nova configuração social representada pela burguesia e seus interesses de classe. Em uma carta a Margaret Harkness escrita em 1888, Engels deixa isso bem claro:

Balzac (...) desenvolve em sua Comédia Humana a mais extraordinária história realista da sociedade francesa, narrando, ano a ano e como se fora uma crônica, os costumes imperantes entre 1816 e 1848. Ele dá forma ao crescente movimento da burguesia que se ergue sobre a nobreza, burguesia que depois de 1815 se reestruturou na medida do possível, restabelecendo o estandarte da antiga política francesa. Balzac mostra como os últimos vestígios da velha sociedade da nobreza – que para ele, é um modelo – foram desaparecendo paulatinamente com o avanço do adventício vulgar ou foram corrompidos por este último. (...) Em torno deste quadro central, Balzac concentra toda a história da sociedade francesa, sociedade que conheci mais em seus livros – inclusive no que tange a detalhes econômicos (por exemplo, a redistribuição da propriedade da realeza e da propriedade privada depois da revolução) - que nos textos de todos os especialistas do período, historiadores, economistas, estatísticos tomados em conjunto. Claro que, por suas concepções políticas, Balzac era um legitimista. Sua grandiosa obra é uma permanente elegia acerca da irremediável decomposição da alta sociedade; suas simpatias estão com a classe condenada a desaparecer. Mas, ao mesmo tempo, a sua sátira nunca é tão aguda, nem sua ironia é mais amarga, como quando faz agir os homens que mais o atraem: os aristocratas (ENGELS, 2012, p. 68 e 69).

Balzac pode ser tomando como exemplo dessa tendência, mas certamente não é o único. Uma constante preocupação com os problemas sociais, perpassava as principais obras literárias

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produzidas naquele período – e essa se tornou uma das características mais destacadas do romance clássico do século XIX.

Os graves problemas sociais enfrentados pelas sociedades europeias neste contexto histórico, ganham evidência nas páginas de romancistas com grande popularidade como Charles Dickens e Victor Hugo7. A mais importante expressão artística criada no seio da

nascente sociedade burguesa, não tinha o menor receio de encarar essas questões de frente e de se posicionar contra as injustiças sociais.

Nesses livros, o foco passa a ser o cidadão comum e os dilemas impostos a ele pela nova disposição social, ou seja, o mundo moderno. Mudança que podemos considerar significativa numa comparação com a literatura produzida nos séculos anteriores, que, de maneira geral, preferia retratar as vidas de personagens mais nobres como grandes figuras históricas, reis, príncipes, heróis e assim por diante.

Para o romance clássico, importava mostrar a vida das pessoas mais simples. Um exemplo emblemático nesse sentido é Julien Sorel, personagem criado por Stendhal em O Vermelho e o Negro de 1830. Esse jovem de origem modesta que tenta a todo custo ascender socialmente e se confronta com obstáculos que estão muito além de suas capacidades, se tornou um verdadeiro símbolo dessa nova literatura.

Outro caso interessante é o de Jean Valjean, protagonista do monumental Os Miseráveis de Victor Hugo, escrito em 1862. Um século antes seria muito difícil de imaginar que uma obra que tem como herói um criminoso, pudesse ser considerada grande literatura de maneira tão unânime. A forma romanesca só veio a conhecer outra transformação desse porte na virada do século XIX para o XX.

Se Balzac ainda alimentava tamanha admiração pela aristocracia, como nos alerta Engels, chegando mesmo a atuar como um legitimista desta classe – apesar de ter ressaltado a sua decadência com a ironia que lhe é peculiar –, a geração de romancistas que o sucedeu (e até alguns contemporâneos seus como o próprio Victor Hugo) já estava disposta a abandonar essas figuras e a dar preferência àquelas que sempre foram solenemente ignoradas dentro da tradição literária europeia.

7 Obras como Os Miseráveis (1862) de Victor Hugo e Um Conto de Duas Cidades (1859) de Charles Dickens são dois grandes exemplos disso que estamos dizendo.

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Reconfigurar o mundo com o máximo de realismo possível, tornou-se, portanto, uma marca indelével daquele movimento literário. E este realismo era geralmente empregado para dar voz às agruras de personagens que viviam nas classes médias e inferiores da pirâmide social europeia. Uma sociedade em profunda transformação deu origem a um outro tipo de abordagem literária, que em muitos aspectos correspondia às necessidades surgidas das novas relações sociais.

Contudo, para entendermos melhor a maneira como a literatura do século XIX se relacionava com a nascente sociedade burguesa, precisamos ir além do debate acerca do conteúdo, concentrando nossa atenção também na estrutura formal desses romances. Nesse sentido, o trabalho do filósofo húngaro György Lukács voltado para o estudo do fenômeno literário nos será essencial.

Lukács acreditava que é ao nível da forma que podemos encontrar de modo mais efetivo (ainda que menos evidente) o teor social das grandes obras de arte. No livro A Teoria do Romance, escrito nas primeiras décadas do século passado, ele mostra como as características formais do romance realista do século XIX apresentava ligações próximas com as particularidades históricas do contexto em que surgiu.

O romance clássico, na perspectiva defendida por Lukács em A Teoria do Romance, possui algumas propriedades estruturais que o diferencia de todos os outros tipos de expressão literária. Antes de tudo, ele seria o reflexo de um mundo fora do lugar, em outras palavras, de um mundo degradado, onde somente com muito esforço o escritor pode atingir alguma harmonia na forma.

Para chegar a essa ideia pouco usual, Lukács comparou a estrutura do romance do século XIX com a literatura épica da Grécia antiga. Do seu ponto de vista, as obras de Homero são exemplos perfeitos de como o homem grego daquela época estava em pleno acordo com o mundo social que habitava. Ao contrário do que ocorre no mundo moderno, em que os sujeitos se encontram em franca oposição com a sociedade8.

É importante destacar que, ao fazer isso, Lukács está procurando refletir a respeito da relação existente entre a consciência do artista e o mundo concreto no qual atua. Deste modo, a maneira como as formas sociais da antiguidade grega interagem com a subjetividade de seus

8 Entendemos que essa posição de Lukács quanto à Grécia antiga retém uma alta dose de romantismo, na medida em que aceita a harmonia do indivíduo com o seu mundo, a partir de uma visão reduzida da sociedade grega que não incluía mulheres e escravos.

Referências

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