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2.1 – O além como aquém

No documento Ideologia e Absurdo na Obra de Kafka (páginas 59-65)

Por volta de 1915, Kafka publicou em uma revista judaica de Praga o conto intitulado Diante da Lei. Anos mais tarde, aquela mesma estória iria aparecer no romance O Processo, mas como uma espécie de lenda que Josef K. (personagem principal da trama) escuta de um padre em certo momento do livro.

Diante da Lei, assim como a maioria dos contos de Kafka, consegue reunir em poucas páginas algumas das características que imortalizaram a sua literatura, revelando de modo mais resumido certos elementos que terminam se diluindo nas obras de maior fôlego. Este conto,

portanto, é especialmente interessante porque ele nos permite perceber como a questão da alienação costuma ser representada por Kafka.

Na lenda, um camponês procura a lei, mas diante da porta que dá acesso a ela está postado um guarda que o impede de passar, alegando que naquele momento a entrada era proibida. Depois de refletir um pouco, o camponês procura saber se mais tarde lhe será permitido entrar, e o guarda responde que há a possibilidade.

Como a porta está completamente aberta, o camponês olha para o seu interior, atitude que faz o sentinela rir, dizendo: “Se tanto te atrai entrar, procura fazê-lo não obstante a minha proibição” (KAFKA, 1979, p.229), mas logo depois adverte que, apesar de ser apenas um guarda inferior, ele é bastante poderoso e aqueles que o sucedem são ainda mais fortes. O pobre homem resolve esperar, sentando-se numa cadeira em frente à porta. Anos se passam e ele continua esperando a permissão do sentinela, recebendo sempre a mesma resposta. Desesperado, o camponês ainda tenta subornar o guarda com o pouco que possui. Mas apesar de aceitar os “presentes”, o oficial continua irredutível. Passemos às palavras de Kafka:

Nos primeiros anos maldiz a gritos sua funesta sorte, quando se torna velho, limita-se a grunhir entre os dentes. E como nos longos anos que passou estudando o sentinela chega a conhecer também as pulgas de seu abrigo de pele, tornado outra vez à infância, roga até a essas pulgas para que o auxiliem a quebrar a resistência do guarda. Por fim vê que a luz que seus olhos percebem é mais fraca e não consegue distinguir se realmente se fez noite ao redor dele ou se simplesmente são os olhos que o enganam. Mas agora, em meio às trevas, percebe um raio de luz inextinguível através da porta. Resta-lhe pouca vida. Antes de morrer concentram-se em sua mente todas as lembranças e pensamentos daquele tempo em uma pergunta que até esse momento não tinha formulado para o sentinela. Como seu corpo já rígido não se pode mover, faz um sinal ao guarda para que se aproxime. (...) “Que é o que ainda queres saber?” pergunta o sentinela. “És incontestável”. “Dize-me”, diz o homem, “se todos desejam entrar na lei, como se explica que em tantos anos ninguém, além de mim, tenha pretendido fazê-lo?” O guarda percebe que o homem está já às portas da morte, de modo que para alcançar o seu ouvido moribundo ruge sobre ele: “Ninguém senão tu podia entrar aqui pois esta entrada estava destinada apenas para ti. Agora eu me vou e a fecho” (KAFKA, 1979, p.229 e 230).

Durante muito tempo, a explicação mais popular que se procurou dar a esse estranho relato foi a de que se tratava de uma alegoria sobre a condição da humanidade perante o poder divino. O mesmo se aplicava ao romance O Processo, na medida em que a situação do camponês do conto é bastante similar às circunstâncias em que se vê envolvido Josef K. na obra de 1925.

Voltando ao ensaio Franz Kafka – A Propósito do Décimo Aniversário de sua Morte, Walter Benjamin alerta sobre a existência de dois caminhos que levam inevitavelmente à uma interpretação equivocada do trabalho de Franz Kafka. O primeiro é aquele que recorre a uma explicação puramente natural; são as leituras psicológicas ou biográficas, como vimos na introdução deste trabalho.

O outro caminho, leva por uma direção diferente e procura dar conta de um aspecto da obra de Kafka muito difícil de ser ignorado: o seu teor religioso. Para Benjamin, o enfoque de caráter sobrenatural (que enxerga o universo estético deste escritor como reflexo de uma condição religiosa) seria um equívoco recorrente de certas tradições críticas em relação à literatura de Kafka.

É inegável que uma forte atmosfera religiosa permeia a obra deste escritor. O tom alegórico que ele geralmente utiliza, é um dos elementos que ajudam a construir essa sensação no leitor. Além do fato dos seus personagens, muitas vezes, precisarem lidar com um poder misterioso que lhes oprime e está bem distante da sua compreensão.

Segundo essa interpretação, o camponês de Diante da Lei não conseguiria passar pela porta que dá acesso à lei porque trata-se da justiça divina, cujas ações são impenetráveis à consciência de qualquer ser humano. Ele passa o resto de sua vida esperando a permissão do vigia para poder entrar e inexplicavelmente ela nunca acontece. No final, o protagonista descobre que somente ele poderia passar por aquela porta e que com a sua morte ela se fechará para sempre.

Assim, Kafka estaria querendo representar a nossa impotência frente aos desígnios divinos. Algo que se aplicaria a boa parte de sua obra, especialmente aos romances O Processo e O Castelo. Estaria aí, a chave para entender a enorme passividade dos personagens de Kafka. A grandiosidade do poder divino nos obriga a uma submissão cega, e o conformismo seria, então, a única atitude aceitável; como seres humanos estaríamos condenados a esta condição. A atmosfera onírica do universo kafkiano, somada ao tom alegórico empregado pelo autor, realmente deixam uma sólida impressão de que os seus personagens estão lidando com enigmáticas forças sobrenaturais. Sigmund Freud, por exemplo, considerava Kafka uma incógnita. Será ele “um Homo religiosus ou alguém que com seus ‘veredictos’ toma nas mãos a vingança contra Deus e contra seu mundo desfigurado pelos homens?” (FREUD, 2006, p. 09 e 10), questionou-se o pensador austríaco depois de ter lido a novela O Veredicto de 1912.

Como dissemos na introdução, o maior representante desse viés interpretativo foi Max Brod, amigo íntimo e maior divulgador da obra do escritor tcheco25. Na visão de Brod, os

protagonistas de O Processo e de O Castelo eram atualizações do personagem bíblico Jó, pois ambos precisavam lidar com as arbitrariedades inescrutáveis do poder celeste. O obscuro tribunal que move o processo contra Josef K. e o distante castelo que frustra as expectativas do agrimensor K., eram encarados como imagens da providência divina, sob a qual só nos resta a resignação.

A nossa interpretação sobre o inegável teor religioso que perpassa o universo kafkiano, segue um caminho bem diferente do que o tomado pelo ponto de vista sobrenatural. Para entender esse aspecto da sua obra, achamos mais apropriado adotar a perspectiva apresentada por Günther Anders no livro Kafka: Pró e Contra.

Neste trabalho, Anders afirma que para Kafka o além não é um outro mundo, mas a própria realidade da qual o homem está alienado, em outras palavras, o que aparece como além é o próprio mundo social. A busca dos protagonistas das suas principais obras não é para alcançar o reino divino, mas pela inserção no mundo existente, ou seja, no aquém. Os personagens de Kafka parecem não pertencer ao mundo em que vivem, o acesso a ele lhes é negado como ao camponês do conto Diante da Lei.

Falamos “Além”. E a maior parte dos intérpretes que precipitadamente explicam Kafka no plano religioso vão-se dar por satisfeitos com a palavra. Mas só com a palavra. Pois o Além de que aqui se trata não é absolutamente algo extramundano, mas o próprio mundo, o próprio Aquém. Kafka (ou seu herói K.) está fora, “além do Aquém” e, com isso, o Aquém se torna Além. A identificação de “mundo” e “Além” não significa, tampouco, que, como no socialismo utópico, a condição futura do mundo tenha sido representada como céu. Nele, o Além não é o futuro nem o mundo de amanhã, mas o mundo existente. Quem tem de vir é sempre ele, o estranho – pois tem que chegar, sôbre-vir (ANDERS, 1969, p.26).

A literatura de Kafka descreve o esforço desesperado dos indivíduos para se integrarem em um mundo que lhes é estranho e distante. Os protagonistas kafkianos desejam (ou precisam) ser aceitos naquele mundo, mas são constantemente rechaçados. Nesse sentido, o camponês do

25 O intelectual judeu Max Brod foi o grande incentivador, divulgador e entusiasta do trabalho literário de Franz Kafka. Apesar de possuírem algumas divergências (como nas opiniões sobre o judaísmo, e a propósito da importância de Nietzsche para o pensamento moderno), estes dois personagens construíram uma amizade que entrou para a história da literatura mundial. Juntos viajaram por alguns países do continente, e travaram um intenso diálogo intelectual que transformaria profundamente a existência de ambos. Por influência de Brod, Kafka reavaliou a sua posição quanto à religião judaica. Max Brod entrou para a história por não ter cumprido o pedido de Kafka em seu leito de morte para que ele destruísse os seus escritos.

conto Diante da Lei é um exemplo perfeito das figuras dramáticas criadas pelo escritor de Praga: o de alguém que cobiça adentrar em uma realidade aparentemente impenetrável.

O que nos parece sobrenatural é, na verdade, a própria realidade social criada pela alienação moderna, que ganha ares divinos por estar cada vez mais distante da nossa compreensão e do nosso controle. Olhando por esta perspectiva, o teor religioso da obra de Kafka ganha uma dimensão mais condizente com o seu estilo literário. Não se trata do poder celestial propriamente dito, mas de uma representação exagerada da alienação capitalista que transforma o mundo numa realidade opaca e impessoal.

Os processos de alienação do mundo moderno, levam à ignorância generalizada a respeito de uma supra estrutura burocrática que escapa aos indivíduos normais, sendo controlada inconscientemente por uma camada de funcionários burocráticos. O que leva a uma consequente impotência dos sujeitos históricos frente aos rumos da sociedade em que vivem, criando a sensação de que a realidade seria algo por demais distante e indecifrável – à maneira daquilo que alguns admitem como poder divino.

No romance O Processo, por exemplo, ninguém parece saber explicar como a justiça que persegue Josef K. realmente funciona (nem mesmo os personagens que trabalham naquela instituição), mas todos aparentam estar estranhamente conformados com suas arbitrariedades. Esta distorção que Kafka realiza de um fator específico da nossa realidade, expõe a face alienante das sociedades modernas e sublinha com cores fortes aquilo que existe de absurdo nessa situação.

Segundo Anders, a perspectiva do ficcionista tcheco tende a ser alienante uma vez que Kafka teria experimentado variadas formas de exclusão ao longo da sua vida.Para esse autor, a visão de mundo daquele escritor estava, de certa maneira, contagiada pelo o que denominou de sua “múltipla condição de não-pertencer” (ANDERS, 1969, p.24), condição que era resultado da própria experiência histórica de Kafka como judeu na virada do século XIX para o século XX.

Como judeu, não pertencia totalmente ao mundo cristão. Como judeu indiferente – pois foi-o a princípio – não se integrava completamente com os judeus. Por falar alemão, não se amoldava inteiramente aos tchecos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava de todo aos alemães da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado. Mas também não pertencia ao escritório, pois sentia-se escritor. Escritor, porém, também não é, pois sacrifica as suas forças pela família (ANDERS, 1969, p.23 e 24).

Ou seja, essa condição de não pertencimento se estende para além da experiência judaica do escritor de Praga. A exclusão social imposta pelo antissemitismo, era intensificada por circunstâncias adicionais que faziam de Kafka um legítimo outsider. Quando conhecemos melhor a biografia desse autor, podemos perceber como esta experiência de exclusão contribuiu para a formação de uma visão de mundo que, em aspectos essenciais, era incompatível com os valores burgueses.

A luta de Kafka contra a tirania paterna (imortalizada na obra Carta ao Pai) é um grande símbolo desse antagonismo em relação à sociedade da época. A sua sensibilidade estava muito mais inclinada ao que Michael Löwy chama de anticapitalismo romântico,26 do que para

uma vida burguesa convencional. Algo que lhe trouxe inúmeros problemas domésticos, já que seu pai impunha uma carreira nos negócios familiares, enquanto ele sonhava em poder se dedicar integralmente à literatura.

Em uma carta escrita ao pai de Felice Bauer (sua futura noiva) Kafka confessa: “vivo em minha família mais deslocado do que um estranho” (ANDERS, 1969, p. 24). A personalidade autoritária de Hermann Kafka tornava o cotidiano do escritor um pesadelo de imposições e de ameaças. Assim, Kafka foi obrigado a cursar a faculdade de direito e a trabalhar em instituições burocráticas sobre as quais nutria uma profunda e bem documentada aversão. Sua experiência no Instituto de Seguro Operário contra Acidentes de Trabalho de Praga, foi decisiva para a consolidação de uma visão de mundo que se distinguia fundamentalmente daquela defendida pela sua família. Acompanhar nos mínimos detalhes o calvário burocrático pelo qual os trabalhadores acidentados tinham de passar para receber uma indenização justa, parece ter contribuído bastante para que ele se tornasse um crítico ferrenho da sua época.

Essas são informações importantes para entendermos as circunstâncias da formação de Kafka. Mesmo que não tomemos os dados biográficos como definitivos para a comprovação do argumento proposto, eles não devem ser simplesmente descartados como esclarecimentos de pouco relevância, mas podem ser utilizados para compor um quadro mais abrangente de

26 Segundo Michael Löwy no livro Franz Kafka Sonhador Insubmisso, o romantismo anticapitalista podia ser facilmente identificável na vida cultural e universitária das nações que integravam a Europa central. Porém o autor alerta que é um equívoco pretender desse grupo uma homogeneidade no que se refere às inclinações políticas dos indivíduos que o compõem. Na sua perspectiva, essa atitude frente ao mundo social não necessariamente define uma conduta coerente, podendo muito bem levar a posições reacionárias, conservadoras ou subversivas.

como o debate sobre o fenômeno da alienação social se relaciona com a própria experiência de vida do autor.

Assim, ganhamos elementos adicionais na compreensão do motivo pelo qual, na obra de Kafka, aquilo que parece ser a ação de uma força sobrenatural, é na verdade o próprio mundo social atuando de modo alienante. Por conta do exagero estilístico colocado em prática pelo autor, somos levados a desconfiar que o absurdo das situações descritas em suas obras tem uma origem extramundana, quando na verdade trata-se de um absurdo com o qual estamos tão familiarizados que ele já nem nos causa tanto espanto.

Esse é o elo que precisamos estabelecer entre o absurdo kafkiano e a questão da alienação do mundo moderno. Kafka chega ao absurdo, quando ele torna o mal-estar dos indivíduos que não encontram um lugar no mundo algo brutalmente literal. Por isso, a sua experiência como judeu ganha uma relevância significativa.

Mesmo que, em princípio, Kafka fosse aquilo que Günther Anders chamou de “judeu indiferente” (ou seja, um indivíduo que não compartilha dos ideais daquela religião e que, portanto, não se adequa completamente às tradições e regras morais do grupo), a questão judaica merece ainda uma atenção especial da nossa parte. Acreditamos que é na condição de judeu numa sociedade profundamente antissemita que Kafka experimenta de forma mais intensa a alienação do mundo moderno.

2.2 – Universalizando a matrioshka de Praga

Nascido em três de julho de 1883, numa Praga ainda sob o regime do império Austro- Húngaro (ou império dos Habsburgos da Boêmia, que se estendeu até o ano de 1918), Kafka foi criado em meio a uma ampla diversidade cultural, e uma efervescência política e comportamental de peculiar interesse sociológico.

Neste período a cidade de Praga estava dividida entre uma maioria tcheca, que falava o seu próprio idioma, e uma minoria alemã de bastante influencia. A língua oficial era o alemão, enquanto o idioma tcheco sobrevivia graças ao uso que a sua volumosa população continuava a fazer dele.

No documento Ideologia e Absurdo na Obra de Kafka (páginas 59-65)