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Escravidão e liberdade no Bolsão Sulmatrogrossense (1838-1888)

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Escravidão e liberdade no Bolsão Sulmatrogrossense (1838-1888).

CASTRO, Alexandre de.1

Resumo:

Esta comunicação tem como objetivo central recuperar, analisar e interpretar aspectos de natureza histórica da escravidão no município de Paranaíba, Estado de Mato Grosso do Sul, contida nos registros e notas do 1º Cartório de Registros deste município. A elaboração dessa formulação tornou-se possível em virtude do desenvolvimento de um projeto de pesquisa realizado entre os anos de 2012 a 2014, período no qual foram lidos e analisados quatorze livros de registros na própria sede cartorária pelo pesquisador membro do corpo docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba. A revisão da história regional do bolsão sulmatogrossense possui dupla pretensão: resgatar os fatos de um regime escravocrata entre os anos de 1838 a 1888 (delimitação temporal decorrente das anotações encontradas nos livros), que permanece em silêncio na historiografia, além da recuperação da dinâmica da vida social no início da fundação e desenvolvimento do município de Paranaíba e região. Tal revisão será permitida pelo acesso as informações através de fontes primárias discriminadas e coletadas nos registros e notas, que compõe resultado de pesquisa documental, aliada a uma pesquisa bibliográfica especializada na temática da escravidão. Da análise da documentação realizada até o momento é possível compreender parte da dinâmica do cotidiano das relações sociais estabelecidas entre proprietários e escravos/forros, das formas de manumissões e da luta por liberdade nesta região, que por sua vez guardam estreitas relações entre os fatos que aconteciam no Brasil durante boa parte do século XIX.

Palavras-chave: Escravidão. Cotidiano. Relações Sociais. Mato Grosso do Sul.

1

Alexandre de Castro é professor do Curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP/Câmpus de Marília SP. Possui graduação em Ciências Sociais-Bacharelado (1995) na mesma Universidade. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM (2002), Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM (2005).

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Introdução.

Localizado estrategicamente na região leste do Estado de Mato Grosso do Sul, o município de Paranaíba se defronta geograficamente ao norte e nordeste com o Estado de Goiás, a leste de seu território sua divisa é com Minas Gerais e, ao sul, percorrendo a rodovia federal 158, chegasse ao Estado de São Paulo.

Com uma população estimada em quarenta e um mil habitantes, de acordo com o senso de 2014, o município tem sua base econômica no sistema agropastoril, embora o panorama econômico venha mudando em virtude da instalação de indústrias de calçados, metalurgia, reciclagem e confecções desde os anos noventa.

Esta região de sertão foi descoberta por volta de 1828, pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes quando a percorre a serviço do governo da província “[...] e, pouco depois, começou a ser reconhecido pelos Garcia Leal, acompanhados por outras famílias.” (CAMPESTRINI, 2002, p. 33) provenientes das regiões de Minas Gerais e norte do Estado de São Paulo.

As famílias finalmente se instalaram “[...] no sertão no final de 1833 ou no início de 1834, não sem antes ter iniciado (no final de 1831) a povoação de Santana, como ponto de apoio a todos os que se iam fixando na região.” (CAMPESTRINI, 2002, p. 35).

A geografia e a descoberta de terras férteis possibilitaram a ocupação e a criação de gado em grandes extensões territoriais iniciadas por José Garcia Leal, o mais velho dos irmãos Garcia Leal que “[...] foi, enquanto viveu, o líder incontestado da região, para onde trouxe seus filhos, escravos e agregados [...]” (CAMPESTRINI, 2002, p. 35, grifo nosso). Sua iniciativa para a posse e o trabalho das terras obedeceu a duas medidas principais.

[...] assentou seus 13 filhos nas sesmarias que possuía disponibilizando cerca de cem rezes, um casal de escravizados e dois cavalos para cada um [...] Para o cultivo dos campos, José Garcia, através de seus filhos José Garcia e Cassiano Garcia, providenciou a compra de uma partida de africanos novos. Foram comprados no Rio de Janeiro cerca de vinte africanos, dos quais uma parte seria empregada em suas propriedades e a outra entregue aos fazendeiros que também havia realizado encomenda. (FLEURY, 1925 apud CAMARGO, 2010, p. 76, grifo nosso).

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Percebe-se que o povoamento e o trabalho desta região leste de Mato Grosso do Sul foi realizado, não só pelas famílias dos sertanistas, mas ainda com ajuda de mão de obra escrava que esteve presente desde as primeiras entradas e desbravamentos.

Apesar disso há um silêncio a respeito da participação de escravos na constituição do município. Toda sua história é contada (e cantada) e cotidianamente reforçada pela ótica dos proprietários que nos levam a acreditar que os únicos e verdadeiros responsáveis pelo desenvolvimento do município e da região foram famílias tradicionais que para ali migraram no início do século XIX.

Emblemático é o Hino da cidade a enaltecer seus “desbravadores”; Os Garcias – braço forte

Nossos índios conquistaram Enfrentando a própria morte Nossas matas desbravaram. (CAMPESTRINI, 2002, p. 63).

No entanto, uma pesquisa de cunho documental possibilitou uma revisão da história regional de Paranaíba.

Pelo exposto, a hipótese motivadora desta proposta que hora se realiza como projeto de doutorado é a de que a história do município guarda verdadeiro silêncio a respeito da escravidão e de sua importância para a região.

Para tanto foi realizada por nós uma catalogação de informações onde estão contabilizados e catalogados um total de quatorze livros numerados, contendo informações a respeito de Notas, Registros, Procurações e Escrituras do período compreendido entre os anos de 1838 a 1899, totalizando 1168 páginas de documentos e sessenta e um anos de história do município. Ressalvada a ausência do Livro de número 06 (seis) criando uma lacuna temporal, pois se trata de um livro onde foram realizados os registros de 02 de maio de 1873 a 28 de setembro de 1877.

Quadro teórico-metodológico.

A temática da escravidão no Brasil parece-nos “[...] ser uma constante universal em qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo do contato social [...]” (ELIAS;

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SCOTSON, 2000, p. 20). Para Elias e Scotson (2000, p. 23) fatos como esse ocorrem quando [...] um grupo consegue lançar um estigma sobre outro – a sociodinâmica da estigmatização [...]”

Em termos de Brasil, parece-nos que a reiterada afirmação da inferioridade do negro e sua invisibilidade como pessoa encontram explicações no discurso da vida cotidiana da sociedade brasileira, cotidiano esse que esboçará sinais de mudanças a partir de 1808, com a chegada da família Real ao Brasil. Até então, tínhamos um ambiente que por muito tempo permaneceu com os traços de sua fundação, permeado pelas condições “sociodinâmicas da estigmatização” típicas: uma nação de analfabetos, predominantemente rural, exclusivamente católica e modelo econômico baseado na monocultura e na exploração na mão de obra escrava.

O panorama político começa a mudar, e com ele a vida cotidiana, de forma mais intensa com a Revolução do Porto, em outubro de 1820, obrigando o retorno de D. João a Portugal. Neste período da história do Brasil se dá uma atividade política mais intensa: a Proclamação da Independência, a convocação de uma Assembleia Constituinte, a criação do sistema representativo, o embate entre os partidos políticos, a inovação do Poder Moderador na divisão de funções do poder, marcando o início da ocupação dos espaços políticos pela elite brasileira (PAIM, 1998).

De acordo com Heller (2000), a sociedade no qual estão mergulhados os indivíduos é marcada por atividades de natureza repetitiva, motivadas pela busca de resultados passageiros e nesta atividade com vistas à realização de nossas mais diversas tarefas, empreendemos comportamento que fomos levados a acreditar como corretos, sem contestações ou críticas. Para Heller (2000, p. 44), a vida cotidiana seria inviável se “[...] nos empenhássemos em fazer com que nossa atividade dependesse de conceitos fundados cientificamente.”

Também compartilhamos dessa crença de que as atividades do cotidiano não obedecem a critérios científicos, sendo dirigidas por ações baseadas em generalizações, “ultrageneralizações”, ou seja, generalizações em excesso, juntando ”[...] coisas, fatos, pessoas [...] numa só idéia ou numa única opinião coisas, pessoas e fato julgados semelhantes, sem indagar se a semelhança não seria aparente [...]” (CHAUÍ, 1996/1997).

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Segundo Heller (2000, p. 44) os homens extraem destas generalizações os conceitos com os quais se orientam no complexo social; extraem “[...] uma regra provisória de comportamento: provisória porque se antecipa à atividade possível [...]”

A completa ausência do papel da escravidão na historiografia do município paranaibense e sua invisibilidade como atores sociais no desenvolvimento da região obedecem a mesma lógica de exclusão discutida por Elias; Scotson (2000). O silêncio tem patrocinado esta exclusão de forma tão eficaz ao ponto de próprios alunos da Universidade (muitos são moradores do município) desconhecer por completo a vigência do regime escravocrata na região durante os anos de 1838 a 1888.

Contradizendo este panorama excludente, a presente comunicação, resultado de um projeto intitulado “A escravidão em documentos: análise dos registros públicos da escravidão no Município de Paranaíba/MS”, iniciado em outubro de 2012 junto ao Serviço Notarial e Registral do Primeiro Ofício do Município de Paranaíba, Estado de Mato Grosso do Sul encerrado em 2014, traz dados significativos.

Do trabalho realizado foram analisados conteúdos de 11 (onze) livros de Registro sob a guarda e responsabilidade do Cartório, totalizando 887 (oitocentos e oitenta e sete) páginas de documentos a respeito de Notas, Registros, Procurações e Escrituras do período compreendido entre 22 de agosto de 1838 a 24 de março de 1888, abordando quarenta e nove anos e três meses de história do município. Ressalvado a ausência do Livro de número 06 (seis) criando uma lacuna temporal, pois se trata de um livro onde foram realizados os registros de 02 de maio de 1873 a 28 de setembro de 1877.

No que diz respeito ao objetivo geral desta comunicação, a averiguação de registros a respeito da escravidão na comarca, foram localizadas 09 Doações de escravos, 01 Distrato de venda de escravo, 01 Alvará de liberdade, 153 Compras e vendas de escravos, 06 Revogações de carta de liberdade, 01 Recibo de compra de liberdade, 02 Contratos de trabalho para pagamento de liberdade, 89 Cartas de liberdade, 01 Título de liberdade, 04 Compras de liberdade, 01 Carta de manutenção de liberdade, 01 Avaliação de escravo, 04 Permutas de escravos, 01 Divisão de escravos (herança), 02

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Hipotecas de escravos, 10 Compras e vendas de parte de escravos, 01 Carta de liberdade por emancipação.

Da análise preliminar do material levantado constituiu-se, ainda, um ponto de interesse como objeto de estudo que é agora apresentado como proposta de projeto de doutorado: a escravidão e as formas de manumissão no Bolsão sulmatogrossense, a denotar relações sociais pautadas tanto pela legalidade como pela violência entre proprietários e escravos no desenvolvimento de uma Capitania até então conhecida pela ótica de “bandidos” (CORRÊA, 2006), ou sua vocação para o desenvolvimento pastoril (CAMARGO, 2010).

Atestam as afirmações acima o fato de o pesquisador ter encontrado a outorga de Cartas de Liberdade registradas em 02 de janeiro de 1841, no Livro de número 01, no Cartório do município com o seguinte teor:

Anna Angelica de Freitas e algumas escravas suas na forma que abaixo se declara [...] por Ella Oltorgante me foi dicto em presença de seu marido, e das testemunhas abaixo nomeados e assignados e de mim igualmente reconhecidos, que por este Instrumento era bem assim e muito de sua livre vontade declarar, e como de facto declarado tem libertar as suas escravas dos nomes seguintes, a saber Joanna Crioula depois de servir mais cinco annos no captiveiro=Maria Benguela depois de servir vinte annos, e Theresa Affricana depois de servir trinta e cinco annos, as quais todas gosarão de plena liberdade, logo que se concluão os mencionados prasos que lhe são relativos.

O ato de liberalidade na manumissão das escravas contém em si relações sociais que ainda estão por serem interpretadas e esclarecidas. Diferentemente de outro registro constante do mesmo Livro de número 01, página 45, onde consta revogação de liberdade prometida anteriormente ao escravo que, ao atentar contra a vida de seu proprietário, teve seu direito à liberdade cancelado em 27 de julho de 1847:

A liberdade fora prometida em treze de junho de (fl. 38-39) e agora fora revogada, pelo libertante, de Antonio Procopio pelo fato de ele ter atentado contra a vida do libertante Joaquim Garcia Leal. Foram testemunhas: Anastacio Alves Pereira e Francisco Anselmo Grillo. Escrivão: José Rodrigues Anacleto.

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A violência contra senhores proprietários era um recurso utilizado pelos escravos nas mais diversas regiões brasileiras onde a relação social foi mediada pelo regime escravista, apesar disto os documentos analisados apresentam relações sociais diferenciadas das grandes propriedades produtoras de cana de açúcar com relação aos castigos e o modo de relacionamento entre proprietários e escravos no início do povoamento da região sudeste de Mato Grosso do Sul.

Diante da incipiente análise das fontes documentais até aqui levantadas pelo pesquisador já é possível perceber uma contribuição de fatos ainda ausentes na historiografia do Bolsão sulmatogrossense. O resgate desta história, quebrando o silêncio e rompendo com tal reafirmação deste cotidiano se traduz na “[...] tentativa de elaborar respostas e soluções às [...] dúvidas e problemas e que levam à compreensão [...] do mundo em que se vive.” (KÖCHE, 2009, p. 43).

Discutindo mobilidade social num contexto escravagista.

A forma de organização familiar exigida pela atividade agropastoril na região leste de Mato Grosso do Sul implementada desde o início do povoamento da região, possibilitou, dentro de sua dinâmica organizacional e desenvolvimento econômico, certa mobilidade social.

Antes mesmo de seguirmos com nossa argumentação se faz necessário esclarecer o que entendemos por “mobilidade social”. Partindo das argumentações de Corrêa (1994) uma das características encontradas na sociedade patriarcal dizia respeito ao poder discricionário depositado nas mãos do homem (sexo masculino), particularmente senhores de engenho. Dispunham de poder político, econômico, social e familiar controlando e determinando a vida de seus filhos, esposa e todos aqueles que se encontravam sob sua esfera de ação. Com relação aos cativos o poder exercido se traduzia em castigos físicos, mantidos sob péssimas condições de sobrevivência e total ausência de liberdade. Cabe ressaltar que a desestruturação deste modelo social iniciou-se com a crise da economia açucareira, a partir da concorrência holandesa no comércio de açúcar mundial (final do século XVII).

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Portanto, tal poder discricionário exercido nos engenhos de açúcar não encontra paralelo na criação extensiva de gado praticada na região Sulmatogrossense em questão. Não esqueçamos de que nossa análise se dá num contexto do século XIX, não numa situação de economia açucareira como foram os séculos XVI e XVII. Temos a vantagem da história com relação à criação e atuação da Sociedade Abolicionista, dos Caifazes e da participação, ainda tímida, de políticas estatais pró-liberdade com relação ao cativeiro. Com isso pretendemos reforçar nossa argumentação, com referencial em Corrêa (1994), de que a família se transforma no contexto de uma dada situação no qual está submergida.

E a “mobilidade social”, ou seja, a capacidade do cativo em deixar sua condição apresentava alternativas que não rebeliões, revoltas, fugas ou crimes como observamos do conteúdo de 56 Cartas de Liberdade contidas nos documentos cartorários.

Motivação da manumissão Quantidade de

Cartas de Liberdade

%

Livre vontade do outorgante. 30 53,8%

Recompensa aos serviços prestados pelo cativo. 08 14,2% Em remuneração aos serviços prestados pelo

cativo.

02 3,5%

Ordem judicial. 04 7,1%

Cativo pagou parte de sua liberdade. 02 3,5%

Cativo “comprou” sua liberdade pagando em animais e criação.

01 1,8%

Em atenção aos serviços da cativa e por ser parente do outorgante.

01 1,8%

Pelos bons serviços prestados com fidelidade aos pais e sogros do outorgante.

01 1,8%

Estima. 01 1,8%

Pelo amor que a outorgante declara, bons serviços e fiel companhia da cativa.

01 1,8%

Pelos bons serviços prestados e amizade. 01 1,8%

Motivação financeira. 02 3,5%

Última vontade da outorgante. 01 1,8%

Por humanidade, gratidão e bons serviços prestados pela mãe da escravinha.

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TOTAL 56 100%

Fonte: elaboração própria.

Ilustrativo é a Carta de Liberdade registrada no Livro 01, em 14 de junho de 1848 na qual Joaquim Garcia Lial concedia a liberdade à sua cativa Marea Rebola modificando completamente seu status de cativa para assalariada, levando em consideração:

[...] os bons serviços que a mesma lhe há prestado, he mais de sua livre vontade conseder-lhe desde já a liberdade dita em toda sua extimação, com vincimento do salário de quarenta e cinco mil reis anuaes, e que amesma liberta Maria Rebola perseberá athe omomento da morte delle libertante, ficando purem obrigada, com o ônus de lhe servir como dantes em tudo oquanto lhe for mandado. (LIVRO 01, p. 47, grifos nosso).

Outro registro nos revela a flexibilidade do poder discricionário exercido pelo senhor sobre seus cativos. Trata-se da compra, por parte da mãe, de sua filha ainda em situação de cativeiro encontrada em poder do casal João Sipriano de Menezes e da Senhora Maria Justina da Silva.

Digo eu João Sipriano Menezes, e minha mulher Maria Justina da Silva que somos possuidor de huma escrava de nome Magda [...] He bem assem a mai da dita escrava Magda, Beta liberta, quer libertar a sua filha com meo concentimento de hoje em diante liberta esta e pela liberdade ella Beta mai da dita Magda me he devedora da quantia de novecentos e cincoenta mil reis. (LIVRO 3, p. 58, grifo nosso).

Trata-se de compra de alforria da filha efetuada em 26 de julho de 1866, cinco anos antes da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, bem como seis anos antes do Decreto nº 5.135 de 13 de novembro de 1872, que regulamentava, dentre outros assuntos, a emancipação dos cativos através do fundo de emancipação qual era financiado pelas taxas pagas pelos próprios escravos, dos impostos cobrados sobre a transmissão de propriedade dos escravos, loterias, multas e das cotas destinadas em orçamento ao mesmo fim pelos Estados e Municípios.

Um último exemplo, do que temos aqui denominado “mobilidade social”, trata de concessão de manumissão que seu possuidor faz da parte da cativa que lhe coube no inventário de sua sogra. Emblemático é uma das razões alegadas para a liberdade:

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Digo eu abaixo assignado Serafim Ribeiro Lima, que tendo em partilha que se procedeu no espolio de minha finada sogra Dona anna Luiza, coube-me em dita partilha duzentos mil reis na escrava de nome Josepha [...] cujos duzentos que n’ella tinha faço deles doação a mesma escrava Josepha a bem de sua liberdade, e isto faço de minha espontânea vontade sem coacção alguma pela estima que merece e ser minha afilhada de Baptismo [...] (LIVRO 08, p. 21 v, grifo nosso). Bastante revelador encontrarmos a prática do “parentesco secundário” surgida no contexto analisado. Klein; Luna (2010), a partir de resultados de pesquisas sobre temáticas envolvendo família, parentesco e comunidade realizados em Minas Gerais (1838-1887), Rio de Janeiro (século XVIII), Paraná (século XIX) e na Zona Açucareira baiana (1780-1789) destacada a prática do compadrio como uma experiência fundamental dos afro-brasileiros no “contexto impiedoso” da escravidão. “O compadrio foi um importante sistema de parentesco ritual usado por todas as classes, inclusive pelos cativos.” (KLEIN; LUNA, 2010, p. 254).

O padrinho, ou a madrinha, ao assumirem tais papéis sociais não só demonstravam certa cordialidade ao apadrinhado e sua família, mas também “[...] assumiam a obrigação de [ajudá-lo] em todas as ocasiões especiais e incorporá-lo à sua família em caso de falta dos familiares da criança.” (KLEIN; LUNA, 2010, p. 254, grifo nosso).

O compadrio denota uma relação intricada entre família, religião, comunidade, economia que atravessou os tempos e ainda hoje sobrevive como prática social simbólica de pessoas que alimentam entre si fortes laços de intimidade e familiaridade. Um sistema:

[...] de apoio eficaz que se tornou uma parte essencial da cultura afro-brasileira, tanto quanto o era da sociedade livre. Esse sistema de parentesco ritual intensificou os crescentes laços de amizade e comunidade entre os escravos e, dado o apreço da elite governante pelo compadrio, o sistema inclusive conferiu, entre os brancos, a legitimidade aos esforços dos negros para construir sua comunidade. (KLEIN; LUNA, 2010, p. 256).

Compadrio compra de alforria e a possibilidade de deixar o cativeiro e perceber um “salário” foram algumas revelações contidas nos registros públicos a demonstrar meios pelos quais a população cativa do leste de Mato

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Grosso do Sul evitou o confronto direto com seus senhores e obtiveram certa mobilidade no interior de uma comunidade escravocrata.

Não queremos com isto defender a ideia de que a escravidão praticada no leste da Província de Mato Grosso do Sul tenha sido menos cruel. Escravidão é escravidão. O que os documentos revelam são brechas percebidas pelos cativos onde puderam lutar e buscar sua liberdade utilizando-se de estratégias que evitavam o confronto direto com utilizando-seus proprietários.

Referências bibliográficas.

BRASIL, Livros de Notas, Registros, Procurações e Escrituras. Cartório do 1º Ofício da Comarca de Paranaíba/MS. Livro 01, 10 de abril de 1838 a 16 de junho de 1859. 75 p. f/v.

BRASIL, Livros de Notas, Registros, Procurações e Escrituras. Cartório do 1º Ofício da Comarca de Paranaíba/MS. Livro 03, 08 de março de 1862 a 12 de janeiro de 1869. 81 p. f/v.

BRASIL, Livros de Notas, Registros, Procurações e Escrituras. Cartório do 1º Ofício da Comarca de Paranaíba/MS. Livro 08, 23 de janeiro de 1880 a 24 de maio de 1881. 34 p. f/v.

BRASIL. Lei n° 2.040 de 28 de setembro de 1871 com os decretos n. 4.835 de 01 de dezembro de 1871 e n. 5.135 de 13 de novembro de 1872. Annotações até o fim de 1874 com avisos do governo. Jurisprudência dos Tribunaes e alguns esclarecimentos pelo magistrado V. A. de P. P. da Província do Ceará. Rio de Janeiro: Instituto Typographico do Direito, 1875.

BRASIL. Decreto nº 5.135 de 13 de novembro de 1872. Annotações até o fim de 1874 com avisos do governo. Jurisprudência dos Tribunaes e alguns esclarecimentos pelo magistrado V. A. de P. P. da Província do Ceará. Rio de Janeiro: Instituto Typographico do Direito, 1875.

CAMARGO, Isabel Camilo de. O sertão de Santana de Paranaíba: um perfil da sociedade pastoril-escravista no sul do antigo Mato Grosso (1830-1888). 2010. 232 f. Dissertação (Mestrado em História)-Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD, Dourados, Mato Grosso do Sul, 2010.

CAMPESTRINI, Hildebrando. Santana de Paranaíba: de 1700 a 2002. Campo Grande/MS: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2002. CHAUÍ, Marilena. Senso comum e transparência. In: LERNER, Julio. O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997.

CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira. In: ARANTES, Antonio Augusto [et al.]. Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1994. p. 15-42.

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CORRÊA, Valmir Batista. Coronéis e bandidos em Mato Grosso: 1889-1943. 2 ed. Campo Grande/MS: Editora UFMS, 2006.

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Tradução Vera Ribeiro; tradução do posfácio à edição alemã Pedro Süssekind; apresentação e revisão técnica Federico Niburg. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

KLEIN, Herbert S; LUNA, Francisco Vidal. Escravismo no Brasil. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica. Teoria da ciência e iniciação à pesquisa. 26 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

PAIM, Antonio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998.

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