Nuno Jdice
Contar uma histria relaciona-se com o modo de estruturar o
mundo em
funo
deaces
individuais. Podemosinterrogar
quer
esse modo queressas
aces:
o modocorresponde
utilizao
de umalinguagem
determinada por cnones estilsticos (realismo vs. simbo lismo,linguagem
mais metafrica ou maisliteral,
etc); asaces
soseleccionadas de entre um
conjunto
de factos da vida de acordo com umparadigma
de comportamento, de mentalidade, depersonalida
de,
etc, que se quer transmitir. Vemos ento que o contarimplica
umtrabalho de
organizao
da memria individual, feito apartir
de umaacumulao
de dados de umaexperincia
no necessariamente vivida,visto que a memria feita tambm
daquilo
que nos contado, do que sel,
do que seimagina,
etc. Essaorganizao,
por sua vez, tem portrs uma ordem quer
subjectiva
quer doimaginrio
que funcionam como as estruturasprofundas
do texto.O
primeiro
momento quedistingue
aaco
narrativa do fluir dosacontecimentos o seu carcter de fechamento. O que se conta
impli
ca umalgica
sequencial,
determinada por dois momentos a quo e adquem do contar: o
princpio
e o fim da histria. Isto tem como consequncia
que o acto de contarimplica
um domnio do temponarrativo,
que
corresponde
a umaenunciao
verbal dopassado
-determinado
em
funo
de umpresente
que funciona como o limite ad quem dahistria,
com aexcepo
da narrativa visionria que, no entanto, trabalha o futuro como se tivesse a mesma caracterstica do
passado,
sque tendo no
presente
o instante a quo.Revista da Faculdade de Cincias SociaiseHumanas, n." 10, Lisboa, Edies Colibri, 1997,
Este carcter fechado tem
consequncias
narelao
do narrador com o narratrio: o mundo ficcional um outro mundo(do
narrador,passado)
que, no entanto, se relaciona com este mundo(do narratrio,
presente)
segundo
umprincpio
desemelhana
(realismo)
ou de diferena
(simbolismo),
permitindo
um maior ou menor reconhecimentoda realidade narrada. A
aproximao
para com esse mundo ficcionalfaz-se,
ento, apartir
do pressuposto de que ele constitui uma interpretao
doreal,
obrigando
o leitor a umduplo
trabalho dedescodifi
cao,
ou abertura doscdigos
queorganizam
e sinalizam essemundo,
e dere-interpretao,
ou estabelecimento dos sistemas depensamento que estruturam o olhar do
sujeito
sobre o mundo.Ao
depararmos
com um texto,partimos
de uma realidadeobjec
tiva: esse texto apresenta um mundo que est feito de acordo com certas regras. No
podemos
remontar ao instante dacriao;
massabemos que essas regras esto definidas a
partir
de umarelao
passada entre um
sujeito-que-j-no-est
(o
Autor)
e um tempo quedeixou marcas ou traos que
podemos
recuperar(o
tempo histricodesse Autor, o
contexto).
Do ponto de vistaterico,
possvel
reconstituir muito do que ter sido aexperincia
do autor, efectiva noinstante de
criao
do texto; naprtica,
h uma parte dessaexperin
cia-o lado
individual,
no histrico ou colectivo-que nos
inacessvel,
a no ser atravs dos elementos que oprprio
textofornece e que, por um processo
dedutivo,
nospode
levar a essa experincia
subjectiva,
fundadora.De
facto,
o textopoder
aparecer como umaactualizao
dessaexperincia,
umaperformance,
cujos
gestos so ditadospela
presena inconsciente de um outro a quem eles se
destinam,
num tempo indeterminado,
que o do narratrio. Assim, cada um desses gestos narrativos representa uma
explicao
tanto quantopossvel completa
efechada das
motivaes
que o fundam. Estamos num processo decomunicao,
em que o sentido aberto atravs de canaisdialgicos,
por onde asignificncia
circula at se esgotar numsignificado, aps
oque passamos a um outro patamar
narrativo,
e assim por diante.Sabemos que
aquilo
que faz aqualidade
de um texto literrio essacapacidade
comunicante,
queindependente
do maior ou menor hermetismo da
expresso,
o quepermite
a esse texto sobreviver ao seu contexto e ao tempo histrico do Autor.E certo, por outro
lado,
que nessacomunicao
existemlapsos,
no sentido quer de
elipses
quer de coisas ditaspor outras. Em ambos
que no foi
dito,
ou restituir o sentido que no est noque est dito
-casos em que o texto
interpretado
outro texto-mas o de
proceder
soperaes
quepermitem
encontrar algica subjacente
a esseslapsos:
por que que houve uma censura de determinados aspectos do real; por que que determinados
significados
se deslocam para umoutro espao de
significao?
Aqui,
vamos encontrar ainterveno
do contexto-ou das cate
gorias
ticas eestticas,
isto,
a envolvente cultural do Autor-na
prpria produo
do texto. Defacto,
aquilo
que se diz no nunca oreal na sua totalidade mas os aspectos que o
sujeito pode
captar dessereal;
e que ele capta por umaptica
determinada por condicionantesquer
pessoais
quer sociais. A tendncia inicial deexpanso,
levandoo mundo
representado
ao mximo do que sepode
dizer dessemundo;
mas essa tendncia vai imediatamente reduzir-se dado que afico
implicando
aces,
implica
actores; e aopo
por determinados acto res -os heris ou actantes - vaicolocar a
aco
na esfera dessesheris,
pondo
de lado os outros, remetidos parafunes
quer decenrio
(personagens
que servem para caracterizar uma envolvncia social doheri)
quer desequncia
narrativa(adjuvantes
ou oponentesdos actos do
heri).
A
representao
narrativa,
portanto,parcial,
selectiva,
subjecti
va; e o
prprio
texto, no seutodo,
que encontra umasignificao
universal,
de acordo com a maior ou menortipicidade
("humanidade"
de acordo com
tipos
de comportamento e depensamento)
que o textovai reflectir e
exprimir.
H,
aqui,
um elemento a sublinhar: que oprprio
texto que constitui, sempre, umainterpretao
do real, tentaesconder esse
aspecto
atravs de um processo que o da busca de umaidentificao
ideal com o leitor. Este, numprimeiro
momento,atrado ao universo do texto, vai
projectar-se
nos seus heris ou acontecimentos;
e s numsegundo
momento, ouleitura,
que se opera umadistanciao
quepermite
estabelecer adiferena
entre osujeito--no-mundo e o
sujeito-no-texto.
Isto sucede porque, sem essaprojec
o
do leitor no texto, que constitui um fenmeno desim-patia,
noestaramos dentro do processo da
comunicao
literria: o texto seriaum
simples
bloco deinformaes,
com asquais
se estaria ou no deacordo,
e que interessariam apenas o leitor envolvido no assunto dainformao
(um
medievista interessar-se-iapelo
"Nome da rosa" masno por "Manhattan
Transfer",
porexemplo, quando
o que certo que um romance interessa o leitorindependentemente,
ou no s porO que, em
primeiro lugar,
interessa numa histria oprprio
fluir
temporal.
Umainformao
no estdependente
dele: numaEnciclopdia,
a ordem dasinformaes
resulta de um enunciado alfabtico. No conto, as
informaes
esto subordinadas a uma linha cronolgica
linear,
sabendo-se que elas sopertinentes
emfuno
decada momento, e do
conjunto
de factores intervenientes nesse momento determinado.Assim,
possvel
encontrar umalgica
para aseleco
dasinformaes:
elas so as que so acessveis aos heris nessepreciso
momento; e o leitor vai sendo informado medida que aaco
progride;
o que no quer dizer que no possa haver inverses nocircuito,
como o caso daprofecia
que informa que umpersonagem vai morrer. Ento, o desfasamento entre o estado do
personagem
(que ignora
ou no aceita ainformao)
e doleitor,
queconhece o destino do personagem, contribui para aumentar o
pathos
narrativo.
H,
pelo
contrrio,
circunstncias em que se d o inverso: caso daenunciao
das razes que conduzem denncia de umcriminoso
pelo
detective-que, no incio do seu
discurso,
j
sabequem ele
-enquanto que o leitor se encontra identificado com a
situao
dospotenciais suspeitos,
o que uma outra forma depathos.
O tempo narrativopode,
ento, ter uma dimensoobjectiva,
emque coincide com o tempo
cronolgico;
e uma dimensosubjectiva,
em que
acompanha
aexperincia
do tempo(mais
longo
ou maisbreve)
de acordo com a vivncia de um aconteciemto determinado. Mas esse tempoest,
tambm,dependente
de uma rede derelaes
entre os acontecimentos narrados que vaiimplicar
o leitor no seuconhecimento
-ou na busca desse conhecimento. Trata-se de
relaes
de ordem causal: um facto provoca outro, e assim por diante, at aodesfecho;
de ordem temtica: passamos de um acontecimento a outropelas relaes
desemelhana
entreeles;
de ordem metafrica, ousimblica: samos de um
plano
da realidade para um espao que tem essetipo
derelao,
metafrica ousimblica,
com pormenores do realconhecido.
O
problema
do envolvimento doleitor,
ento, resulta desta simples
questo:
o que vem aseguir?
Isto,
antes dofim,
nenhumasequncia
conclusiva. O texto transmite umconhecimento;
mas esseconhecimento no dado na sua totalidade antes do
fim,
sendo cadasequncia
apenas umainformao
parcial
desse conhecimento. Essasinformaes
disseminam-se por aspectos quer daaco
quer da caracterizao
daaco,
e da suainsero
num espao, de modo a que oleitor se
aperceba
de que cada novoa uma
mais-informao
sobre esse conhecimento final,daqui
resul tando a necessidade de avanar nahistria,
que sinnimo deavanar
no
conhecimento,
que se caracteriza na pergunta - "edepois?"
que sepode
completar
em "edepois,
oqu?"
O texto, no seu todo, uma macro-unidade onde se reconhecem
micro-unidades,
que vo desde o nvel maior dassequncias
ao mni mo dosmotivos,
que seligam
emfuno
de uma coerncia totalseguindo
processos tais como aconjuno
(soma
linear desegmentos
narrativos),
o encaixe(introduo
de uma narrativa noutra atravs deexpedientes
como uma carta, um discurso de umpersonagem,etc),
aalternncia
(construo
emparalelo
de duasnarrativas)1.
Apartir
deuma estrutura
simples,
possvel
ircomplicando
o esquema narrativoat
situaes
em que essa estruturasimples
quase se no reconhece:passagem da 3a para a Ia pesoa;
adopo
de pontos de vista diferentes;alterao
da linearidadetemporal
atravs deanalepses
ouprolepses,
ou blocosa-crnicos;
etc.No entanto, mesmo as rupturas mais radicais no deixam sempre de tomar como referncia um modelo canni
co da narrativa desde o "era uma vez" do conto
popular
at "La marquise
sortitcinq
heures",
que PaulValry
afirmou que nunca escreveria,
e que so os limites referenciais do leitor no instante final dadescodificao
em termos deintriga
(plot)
-o que
pe,
em certasreas do romance
(novo
romancefrancs,
novela surrealista, ou aindaa linha romanesca que vem de Proust e de
Joyce)
aquesto
de saber sepossvel
conceber ognero
romanesco, ou uma narrativa,despo
jada
deintriga,
dehistria,
sendo essesexemplos
os casos-limite atonde
pode
levar a ruptura com ocnone,
esvaziando a narrativa daquilo
que constitui a suaprpria
substncia: arepresentao
do real.Bibliografia
BAKHTIN,
M\khai\,Esthtique
et thorie du roman,Pims, Gallimard, 1978. BARTHES, Roland,Analyse
structurale des rcits, in"Potique
du rccit",Col. Points, Paris Seuil
, Uaventure
smiologique,
Col, Points, Paris, Seuil.GENETTE, Grard, Discours du rcit in
"Figures
III", Col. Points, Seuil, Paris.,
Palimpsestes,
Paris, Seuil, 1982.1 Cf.
Gerald Prinee, "On Narrative Studies and Narrativc Genres", in "Poetics Today", 11:271-282.
, Fiction et diction, Paris, Seuil, 1991.
PAVEL, Thomas, Univers de la
fiction,
Paris, Seuil, 1988. Lemirage
linguistique,
Paris, Ed. de Minuit, 1988.RICOEUR, Paul,
Temps
et rcit, 2, Col. Points, Paris, Seuil.PRINCE, Gerald, Introduction itude du narrataire,
Potiquc
14: 178-96.BRIOSI, Sandro, La