Teresa
Rodrigues
dos SantosVeiga
Falar de vida
quotidiana
sempre difcil, por se tratar de umtema multifacetado e imbuido de certa
subjectividade,
em termos defontes e
metodologias
possveis.
Estas dificuldades veem-se acrescidas no caso de
Lisboa,
por serimpossvel
reconhecer e abordar as inmeras facetas e
perspectivas
de que se revestiu nopassado
a vivnciadiria na
capital
do Reino e doImprio.
Assim,
aspginas
que se seguempertendem
apenas mostrar umaforma diferente de ver
alguns
aspectos
dessequotidiano.
Ou melhor, ver Lisboa por dentro e reconhecerquais
as vantagens e dificuldadescom que se defrontavam os seus residentes de outrora. Poderamos
falar de uma histria ao contrrio,
j
quedeseja
verificar o que no mudou na cidade equais
osproblemas
vividospela
populao
a residente no seu dia a dia. Muitos
deles,
conforme teremosoportunidade
de constatar, eram
iguais
aos dehoje,
emboraj
hquinhentos
anosfossem criticados e at
polmicos.
Veremos que
j
no sculo XVI as rendas eram caras e era difcilarranjar
casa, que o mau estado e asujidade
das ruas eram constante mentereferidas,
que existiamproblemas
decirculao
e verdadeirosengarrafamentos,
que os constantes assaltos tornavamperigoso
sairnoite ou passar por certas ruas e que a
polcia
pouco fazia para evitar ainsegurana
e a violncia na cidade.Servimo-nos para tanto de
documentao dispersa
em vriostun-Revistada Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, n." 10, Lisboa, Edies Colibri,
dos
arquivsticos
e sobretudo dasdescries
dacapital
feitas porindivduos no
comprometidos
com opoder,
como foram certos viajantes
portugueses eestrangeiros
que, se deslocaramcapital.
O que era a Lisboa do
passado?
A cidade sempre foi enorme para o tamanho dePortugal.
No dealbar dapoca
Moderna contava com cerca decinquenta
mil habitantes, o querepresentava perto
de cinco por cento de toda apopulao
portuguesa.
Nesse momento, o Porto spossua quinze
mil residentes,vora
noatingia
os dez mil e s seisoutras cidades tinham mais de cinco milhares de almas:
Guimares,
Coimbra, Santarm,
Elvas, Tavira eLagos.
Lisboa
tender,
no entanto, a afirmarprogressivamente
o seu peso no contexto nacional e, apesar de todas as vicissitudes por que passou, continuar a aumentar. Em 1620 teriaj
165 milhabitantes,
contra os 120 mil estimados para asegunda
maior cidadepeninsular,
que era Sevilha. No incio do sculo XVIIIpossua
190 mil e cemanos
depois
cerca de duzentos milhares.Quase
um dcimo dos portugueses continentais residiam ento em
Lisboa,
percentagem que volta r a verificar-se apenas em meados do nosso sculo. No incio de Oitocentos a cidade contava-se ainda entre as dez maiores daEuropa
e do seu tamanho lhe advinham os
principais problemas.1
1. A vida em LisboaNo Ritrato et Riverso dei
Regno
diPortogallo,
datado do ltimoquartel
deQuinhentos,
pode
ler-se que Lisboa era aprincipal
cidadedo Reino e muito
povoada,
"julgando
muitos que, tirando Paris,aquela
que, naCristandade,
tem maiorpopulao
-tem um clima muito doce e
temperado
[...]."
E emseguida:
"O stio belo eirregu
lar, nem todo
plano,
nem todoacidentado,
ornado de muitostemplos
devotos ericos,
alguns
deles de razovelbeleza,
onde se efectuamservios
divinos comgrande
solenidade. H muitas residncias departiculares
belas e cmodas. As colinas da cidade soagradveis,
por quealgumas
gozam a vista do rio e da terrajuntamente
e outras a daterra somente
[...].
nesta cidade que costumam os reis viver a maiorparte do
tempo,
tanto por que nela se fazem as armadas para todas asconquistas
ecomrcios,
comopor que tm muito perto
bosques
elocais
aprazveis,
quer para oVero,
quer para o Inverno[Benfica,
1 Cf. Teresa
Rodrigues in Histria de Portugal, dirig. por Jos Mattoso, vol.III, Lisboa, 1993, cap.3, pp. 230-235.
Charneca e
Carnide]. [No entanto],
as ruas no solargas
nem direitas nemlimpas,
e as casasgeralmente
de poucaaparncia
dearquitectura.
Deve-se andar a cavalo porque, por costume, tem-se
pouca conta de
quem anda a
p."2
Esta Lisboa vista
pelos
olhos de um italiano annimopouco se
ir alterar nos sculos imediatos. A cidade desenvolveu-se e cresceu "sem
plano
e na exacta medida das suas necessidadesimediatas,
segundo
oscaprichos
dos construtores e os acasos de umaproprieda
de que se alterava aolongo
dos sculos." Emalgumas
partesefectua-vam-se
demolies
parapermitir
oalargamento
das vias,incapazes
dedar vazo ao aumento considervel do trnsito de gentes e bens, mas
essas novas ruas eram
iguais
na suairregularidade
s anteriores. Asautoridades camarrias no
conseguiam
evitar aqueda frequente
dasmuitas
habitaes degradadas
quepontilhavam
o centro funcional daurbe.3
medida que o
viajante,
curioso,
seaproximava
dacapital
e nelaentrava desfazia-se a viso
resplandecente
que Lisboa emanava quando observada ao
longe,
sendo substitudapelo
cheiro nauseabundo que saia dasvaletas,
apoeira
levantadapelo
maupiso
das mas de terrabatida,
os encontres das gentesapressadas
e osengarrafamentos
a certas horas do dia.4 S em finais de Setecentos,j
adiantadas asobras de
reconstruo
na parte central que fora destrudapelo
Ter ramoto de1755,
a cidade voltou a exibir sinaisinequvocos
de opulncia e desenvolvimento.
No entanto, no haviam sido resolvidos os tradicionais
proble
mas de vivnciaimpostos
pela
grande
dimenso dacapital.
E o facto, como refere nas suas cartas o
Marqus
de Bombelles,diplomata
francs creditado em Lisboa na
segunda
metade de Setecentos, que se"fica
embaraado
sobre que mais se h deadmirar,
se o muito que a natureza fez para tornar os habitantesfelizes,
se o pouco cuidado que estes tm para o serem..." Relata-nos ele como, ao contrrio do queseria aconselhvel em termos
sanitrios,
as colinas dentro e fora dacidade continuavam a ser
ocupadas
quase em exclusivo porcapelas,
igrejas
e conventos imensos. Juntamente com as suas hortas, vinhas epomares, essas
instituies
detinhampelo
menos uma sextaparte
da2 A.H. de Oliveira
Marques, "Uma descriode Portugal em 1579-1580", pp. 87-88.
3
Jos Augusto Frana, Lisboa Pombalina e o Iluminismo, pp. 20, 47 e 48.
4
rea urbana. Por esse facto, os residentes pouco usufruam
daquelas
quepoderiam
ser excelentescondies
de vida.5E tudo isto apesar da cidade
possuir
um clima nico e extrema mente favorvelpela
suadoura.
Quem
a visitavapela primeira
vezadmirava-se com o pouco
rigor
do frio nos meses de Inverno e com araridade dos dias sombrios. Pelo
contrrio,
Lisboadistinguia-se
por uma luminosidade nica, fornecidapelo
solresplandecente
que doura va as suas colinas a maiorparte
do ano. Verdade de ontem, como dehoje.
Mas existia um reverso menos
positivo
noquotidiano
vivido numa cidade com as dimenses de Lisboa. Desde sempre as autorida des tentaram, sem sucesso, resolver osprincipais problemas
da vidana
grande
cidade. Um deles era o nmero excessivo demendigos
evagabundos
que continuamente a ela afluam e dia e noite nela deam bulavam. Outro consistia na necessidade de combater a espantosasujidade
das ruas, bem como o cheiro dosdespejos
efectuados ao arlivre, sendo certo que
qualquer
destes factores acentuava aprecari-dade das
condies
sanitrias em que vivia uma enorme camada dapopulao,
que se concentrava nos andares menos nobres dos edif cios e sobretudo nos bairros defeio popular.
Tambm a falta depoliciamento
eiluminao
das ruas era invariavelmente mencionada por todos quantos descreviam acapital.
Lisboa era uma cidade violen ta, como testemunhaj
no sculo XVI Duarte Nunes de Leo, a propsito
"dos moosperdidos
epatifes
que aLisboa,
como a mata grande,
vm parar de todo o Reino."6Trs sculos
depois
asituao
pouco se havia alterado.Giuseppe
Baretti, que visitou a nossa
capital
poucodepois
do terramoto de 1755, d-nos conta do sentimento deimpotncia
queexperimentara
aeste
propsito.
"Desde que escurece torna-se extremamenteperigoso
sair de casa s edesarmado,
porque quase certo ser-se assaltado e roubado. As rondas evitam os malfeitores em vez de osperseguirem,
e no hningum
que seprontifique
aajudar
odesgraado
que ataca do... Apolcia
no faz nada. A nicasoluo
o processo. Porm,depois
de anos dedespesas
e depapelada
sem nenhum resultado, vem a desistncia."7 Ao entrarOitocentos,
CariRuders,
um suecoque
5
Idem, pp. 19-20.
6 Duarte Nunes de
Leo, Descrio do Reino de Portugal...
7 G.
Baretti, Viaggi Esposti in Lettere Familiari a suoifratelli Filippo, Giovani e
Amadeo, p. 222; e M. Link, Voyage en Portugal depuis 1797 jusquen 1799, p. 262.
ento residia em Lisboa, descreveu
igualmente
os seus temoresquando
eraforado
a sair noite, "receando um bandido em cada pes soa[...].
Como os assassinatosaqui
so acontecimentosvulgares
e se fala de vrios assaltos moarmada,
a nica defesa apessoal,
ou com o auxlio dosrespectivos
criados."Cientes da
insegurana
em que vivia apopulao,
as autoridadescriaram uma
fora
militar destinada a manter a ordem. No incio dosculo XIX formavam-na mais de seiscentos homens de infantaria e duzentos de cavalaria, que todas as noites
patrulhavam
em grupo osbairros urbanos. Existiam tambm
guardas
nocturnos, mas aregulari
dade com que passavam em cada stiopermitia
aoslarpios
maisexperimentados
coordenarem as suasaces,
anulando-se assimqualquer
possvel
vantagem para a segurana das gentes que se aven turavam nas zonas menosfrequentadas
da noite alfacinha. A suafuno
era quase s anunciar quem passava em altos brados,quando
no adormeciam. No tinham
obrigao
de prestar socorropessoal."8
Por todas estas razes, o movimento nas ruas, que era intenso aolongo
dodia,
tornava-se quasenulo,
apenas sepunha
o sol. As pes soas apressavam-se a regressar a casa e osjardins
pblicos
eramencerrados.9
O mau estado das ruas constitua outro grave
problema
urbano.Estas eram na sua quase totalidade muito inclinadas, tortuosas e
estreitas e,
pelo
menos desde o incio daprimeira grande
fase dedesenvolvimento
populacional
e urbanstico dacapital,
no sculoXVI,
manifestamenteinadequadas
intensidade com que se proces sava acirculao
de pessoas e animais. O solopermanecia
irregular,
apesar da contnua
edificao
de novas casas e dareparao
das maisantigas.
Diz-nos Beckford a estepropsito:
"nunca vi to detestveis subidas edescidas,
toescarpadas
vertentes engremes
ladeiras, comoaqui
em Lisboa.Julguei,
por vezes, que ia serdespejado
noTejo
ouque ia rolar para dentro das valas de
areia,
e sair no meio desapatos
velhos,
gatos mortos e negras bruxas."10 Por outro lado, o empedra-mento mostrava-se moroso e ainda nasegunda
metade do sculoXVIII se
restringia
a um nmero nfimo de artriasprincipais.
Assim,
transitar em Lisboa era penoso, fosse ap,
a cavalo, oucom
qualquer
outrotipo
detransporte, excepto
nas zonas residenciais8Cari
Israel Ruders, Viagem em Portugal. 1798-1802, pp. 40,83,227,252.
9
Idem, p. 30.
0
mais ricas e nas mais distantes do centro funcional urbano. Mais
tarde,
a Baixa Pombalina tornou-se outro desses pontosprivilegiados.
Talvez por esse motivo a sociedade lisboeta no considerava de bom tom andarapeado.
Da o ditadopopular,
segundo
oqual,
excepto pes soas de baixacondio,
s se encontravam nas ruas, ap, pelo
menosenquanto
estava calor,ingleses
e ces."Mas nem sempre era fcil
cumprir
os costumes da sociedade. Jna ltima
parte
de Oitocentos s os residentes mais ilustres ealguns
mercadores de maiores rendimentos se
podiam
dar ao luxo depossuir
carruagensprivativas.
"As senhoras de elevadacondio
no pas seiam ap
nas ruas e osfidalgos,
sealguns
se mostram uma vez poroutra caminhando na
cidade,
trazem sempre a carruagem a acompanh-los, o mais rente
possvel
s casas, para evitar enterrar os cavalosno
lamaal.
Porm, o sustento dos cavalos era muito caro.Assim,
excepto o
rei,
os membros da famliareal,
opatriarca
ealguns
minis tros,ningum
tem carruagenspuxadas
a seiscavalos,
antes a seismulas."12
Na fase final do sculo XVII, o fluxo do trnsito aumentou de tal modo que
j
no bastava derrubaralgumas
casas para aumentar a largura das ruas,
prtica
que fora at entoseguida
pelos responsveis
camarrios para assegurarem uma maior facilidade decirculao.
Uma das ruas
principais
desseperodo
foi a Rua da Prata, aqual
media nove metros, tamanho que a colocava acima dos dimetros das ruas mais famosas a nvel internacional. Basta pensar que em Paris a
largura
das vias oscilava entre os cinco e os oito metros. Na cidade criaram-se tambm verdadeiro os parques de estacionamento para coches eliteiras,
como o doLargo
de Santo Eli. Alm disso forampromulgados
doisdecretos,
em 1686 queimpunham
determinadasregras de
trnsito,
bem como as multas a pagar em caso deinflao.13
Outro tema bastas vezes discutidopelas
autoridades locais responsveis prendia-se
com a inexistncia de uma rede capaz de prover ao abastecimento degua
eesgoto,
situao agravada pela
crnicafalta de hbitos de
higiene privada
daspopulaes.
Comoj
referimos, a maior parte das ruas de Lisboa eram estreitas e hmidas e
nelas se
lanavam
todo otipo
de imundcies. As casas eram to altas11
Marquis de Bombelles, Journal d'un Ambassadeur de France en Portugal.
1786--1788, p. 49, e A. William Costigan, Cartas de Portugal, 1778-1779, vol.II, p. 23.
12 Cari
Ruders, ob.cit., p. 122.
13
"que
tapavam ocu",
como referem testemunhos coevos, e nelasnunca entrava o
sol,
sendo portanto extremamente doentias. Aconjugao
destes aspectospermite compreender
aprecaridade
davida humana na
capital
do Reino durante avigncia
doAntigo
Regime
demogrfico,
ouseja,
at ao nosso sculo.As autoridades temiam a cada instante o
deflagrar
de surtosepidmicos.
Comentava-se mesmo com estranheza o carcter relati vamentebenigno
dos focos dedoenas
diversas econtagiosas,
asquais,
embora constantes, eram por norma poucoexpressivas
ao nvel de vidas humanas. Mesmoj
no incio de Oitocentos a maior parte das ruas nunca eramvarridas,
outras raras vezes o eram. O lixo erajunto
em montinhos por um grupo numeroso de indivduosligados
Cmara, mas ficava sem ser recolhido tanto
tempo
que se voltava aespalhar,
antes quechegasse
a serretirado,
pelo
que asujidade
das viaspblicas
nem por breves momentos era debelada. Ospropriet
rios dos
prdios
pagavam umapesada contribuio
para alimpeza
dasmas, contudo sem resultados.
As
queixas
contra o costume dogua-vai,
j
considerado brbarono sculo XVIII europeu, eram ainda
frequentes
em Lisboa no incioda centria
seguinte
e opoder
local continuava a mostrava-seincapaz
para erradicar essehbito,
bem enraizado entre ospopulares.
Deitava--se para a rua durante anoite,
e at dedia,
toda aespcie
de imundcies,
e estas "seriam ainda maissujas
do que so, se tudo quanto sepode
comer no fosse devoradoprontamente
por milhares de cesvadios."14
Quando
chovia,
ainclinao
da maiorparte
das ruas e becos pro vocavainundaes
e autnticosdilvios,
mas s ento o lixo eraarrastado para o rio e os
pavimentos
ficavamlimpos.
Toda a vez queocorria uma
grande btega
degua,
verdadeiras torrentes inundavam aparte baixa da cidade e as ruas transformavam-se em
lamaais.
Ascarruagens atolavam-se e as mulas tinham dificuldade em atravessar
algumas
artrias,
devido aoslagos
que sempre se formavam ao fundodecertas
vias,
como acontecia naCalada
da Estrela.15Esta
situao
manteve-se durantesculos,
agravando-se
medidaque aumentava o nmero de habitantes urbanos. Na
segunda
metadede Setecentos apenas o novo bairro da Baixa era
provido
deesgotos.
14
J.B.F. Carrre, Voyage en Portugal etparticullirement Lisbonne..., p. 308. 15
Suzanne Chantal, A Vida Quotidiana em Portugal ao Tempo do Terramoto,
Nas restantes zonas da cidade eram as negras que
transportavam
at ao rio osdejectos
humanos. Faziam-noequilibrando
cabea
grandes
elongos
vasos de barro, "onde um pouco de verdura semeadasuperfcie
no esconde oodor,
nemimpede
de se lhe adivinhar ocontedo."16
Dirigiam-se
por norma zonaribeirinha,
embora naBoavista existisse outro local
designado
pelas
autoridades para proceder ao
despejo
das imundcies urbanas. Este facto continuava a noevitar os
despejos
na rua, onde tambm eralanada
toda aespcie
deanimais domsticos doentes ou mortos, desde ces e gatos, a burros ou cavalos.
Outra
questo
sempre referida era a da mqualidade geral
dashabitaes,
quedependia
muito do local ou bairro de residncia.Aps
areconstruo
de certas partes deLisboa,
nasequncia
dos estragosfeitos
pelo
terramoto de1755,
o contraste era tambm ntido entre osbairros novos e os
poupados pela
catstrofe. As casas novas uniam-seem
quarteires
separados
por ruas bastantelargas
e direitas, de tal forma quepareciam
um spalcio.
Cada edifcio eraprovido
de cmodosandares,
quepodiam atingir
oitopisos.
Todas as casas pos suamvidraas
ealguns pavimentos
tinhamvarandas,
quepermitiam
s mulheres ver quem passava sem seremperturbadas.
Porm, nas ruas traseiras
piorava
aqualidade
daconstruo,
medida que descia o nvel econmico a quepertenciam
os residenteslocais. Este facto
justificava
o mau aspecto dos edifcios, apior quali
dade de
construo
e dos acabamentos e os vidrosquebrados
nasjanelas,
que dificilmente seriam repostos, a avaliarpelos
rendimentos das famlias que a habitavam. Mas ascondies
de vida nessas zonas eram apesar de tudosuperiores
s dos bairrosantigos
que resistiram
ao terremoto catstrofe. Na parte
antiga
da cidade o sol dificilmenteentrava, amontoando-se as casas altas e
esguias.
Grades exteriores de madeira faziam as vezes devidraas,
delonge
maisdispendiosas.
A mqualidade
dos materiais utilizados para construir o tecto e asparedes
nem sequer isolavam os seus ocupantes do frio do Inverno ou do calor estival.Mas mesmo nas
principais
casas epalcios
predominavam
osinteriores sombrios e os cmodos eram mal distribudos, em evidente
contraste com os avanos
conseguidos pela arquitectura
edecorao
de interiores das casas
europeias
no alvorecer dapoca
contempor
nea. Umagrande sensao
de desconfortopode
ser recolhida apartir
16 W.
das
descries
feitaspelos
visitantesestrangeiros
que passaram por
Lisboa,
a maiorparte
dosquais
conhecia com relativo pormenor avida noutras
grandes
urbes. Devemos aBeckford,
indivduoingls
que visitou a cidade no Vero de 1787,
algumas
dasdescries
mais mordazes sobre as suasprincipais
casas.17Segundo
ele, opalcio
realda
Ajuda
era um localmesquinho.
A sala de audincias no passava de "um pequeno epobre
celeiro, forrado desujos
tapetes e revestido das maisgrosseiras
tapearias.
O quarto da Rainha transborda delivros de
devoo
e deimagens
de santos de todas asespcies
e tama nhos,pinturas
toscas".No
palcio
da Palhav o que maisprendeu
aateno
de Beckfordfoi a absoluta ausncia de
espelhos, quadros
ouqualquer
outro ele mentodecorativo,
para alm depesados
panej
amentos. "Bastava avista destas mesas assim vestidas para nos fazer
transpirar,
e no sou capaz de atinar com o demnio que tentou osPortugueses
a inventar to bolorenta moda, odiosa em toda a parte, masparticularmente
em clima to sufocante como este." EmQueluz
"no escapou nenhuma mesa dejogo
nem dejantar,
e em muitos casos recorreu-se a velhostrajes
de corte, essa a minhaconvico,
para se fazerem tais atavios."18
A sua
opinio geral
relativamente aos gostosarquitectnicos
edecorativos dos portugueses no melhora
quando
visitaalgumas
casas da altaburguesia
alfacinha. Numa ida casa recm-construda de um bem sucedidonegociante
decoiros,
Beckford refere nunca ter visto aposentos mais pavorosos: "foi coisa que nunca vi. Ascolgaduras
sode cetim azul forte e do mais vistoso e sulfrico amarelo. Todos os tectos so decorados com
pinturas
alegricas
e de medocreexecuo,
sobrecarregadas
deoiro,
no estilodaquelas
tabuletas queaqui
h unsanos eram a
vanglria
doHigh
Holborn e de St. GilTs".19Para alm da falta de gosto, factor
subjectivo
e semprediscutvel,
o que ressalta destasdescries
sem dvida o atraso com que emLisboa,
independentemente
dasquestes
monetrias,
pareciam
seradoptadas
asprticas
e modaseuropeias.
A maioria das casas continuava a ter um
aspecto
vulgar,
mesmoquando
um grupo deorigem
burguesa
abastado tentava rivalizar naopulncia
das suas casas com anobreza. Esta
discrepncia
manteve-se mesmodepois
do terramoto,17 Idem. 18
Idem.pp.
55-56, 69 e251. 19apesar da
reconstruo
a que foisujeita
parte
dacapital.
Mas o casode Lisboa no era
nico,
no contexto urbanoeuropeu.20
2. A diversidade na vivncia do espao
A
evoluo
da cidade durante os sculos XVI e XVII determinoua nvel econmico e
poltico
aafirmao
de dois centros funcionais internos, unidospelo
eixo aberto com a Rua Nova.A vida urbana concentrou-se
junto
aoTejo,
no Terreiro e na zona da Ribeira, onde se fixaram tambm as casas e estabelecimentosliga
dos aos tratos com oImprio
e onde residia a Corte e os grupos mais abastados e influentes. Para o interior ficava oRossio,
segundo plo
de
atraco
urbana, atravs doqual
se efectuava aligao
com asfreguesias
do termo, na confluncia das vias de acesso e abastecimento da
capital
por terra deprodutos
frescos, nomeadamentefruta,
legumes,
leite,
ovos ecriao.
A cidade
modificou-se,
mas de forma lenta. Cresceu o casario, no interior diminuram os espaos verdes e aumentaram at valoresimpensveis
para apoca
as densidades deocupao
humana nas casas dos bairrospopulares,
comoAlfama,
Mouraria e Bairro Alto.Persistiram, no entanto, um pouco por toda a
cidade,
os pomares ehortas,
excepto no ncleoribeirinho,
quej
em finais deQuinhentos
estava inteiramente urbanizado. Aos diversos modos deocupao
humana do solo
correspondiam
actividades econmicas distintas e formasparticulares
deassociao
equotidiano.
Outra
especificidade
da vida em Lisboa residia naedificao
emaltura, que se
vulgarizou
medida que diminuam os espaos vazios e aurbanizao
se estendia afreguesias
cada vez mais afastadas doncleo inicial de povoamento. Diz-nos
Gaspar
Barreiros em 1528 que "em Lisboa dificultosamente se acharam casas onde no pousemmuitos moradores." Em certas ruas o nmero de andares e
inquilinos
era tamanho que estes no seconheciam,
nem de cara nem de nome,facto
impressionante
nesseprimeiro quartel
deQuinhentos,
mesmopara o
viajante
maiscosmopolita.
Quando
chegamos
ao sculo XVIIIj
muitosprdios
possuam
mais de cincopisos,
mas mesmo assim foipreciso
recorrer aoaluguer
de quartospara tentar minorar a falta de casas e deter a
rpida
subida dospreos de arrendamento.
'
As
diferenas
internas a nvel deconstruo
eram, no entanto,
muito vincadas. A cidade dividia-se em bairros ricos e
pobres,
que semantiveram
praticamente
os mesmos entre o sculo das Descobertas e a actualidade. Aos bairrospopulares
do centro urbano vieram apenasjuntar-se
novos locais, como osAnjos,
Arroios, Santos,
Alcntara e Santa Isabel, estes ltimos sobretudo durante Oitocentos. Por seu tur no, o Castelo tendeu apopularizar-se, depois
de ter sido nosprimeiros
sculos da modernidade uma rea residencial dos grupos mdios ou
altos.
3. O residente urbano
A enorme variedade de
origens
dos indivduos que em Lisboacoexistiam constitua outra das
originalidades
dacapital.
Para almdos
estrangeiros
e dos inmeros transeuntes que nela era semprepossvel
encontrar, existiam entre os de menores recursosalguns tipos
humanos caractersticos e nicos. Com efeito, era maior a
riqueza
defiguras
humanas no grupopopular,
uma vez que as normas de educao
e vidaimportadas
ou, na melhor dashipteses, adaptadas
realidade portuguesa, uniformizavam os
padres
de comportamento easpecto dos membros da
aristocracia,
alto clero ealguma grande
burguesia.
A
criadagem
fora sempre sempre uma camada mal remunerada epossuidora
de escassasqualificaes,
mas em nmero muito expressivo. Tratava-se de uma "multido de
piolhosos,
que esmaga as finan as de umsenhor"21,
mas sem aqual
o costumeobrigava
a que ningum
passasse. Durantealgum
tempo o nmero de servidores forasinal distintivo de
nobreza,
mas a facilidade com que se tornavapossvel
adquirir
um escravo ou contratar um criado fez com quequase todos
possussem
no um, mas vriosserviais.
Porm,
mesmo no sculoXVIII,
fossem brancos ou negros, todos elesapresentavam
um ar demendigos.
Apresentavam-se
malpenteados
e vestidos,qual
"rancho de saracoteantes e ramelosos
[...],
com dentessujos
a arreganhar e
empestados
de fedor a alho e abacalhau."22
Mas o grau deexigncia
dos senhores para com essesindivduos,
a quem mal paga vam, tambm nopodia
sergrande.
A maioria pouco trabalhava e ossenhores tinham com eles uma
relao
de intimidadeespantosa.
Era:l
J.B.F. Carrre, ob. cit., pp. 49 e 264.
2
frequente
ver-se mesmajanela
condessa e criada em atitude fami liar. Por ocasio de visita s famlias era de bom tominquirir
ossenhores da casa acerca da sade dos domsticos de maior
confiana,
bem como dar e receber
lembranas.23
A presena de
galegos
na cidade era outro elemento diferencial econstante. Os
galegos
eram indivduos robustos, sbrios epoupados,
que executavamgrande
variedade de tarefas. Ficaram mais conhecidos como vendedores de
gua,
mas tambm se empregavam nacidade como moos de fretes, auxiliares em
lojas
earmazns,
criados em casasparticulares,
hospedarias,
casas de pasto e tabernas.Alguns
eramcocheiros,
outros varredores de ruas por conta da Cmara.Transportavam
as pessoas por umabagatela quando
asgrandes
chuvas inundavam as ruas. Trabalhando e vivendo economicamente eram umexemplo
de sucesso, porque comfrequncia juntavam
umpeclio
que lhespermitia
abrir pequenos estabelecimentos. A sua presena tornou-se de tal formaindispensvel
ao dia-a-dia lisboeta quequando
em 1801 sepertendeu expuls-los
em razo da guerra que se travava comCastela,
o Intendente Geral da Polciaobjectou
quedesse modo no haveria quem servisse as cidades de Lisboa e Porto,
pelo
que a ideia foi abandonada.24Os escravos formavam outro grupo de forte
expresso
numrica, apesar daextino
da escravatura naMetrpole
ter sido decretada nasegunda
metade do sculo XVIII. O nmero de indivduos deorigem
africana ter sido
empolado
nas estimativasoficiais,
mas o queimpor
ta reter o carcter extico que ento forneciamcapital
perante o olhar do europeu que nos visitava. Nos anos 60 de Setecentos,Giuseppi
Baretti fala-nos nagrande quantidade
de negros de um eoutro sexo, que iam enchendo este "canto da
Europa
com umaespcie
de amostras humanas chamadas mulatos ". Provas do entrecruzar deraas.25
Torna-se "de bom tom[...]
andar rodeado depretinhos
africanos,
[...]
e vesti-los o melhor que se possa. A soberana[Dona Maria]
d oexemplo.
A famlia real andacompita
a ver quem que fazmais mimos e carcias Dona
Rosa,
a favorita da Rainha, preta,beiuda
e de nariz esborrachado".Outro grupo
especfico
era o dospobres
emendigos. Ningum
parecia
terescrpulos
em recorrerprtica
da mendicidade, forma23 Cari
Ruders, ob. cit., p. 123.
24
TeresaRodrigues et allii, ob. cit., p. 47.
5 G.
expedita
desuprir
a falta de emprego. Daprovncia chegavam
todos os dias dezenas de indivduos de ambos os sexos, muitos dosquais
rapidamente
contraiam o hbito depedir
esmola. Lisboa no davaassistncia aos
pobres,
grupo imenso quedependia
em exclusivo dacaridade
privada.
No existiam asilos ouassociaes
oficiais e aaco
eclesisticaresumia-se,
na melhor dashiptese,
a fornecer umasopa
diria,
servida porta de certos conventos.Assim,
cuidar dosindigentes
acabar por assumir na sociedade lisboeta umaespcie
deculto. As casas ricas davam esmola e sopa aos
pedintes
em dias determinados. Das
janelas
apopulao
atirava-lhes moedas.As ruas eram um verdadeiro
formigueiro
depedintes. "-se
assaltado por eles nas praas, nas ruas, nas
prprias
casas." Uns entravam nasestalagens
e casa de comida, outrospercorriam
as ruas.Porm, a maioria escolhia certos
lugares estratgicos,
onde continuadamente se encontravam e donde
pediam
aos que passavamalgumas
moedas e uma
orao
por suas almas. E o nosso relator prossegue:"duma forma
geral,
o seu aspectosujo
enojento
contribui mais paraafastar a esmola que para a
conseguir.
Um mdico teria ocasio de verdiversas
doenas,
raras esingulares,
casos clnicos nicos. Muitos soestropiados
e arrastam-se sem pernas, outros exibem corcundas disformes",
quase todosapresentam
feridas, umgrande
nmero era cego ou tentava fazer-se passar por tal.26Mau
grado
as medidaspromulgadas
contra avagabundagem,
nada
parecia conseguir
travar o aumento contnuo da massa de inteligentes. A
polcia
intervinha,
mas sem sucesso. No final de Oitocentosfamlias inteiras viviam em casebres miserveis ou nas runas dos
palcios
e casas destrudaspelo
Terramoto, por onde vagueavamcrianas
esfarrapadas.
Tais stios eramparticularmente perigosos,
sobretudo
noite,
porque era tambm esse o local ideal, onde se acoi tavam os numerosos malfeitores que por toda a cidadepraticavam
os seus assaltos e roubos.Na
realidade,
osatropelos
seguranapblica
marcavam odia-a--dia de certos bairros menos
protegidos,
apesar de asprises regurgi
tarem com o mais variadotipo
de indivduos. O facto de o Rei nosuportar a
alimentao
dos presosexplicava, segundo
alguns,
ocarcter quase indiscriminado com que se processavam as
detenes.
Quando
algum
passavajunto
cadeia era de imediato solicitado a dar esmola. Os presos estendiam pequenas bolsas suspensas por umbarbante atravs das
grades,
mas se, por ventura, os transeuntes no sedeixavam
compadecer
arriscavam-se a ouvir dos presos as mais vio lentasinjrias.27
Ajustia
era lenta e nem sempre eficaz.Castigavam--se com uma ferocidade
surpreendente
faltasligeiras,
enquanto muitoscrimes continuavam
impunes.
4. Os moldes da convivncia.
As formas de conviviabilidade dos lisboetas evoluram lentamen
te e conservaram at muito tarde traos que remontavam
poca
medieval. Entre eles cumpre destacar o
predomnio
dasmanifestaes
colectivas de rua ou em
grandes
espaos, intimamenteligadas
aocalendrio das festividades
religiosas.
Esta realidadevigorava
ainda nasegunda
metade de Setecentos e haver que esperarpelo
final do sculo para versurgir
novasprticas
de convvio.A corte dava o tom no panorama morno que caracterizava a sociedade da
poca.
Ela no ofereciadistraes
e raras eram as festas quepromovia,
exceptoquando
se assinalava o aniversrio ou nascimento de
algum prncipe.
Os restantes grupos sociais em tudo imitavam a corte. Os lisboetas pouco se
visitavam,
as suas maneiras sociais eramtristes,
a conversa rara e aborrecida, adana
lenta, ao som deviolino. Por vezes um s para toda uma casa. A famlia constituia o
centro do universo em que todos se
movimentavam,
mesmo os decondio
social mais elevada.Quase
no existiam edifcios oujardins pblicos
parajogar
eusufruir dos prazeres da vida ao ar livre. Talvez por esse facto, todos os
burgueses
e nobres com posses suficientes tinham o hbito de se recolherem squintas
queadquiriam
nos arredores dacidade,
noLumiar,
emBenfica,
Carnide e Charneca ou em Sintra. Dessa formase
despovoava
e entristecia ainda mais a vida nacapital,
sobretudo durante os meses estivais.De
facto,
durante toda apoca
Moderna, aIgreja
e osfestejos
litrgicos
constituiram agrande oportunidade
de encontro. Da aimportncia
social de que se revestiam os enterros e as visitas de condolncias s famlias enlutadas, bem como as visitas e
prendas
que setrocavam em certas
pocas
do ano.7
General Dumouriez, tat
prsent du Royaume de
Portugall
en 1'anneOs lisboetas iam muito
missa,
em parteporque no
dispunham
de outrospasseios,
o que tornava as cerimniasreligiosas
um mistode f e divertimento. Porm,
pelo
Natal, tal comopela Pscoa,
apopulao
procurava divertir-se. No sculo XVIII a sociedade maisfina ia ao teatro na
vspera
deNatal,
comopreparativo
para a festa daceia. meia-noite as
igrejas,
sumptuosamenteiluminadas,
enchiam--se para amissa-do-galo.
Tambm nos dias que antecediam aQuaresma
semultiplicavam
os bailes e as reunies. Nos trs dias de Carnaval a cidade estava em festa, de dia e de noite. Durante aQuaresma,
os divertimentos eram substitudos porgrandes procisses,
que todas as sextas-feiras corriam os bairros da
capital.
Uma vezterminadas, as gentes reuniam-se. Para
beber,
jogar
cartas ousimplesmente
conversar. Sobretudo para asmulheres,
a quem eramlimitadas as sadas, estas eram ocasies de
jbilo.
Passadas as festas da Pscoa comeava o
peditrio
para oEsprito
Santo,
que durava at ao Pentecostes. Mas osfestejos
maisfamosos do ano eram os do
Corpo
deDeus,
a 4 de Junho.Apenas
rompia
amadrugada repicavam
ossinos,
rufavam os tambores, tocavam os clarins. A multido
apinhava-se junto
S Patriarcal.Aps
a missasolene,
qual
assistiam todas as altas entidades civis ereligio
sas, formava-se aprocisso,
que avanava lentamente emdireco
ao Rossio.28A
poca
terminava com osfestejos
do Santo Antnio e dos res tantes SantosPopulares.
Oprimeiro
beneficiou de um cultoespecial,
mas em Lisboa, como por todo o territrio,festejava-se
tambm o SoJoo e mesmo o So
Pedro,
embora este ltimo fosse maispopular
nazona de Setbal.
Assim,
na noite de 12 de Junho acapital
estava emfesta,
tal como a 23 e um pouco menos a 28. Na ltimaparte
de Setecentos, as
comemoraes
mais concorridas tinhamlugar
naPraa
daFigueira,
naPraa
de Dom Pedro e no Passeio Pblico do Rossio, profusamente ornamentados para o efeito. Colocavam-se mastros,
cordes e arcos
triunfais,
que eram decorados com flores e ramos delouro, buxo,
alfazema,
erva-pinheira
esalgueiro.
A estaparte
da cidade acorria toda a
populao
e tambm os vendedores dequeijadas
deSintra,
de bolachas daLapa,
de licores os mais diversos e dosj
entotradicionais vasos de
manjerico.
Por toda aparte
se acendiamfoguei
ras, onde eramqueimadas
substnciasvegetais
odorferas, sobretudoalecrim e murta. Lisboa
iluminava-se,
bailava-se no Rossio em tornodas
fogueiras,
lanava-se fogo
de artifcio.Outra forma de celebrar os
grandes
acontecimentos da vidapblica
consistia narealizao
de corridas detoiros,
tambm elascongregadoras
de todos os extractos sociais. Os pretextos eraminmeros.
Festejava-se
o nascimento deprncipes,
os aniversrios dafamlia real, a concluso de tratados de paz, certas vitrias militares
ou
simplesmente
prestava-se
homenagem
a determinado indivduo.Em meados de Setecentos, Baretti.
originrio
de Turim e homemviajado,
assiste a um dessesespectculos,
que descreveu nas suasLettere,
publicadas
ainda nesse sculo em Milo. Celebrava-sealgo
importante,
ajulgar pela
presena dos membros da famliareal,
bem como de muitos nobres ediplomatas
creditados na Corte. No entanto, asmulheres,
sobretudo as de mais elevadacondio,
eram em nmero reduzido. Aemoo
e entusiasmo da assistncia eramextraordinrios,
sobretudo entre os indivduos que enchiam os locais menos nobres dorecinto.
Erguia-se
a multidoaps
cada feito dos destemidospica-dores. A festa s foi
interrompida
quando algum gritou
"terramoto!" Alembrana
da catstrofe de 1755 estava ainda bem fresca: "toda a assistnciaapavorada
desatou a correr para as sadas ou concentrou-seno centro da praa.
Apenas
um gestoapaziguador
do Rei, queassistia,
acalmou as gentes, que voltaram aos seus
lugares."
Anos mais tarde,
j
no incio do sculo XIX, outroestrangeiro
descreve nas suas memrias o cerimonial que antecede e rodeia esteespectculo,
assaz estranho aos olhos de um homem nascido no Norteda
Europa.
Dias antes, asprincipais
ruas forampercorridas
por umaquadrilha
de toureirosmascarados,
a cavalo e ao som da msica, queanunciavam a tourada.
Aquela
a que assistiu realizou-se na praa detouros da rua do
Salitre,
aprimeira
arena destinada aopblico
dacidade,
inaugurada
em 1790pelo prncipe
D. Joo e por PinaManique.
"Em torno da arena ergue-se um anfiteatro romano com duas ordens de camarotes,separados
e cobertos. Nosprincipais,
queso
pintados
eguarnecidos
comcortinas,
tomamlugar
a nobreza e as pessoas dequalidade,
com asrespectivas
senhoras. Os outrosenchem--se com gente das classes inferiores. O nmero de
espectadores
chega
a elevar-se a dois
mil,
dosquais
a maior parte so homens.s
cincohoras da
tarde,
umfoguete lanado
ao ar d sinal paraprincipiar
oespectculo.
Os touros, com os cornos adornados de fitasvariegadas,
sointroduzidos
na arena para serem vistos.Segue-se
ocortejo
dosparticipantes,
todos muito bem ataviados.Depois
comea a corrida."29Todas as
manifestaes
referidas at este momento tm emcomum o facto de nelas
participarem
todos os grupos sociais.Porm,
tanto anobreza,
como aburguesia
ou o povopossuam
formasprprias
de convvio edistrao.
Na cidade existiam muitos cafs que,no entanto, eram pequenos, mal decorados e
sujos.
Neles se reuniam ospopulares
e se bebiacaf, chocolate,
cacau e ch. Os homensjun-tavam-se tambm nas
tabernas,
que invariavelmente serviam umvinho de m
qualidade,
mas barato.Quem
preferisse
umpasseio
ao ar livrepodia
escolher ojardim
situado nos terrenos do Conde de Castelo Melhor, localizado nas
costas do
palcio
daInquisio, cujas
esttuas foram mesmo utiliza das para o ornamentar. No entanto era murado e tinha pouca verdura,o que o tornavaum local pouco atractivo e pouco
procurado.
Nos feriados e
domingos
de Vero, os alfacinhaspreferiam
o rio.Dirigiam-se
parajunto
doTejo,
onde desde muito cedo sepodiam
veraguadeiros,
vendedeiras comdoces, amendoins,
pevides
e tremoos, por vezespinhes.
Em locais escolhidoserguiam-se
tendas, que vendiam
gua,
limonada,
garrafas
desalsaparrilha
eginja.
Osdestroos
do Terramoto e as
subsequentes
obras dereconstruo
da Baixaconstituram outro
plo
de aflunciapopular
nos dias de lazer. Noentanto, no foi
possvel
concretizar oprojecto
defendidopelo
Marqus
doPombal,
que visara dotar Lisboa de umpasseio
beira rio.30Nas feiras e
mercados,
queregularmente
se realizavam num ou noutro ponto dacidade,
tocava-se msica e ospopulares danavam
a fossa e aseguidilha
espanholas.
Assistiam tambm aexibies
de saltimbancos,
muitas vezesacompanhadas pelas
habilidades de animaisexticos e
amestrados,
comocamelos,
macacos e ces. Grandenmero dessas
representaes
tinhalugar
naPraa
do Salitre.Os extractos mais humildes aderiam com
grande
entusiasmo aosespectculos
defantoches,
farsas e comdias castelhanas, que nasegunda
metade de Setecentos foram substitudas por comdiasportuguesa,
muitas dasquais
representadas
ao ar livre.A um outro
nvel,
a crescente influncia do teatro francs e dapera
italiana levaram certosempresrios
a construir edifcios moder nos, aosquais
acorriam os mais abastados. No Teatro da Rua dosCondes fez-se durante
algum
tempo
pera
italiana,frequentada
porCari Ruders, ob. cit., pp. 74,75,125. SuzanneChantal, ob. cit., p. 247.
burgueses
e aristocratas. No incio da dcada de 90 um grupo denegociantes
dacapital
financiou um novo teatro depera
de nvelidntico aos que se
erguiam
por essaEuropa
fora. Mas aqualidade
das salas nem semprecorrespondia
qualidade
das peasexibidas,
que eram invariavelmente ms.31Pelamesma
poca
desenvolveu-se ogosto
pelo
convvio e as reu niesprivadas,
para o que muito ter contribudo a colniaestrangeira
radicada em Lisboa. Partidas de cartas, seres musicais,bailes,
passeios
ao ar-livre epiqueniques
noCampo
Grande e em Benficatornaram-se a pouco e pouco
parte
integrante
doquotidiano,
emborasem a
frequncia
necessriaformalizao
de uma saison modaeuropeia.
A Lisboa de finais do sculo XVIII
parecia
estar prestes a encon trar diferentes vias deemancipao gradual profana, reagindo
assimpreponderncia plurisecular
doreligioso.
Este processo delaicizao
sofrer novas erpidas alteraes
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