Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO Centro de Ciências Humanas e Sociais – CCH
Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT
Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS
Mestrado em Museologia e Patrimônio
A
A
A
p
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e
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e
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i
a
a
a
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l
l
:
:
:
Um estudo de caso do samba carioca
Á
lea Santos de Almeida
A Patrimonializa
çã
o do imaterial:
Um estudo de caso do samba carioca
por:
Á
lea Santos de Almeida,
Aluno do Curso de Mestrado em Museologia e Patrim
ô
nio
Linha 02
–
Museologia, Patrim
ô
nio Integral e Desenvolvimento
Disserta
çã
o de Mestrado apresentada
à
Coordena
çã
o
do Programa de P
ó
s-Gradua
çã
o em Museologia e
Patrim
ô
nio.
Orientador: Professor Doutor Marcos Luiz Cavalcanti de
Miranda.
Co-Orientador: Professor Doutor Luiz Carlos Borges
Almeida,
Á
lea Santos de.
A patrimonializa
çã
o do imaterial: um estudo de caso do samba
carioca/
Á
lea Santos de Almeida. - Rio de Janeiro:
UNIRIO/PPG-PMUS, 2013. Orientador: Marcus Luiz Cavalcanti de Miranda.
Co-orientador: Luiz Carlos Borges.
xi., 250 p. : il.
Disserta
çã
o (mestrado) UNIRIO / Escola de Museologia
–
UNIRIO /
Programa de P
ó
s-gradua
çã
o em Museologia e Patrim
ô
nio, 2013.
Refer
ê
ncias: p. 105-107
1. Samba carioca. 2. Patrim
ô
nio. 3. Patrimonializa
çã
o. 4
Musealiza
çã
o. I. Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda. II. Luiz Carlos
Borges. III. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Escola de Museologia / Programa de P
ó
s-gradua
çã
o em Museologia
FOLHA DE APROVA
ÇÃ
O
A
A
A
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p
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e
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a
a
ll
l
::
:
Um estudo de caso do samba carioca
Disserta
çã
o de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa de P
ó
s-gradua
çã
o em
Museologia e Patrim
ô
nio, do Centro de Ci
ê
ncias Humanas e Sociais da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro
–
UNIRIO e Museu de Astronomia e Ci
ê
ncias Afins
–
MAST/MCT, como parte dos requisitos necess
á
rios
à
obten
çã
o do grau de Mestre em
Museologia e Patrim
ô
nio.
Aprovada por:
Prof. Dr. ________________________________________________________
Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda
–
Orientador
–
UNIRIO
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Luiz Carlos Borges
–
Co-Orientador
–
MAST
Prof. Dr. ____________________________________________________________
M
á
rcio Ferreira Rangel
–
MAST/UNIRIO
Prof. Dr. ______________________________________________________
Eduardo Ismael Murgia Maranon
–
PPGCI/UFF
Agradecimentos
Primeiramente, agrade
ç
o a minha fam
í
lia que sempre me deu o apoio necess
á
rio
para a realiza
çã
o de todos os meus projetos. Especialmente a um membro mais que
especial, meu marido, amigo, irm
ã
o, enfim, meu tudo.
Agrade
ç
o tamb
é
m
à
s amigas Luciana Cruz e Souza e Juliana Angelo. A primeira,
sempre pronta a discutir conceitos, ideias e autores, ajudando-me a melhor compreende-los.
A segunda, conhecedora do universo do samba, indicou-me locais e pessoas essenciais
para essa pesquisa.
Agrade
ç
o a todos os entrevistados, sem eles, essa pesquisa n
ã
o aconteceria.
Agrade
ç
o, por fim, aos professores do Programa de P
ó
s-gradua
çã
o em Museologia e
Patrim
ô
nio, especialmente os professores M
á
rcio Ferreira Rangel, Alejandra Saladino,
Simone Weitzel e Marcus Granatu, e meus professores orientadores Marcos Miranda e Luiz
Carlos Borges.
ALMEIDA,
Á
lea Santos de. A patrimonializa
çã
o do imaterial: um estudo de caso do
samba carioca.
Orientador: Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda. Co-orientador: Luiz Carlos Borges.
UNIRIO/MAST. 2013. Disserta
çã
o.
A Disserta
çã
o analisa o processo de patrimonializa
çã
o do samba carioca, a partir do
registro das matrizes do samba no Rio de Janeiro pelo Instituto do Patrim
ô
nio Hist
ó
rico e
Art
í
stico Nacional (IPHAN). O objetivo
é
compreender a trajet
ó
ria dessa manifesta
çã
o,
mapeando a
çõ
es fundamentais para que o samba carioca fosse considerado como um
patrim
ô
nio. S
ã
o analisadas as a
çõ
es de alguns agentes desse processo: os grupos
criadores e praticantes de samba, a ind
ú
stria cultural, o Estado e duas institui
çõ
es
museol
ó
gicas (o Centro Cultural Cartola e o Museu da Imagem e do Som da cidade do Rio
de Janeiro). Para realizar este mapeamento, foram feitas entrevistas, an
á
lise de letras de
sambas e pesquisa documental. Ao final, foi poss
í
vel perceber a complexidade desse
processo, como estas a
çõ
es se influenciam mutuamente, e contribuem para o entendimento
do samba enquanto patrim
ô
nio.
ALMEIDA,
Á
lea Santos de. A patrimonializa
çã
o do imaterial: um estudo de caso do
samba carioca.
Orientador: Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda. Co-orientador: Luiz Carlos Borges.
UNIRIO/MAST. 2013. Disserta
çã
o.
This work analyzes the heritage process of samba, from the record of the matrices of
samba in Rio de Janeiro by the Institute of Historical and Artistic Heritage (IPHAN). The goal
is to understand the trajectory of this manifestation, mapping actions fundamental to the
samba carioca was considered as an heritage. It analyzes the actions of some agentsof this
process: groups creators and practitioners of samba, the Cultural Industry, the state and two
museum institutions (Cultural Center Cartola and the Museum of Image and Sound in the city
of Rio de Janeiro). To perform this mapping, interviews were conducted, examining letters of
sambas and documentary research. In the end, it was possible to realize the complexity of
this process, how these actions influence each other, and contribute to the understanding of
samba as heritage.
Introdu
çã
o ... 9
1 Antecedentes ... 9
2 Fundamenta
çã
o te
ó
rica ... 11
3 Metodologia ... 13
4 Estrutura da disserta
çã
o ... 15
Cap
í
tulo 1 - Patrim
ô
nio, patrimonializa
çã
o, samba e musealiza
çã
o ... 17
1 Patrim
ô
nio e patrimonializa
çã
o ... 17
2 O samba e seus primeiros praticantes ... 22
3 Rela
çõ
es entre Estado e grupos praticantes do samba ... 26
3.1 As matrizes do samba carioca e a pol
í
tica para o patrim
ô
nio imaterial ... 31
4 Rela
çõ
es entre o samba e ind
ú
stria cultural ... 38
4.1 O samba e a ind
ú
stria fonogr
á
fica ... 45
4.2 As escolas de samba e a ind
ú
stria cultural ... 48
5 Musealiza
çã
o ... 60
5.1 Os agentes da musealiza
çã
o e as cole
çõ
es de depoimentos orais gravados ... 62
5.2 A documenta
çã
o museol
ó
gica das cole
çõ
es de depoimentos ... 64
Cap
í
tulo 2 - Patrimonializa
çã
o do samba: rela
çã
o entre praticantes, Estado e ind
ú
stria
cultural... 66
1 Alguns tra
ç
os e caracter
í
sticas dos grupos praticantes de samba ... 66
2 A participa
çã
o do Estado ... 72
3 A Ind
ú
stria Fonogr
á
fica no processo de patrimonializa
çã
o ... 81
4 As escolas de samba e a ind
ú
stria cultural ... 88
5 Influ
ê
ncia das pr
á
ticas do MIS nas pr
á
ticas do CCC ... 93
6 Democratiza
çã
o do museu e a
çõ
es inclusivas ... 95
7 Documenta
çã
o museol
ó
gica ... 96
Considera
çõ
es finais ... 99
Refer
ê
ncias Bibliogr
á
ficas ... 106
Ap
ê
ndice ... 109
1 Entrevistas ... 109
2 Quadros de compara
çã
o entre MIS e CCC ... 216
3 Miss
ã
o, objetivos e a
çõ
es do MIS e do CCC ... 219
4 Informa
çõ
es dispon
í
veis sobre depoimento de Donga no MIS ... 222
5 Letras de m
ú
sicas ... 222
6 Frequ
ê
ncia de sambas no Catalogo Geral 1929 - 1930 Odeon ... 245
7 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ... 246
8 Roteiro de entrevistas com representantes de escolas de samba no processo de
registro das matrizes ... 248
9 Roteiro de entrevistas com integrantes das escolas de samba ... 248
10 Roteiro de entrevistas com funcion
á
rios do IPHAN ... 249
11 Roteiro de entrevista para investiga
çã
o sobre musealiza
çã
o ... 250
Introdu
çã
o
1 Antecedentes
A motiva
çã
o para realiza
çã
o dessa pesquisa foi, primeiramente, o interesse pelo conceito
de patrim
ô
nio, e pelos aspectos que favorecem a sua preserva
çã
o ao longo dos anos. Juntou-se a
esse interesse inicial, o fasc
í
nio pela hist
ó
ria do samba da cidade do Rio de Janeiro, manifesta
çã
o
complexa, considerada patrim
ô
nio, inclusive pelo Estado. Esses dois ingredientes, o interesse
pelo patrim
ô
nio e pela hist
ó
ria do samba, determinaram o objeto de estudo dessa investiga
çã
o: o
processo de patrimonializa
çã
o do samba.
Em 2007, as matrizes do samba no Rio de janeiro
–
o samba de partido alto, o samba de
terreiro e o samba enredo - foram registradas como patrim
ô
nio imaterial brasileiro pelo Instituto
do Patrim
ô
nio Hist
ó
rico e Art
í
stico Brasileiro (IPHAN). Estas matrizes s
ã
o praticadas e conhecidas
atualmente, e simultaneamente tamb
é
m remetem
à
s pr
á
ticas e costumes do final do s
é
culo XIX,
in
í
cio do s
é
culo XX, momento em que o samba, vindo principalmente da Bahia, estava sendo
recriado na cidade do Rio de Janeiro.
Inicialmente, o samba era praticado por grupos de negros pobres, principalmente de
descend
ê
ncia afro-nordestina. Na cidade do Rio de Janeiro, estes saberes se misturaram
à
s
influ
ê
ncias locais, e deram origem ao samba carioca. At
é
mais ou menos a segunda d
é
cada do
s
é
culo XX, por ser um ritmo praticado por pessoas pobres e negras, o samba era considerado
uma manifesta
çã
o menor pelas elites brasileiras, s
í
mbolo at
é
de marginalidade
–
os praticantes de
samba, de capoeira e das religi
õ
es afro descendentes eram perseguidos, e, se fossem pegos
praticando tais manifesta
çõ
es, eram presos.
Apesar disso, por volta da d
é
cada de 1930, o samba do Rio de Janeiro tornou-se um dos
elementos da identidade nacional, em um processo aparentemente surpreendente. Este v
í
nculo
entre samba e identidade nacional
é
ainda hoje reiterado, Fonseca (2009) ao investigar as
pol
í
ticas p
ú
blicas federais relacionadas ao patrim
ô
nio no Brasil, percebe que, apesar do
tombamento dos cerca de mil bens, estes funcionam mais como s
í
mbolos abstratos e distantes da
na
çã
o. No imagin
á
rio popular, e nas representa
çõ
es no exterior do Brasil, a identidade brasileira
tem sido representada sobretudo pelas riquezas naturais, pelo futebol, o carnaval e o samba (a
autora ainda acrescenta a inser
çã
o atual da telenovela e da F
ó
rmula 1).
Antes do samba carioca torna-se elemento da identidade brasileira, existiram ritmos
considerados nacionais, que eram amplamente conhecidos e que de certa maneira, exerciam a
fun
çã
o de
“
denominador comum
”
, lugar que mais tarde foi ocupado pelo samba carioca. Sandroni
retorna ao final do s
é
culo XVIII para realizar um panorama da hist
ó
ria da m
ú
sica popular
brasileira. Por volta de 1780, aparecem as primeiras men
çõ
es em documentos hist
ó
ricos do
lundu-dan
ç
a e da modinha, g
ê
neros praticados e recriados a partir de influ
ê
ncias africanas e
portuguesas, e que aqui no Brasil, adquiriram fei
çõ
es pr
ó
prias. Os dois ritmos remetiam ao
universo afro-brasileiro, assim como mais tarde o samba carioca.
O lundu
é
um termo que designa coisas diferentes, mas interligadas: primeiro deu nome a
uma dan
ç
a popular, depois a um g
ê
nero de can
çã
o de sal
ã
o e, finalmente, a um tipo de can
çã
o
folcl
ó
rica. Apesar de em Portugal, suas origens africanas serem comprovadas por meio de
documentos hist
ó
ricos, no Brasil, os testemunhos escritos descrevem o lundu como dan
ç
a
praticada por brancos, pardos e mulatos, fortemente influenciada pelo fandango ib
é
rico. Por
é
m,
apesar de serem praticadas por diferentes grupos no Brasil, as origens africanas do lundu
brasileiro n
ã
o podem ser descartadas. De qualquer maneira, o sentido dado
à
dan
ç
a desde fins
do s
é
culo XVIII, at
é
conceitua
çõ
es modernas
é
de uma representa
çã
o direta ou velada do
universo afro-brasileiro. J
á
a modinha, surge por volta do final do s
é
culo XVIII em dois estilos: as
modinhas portuguesas e as modinhas brasileiras, estas
ú
ltimas aproximavam-se muito do lundu,
sendo consideradas
“
proto-lundus
”
. De fato, o lundu e a modinha t
ê
m estruturas musicais
semelhantes, e, frequentemente, s
ã
o estudados em conjunto pelos music
ó
logos
1(SANDRONI,
2001).
O lundu
é
a primeira forma musical afro-brasileira que se disseminou por todas as classes
sociais (ANDRADE, 1944 apud SANDRONI, 2001), mas a partir do final do s
é
culo XIX
é
substitu
í
do pelo maxixe
2, que passa a ocupar o lugar de dan
ç
a
“
nacional
”
no imagin
á
rio brasileiro.
O maxixe, mencionado em documentos pela primeira vez em 1880, assim como o samba carioca,
foi criado por pessoas das camadas menos abastadas da cidade do Rio de Janeiro, mais
especificamente do bairro Cidade Nova
3e constitui-se a partir da jun
çã
o de elementos da polca
europeia e do lundu brasileiro. Da Cidade Nova, o maxixe se disseminou pelo resto da sociedade
por meio dos clubes carnavalescos, frequentados por jovens provenientes das elites da
é
poca.
Apesar de sua popularidade, o maxixe, assim como samba carioca em sua fase inicial, foi
considerado uma dan
ç
a vulgar das classes populares (SANDRONI, 2001).
Um dos elementos comuns ao lundu, ao maxixe e ao samba carioca
é
o movimento de
1
Um exempo de lundu
é a composição gravada em 1913, intitulada “A cabeça da mulher” de Eduardo das Neves. Esta música está disponível para escuta no site do Instituto Moreira Sales,. Disponível em: <http://acervo.ims.uol.com.br/index.asp?codigo_sophia=648 >. Acesso em: 30 jan. 2013. Exemplo de modinha deste acervo, também disponível para escuta: “A barquinha” de Cadete, gravada entre 1907 e 1912. Disponível em: <http://acervo.ims.uol.com.br/index.asp?codigo_sophia=18966 >. Acesso em: 30 jan. 2013.2
Exemplo de maxixe:
“A favela vai abaixo” , composição de Sinhô gravada em 1928. Também disponível para escuta no site do Instituto Moreira Sales. Disponível em: <http://acervo.ims.uol.com.br/index.asp?codigo_sophia=2760 >. Acesso em: 30 jan. 2013.3
Por volta de 1872, o bairro Cidade Nova era o mais populoso, conhecido também por seus divertimentos de má fama (SANDRONI, 2001).
dan
ç
a da cintura, ou das
“
cadeiras
”
conhecido como
“
requebrar
”
ou
“
quebrar
”
, al
é
m de aspectos
r
í
tmicos (SANDRONI, 2001). Tamb
é
m
é
importante ressaltar que os tr
ê
s g
ê
neros, por remeterem
ao universo afro-brasileiro e das classes menos favorecidas, foram inicialmente rejeitados pelas
elites, para depois se disseminarem (mesmo que muitas vezes
à
s escondidas) por todas as
classes sociais. Mais tarde, o maxixe ser
á
substitu
í
do pelo samba carioca, que passa a ser a
m
ú
sica s
í
mbolo da identidade nacional no imagin
á
rio popular.
Assim, o lundu, a modinha e o maxixe s
ã
o considerados formas musicais espec
í
ficas de
um contexto hist
ó
rico passado, diferentemente do samba, praticado atualmente em diferentes
classes sociais. Esta manifesta
çã
o se preserva at
é
nossos dias, recebendo em 2007, o registro do
IPHAN, bem como um plano de salvaguarda. O que h
á
na hist
ó
ria do samba carioca, que o
diferencia do lundu, da modinha e do maxixe? O objeto de estudo dessa pesquisa refere-se a
essa trajet
ó
ria do samba. A investiga
çã
o parte do Dossi
ê
das Matrizes do Samba no Rio de
Janeiro (2006), realizado durante o registro no IPHAN. Todos os bens registrados t
ê
m seus
dossi
ê
s. Um dossi
ê
é
um conjunto de documentos que resulta da pesquisa, indispens
á
vel para
que um bem venha a seja registrado, e seja considerado um patrim
ô
nio imaterial nacional pelo
IPHAN, e que tem por objetivo demonstrar a relev
â
ncia nacional e a continuidade hist
ó
rica do bem
em quest
ã
o
4. Ap
ó
s o registro, os dossi
ê
s ficam online,
à
disposi
çã
o do p
ú
blico em geral, no site
eletr
ô
nico do Banco de Dados dos Bens Registrado, criado pelo IPHAN
5Assim, parte-se do Dossi
ê
(2006) realizado durante o registro das matrizes do samba, e
depois, na tentativa do entendimento dos motivos que determinaram o registro, retrocedemos no
tempo, para o final do s
é
culo XIX, per
í
odo em que, segundo os registros hist
ó
ricos, ocorre
à
cria
çã
o do samba da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo
é
identificar alguns aspectos do
processo de patrimonializa
çã
o, entendendo-o como um conjunto de a
çõ
es que, ao longo dos
anos, foram atribuindo valor a essa manifesta
çã
o cultural.
Estas a
çõ
es s
ã
o realizadas pelas comunidades praticantes do samba, por institui
çõ
es, por
meios de comunica
çã
o, por intelectuais, entre outros. Aqui, estamos denominando estes
diferentes atores do campo social de agentes. Enfocamos nossa an
á
lise em alguns deles: os
grupos praticantes de samba, o Estado, a ind
ú
stria cultural e duas institui
çõ
es museol
ó
gicas
–
o
Centro Cultural Cartola (CCC) e o Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro.
4
Relevância nacional e continidade histórica são os critérios utilizados pelo IPHAN para a seleção dos bens imateriais que serão registrados. Estes critérios, bem como caracterísitcas importantes da política brasileira de salvaguarda do patrimônio imaterial serão discutidas na seção 3.1 do capítulo 1.
5
2 Fundamenta
çã
o te
ó
rica
As bases te
ó
ricas desta pesquisa s
ã
o principalmente a Teoria do Patrim
ô
nio, e a Teoria da
Museologia. Da primeira, utilizamos trabalhos de Choay (2006), Fonseca (1997), Telles (2010),
Gon
ç
alves (1996; 2005; 2009) e Guillaume (2003), autores que discutem as defini
çõ
es do
conceito de patrim
ô
nio, e as pr
á
ticas e pol
í
ticas de preserva
çã
o. O estudo desses autores teve o
objetivo de definir o conceito de patrim
ô
nio, e tamb
é
m demarcar o in
í
cio do processo de
patrimonializa
çã
o do samba carioca. Assim, o samba
é
entendido principalmente como um bem
cultural que passou por um longo e complexo processo, at
é
ser entendido como patrim
ô
nio n
ã
o
apenas por seus grupos praticantes, mas tamb
é
m pelo Estado e demais estratos sociais.
Utilizam-se tamb
é
m alguns trabalhos que discutem principalmente as pr
á
ticas de salvaguarda do
patrim
ô
nio imaterial, e as novas concep
çõ
es e quest
õ
es que estas a
çõ
es engendram, entre eles
est
ã
o
à
s contribui
çõ
es de Sant'Anna (2009) e Bravo Fernandes (2011).
Para discutir e compreender algumas pr
á
ticas de musealiza
çã
o do samba, utilizamos
autores do campo da Museologia, como Rangel (2010; 2012), Desvall
é
s e Mairesse (2010).
Aprofundando o assunto, analisamos especificamente as pr
á
ticas de documenta
çã
o museol
ó
gica,
neste aspecto s
ã
o essenciais os trabalhos de Lima (2000), Smit (2008), Loureiro (2008) e Ferrez
(1994). A Teoria da Museologia tamb
é
m contribui para o entendimento do conceito de patrim
ô
nio,
por meio dos trabalhos de Scheiner (2004), Borges e Campos (2012).
A escolha por este quadro te
ó
rico teve por finalidade a constru
çã
o, a partir dos campos da
Museologia e do Patrim
ô
nio, de um entendimento do samba enquanto bem patrimonial. Os
autores anteriormente citados dialogam com aqueles que se ocupam de aspectos da hist
ó
ria do
samba. Estes
ú
ltimos pertencem a variados campos do saber, mas todos se concentram em
narrar
à
trajet
ó
ria da manifesta
çã
o, cada um enfocando em determinada tem
á
tica. Matos (1982)
analisa especificamente as rela
çõ
es entre samba e o Estado da d
é
cada de 1930, Tinhor
ã
o (1998)
contribui com suas descri
çõ
es do contexto de cria
çã
o do samba no final do s
é
culo XIX, in
í
cio do
s
é
culo XIX. Sandroni (2001), a partir do campo da Musicologia, descreve o momento das
transforma
çõ
es do samba entre 1917 e 1933, quando os sambistas do Est
á
cio modificam e
recriam o samba de forte heran
ç
a baiana e rural, e o transformam no g
ê
nero que ficou mais
amplamente conhecido como samba carioca. Do trabalho de Viana (2010) s
ã
o aproveitadas as
considera
çõ
es sobre os di
á
logos entre sambistas e pessoas de diferentes classes sociais, e como
essas rela
çõ
es favoreceram a incorpora
çã
o do samba carioca como um dos elementos da
identidade nacional. Cabral (2010), Candeia e Isnard (1978) tratam da hist
ó
ria das escolas de
samba, e tamb
é
m das transforma
çõ
es que estas organiza
çõ
es passaram ao longo dos anos.
criadores do conceito de ind
ú
stria cultural, Adorno e Horkheimer (1985), dois autores da Escola de
Frankfurt. Ainda procurando aprofundar o entendimento das pr
á
ticas industriais, utilizamos o
trabalho de Hullot-Kentor (2008), que procura compreender como o conceito de ind
ú
stria cultural,
bem como suas pr
á
ticas, se configura na contemporaneidade.
3 Metodologia
Os principais questionamentos dessa pesquisa s
ã
o: como aconteceu o processo de
patrimonializa
çã
o do samba carioca? Quando este processo se inicia? Quem s
ã
o seus principais
atores? A inten
çã
o final
é
construir uma esp
é
cie de mapa que indique os principais movimentos
desse processo, e oferecer um ponto de vista explicativo desse fen
ô
meno social.
Busca-se contribuir para os campos da museologia e do patrim
ô
nio, no que diz respeito ao
entendimento dos processos de patrimonializa
çã
o do patrim
ô
nio imaterial, no que tange ao samba
carioca.
É
preciso reconhecer, de antem
ã
o, que apenas um estudo de caso n
ã
o poder
á
explicar a
complexidade da din
â
mica do processo de patrimonializa
çã
o do samba carioca, mas sim
demarcar um espa
ç
o inicial de pesquisa que necessariamente precisar
á
ser aprofundado.
Assim, como dito anteriormente, a investiga
çã
o procura compreender a a
çã
o de alguns
dos agentes do processo de patrimonializa
çã
o do samba carioca: os grupos praticantes e
criadores do samba na cidade do Rio de Janeiro, a ind
ú
stria cultural, o Estado, o MIS e o CCC. A
coleta de dados ocorreu da seguinte maneira:
·
Grupos criadores e praticantes do samba na cidade do Rio de Janeiro: entrevistas com
pessoas do universo do samba, e depoimentos de Jo
ã
o da Baiana e Donga, sambistas
que participaram dos primeiros momentos da hist
ó
ria do g
ê
nero na cidade (as
grava
çõ
es dessas entrevistas fazem parte da cole
çã
o
“
Depoimentos para Posteridade
”
do MIS);
·
Ind
ú
stria Cultural: letras de sambas de Francisco Alves da d
é
cada de 1930, letras dos
sambas atuais do cantor Diogo Nogueira, cat
á
logo de discos da gravadora Odeon dos
anos de 1929 e 1930;
·
Estado: entrevistas com funcion
á
rios do IPHAN (respons
á
veis pela execu
çã
o da
pol
í
tica de salvaguarda);
·
Agentes musealizadores: entrevistas com funcion
á
rios do MIS e do CCC, pesquisa nos
sites das duas institui
çõ
es.
É
importante mencionar que algumas fontes oferecem evid
ê
ncias da a
çã
o de mais de um
agente. Por exemplo, as entrevistas e depoimentos oferecem dados tanto para a an
á
lise da a
çã
o
Para tabula
çã
o e an
á
lise desses dados utilizou-se o sistema da an
á
lise de conte
ú
do. Esta
metodologia pode ser utilizada em uma grande variedade de tipos de discursos, baseia-se em
infer
ê
ncias, oscilando entre os polos
“
[...] do rigor da objetividade e da fecundidade da
subjetividade
”
(BARDIN, 2011, p. 15). Para a realiza
çã
o da interpreta
çã
o, por meio da an
á
lise de
conte
ú
do, foi necess
á
rio antes, realizar a codifica
çã
o dos dados,
à
qual foi feita por meio da
escolha de unidades de an
á
lise, de categorias de an
á
lise e da regra de contagem. A unidade de
an
á
lise escolhida foi o tema, que, segundo Bardin (2011),
“
[...]
é
a unidade de significa
çã
o que se
liberta naturalmente de um texto analisado segundo certos crit
é
rios relativos
à
teoria que serve de
guia
à
leitura
”
(BARDIN, 2011, p.134).
É
geralmente uma frase condensada, uma esp
é
cie de
resumo que
é
retirado de recortes realizados no texto.
Ap
ó
s a identifica
çã
o desses temas, os mesmos foram agrupados em categorias, que s
ã
o
classes com t
í
tulos gen
é
ricos, e que re
ú
nem temas semelhantes. Ap
ó
s a categoriza
çã
o, em
alguns casos, como na an
á
lise das letras, realizou-se a an
á
lise da frequ
ê
ncia, ou seja, o n
ú
mero
de repeti
çã
o de determinados temas (BARDIN, 2011). Deste trabalho inicial, geraram-se os
quadros que informam os temas, categorias de an
á
lise e frequ
ê
ncia
–
sendo que no caso
espec
í
fico da an
á
lise da a
çã
o dos agentes da musealiza
çã
o tamb
é
m se produziram quadros de
compara
çã
o entre o MIS e o CCC. As entrevistas foram transcritas na
í
ntegra, para que o leitor
tivesse acesso a todas as informa
çõ
es, mas, em nossa an
á
lise, n
ã
o foi poss
í
vel aproveit
á
-las por
inteiro. As partes das transcri
çõ
es que puderam ser analisadas foram sublinhadas. Ap
ó
s a
codifica
çã
o dos dados, foi feita, a partir do quadro te
ó
rico discutido no cap
í
tulo anterior, a an
á
lise
propriamente dita, e se chegou
à
s interpreta
çõ
es dos dados.
É
importante tamb
é
m tratar mais detalhadamente da metodologia utilizada nas entrevistas. No
que diz respeito
à
amostragem do grupo praticante e criador do samba, procurou-se aqueles
elementos da popula
çã
o que faziam partes das Escolas de Samba, apontadas pelo Dossi
ê
de
Registro das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro (2006), como as mais antigas, seriam elas:
Mangueira, Portela, Imp
é
rio Serrano, Vila Isabel, Salgueiro e Est
á
cio. Como existem diferentes
grupos relacionados
à
s Escolas de Samba, inicialmente a amostragem foi retirada das Velhas
Guardas, apontadas, tamb
é
m pelo Dossi
ê
(2006), como um dos setores mais ativos na
preserva
çã
o das tradi
çõ
es do samba.
Por
é
m, com o desenvolvimento do trabalho de campo, que incluiu tamb
é
m a participa
çã
o e
observa
çã
o direta do curso de forma
çã
o de Agentes Culturais do Samba, parte do plano de
salvaguarda, realizado pelo CCC em parceria com o IPHAN, nos s
á
bados de agosto e setembro
de 2012, percebemos que seria tamb
é
m importante incluir entrevistas com duas pessoas,
participantes deste curso e, que, portanto, puderam beneficiar-se diretamente de uma das a
çõ
es
do plano de salvaguarda. Com rela
çã
o aos entrevistados que fazem parte da escola Imp
é
rio
Serrano, n
ã
o foi poss
í
vel contatar nenhum integrante da Velha Guarda, por isso foram realizadas
damas. A ala das baianas tamb
é
m
é
considerada pelo Dossi
ê
(2006), um dos setores mais
tradicionais das escolas de samba. E a Entrevistada 9 (2012) que faz parte da ala das damas,
setor que re
ú
ne senhoras que j
á
est
ã
o na escola Imp
é
rio Serrano h
á
muitos anos, j
á
fez parte da
Velha Guarda, e sua larga experi
ê
ncia no universo do samba foi considerada relevante para a
pesquisa. Al
é
m disso, tamb
é
m se entrevistou dois dos membros da comunidade do samba que
coordenaram de perto o registro das matrizes. Neste
ú
ltimo caso, o objetivo maior foi
à
obten
çã
o
de informa
çõ
es acerca do processo de registro.
Na amostragem de funcion
á
rios do IPHAN, primeiramente foi entrevistada uma pessoa que
faz parte do Departamento do Patrim
ô
nio Imaterial dessa institui
çã
o, porque era a funcion
á
ria que
tinha o tempo dispon
í
vel para contribuir com a pesquisa. Ap
ó
s esta primeira entrevista, obtivemos
o nome da segunda funcion
á
ria que participou mais ativamente do processo de registro das
matrizes do samba. Com rela
çã
o aos agentes musealizadores, foram realizadas entrevistas com
os funcion
á
rios do MIS e do CCC que s
ã
o respons
á
veis pela pesquisa necess
á
ria para a
grava
çã
o dos depoimentos, e que, portanto, estavam mais aptos a esclarecerem d
ú
vidas acerca
dessas cole
çõ
es.
Os roteiros de entrevistas tiveram o objetivo, sobretudo, de compreender o n
í
vel de
participa
çã
o desses agentes (no caso, grupos praticantes, Estado, MIS e CCC) no processo de
patrimonializa
çã
o do samba. Na investiga
çã
o sobre a musealiza
çã
o, tamb
é
m se procurou
compreender especificamente as metodologias para a forma
çã
o das cole
çõ
es de depoimentos
dos agentes musealizadores. Na pesquisa acerca da participa
çã
o da popula
çã
o praticante do
samba, surgiram em v
á
rios momentos d
ú
vidas acerca dos elementos que, de fato, faziam parte
desses grupos, considerando-se o grande alcance e dissemina
çã
o do samba por diversas classes
sociais. Entendemos que, para compreender a a
çã
o desse grupo, era necess
á
rio saber tamb
é
m
como esse grupo se auto definia, quem era reconhecido como fazendo parte, ou n
ã
o, dessas
comunidades. Estas quest
õ
es tamb
é
m foram exploradas nos roteiros de entrevistas.
Seguindo as regras do Comit
ê
de
É
tica em pesquisa da Unirio (CEPE-UNIRIO), foi mantido
o anonimato dos entrevistados, e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE)
–
presente na se
çã
o 7 do Ap
ê
ndice. Algumas partes das entrevistas, que poderiam
identificar os entrevistados foram suprimidas. Estas supress
õ
es s
ã
o indicadas pelo s
í
mbolo [...].
As letras dos sambas de Francisco Alves e Diogo Nogueira aqui analisadas, foram obtidas
principalmente por meio de sites especializados em letras de m
ú
sicas. Depois disso, estas letras
foram corrigidas a partir da escuta das grava
çõ
es originais. As grava
çõ
es de Francisco Alves
foram obtidas no site do Instituto Mem
ó
ria Musical Brasileira (IMMUB), uma institui
çã
o n
ã
o
governamental, patrocinada pela Imprensa Oficial do Estado do Rio de janeiro, com apoio da
Pontif
í
cia Universidade Cat
ó
lica da cidade do Rio de Janeiro (PUC-RJ); e tamb
é
m no acervo do
4 Estrutura da disserta
çã
o
Como dito anteriormente, o processo de patrimonializa
çã
o do samba ser
á
analisado por meio
do enfoque nas a
çõ
es de alguns agentes: os grupos praticantes de samba, o Estado, a ind
ú
stria
cultural, o CCC e o MIS. O cap
í
tulo um apresenta o quadro te
ó
rico e, a partir dele, discutimos a
import
â
ncia e o car
á
ter das a
çõ
es desses agentes. Antes disso, realizamos uma breve discuss
ã
o
dos conceitos de patrim
ô
nio e patrimonializa
çã
o, necess
á
ria para que pud
é
ssemos demarcar o
in
í
cio do processo de patrimonializa
çã
o.
O cap
í
tulo dois apresenta os dados coletados durante a pesquisa de campo, e as
interpreta
çõ
es feitas a partir dessas informa
çõ
es, tendo como base o quadro te
ó
rico discutido no
cap
í
tulo dois. Finalmente, nas considera
çõ
es finais, retornamos aos nossos objetivos e
apresentamos nossas contribui
çõ
es para o entendimento do processo de patrimonializa
çã
o do
Cap
í
tulo
1
-
Patrim
ô
nio,
patrimonializa
çã
o,
samba
e
musealiza
çã
o
Para o entendimento do samba enquanto patrim
ô
nio, e para a demarca
çã
o do inicio do
processo de patrimonializa
çã
o, tornou-se necess
á
rio o estudo dos conceitos de patrim
ô
nio e
patrimonializa
çã
o. Esta investiga
çã
o nos mostrou que
é
necess
á
rio nos perguntar n
ã
o apenas o
que
é
o patrim
ô
nio, mas tamb
é
m quando algo
é
patrim
ô
nio. Depois de demarcar o in
í
cio desse
processo, foi poss
í
vel perceber a
çõ
es de diferentes agentes, que trabalharam para que em algum
momento, o samba se tornasse um dos elementos formadores da identidade brasileira.
Em seguida, concentramos nossas an
á
lises nas a
çõ
es de alguns agentes que foram
importantes neste processo: os grupos criadores e praticantes de samba, o Estado, a ind
ú
stria
cultural e institui
çõ
es museol
ó
gicas. Tamb
é
m discutimos o conceito e as pr
á
ticas de
musealiza
çã
o, que no caso do samba carioca, aparecem de maneira articulada
à
patrimonializa
çã
o. Analisaremos esta articula
çã
o mais especificamente no momento do registro
das matrizes do samba no Rio de Janeiro pelo IPHAN, em 2007.
1 Patrim
ô
nio e patrimonializa
çã
o
A defini
çã
o do conceito de patrim
ô
nio
é
uma preocupa
çã
o que perpassa o trabalho de
diversos autores, mesmo quando o objetivo principal de alguns deles, n
ã
o se constitua
propriamente em alcan
ç
ar uma defini
çã
o do termo. Para a an
á
lise do processo de
patrimonializa
çã
o do samba carioca este questionamento
é
importante para a compreens
ã
o desta
manifesta
çã
o enquanto patrim
ô
nio cultural, articulador de elementos formadores da identidade
nacional. Ao definirmos o patrim
ô
nio, poderemos identificar quando se inicia o processo de
patrimonializa
çã
o do samba, ou seja, quando o samba afinal torna-se patrim
ô
nio e assim, a partir
de um marco inicial, analisar os discursos que constru
í
ram e agiram nesse processo.
Se considerarmos que o processo de patrimonializa
çã
o do samba inicia-se apenas nos
anos 2000, com o in
í
cio dos esfor
ç
os para o registro dessa manifesta
çã
o no
â
mbito do IPHAN,
pesquisaremos e analisaremos apenas os agentes que participaram desse momento. Mas, se
considerarmos que houve um
“
investimento
”
do Estado, provavelmente embasado em discursos
de intelectuais, nas d
é
cadas de 1920 e 1930, fora do
â
mbito do IPHAN, que transformaram o
samba carioca (e n
ã
o o paulista ou o baiano) em um dos s
í
mbolos da identidade brasileira,
ter
í
amos a
í
, mais aspectos e agentes para a an
á
lise. Poder
í
amos tamb
é
m considerar a a
çã
o das
ind
ú
strias fonogr
á
fica e radiof
ô
nica, anterior
à
d
é
cada de 1920, que contribuiu para a
dissemina
çã
o do samba por outras parcelas da popula
çã
o brasileira. Por
ú
ltimo, poder
í
amos
afro-nordestinas que residiam nas
á
reas pobres da cidade do Rio de Janeiro. Para a defini
çã
o de
um marco inicial desse processo e a consequente identifica
çã
o de agentes,
é
necess
á
rio o
entendimento do que os autores que contribuem para o Campo do Patrim
ô
nio definem como
sendo patrim
ô
nio, ou quando algo pode ser assim considerado.
O objetivo principal de Choay (2006) n
ã
o
é
exatamente definir o conceito de patrim
ô
nio,
mas sim compreender quais as causas do que a autora denomina de
“
infla
çã
o patrimonial
”
, ou
seja, o espantoso crescimento, a partir da d
é
cada de 1960, do n
ú
mero de bens considerados, em
â
mbito oficial,
–
seja por Estados nacionais ou organiza
çõ
es como a UNESCO
–
como
patrim
ô
nios. Por
é
m, para atingir seu objetivo, a autora analisa a origem do termo patrim
ô
nio
hist
ó
rico, procurando compreender o momento em que as sociedades ocidentais passam a
denominar algo de patrim
ô
nio.
É
por esse motivo que podemos, apesar da autora n
ã
o definir
expressamente, inferir o que Choay (2006) em sua pesquisa, definiu como sendo o patrim
ô
nio.
Primeiramente trata-se de uma vis
ã
o e defini
çã
o europeia do conceito, entendido
principalmente a partir do contexto hist
ó
rico da Fran
ç
a. Em segundo lugar, a autora est
á
analisando um determinado tipo de patrim
ô
nio, o patrim
ô
nio material dito hist
ó
rico, mais
precisamente o patrim
ô
nio constitu
í
do por edifica
çõ
es
–
patrim
ô
nio im
ó
vel. O samba carioca n
ã
o
é
um patrim
ô
nio im
ó
vel,
é
uma manifesta
çã
o classificada como patrim
ô
nio imaterial
6. A no
çã
o deste
tipo de patrim
ô
nio
é
constru
í
da depois da Segunda Guerra Mundial, por meio de documentos da
UNESCO destinados a regulamentar sua preserva
çã
o
7. Utilizaremos mais autores que tratam do
patrim
ô
nio material, ent
ã
o, torna-se necess
á
rio o entendimento dessa dicotomia.
Apesar de o campo profissional separar nitidamente as pr
á
ticas e pol
í
ticas de preserva
çã
o
do patrim
ô
nio material, das mesmas relacionadas ao patrim
ô
nio imaterial, alguns autores veem a
divis
ã
o entre patrim
ô
nio material e imaterial como sendo artificial. Sant
’
Anna (2009) descreve o
processo de constru
çã
o da no
çã
o de patrim
ô
nio imaterial, ap
ó
s o fim da Segunda Guerra, como
um processo de amplia
çã
o do conceito de patrim
ô
nio, se antes ele estava principalmente
vinculado aos monumentos e edif
í
cios, aos poucos a import
â
ncia de aspectos imateriais ou
intang
í
veis vai se tornando mais aparente. Assim, o que teria acontecido n
ã
o foi a cria
çã
o de um
conceito novo (o patrim
ô
nio imaterial), mas sim, a crescente
ê
nfase da imaterialidade que
é
inerente a materialidade do patrim
ô
nio, sendo estes dois aspectos insepar
á
veis (SANT
’
ANNA,
6
A Conven
ção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural da UNESCO (2006), define esse tipo de patrimônio da seguinte forma: “1. Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável” (UNESCO, 2006, p. 2)7
2009). Seguindo este pensamento, v
á
rias an
á
lises do patrim
ô
nio material levantam
questionamentos que tamb
é
m surgem quando analisamos um patrim
ô
nio imaterial, no caso, o
samba carioca, e auxiliam para o entendimento da din
â
mica do patrim
ô
nio como um todo.
Assim, no contexto da pesquisa em torno do entendimento do samba enquanto patrim
ô
nio,
a principal contribui
çã
o de Choay (2006)
é
a compreens
ã
o de que a a
çã
o do Estado
é
decisiva
para a defini
çã
o dos patrim
ô
nios. Em sua busca pelo momento de surgimento do conceito de
patrim
ô
nio hist
ó
rico, a autora retorna
à
Idade Antiga e segue at
é
o s
é
culo XX, analisando as
rela
çõ
es entre sociedade e patrim
ô
nio. Neste percurso, nota-se que o crit
é
rio utilizado pela autora
para o surgimento do conceito
é
justamente a exist
ê
ncia, ou n
ã
o, de documentos e/ou dispositivos
jur
í
dicos que se preocuparam com a preserva
çã
o de bens. Ent
ã
o, na Idade Antiga e na Idade
M
é
dia, apesar de existirem pr
á
ticas de preserva
çã
o deliberadas, n
ã
o h
á
ainda uma organiza
çã
o
(com aparelho jur
í
dico e instrumentos de preserva
çã
o) capaz de definir a preserva
çã
o e o
patrim
ô
nio no sentido que conhecemos. No Renascimento, a autora localiza o surgimento do
conceito de monumento hist
ó
rico, esp
é
cie de antepassado do patrim
ô
nio hist
ó
rico. Apenas
é
poss
í
vel estabelecer o surgimento desse antepassado, porque foi nesse momento que surgiu uma
preocupa
çã
o sistem
á
tica do clero com edif
í
cios considerados importantes, devido a valores
art
í
sticos e hist
ó
ricos. Esta preocupa
çã
o gerou as bulas papais, primeiros documentos que se
ocupavam especificamente da preserva
çã
o dos monumentos. Ou seja, o monumento hist
ó
rico
como tal, se constitui porque h
á
o surgimento de alguns mecanismos de prote
çã
o.
Mas, n
ã
o
é
nesse momento, segundo Choay (2006), que o conceito de patrim
ô
nio hist
ó
rico
se constitui integralmente, e sim no per
í
odo ap
ó
s a Revolu
çã
o Francesa, primeiro momento em
que surge na Fran
ç
a um aparelho jur
í
dico e t
é
cnico de preserva
çã
o do patrim
ô
nio hist
ó
rico,
resultando na prote
çã
o efetiva de um n
ú
mero consider
á
vel de bens
–
diferentemente das bulas
papais que n
ã
o conseguiram parar o
í
mpeto destruidor dos pr
ó
prios agentes do clero.
É
nesse
momento tamb
é
m, que o patrim
ô
nio teria se vinculado aos discursos nacionais, sendo sua
preserva
çã
o justificada a partir principalmente do valor nacional. Fonseca (2009) - que focaliza
sua an
á
lise nas pol
í
ticas p
ú
blicas de preserva
çã
o do IPHAN no Brasil - concorda com Choay e
tamb
é
m localiza o surgimento da no
çã
o moderna de patrim
ô
nio na Revolu
çã
o Francesa. As
pr
á
ticas brasileiras de conserva
çã
o do patrim
ô
nio material herdaram o modelo de preserva
çã
o
franc
ê
s, de car
á
ter estatal e centralizador, baseado na no
çã
o de patrim
ô
nio regulamentado, que
atende aos interesses do Estado (FONSECA, 2009).
Portanto, para Choay e Fonseca, o patrim
ô
nio
é
patrim
ô
nio somente a partir de sua
institucionaliza
çã
o, no momento em que o Estado realiza uma opera
çã
o de valora
çã
o de um bem.
O desenvolvimento do conceito est
á
vinculado ao tamb
é
m desenvolvimento de uma legisla
çã
o
espec
í
fica. Nessas leituras, a valora
çã
o por parte da comunidade (seja ela francesa ou brasileira)
patrim
ô
nio prov
é
m da teoria civilista do Direito
8e fundamenta-se na no
çã
o de
“
coisa
”
, considerada
a partir de uma concep
çã
o alargada, que a define como algo que pode ser tanto material quanto
imaterial. O autor tamb
é
m diferencia
“
bem
”
de patrim
ô
nio: o bem seria uma
“
coisa
”
que passou
por uma opera
çã
o de valora
çã
o, que recebeu um valor; e o patrim
ô
nio seria um bem ao qual foi
atribu
í
do um valor por parte do Estado. Assim, o gr
á
fico abaixo, lido debaixo para cima, ilustra
essas opera
çõ
es:
“
Patrim
ô
nio cultural
↑
←
valor (2)
Bem cultural
↑
←
valor (1)
”
Coisa (TELLES, 2010, p. 21)
Dessa maneira, o autor concorda com Choay e Fonseca, na medida em que a valora
çã
o
por parte do Estado
é
essencial para que um bem se torne patrim
ô
nio. A novidade trazida
é
considerar o
“
valor 1
”
, ou seja, o valor atribu
í
do por uma comunidade espec
í
fica a um bem, como
sendo parte do processo geral (ou macro-processo) de patrimonializa
çã
o e, portanto, tamb
é
m
essencial para a no
çã
o de patrim
ô
nio. Enquanto Telles afirma que esta primeira valora
çã
o
realizada por comunidades transforma uma
“
coisa
”
em bem, para Gon
ç
alves (2009), este primeiro
momento define o patrim
ô
nio propriamente dito. Para este autor, o patrim
ô
nio
é
uma categoria do
pensamento, ou seja, um ideia ou conceito, presente em todas as sociedades humanas. A partir
da perspectiva da Antropologia, Gon
ç
alves entende que o patrim
ô
nio n
ã
o
é
uma inven
çã
o
moderna, que surgiu no momento da Revolu
çã
o Francesa
–
assim como afirmam Choay (2006) e
Fonseca (2009)
–
mas sim uma categoria de car
á
ter milenar que est
á
presente inclusive em
sociedades tribais, sendo extremamente importante para a vida social e mental de qualquer
coletividade humana.
Scheiner (2004), assim como Gon
ç
alves, tamb
é
m trata da dimens
ã
o n
ã
o oficial do
8
Alguns autores mencionam a origem do termo patrimônio no próprio Direito Romano, matriz para a construção do Direito no Brasil. Lima e Costa (2006) trazem a informação de que o termo patrimônio foi registrado pela primeira vez na Lei das XII Tábuas, parte do Direito Romano. Desvallés e Mairesse (2010) diferenciam o entendimento dos romanos de patrimônio e o entendimento das sociedades da Idade Moderna. Em Roma, a noção de patrimônio designava o conjunto de bens transmitidos por pais aos seus filhos, seriam os bens de família em oposição aos bens matrimoniais.