Como vimos na seção anterior, o diálogo entre samba e indústria fonográfica acontece
desde pelo menos 1917. Foi por volta deste ano que ocorreu a passagem do samba folclórico, de
herança predominantemente rural e baiana, e em sua maioria, sem autor definido (ou de autoria
coletiva), para o samba urbano, considerado moderno, com autoria definida e apropriado pela
ainda nascente indústria fonográfica brasileira. Esta passagem foi permeada por um intenso
diálogo entre membros dos primeiros grupos praticantes de samba e profissionais do mercado
fonográfico ainda em formação. Outra característica importante deste período foi a prática da
apropriação de sambas sem autoria definida (isto é, que não estavam vinculados a nenhum autor
em particular, por serem, me geral, obras de produção coletiva), presentes nas ruas da cidade do
Rio de Janeiro. Estes sambas apropriados passavam a ter autoria definida, para que pudessem
ingressar neste mercado fonográfico (SANDRONI, 2001)
A prática da apropriação que nos referimos, é aquela onde um samba de autoria indefinida
e/ou coletiva, era apropriado por um compositor específico que assumia a condição de autor da
composição. Inicialmente, esta prática era comum e naturalizada, mas, a partir de 1920 se
estabelece a compra e venda de sambas. Havia várias modalidades de compra: a total, ou seja, o
sambista autor vendia os direitos autorais, e também não aparecia como autor; a parcial, quando
eram vendidos os direitos autorais, mas o sambista mantinha a autoria. Havia ainda o caso da
permuta da gravação do samba (possibilidade dada apenas aquele já inserido no mercado de
discos, um cantor, por exemplo) pela cessão de parte dos direitos autorais. Neste último caso, se
estabelecia uma parceria, onde a autoria do samba era compartilhada entre dois ou mais
indivíduos. Portanto, havia àépoca parcerias em termos da composição da estrutura musical e/ou
da letra da composição, e outras que surgiam como resultado dessas barganhas (SANDRONI,
2001).
Esta última prática era largamente utilizada, por exemplo, pelo cantor Francisco Alves
22e
pelos sambistas do Estácio – e por isso, já
àépoca, eles receberam várias críticas de intelectuais
do período. Estas práticas poderiam ser entendidas como negativas, e neste sentido, poder-se-ia
entender que alguns participantes do mercado fonográfico estariam tirando vantagem dos
sambistas, que viviam em situação economicamente precária, pagando-lhe valores muito baixos
pelos sambas, e ainda assumindo uma autoria que musicalmente não era efetiva. Porém,
Sandroni esclarece que os próprios sambistas da época não viam problema neste tipo de
negociação. Por esse meio, os compositores descobriam o valor monetário de algo que, até há
pouco tempo, era considerado obra de uso coletivo, podiam auferir ganhos, e inserir-se (ainda que
às vezes anonimamente) no nascente mercado cultural moderno (SANDRONI, 2001). Então,
percebe-se que os sambistas do período estavam interessados em entrar na lógica industrial do
nascente
mercado
cultural,
podendo,
dessa
maneira,
divulgar
suas
composições,
profissionalizaram-se e auferirem lucros.
Nesta relação entre participantes da lógica industrial fonográfica e compositores de samba
das classes menos abastadas do período, há ainda o diálogo propriamente musical. O samba das
ruas era praticado principalmente por meio de refrãos cantados em coro, intercalados por
22
Francisco Alves (1898 – 1952) foi o primeiro a realizar a gravação de um disco elétrico no Brasil e, já na década de 1920, fez grande sucesso no rádio interpretando composições do sambista Sinhô. Posteriormente, gravou vários sambas dos compositores do bairro do Estácio (DINIZ, 2008).
improvisos de uma voz solista. Todavia, na década de 1930, há a entrada da segunda parte fixa,
no vocabulário e na prática do samba, ou seja, a substituição dos improvisos por melodias fixas
compostas previamente (e, aos poucos, a prática do improviso vai decaindo). Assim, muitos
compositores que já estavam inseridos na indústria fonográfica aproveitavam refrãos cantados
nas ruas e botequins da cidade, e criaram para eles partes fixas que substituíram os improvisos
(SANDRONI, 2001).
A adesão a partes fixas na música era a condição para entrada no universo da música
popular urbana, e inserida na lógica do mercado - é a isso que se refere o processo de
padronização da indústria cultural, isto é, a produção de mecanismos que possam controlar as
manifestações culturais, para que elas possam ser controladas, repetidas e reconhecidas. Por
outro lado, o samba no contexto social das ruas, botequins, blocos etc., independia da existência
de partes previamente compostas. Assim, “Não faz, amor”– parceria de Noel Rosa com Cartola –
teria sido refrão da Mangueira no desfile de 1932. “Sorrindo sempre”
– parceria de Noel com
Grandim - também começou no desfile da Mangueira de 1932. “Fita Amarela” era inicialmente um
estribilho conhecido no bairro do Estácio e em São João de Meriti, para o qual Noel compôs
partes fixas (SANDRONI, 2001).
Com a disseminação da prática da composição das partes fixas nos sambas, os próprios
compositores, que não estavam inseridos no mercado de discos, e que inicialmente estavam
realizando sambas improvisados, começaram também a compor partes fixas, para assim
produzirem sambas prontos para serem gravados (SANDRONI, 2001). Observa-se então, um
diálogo entre o samba que era realizado nas ruas, de herança rural e baiana – e mais próximo do
que hoje é denominado de matrizes pelo Dossiê (2006) - e o samba já apropriado pela indústria
fonográfica, com as instâncias modificando-se mutuamente.
Assim, como descrito por Guillaume (2003), o samba da produção em massa, estava
sempre - por meio da utilização de refrãos musicais presentes na vida cotidiana, mas sem autoria
definida - fazendo menção ao samba de herança folclórica e baiana, e, de certa maneira, também
se apresentando como herdeiro dessas tradições. O que em muitos casos, não deixava de ser
verdade, já que de fato os sambistas ao se profissionalizarem, traziam para a esfera da nascente
indústria fonográfica, suas vivências e experiências nas casas das Tias Baianas, nas rodas de
partido-alto, de batucada, etc. Assim, quando o samba era lançado, ele já era conhecido,
permitindo que a possibilidade de lucro fosse maior do que a de perdas financeiras.
Nestas primeiras ações da indústria fonográfica, percebemos dois aspectos. Primeiro o da
divulgação, importante para aceitação do samba entre as outras classes sociais e, mais tarde para
sua fixação como um dos elementos da identidade nacional. Segundo, a utilização do samba,
patrimônio de um determinado grupo, para a produção de um bem de consumo, que já vai para o
mercado tendo atrás de si uma linha de continuidade com os modos de vida de um determinado
grupo social
e assim, também, se tornar patrimônio de muitos. Neste primeiro momento, esses
sambas do universo do consumo eram produtos destinados a atender a uma elite que tinha gosto
pelo que, à
época, era considerado exótico - assim como anteriormente descrito na seção 2 deste
capítulo, a partir das considerações de Viana (2010). Assim, o samba, antes pertencente à vida
cotidiana, com forte caráter criativo, é etiquetado como gênero e organizado por meio da adesão à
parte fixa, seguindo a operação de esquematismo da indústria cultural, descrita por Adorno e
Horkheimer (1985).
Nesta passagem, o que não servia aos propósitos da indústria cultural, como por exemplo,
o improviso, foi excluído. A improvisação depende das variáveis momentâneas do contexto, e por
isso se presta muito pouco a padronizações, como por exemplo, a parte fixa. Como se fixar um
improviso? Se o improviso é fixado, já não é mais improviso.
Por fim, retornando aos apontamentos do Dossiê (2006), há a questão, mencionada na
seção anterior, da dificuldade dos sambistas tradicionais de fazerem circular a sua produção. Isso
não acontece com todos os compositores, como vimos, no passado e atualmente, alguns
sambistas conseguem se profissionalizar e entrar no mercado musical, passando a fazer parte da
engrenagem. Isso porque, como descrito por Adorno e Horkheimer (1985), o funcionamento da
industrial cultural prevê que apenas poucos entrem no seu ciclo, e depois disso se tornem astros e
estrelas. O motivo da entrada desses escolhidos é o acaso, a sorte, ou a integração em uma rede
de relações, e na máquina publicitária, ou ainda o interesse político etc. De qualquer maneira, o
que se procura veicular é que o esforço do trabalho nada adianta, já que este é substituído por
determinados fatores que se configuram apenas para poucos. Em última instância, o objetivo é a
anestesia do senso crítico, provocada por um lado, pela esperança de ser aleatoriamente
escolhido, e por outro, pela impressão geral de que seu esforço e trabalho não são capazes de
provocar mudanças na sua condição de vida.
No documento
Um estudo de caso do samba carioca
(páginas 46-49)