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O samba e a ind ú stria fonogr á fica

No documento Um estudo de caso do samba carioca (páginas 46-49)

Como vimos na seção anterior, o diálogo entre samba e indústria fonográfica acontece

desde pelo menos 1917. Foi por volta deste ano que ocorreu a passagem do samba folclórico, de

herança predominantemente rural e baiana, e em sua maioria, sem autor definido (ou de autoria

coletiva), para o samba urbano, considerado moderno, com autoria definida e apropriado pela

ainda nascente indústria fonográfica brasileira. Esta passagem foi permeada por um intenso

diálogo entre membros dos primeiros grupos praticantes de samba e profissionais do mercado

fonográfico ainda em formação. Outra característica importante deste período foi a prática da

apropriação de sambas sem autoria definida (isto é, que não estavam vinculados a nenhum autor

em particular, por serem, me geral, obras de produção coletiva), presentes nas ruas da cidade do

Rio de Janeiro. Estes sambas apropriados passavam a ter autoria definida, para que pudessem

ingressar neste mercado fonográfico (SANDRONI, 2001)

A prática da apropriação que nos referimos, é aquela onde um samba de autoria indefinida

e/ou coletiva, era apropriado por um compositor específico que assumia a condição de autor da

composição. Inicialmente, esta prática era comum e naturalizada, mas, a partir de 1920 se

estabelece a compra e venda de sambas. Havia várias modalidades de compra: a total, ou seja, o

sambista autor vendia os direitos autorais, e também não aparecia como autor; a parcial, quando

eram vendidos os direitos autorais, mas o sambista mantinha a autoria. Havia ainda o caso da

permuta da gravação do samba (possibilidade dada apenas aquele já inserido no mercado de

discos, um cantor, por exemplo) pela cessão de parte dos direitos autorais. Neste último caso, se

estabelecia uma parceria, onde a autoria do samba era compartilhada entre dois ou mais

indivíduos. Portanto, havia àépoca parcerias em termos da composição da estrutura musical e/ou

da letra da composição, e outras que surgiam como resultado dessas barganhas (SANDRONI,

2001).

Esta última prática era largamente utilizada, por exemplo, pelo cantor Francisco Alves

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e

pelos sambistas do Estácio – e por isso, já

àépoca, eles receberam várias críticas de intelectuais

do período. Estas práticas poderiam ser entendidas como negativas, e neste sentido, poder-se-ia

entender que alguns participantes do mercado fonográfico estariam tirando vantagem dos

sambistas, que viviam em situação economicamente precária, pagando-lhe valores muito baixos

pelos sambas, e ainda assumindo uma autoria que musicalmente não era efetiva. Porém,

Sandroni esclarece que os próprios sambistas da época não viam problema neste tipo de

negociação. Por esse meio, os compositores descobriam o valor monetário de algo que, até há

pouco tempo, era considerado obra de uso coletivo, podiam auferir ganhos, e inserir-se (ainda que

às vezes anonimamente) no nascente mercado cultural moderno (SANDRONI, 2001). Então,

percebe-se que os sambistas do período estavam interessados em entrar na lógica industrial do

nascente

mercado

cultural,

podendo,

dessa

maneira,

divulgar

suas

composições,

profissionalizaram-se e auferirem lucros.

Nesta relação entre participantes da lógica industrial fonográfica e compositores de samba

das classes menos abastadas do período, há ainda o diálogo propriamente musical. O samba das

ruas era praticado principalmente por meio de refrãos cantados em coro, intercalados por

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Francisco Alves (1898 – 1952) foi o primeiro a realizar a gravação de um disco elétrico no Brasil e, já na década de 1920, fez grande sucesso no rádio interpretando composições do sambista Sinhô. Posteriormente, gravou vários sambas dos compositores do bairro do Estácio (DINIZ, 2008).

improvisos de uma voz solista. Todavia, na década de 1930, há a entrada da segunda parte fixa,

no vocabulário e na prática do samba, ou seja, a substituição dos improvisos por melodias fixas

compostas previamente (e, aos poucos, a prática do improviso vai decaindo). Assim, muitos

compositores que já estavam inseridos na indústria fonográfica aproveitavam refrãos cantados

nas ruas e botequins da cidade, e criaram para eles partes fixas que substituíram os improvisos

(SANDRONI, 2001).

A adesão a partes fixas na música era a condição para entrada no universo da música

popular urbana, e inserida na lógica do mercado - é a isso que se refere o processo de

padronização da indústria cultural, isto é, a produção de mecanismos que possam controlar as

manifestações culturais, para que elas possam ser controladas, repetidas e reconhecidas. Por

outro lado, o samba no contexto social das ruas, botequins, blocos etc., independia da existência

de partes previamente compostas. Assim, “Não faz, amor”– parceria de Noel Rosa com Cartola –

teria sido refrão da Mangueira no desfile de 1932. “Sorrindo sempre”

– parceria de Noel com

Grandim - também começou no desfile da Mangueira de 1932. “Fita Amarela” era inicialmente um

estribilho conhecido no bairro do Estácio e em São João de Meriti, para o qual Noel compôs

partes fixas (SANDRONI, 2001).

Com a disseminação da prática da composição das partes fixas nos sambas, os próprios

compositores, que não estavam inseridos no mercado de discos, e que inicialmente estavam

realizando sambas improvisados, começaram também a compor partes fixas, para assim

produzirem sambas prontos para serem gravados (SANDRONI, 2001). Observa-se então, um

diálogo entre o samba que era realizado nas ruas, de herança rural e baiana – e mais próximo do

que hoje é denominado de matrizes pelo Dossiê (2006) - e o samba já apropriado pela indústria

fonográfica, com as instâncias modificando-se mutuamente.

Assim, como descrito por Guillaume (2003), o samba da produção em massa, estava

sempre - por meio da utilização de refrãos musicais presentes na vida cotidiana, mas sem autoria

definida - fazendo menção ao samba de herança folclórica e baiana, e, de certa maneira, também

se apresentando como herdeiro dessas tradições. O que em muitos casos, não deixava de ser

verdade, já que de fato os sambistas ao se profissionalizarem, traziam para a esfera da nascente

indústria fonográfica, suas vivências e experiências nas casas das Tias Baianas, nas rodas de

partido-alto, de batucada, etc. Assim, quando o samba era lançado, ele já era conhecido,

permitindo que a possibilidade de lucro fosse maior do que a de perdas financeiras.

Nestas primeiras ações da indústria fonográfica, percebemos dois aspectos. Primeiro o da

divulgação, importante para aceitação do samba entre as outras classes sociais e, mais tarde para

sua fixação como um dos elementos da identidade nacional. Segundo, a utilização do samba,

patrimônio de um determinado grupo, para a produção de um bem de consumo, que já vai para o

mercado tendo atrás de si uma linha de continuidade com os modos de vida de um determinado

grupo social

e assim, também, se tornar patrimônio de muitos. Neste primeiro momento, esses

sambas do universo do consumo eram produtos destinados a atender a uma elite que tinha gosto

pelo que, à

época, era considerado exótico - assim como anteriormente descrito na seção 2 deste

capítulo, a partir das considerações de Viana (2010). Assim, o samba, antes pertencente à vida

cotidiana, com forte caráter criativo, é etiquetado como gênero e organizado por meio da adesão à

parte fixa, seguindo a operação de esquematismo da indústria cultural, descrita por Adorno e

Horkheimer (1985).

Nesta passagem, o que não servia aos propósitos da indústria cultural, como por exemplo,

o improviso, foi excluído. A improvisação depende das variáveis momentâneas do contexto, e por

isso se presta muito pouco a padronizações, como por exemplo, a parte fixa. Como se fixar um

improviso? Se o improviso é fixado, já não é mais improviso.

Por fim, retornando aos apontamentos do Dossiê (2006), há a questão, mencionada na

seção anterior, da dificuldade dos sambistas tradicionais de fazerem circular a sua produção. Isso

não acontece com todos os compositores, como vimos, no passado e atualmente, alguns

sambistas conseguem se profissionalizar e entrar no mercado musical, passando a fazer parte da

engrenagem. Isso porque, como descrito por Adorno e Horkheimer (1985), o funcionamento da

industrial cultural prevê que apenas poucos entrem no seu ciclo, e depois disso se tornem astros e

estrelas. O motivo da entrada desses escolhidos é o acaso, a sorte, ou a integração em uma rede

de relações, e na máquina publicitária, ou ainda o interesse político etc. De qualquer maneira, o

que se procura veicular é que o esforço do trabalho nada adianta, já que este é substituído por

determinados fatores que se configuram apenas para poucos. Em última instância, o objetivo é a

anestesia do senso crítico, provocada por um lado, pela esperança de ser aleatoriamente

escolhido, e por outro, pela impressão geral de que seu esforço e trabalho não são capazes de

provocar mudanças na sua condição de vida.

No documento Um estudo de caso do samba carioca (páginas 46-49)

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